CRUZ E SOUSA: A VERVE SATÍRICA CONTRA O PRECONCEITO E A DISCRIMINAÇÃO
CRUZ E SOUSA: A VERVE SATÍRICA CONTRA O PRECONCEITO E A DISCRIMINAÇÃO
Afro-Ásia, núm. 53, pp. 115-147, 2016
Universidade Federal da Bahia
Recepção: 02 Abril 2015
Aprovação: 06 Abril 2016
Resumo: O presente artigo discute dois aspectos importantes da trajetória do poeta sim- bolista João da Cruz e Sousa. O primeiro deles refere-se às relações familiares e de solidariedade construídas pelo poeta com seus pais. O segundo diz respeito à sua participação na imprensa de Desterro como literato engajado na causa abolicionista, na segunda metade do século XIX, e à sua luta contra os limites raciais e sociais. Por meio de seus escritos, Cruz e Souza satirizava e protestava contra uma sociedade canhestra, racista e excludente.
Palavras-chave: imprensa, literatura , memória.
Abstract: This paper discusses two important aspects of the life of the symbolist poet Cruz e Sousa. The first aspect refers to the poet´s relationships with his family and and other social members of his network of solidarity. The second relates to his participation in the Desterro press as an engaged intellectual of the abolitionist cause in the second half of the nineteenth century and his struggle against social and racial boundaries. In his writings he protested and satirized society for its clumsiness, its racism and its exclusionary attitudes.
Keywords: Press, Literature , Memory.
Em 19 de março de 2015, completaram-se 116 anos da morte do poeta simbolista João da Cruz e Sousa, falecido em 19 de março de 1898 na Estação de Sítio, Minas Gerais, em decorrência de tuberculose e de seu estado de saúde debilitado. Na atual Florianópolis, sua terra natal, o nome Cruz e Sousa é lembrado como sinônimo de cultura,[1] suas experiências sobrevivem em uma espécie de passado mitificado e sacralizado, sua memória foi transformada pela elite local em monumento e seu nome elevado ao posto de principal representante da literatura local. Na área central da cidade, passou a dar nome a um conjunto de instituições como o antigo Palácio do Governo, atualmente Palácio Cruz e Sousa, edifício que abrigou o Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina e abriga atualmente o Museu Cruz e Sousa. Bem poucos se interessam por sua história de vida, menos ainda são aqueles que buscam conhecer os limites de classe e cor impostos a um homem livre de cor. A maioria dos trabalhos publicados sobre o poeta simbolista encontra-se no campo da Teoria e da Crítica Literária. Outros estudos, produzidos por jornalistas e memorialistas, abordam a relação sujeito e obra sob a perspectiva biográfica, construindo uma narrativa enaltecedora, que não permite ver as diferenças sociais, as relações de poder e as táticas e estratégias forjadas por diferentes sujeitos no interior de uma conjuntura social em mudança. Este artigo tem como objetivo a releitura de parte de sua trajetória, marcada pelos limites de classe e cor impostos às suas ações, em um contexto de discussões em torno do fim da escravidão no Brasil e da instauração da República. Busca, ainda, colocar em evidência as relações familiares e de solidariedade construídas pelo poeta e seu engajamento na causa abolicionista. Em seus protestos, a sátira foi a alternativa escolhida para denunciar o racismo e a exclusão social.
O dândi negro
O exame de aspectos da trajetória de Cruz e Souza foi motivado e norteado não somente pela possibilidade de uma abordagem histórica, como também pelo estabelecimento de uma possível relação entre História e Literatura.
Nas últimas décadas, os textos literários
[...] passaram a ser vistos pelos historiadores como materiais propícios a múltiplas leituras, especialmente por sua riqueza de significados para o entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das subjetividades de homens e mulheres no tempo.[2]
Ao analisar trechos das poesias escritas em prosa por Cruz e Sousa e publicadas na obra Missal, identificam-se, por exemplo, características que o situam entre a representação do mundo e das realidades sociais, bem como a criação de universos utópicos, por meio da linguagem simbólica. No que se refere às questões sociais de seu tempo, assume uma posição engajada de crítica social, apontando os preconceitos de classe e cor, e negando-se a produzir a literatura sorriso do final do século XIX. O poeta optou por uma literatura que mostrava as mazelas e o empobrecimento do espírito naquela sociedade. Quanto aos aspectos ficcionais de sua obra, vale lembrar que
[...] toda ficção está sempre enraizada na sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações sociais que o escritor cria seus mundos de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou inventando formas de linguagem.[3]
Em relação à sua trajetória, um aspecto importante observado na literatura sobre Cruz e Sousa é a presença de assertivas generalizantes, como a ausência de relações afetivas com seus pais e a imagem de um poeta que assimilou os valores civilizatórios, o poeta de “alma branca”, como tentativa de ignorar sua origem africana e os dilemas e desigual- dades produzidos pela própria instituição, a escravidão. A partir dessas questões iniciais, busca-se dar a Cruz e Sousa uma nova abordagem, dessa vez pelo viés da história social, procurando iluminar alguns aspectos de sua vida ainda obscuros como, por exemplo, a relação com seu pai, a herança africana presente em sua poesia, a participação na causa abolicionista e sua crítica aos costumes, ao racismo e à exclusão social.
O esmiuçar de suas experiências e a leitura de seus escritos, alguns publicados somente após a sua morte, possibilitaram perceber um sentimento de desilusão e desencanto com sua época, sentimento que deu origem a uma sensibilidade decadentista, tendo sido essa a forma estética encontrada por Cruz e Sousa para mostrar seu desencanto e des- gosto pela sociedade. A memória sobre sua trajetória revisitada a partir de seus escritos, cartas, poemas e colunas de jornais permitiu fugir de um discurso normativo totalizante e hegemônico sobre ele, que o coloca em um único lugar: o dos vencidos pelas vicissitudes.
Sua trajetória começa na cidade de Desterro, capital da Província de Santa Catarina no último quartel do século XIX, período marcado por conflitos como a Guerra do Paraguai, pelas mudanças políticas e sociais ocasionadas pela abolição do trabalho escravo e pela Proclamação da República. Ao mesmo tempo, chegava ao Brasil um conjunto de teorias e correntes filosóficas como o positivismo, o evolucionismo, o materialismo, o liberalismo e as teorias raciais, que por aqui aportaram no final da segunda metade do referido século. Antes, porém, o fim do tráfico de escravos, a aprovação das Leis Rio Branco (Ventre Livre) e Saraiva Cotegipe (Sexagenários) e a intensificação do tráfico interno de cativos contribuíram para mudanças na conjuntura social e econômica no país. Acrescente-se a propagação das teorias raciais, apresentadas aos intelectuais pelos viajan- tes europeus, como é caso de Louis Agassiz, teórico bastante estudado e respeitado no Brasil, que chegou a dar cursos para a elite pensante sobre as diferenças raciais e os efeitos nocivos da degenerescência.[4] O debate e a divulgação de tais ideias promoveram, ao longo dos anos, um recrudescimento nas relações entre africanos e afrodescendentes e os eurodescen- dentes, hierarquizando e naturalizando as diferenças.
Hebe Mattos, ao trazer para o debate a noção de raça e desigualdade na sociedade norte-americana afirma que,
A noção de raça e a desigualdade entre elas são construções do pensamento científico europeu e norte-americano surgidas apenas no século XIX, mesmo que já aparecessem, de forma embrionária, em alguns escritos do século XVIII, como as considerações de Thomas Jefferson.[5]
João da Cruz e Sousa nasceu em Nossa Senhora do Desterro, hoje Florianópolis, em 24 de novembro do ano de 1861. Filho do cativo Guilherme de Sousa, um mestre pedreiro, e de Carolina Eva da Conceição, uma lavadeira liberta. O sobrenome Sousa pertencia ao marechal Guilherme Xavier de Sousa, do qual seu pai fora escravo, tendo sido alforriado pelo marechal em 1864, antes de sua partida para a Guerra do Paraguai.[6] Em Desterro, em sua juventude, Cruz e Sousa foi caixeiro cobrador, jornalista, professor, participou de atividades teatrais amadoras, apresentando-se em pequenos teatros, armazéns e sobrados alugados, ao mesmo tempo em que se mantinha engajado nas letras, publicando nos pequenos jornais da capital da Província. Em sua trajetória na imprensa local, chegou a abrir seu próprio jornal e a ocupar o cargo de redator. Mais tarde, fruto de um amadurecimento intelectual intenso e residindo no Rio de Janeiro, publicou, em 1893, pela Editora Magalhães & Cia., Missal, obra que introduziu o Simbolismo no Brasil, escrita na forma de poesia em prosa, algo até então feito apenas por alguns autores europeus como o francês Charles Baudelaire. Aproveitando o pequeno espaço editorial aberto para essa publicação, lançou Broquéis, livro de poemas que revela uma técnica estilística ímpar.[7]
Fato importante que se percebe ao examinar aspectos de sua vida foi sua relação familiar, ou melhor, seus laços parentais, domínio sobre o qual existem ainda muitas lacunas a serem preenchidas. A princípio, essas relações ajudam a desfazer uma imagem de poeta que assimilou os valores da sociedade branca e burguesa ainda encontrada no meio literário local e entre as principais obras de seus memorialistas. Durante algum tempo, afirmou-se que seus pais, Carolina Eva da Conceição e Guilherme de Sousa, por suas origens humildes, em nada contribuíram para a trajetória de vida do poeta, e que, ao partir para o Rio de Janeiro, ele teria ignorado até mesmo sua origem. Na contramão dessa assertiva, busca-se desfazer esse equívoco e evidenciar os laços afetivos e de solidariedade presentes em sua relação familiar.
Durante um longo período, as concepções formuladas sobre a formação de famílias no cativeiro estiveram encobertas por uma névoa de preconceitos e estereótipos produzidos por leituras acríticas sobre relatos de viajantes europeus que passaram pelo Brasil no século XIX. Demonstrar os equívocos dessa abordagem exige que o pesquisador empreenda um diálogo com estudos importantes da historiografia sobre a família no Brasil, como, por exemplo, os estudos feitos pela Escola Sociológica Paulista. Hegemônica na questão racial nos anos de 1960 e 1970, teve como seus principais representantes Florestan Fernandes, Octávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.
O primeiro “deu especial atenção à família escrava. Se não levantou novas fontes sobre a questão, concedeulhe um lugar central na sua discussão teórica do escravismo”.[8] Em seus trabalhos, Fernandes procurou analisar o impacto do cativeiro sobre o trabalhador negro, abordando o escravismo não apenas como sistema econômico, mas também como um regime organizado capaz de sobreviver às formas de resistências subalternas. Para esse pensador, as duras condições da escravidão tiveram um efeito nefasto sobre aqueles que viveram sob a experiência do cativeiro; o esforço dos senhores de “[tolher e solapar] todas as formas de união ou de solidariedade dos escravos”[9] tornou os grupos de parentesco instáveis e destruiu as normas de conduta familiar. O mais contundente nessa observação de Fernandes é sua conclusão de que a experiência do cativeiro teria um impacto profundo e duradouro na cultura dos negros e na sua experiência como pessoas livres por gerações.
O tema família escrava na historiografia brasileira passou a receber maior atenção a partir da segunda metade da década de 1990. Os trabalhos de Sidney Chalhoub, Hebe de Mattos, Keila Grinberg, Manolo Florentino e José Roberto Góes e de Robert Slenes[10] inauguram uma nova abordagem em que se buscou explorar os sentidos de liberdade e família. Sem minimizar a importância dos primeiros trabalhos, a análise em relação à família de Cruz e Sousa utilizou-se do mesmo pressuposto de Robert Slenes, para quem “as relações de parentesco constituem um nexo importante para a (re)criação das esperanças e recordações das pessoas, isto é, para a formação de memórias, projetos e identidades”.[11] Embora Cruz e Sousa não tenha sofrido diretamente a experiência do cativeiro, pois sua mãe era liberta, e ele, portanto, era um homem livre de cor, pertencia, porém, a uma família com longa trajetória marcada pela escravidão, pois seus pais foram escravos bem como seus avós. Entretanto, souberam superar os obstáculos e as duras condições impostas pelo cativeiro, e o fato de possuírem um ofício possibilitou a Guilherme de Sousa e a Carolina Eva garantirem o sustento e a união da família.
Os trabalhos mais recentes sobre a família escrava, formada por libertos e cativos no Brasil, apontam para o fato de que, em um universo em que conviviam lado a lado livres, libertos e cativos, as relações de parentesco constituíam importantes estratégias para a recriação das esperanças e recordações dessas pessoas, contrapondo-se aos estudos elaborados pela Escola Sociológica Paulista, centrada em relações dicotômicas senhor/escravo. Esses laços podem ser percebidos nas correspondências trocadas entre Cruz e Sousa e seus pais, como exemplifica a carta de Carolina Eva da Conceição:
Desterro 6 de Janeiro de 1890.
Meu queridíssimo filho.
Estimarei que esta vá encontrar-lhe de saúde que a nossa [é] como sabe. Recebi sua carta a qual fiquei muito satisfeita em saber que foi bem de viagem.
Meu caro filho[,] você diz que sentiu muito [a] separação pois o que hei de dizer eu? Eu como mãe deveria sentir a[ss]im como sinto mil vezes demais[,] pois é o único consolo que tinha estar perto de meu Querido Filho; mas somos tão infelizes que não podemos obter esse favor de n[ó]s [estarmos] juntos a gozar de uma extremosa vida. Só rogo a Deus que sejas feliz de alcançar um meio de vida que possa ajudarnos a passar esses po[u]cos dias de vida; o qual, já não me acho com coragem de procurar as coisas de vida como dantes:
Só teria prazer e consolação se eu me visse perto desse meu Querido Filho vivendo uma vida feliz.
Que prazer [,] que consolação não seria para mim? Aceite lembranças da comadre Thomazia e do vizinho Custódio e a Marcelina está melhor. Aceite a b[ê]nção e o mesmo seu pai e as saudades são sem fim.[12]
As preocupações de uma mãe que lamenta a separação causada pela partida do filho para o Rio de Janeiro estão explicitadas nas primeiras linhas, porém, para além do explícito, pode-se também perceber o desejo e a esperança de dias melhores, depositados na expectativa de uma possível colocação ou conquista de um meio de vida. A carta segue repleta de sentimentos afetivos, lamentando a separação entre mãe e filho, sentimentos que remetem a uma triste lembrança vivenciada pela experiência do cativeiro, no qual famílias eram separadas. Teresa Mala- tian, ao discutir a cultura epistolar, vem contribuir para a compreensão da importância dessa prática e do uso dessa fonte na tentativa de colocar em evidência sentimentos, desejos, sonhos e projetos de vida.
A partir do século XVIII, as cartas adquiriram papel cada vez mais relevante para a expressão de sentimentos, emoções e experiências. O hábito da correspondência tornou-se mais difundido, alcançou diversas camadas sociais e constituiu-se em prática cultural bastante apreciada tanto na Europa como na América. Cartas de amizade, amor, família, pedidos, recomendações, conselhos, censura, louvor, agradecimentos, a lista de suas modalidades é longa. Não foi apenas o “século da História”, o XIX foi também o século das correspondências, que se tornaram objeto de coleção e mesmo uma moda, com a formação dos tesouros de autógrafos, que atendiam o gosto antiquário.[13]
Outra carta enviada ao poeta, dessa vez por seu pai, dava-lhe a notícia da morte de sua mãe:
Desterro 27 de agosto de 1891.
Meu querido filho.
Esta tem dois fins, o primeiro é acusar a tua carta na qual vinha um vale no valor de 50$000 réis e outro é com grande pesar, é o de ter falecido minha boa mulher e tua extremosa mãe.
Deves ficar certo de que nada lhe faltava e o doutor Rolla muito traba- lhou para salvá-la.
Peço escrever-lhe agradecendo os esforços que empregou. Agradeço-te muito, o que dizer, de nunca te esqueceres do meu velho pai e peço a Deus que sempre te proteja p[ar]a fazeres o mesmo a mim. Tua mãe faleceu no dia 25 e [há] dias passei um telegrama noticiando sua moléstia e [d]o qual não recebi resposta alguma, julgando por isso que não tenhas recebido.
Receba lembranças dos vizinhos: Custódio, Thomazia, e de teu pai, recebe a b[ê]nção e um apertado abraço.[14]
A missiva foi escrita de forma clara e objetiva, pondo o poeta a par dos últimos acontecimentos. Entre fatos dizíveis, percebe-se, além das dificuldades financeiras que a família enfrentava, as relações de solidariedade existentes, demonstradas pelo pedido de agradecimento ao médico, Dr. Rolla, e pelos cumprimentos enviados por vizinhos. Já entre os indizíveis estão a gratidão e os laços afetivos e de solidariedade reafirmados entre pai e filho. Segundo informações contidas no registro de casamento de Carolina e Guilherme, ambos eram analfabetos, o que leva a crer que possam ter contado com a ajuda de amigos para escrever as cartas. Como fonte histórica, a carta representa uma escrita de si, na qual o indivíduo assume uma posição de reflexão sobre suas experiências e o mundo. Ainda segundo Malatian, além das notícias dizíveis e indizíveis e da reunião de familiares, amigos e vizinhos à espera de notícias, a carta também
[...] criava e sustentava um desejo de reciprocidade, pois o envio de uma carta trazia implícito ou explícito um pedido de resposta na conversação realizada à distância. Mas comportava, como todo diálogo, silêncios, rupturas, retomadas ao sabor dos interesses e das afeições.[15]
Outros indícios apontam para a formação de relações de solidariedade entre os afrodescendentes. Nos assentos de batismo de libertos da Cúria Metropolitana, encontram-se os registros de duas crianças livres, a primeira de nome Maria, filha de Inocência Antônia Malheiros, batizada em 09 de julho de 1881, e a segunda, também de nome Maria, filha de Maria José de Lima, batizada em 21 de agosto do mesmo ano.[16] Em ambos os registros, constam, como padrinho e madrinha, João da Cruz e Sousa e sua mãe Carolina Eva da Conceição. Esses registros documentam a presença de relações de solidariedade e compadrio construídas em torno de uma rede de relações pessoais que envolviam parentes, amigos, vizinhos, senhores, ex-senhores. Segundo Paulino Francisco de Jesus Cardoso,
[...] laços que permitiam aos africanos e aos afrodescendentes, ora abrigarse, ora unir-se a senhores e ex-senhores; a aliar-se à gente miserável sem eira e nem beira, pertencentes aos mundos dos livres. Mas, também, a ligar-se firmemente aos “seus” pais, filhos, avós, tios, compadres, afilhados, madrinhas, uma infinidade de parentes rituais e consanguíneos.[17]
Uma concepção bem mais abrangente de família que se distancia por completo do modelo de família nuclear idealizada como modelo pelas elites burguesas e mais distante ainda do modelo de família que os viajantes da segunda metade do século XIX esperavam encontrar. Ao olharem para as famílias cativas extensivas, perceberam-nas apenas como ninhadas, imagem essa que perdurou durante anos nos estudos históricos, sendo apropriada pelos integrantes da Escola Sociológica Paulista, que basearam seus estudos nos relatos desses viajantes.
Ao observar mais atentamente a relação familiar de Cruz e Sousa, outro fato significativo evidencia a importância que seu pai exerceu sobre sua trajetória ainda em Desterro, como se pode observar em um episódio ocorrido durante a matrícula de seus dois filhos, João e Norberto, no Ateneu Provincial. Cruz e Souza iniciou seus estudos por volta do ano de 1869 em escola pública, onde recebeu as primeiras letras. Em 1872, estava matriculado juntamente com seu irmão mais novo, Norberto de Sousa, no Colégio da Conceição, sob a direção de Dona Rozalina Paes Leme, situado ao lado da atual Praça Getúlio Vargas “em vasto edifício, com bela chácara para recreio e exercícios de ginástica dos alunos e oferecendo as mais vantajosas comodidades para estada de colegiais internos”.[18] Percebe-se, pelo anúncio publicitário, que o Colégio da Conceição não era uma instituição pública e que Cruz e Sousa e seu irmão, mesmo com parcos recursos, chegaram a frequentar o ensino particular. Mais tarde, ingressaram ambos no Ateneu Provincial, que começou a funcionar em maio de 1874, assumindo as atividades do Colégio da Conceição.[19] Em pesquisa no Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, localizamos parte do regulamento interno do Ateneu, o qual assegurava ao presidente de Província,
[...] poder mandar admitir ao instituto, a custa dos cofres provinciais, quatro menores pobres, como pensionistas, seis como meio-pensionistas, e dez como externos, uma vez que sejam de reconhecida inteligência e de família honesta, dando em todo caso, preferência aos filhos de empregados públicos da Província, que se tenham distinguido pelo bom desempenho do seu cargo.[20]
Guilherme de Sousa, com base no referido artigo, requereu ao presidente da Província que seus dois filhos, crianças nascidas livres, fossem aceitos como alunos externos da nova escola, como permitia a legislação. Embora o regulamento mencionasse a preferência por filhos de funcionários públicos, Guilherme de Sousa fez com que se reconhecessem outros atributos que seus filhos possuíam como, por exemplo, o mérito, conquistado pelo esforço e dedicação, de terem sido excelentes alunos. Aimportância desse fato, que, para muitos, pareceu algo sem muita relevância, estava na consciência que tinha Guilherme de Sousa, ex-escravo e analfabeto, de que, por direito, melhor dizendo, por direito de seus filhos, poderia requerer, por meio legal, a possibilidade de letramento, o que, no futuro, poderia vir a lhes possibilitar uma maior mobilidade e ascensão social. O requerimento foi encaminhado ao diretor do Ateneu, Professor Jacinto Furtado de Mendonça Paes Leme, esposo de Dona Rozalina Paes Leme, que emitiu o seguinte parecer:
Os meninos João e Norberto filhos de Guilherme de Sousa são dois meninos muito aproveitáveis. Este pela sua vivacidade e aquele pela aplicação; ambos foram alunos do Colégio da Conceição onde sempre estudaram com aproveitamento, e por isso, sabendo mais que seu pai, pobre jornaleiro, tudo sacrifica pela educação desses dois meninos, julgo-os no caso de serem favorecidos.[21]
O mesmo foi deferido por um ofício de 30 de junho do mesmo ano de 1874, em que o presidente da Província autorizou ao diretor do Ateneu a matrícula de ambos na forma requerida. O que torna importante também destacar, além do esforço de Guilherme, as relações construídas entre diferentes grupos ao longo do processo. Em uma cidade como Desterro, onde as oportunidades eram escassas e restritas ao mundo dos portugueses e seus descendentes, africanos e afrodescendentes buscaram, valendo-se de táticas e subterfúgios em diferentes momentos, uma aproximação entre o mundo dos cativos, livres e libertos e o mundo dos portugueses e seus descendentes, no sentido de ampliar o espaço de autonomia necessário para viabilizar projetos, sonhos ou, simplesmente, garantir a sobrevivência.[22]
Quanto ao desempenho dos dois irmãos nos estudos, parece-nos bastante satisfatório, a julgar pelas fontes encontradas no jornal O Conservador, responsável pela publicação das avaliações de aproveitamento. Eles cursaram no Ateneu Português, Francês, Inglês, Geografia e Matemática até o ano de 1877. Por falta de uma documentação mais precisa, não podemos afirmar com certeza se ambos concluíram os estudos e quais foram os motivos da saída. Entretanto, durante o período em que frequentaram o Ateneu, os dois foram aprovados em todas as avaliações de aproveitamento que prestaram ao final de cada ano, como comprovam suas notas, juntamente com as de seus colegas, divulgadas na imprensa.[23]
Destarte, a maior contribuição de Guilherme de Sousa a seus filhos foi sua própria experiência de vida. A luta pela sobrevivência e sua determinação possibilitaram a manutenção da família unida, a recriação de esperanças, projetos e sonhos. Ainda em relação à educação, ela não se traduziu, para Cruz e Souza, em uma tentativa de embranquecimento mas, sim, em tática para alcançar uma maior mobilidade social. O poeta viveu em uma cidade com pouca expressão no cenário político e econômico, em uma sociedade tacanha e com poucas oportunidades para essa mobilidade. As oportunidades eram escassas e, quando surgiam, esbarravam nos limites da cor.
Dentre os jornais em que trabalhou em Desterro como colaborador estão A Regeneração, de propriedade do médico e político Duarte Paranhos Schutel, e Tribuna Popular, folha abolicionista de propriedade de João José Ferreira da Silva, que contou com a presença do poeta simbolista entre seus colaboradores, trabalho pelo qual nada recebia, pois, como afirmava, “fazia em nome da grande causa.” Em 1881, fundou com seus poucos recursos, e na companhia do amigo Virgílio Várzea, um pequeno jornal literário chamado Colombo, que teve curta duração, aproximadamente quatro meses. Numa rápida leitura dos jornais da época, encontram-se muitos poemas de Cruz e Sousa, parte deles reunidos em suas Obras completas.
Mesmo gozando de certo reconhecimento local, esse fato não foi suficiente para garantir sua sobrevivência. A oportunidade de viajar e conhecer o próprio país veio em 1883, quando a Companhia Teatral de Moreira de Vasconcelos aportou em Desterro para algumas apresentações no Teatro Santa Izabel. Cruz e Sousa e Virgílio Várzea aproveitaram para mostrar suas criações literárias e manifestar seu interesse pelo teatro. Ao final de uma longa temporada na cidade, a companhia convidou Cruz e Sousa a excursionar pelo país, trabalhando na função de ponto e de secretário, portanto, por trás das cortinas.
A longa viagem proporcionou ao poeta, pela primeira vez, a oportunidade de circular por várias capitais. Em suas horas vagas, declamava suas poesias em recitais e reuniões de clubes abolicionistas. A companhia de Moreira de Vasconcelos excursionou do Rio Grande do Sul até a região Norte do país, apresentando-se em várias cidades, dentre elas Salvador, Recife e São Luís do Maranhão, em que buscou explorar, em suas peças, temas relacionados com a escravidão, pois o contexto político era favorável, mas não há referência à participação de Cruz e Sousa nas peças, a não ser exercendo a mencionada função de ponto.[24] Em 8 de junho de 1884, a companhia seguiu para o Ceará, onde permaneceu por dois meses e, mais uma vez, Cruz e Sousa aproveitou a oportunidade para realizar conferência sobre o abolicionismo. Sua viagem foi acompanhada à distância por seus amigos em Desterro. O jornal O Moleque publicou notícias sobre o poeta, bem como os discursos por ele proferidos nas cidades por onde passou.
Após regressar para Desterro, Cruz e Sousa sentiu-se renovado e mais e mais inconformado com a situação política local. Em maio de 1885, aceitou o convite de Virgílio Várzea para assumir a redação do jornal O Moleque, e, em meados daquele mesmo ano, o jornal passou a ostentar na capa seu nome como redator. De estilo irreverente e provocador, o jornal se autodefinia como um órgão noticioso, moderno, nervoso e, em sua primeira página, entre as letras maiúsculas que formavam o título O Moleque, estampava a figura de um garoto travesso, sorrindo e deitado em deleite (Figura 1).

O jornal era publicado quatro vezes ao mês, trazendo em suas páginas poemas, contos, traduções de trechos de obras de escritores como Victor Hugo e Émile Zola, além de notas de agradecimento, de homenagens aos proprietários que libertavam seus cativos, bem como às figuras ilustres da sociedade, além de críticas à administração e à política local. Os ataques faziam referência a fatos da vida cotidiana da cidade e não escondiam o descontentamento com o afastamento de Virgílio Várzea e Santos Lostada dos cargos públicos que ocuparam durante a administração de Francisco Luiz da Gama Rosa (1883-1884). Embora não disponha de evidências de que Cruz e Sousa tenha ocupado algum cargo público, a destituição dos dois primeiros reforçou ainda mais o sentimento de exclusão desses jovens.
Com a saída de Rosa e a nomeação de José Lustosa da Cunha Paranaguá para o cargo (1884-1885), esses jovens foram lançados ao ostracismo. A alternativa articulada para protestar foi a sátira. Por meio de desenhos humorísticos (assemelhando-se a charges), satirizavam a política e seus personagens (Figura 2). O princípio cômico que norteava o jogo animado das imagens era a denúncia, forma de protesto que se situava na fronteira entre a arte e a vida, alimentando-se do improviso, das vicissitudes, da fraqueza humana, dos erros, do que havia de imperfeito. O riso davalhes o salvo-conduto para ridicularizar a autoridade e a hierarquia impostas.[25]


A constante troca do presidente da Província entre os anos de 1883 e 1885 também foi alvo das críticas do referido jornal, que apontava para a falta de perspectivas políticas, para o agravamento da dívida pública e para a ausência de investimentos na cidade e na Província. A Figura 3 é uma referência à substituição do presidente da Província, Antônio de Lara Fontoura Palmeiro, e à nomeação de Francisco José da Rocha para o cargo.

Nesse processo turbulento, esses jovens criavam sua própria hierarquia, por meio do comportamento social e da linguagem, em que a civilidade e a cortesia davam o tom a seus escritos.
A sociedade Álvaro de Carvalho, deo terçafeira ultima, o seu segundo espectáculo com a peça em 1 prólogo e 4 actos Jocelyn ou o Marinheiro Vanbroust.
Repetir que os bellíssimos amadores estiveram na altura digna desse nome, é um pleonasmo completo de phrase.
Cá o Trac gostou bem.
Pintaram, os adoráveis rapazes.
Para a frente, para a frente, o theatro é um dos mais poderosos elementos da civilização moderna.
[...] Quanto ao delicado convite que recebemos, [...] os ziguezagues do nosso agradecimento.[26]
Os títulos das colunas, Piparotes, Piruetas, Linhas Farpadas, Tiras Farpadas, acompanhavam a mesma comicidade dos pseudônimos Trac, Zat, Zot, entre outros.
Além dos desenhos, o jornal também trazia, em pequenos versos rimados, ataques dissimulados aos políticos do Partido Conservador e ao presidente da Província, José Lustosa da Cunha Paranaguá.
O para n’agua.
Poema Realista
UMA VOLTA A CAVALLO
N’esse cavallo que entrou
Na Bibliotheca um dia,
Foi que o Lustosa montou
Com pose e galhardia;
N’esse Cavallo que entrou
Na Bibliotheca um dia
Trotou por quasi uma hora
N’aquelle costume inglez,
Passou na Praia de Fora
Creio que a primeira vez.
Trotou por quase uma hora
N’aquelle costume inglez. [...][27]
A atuação de Cruz e Sousa nesse jornal evidencia o seu engajamento na defesa da causa abolicionista. Seus protestos satirizavam uma sociedade corrupta, racista e excludente. Em uma nota publicada na coluna Piparotes de O Moleque, ele destacava a entrega de 28 cartas de liberdade pelo fundo de emancipação:
No dia 7, a uma hora da tarde, houve no Palácio a entrega de 28 cartas de liberdade, pela caixa-fundo de emancipação provincial.
Foram distribuídas pelo Dr. Chefe de Polícia que dêo fulgôres ao acto, proferindo um bonito discurso aos libertados.
É agora a occasião de felicitar a Província e pedir-lhe em nome da Liberdade que tem vivido a chorar a sombra do anachronismo escravocrata, toda a sympathia todo o amor, todo o carinho pela redempção da desgraçada raça dos tristes.
Vinte e oito cartas de Liberdade são vinte e oito bênçãos de consolo, de purificação moral!
Vamos, Santa Catharina, mais um esforço sobre ti mesma e galgará[s] o pedestal do Capitólio da Luz que encoraja os fracos e illumina os fortes, e aquelles que estão sob a terrível noite das desesperanças e das dúvidas! Mais um passo para a igualdade dos direitos, para a comunhão das almas. Obrigado pelos libertados do dia 7.
Trac.[28]
O poeta chamava a atenção para a incompatibilidade existente entre a permanência da escravidão ao lado de um discurso de modernização propagado pela elite local. Para ele, o fim do trabalho escravo representava o primeiro passo para a igualdade dos direitos. Sua verve não poupava nem mesmo os clubes abolicionistas e, sobre sua atuação, publicou a seguinte nota:
Outro Club e desta vez é abolicionista.
— Centro Abolicionista. —
Ahi está aquella occasião de dizer aquella tolice de Pelletan:
Le monde marche
Os Clubs abolicionistas por aqui são assim um tanto cometas: Apparecem e... somem como appareceram e a respeito de fazer alguma cousa de novo, relativo a abolição: quem disse...
Patranhas, homens, patranhas, e tem-se dito tudo.
Deus o crie para o bem.
E... tome lá uma figa para livrar de feitiços.
Pois é, não é?!...
Ah! é verdade também já tem a sua directoria, delle, o club.[29]
Cruz e Sousa condenava as atuações oportunistas e o pouco empenho desses clubes na libertação dos cativos. Suas efêmeras existências apontavam para uma falta de coerência entre o ideal e a ação prática, fazendo com que, diante do primeiro obstáculo, esmorecessem e deixassem de existir.
Por suas constantes críticas satirizando pessoas pertencentes à elite política local em situações constrangedoras, O Moleque não contava com as graças e a simpatia da alta sociedade de Desterro. Era ignorado, e seus colaboradores não recebiam convites para os eventos sociais mais importantes da cidade. Em um desses episódios, Cruz e Sousa saiu em defesa do jornal, publicando uma nota de repúdio:
O Moleque não é o esfola cara das ruas, na frase se Valentim Magalhães, nem o abocanhador peralta e atrevido que salta à noite os muros altos para lançar a prostituição no seio das famílias, não é o garoto das praças públicas, o Gamin das latrinas sociais, o tartufo encasacado e enluvado que arrasta a sua imbecilidade córnea pelos clubes, pelos teatros, pelas reuniões, pelos passeios. É um jornal moço, moço quer dizer nervoso, moço quer dizer sangüíneo, cheio de pulso forte, vibrante, evolucionista, adiantado.[30]
Denunciava a hipocrisia da sociedade burguesa e seus valores, alicerçando sua crítica em termos como “abocanhador”, “Gamin”, “tartufo” e empregando sentido retumbante à sua denúncia, construída por meio da intertextualidade, do intercâmbio com outras linguagens. Ao mesmo tempo, valorizava a virtude e buscava conquistar seu espaço por meio da diferenciação, procurando criar uma identidade própria para o jornal, sintonizada com as principais causas de então, como o abolicionismo e a modernidade, na tentativa de imprimir-lhe uma imagem de respeito e seriedade. Outro fato que marcou sua passagem pela redação de O Moleque ocorreu por conta de um baile em comemoração ao aniversário do Clube 12 de Agosto, local em que se reuniam os abastados da cidade.
A 12 houve no Club 12 de Agosto, o grande baile de Anniversário ao qual o luxo e o bom gosto, a magnificência, não faltaram. [...]
Achavam-se alguns representantes da Imprensa, menos o Moleque, que teria de embalsamar-se primeiro, para não cheirar a cachaça ou a creoulo fôrro, a fim de melhor subir as escadarias pomposas do magestosissimo e fidalgo Club 12.
Por que o Moleque não tem rolha na bocca, diante da incivilidade, da indelicadesa baixa, da ridícula posição parva e apalhaçada em que ficou, para com elle, a directoria do Club.[31]
O que primeiramente salta aos olhos é a força de seu discurso. A oposição entre “luxo” e “bom gosto”, “cachaça” e “creoulo fôrro” evidencia o limite imposto ao filho de escravo.
Uma vez que O Moleque não é um trapo sujo do monturo, um caráter enluvado com sífilis moral por dentro, um pasquim ordinário e safado, um bêbado de todas as esquinas ou um leproso de todas as lamas, havia obrigação, obrigação ouça o Club 12, de ser O Moleque considerado como gente, uma vez que foi considerada a outra imprensa, que não está em nada, em cousa alguma superior a este órgão. [...] Se não se distribuiu convite para O Moleque porque o seu redator-chefe é um creoulo, é preciso saber-se que esse creoulo não é um imbecil que não o saiba e o diga bem alto, por sua honra, por seu orgulho, porque não se véxa de hombrear com ninguém deste mundo que saiba o que é cavalheirismo, educação e probidade. É um creoulo que tem muita presumpção em ser o ser que não se curva, a despeito de tudo, se não ao talento, à bondade e ao caracter.[32]
Por meio de seu discurso, buscava demudar, metamorfosear-se, assumindo a posição do próprio jornal. O Moleque é o próprio poeta procurando transcender os limites de classe e cor. Ainda em seu discurso, evidencia-se que, para ele, o motivo que levava o jornal a ser constante- mente ignorado residia no fato de possuir como redator — nas palavras do próprio poeta — “um creoulo”, categoria que remetia à escravidão. Segundo Hebe Mattos, essa designação tendia a congelar socialmente a condição de escravo ou ex-escravo.[33] Ao afirmar que o Moleque deveria ser tratado como gente, o poeta denunciava a intolerância e o racismo, fazendo uma analogia entre o jornal e sua própria figura. Embora pos- suísse mérito para ocupar o cargo de redator, sua cor, naquela sociedade oitocentista e escravocrata, tornou-se o principal fator que o impedia de ascender socialmente. Mesmo possuindo méritos, mesmo contando com algum reconhecimento local e tendo em seu círculo de relações nomes como o presidente provincial Gama Rosa, o médico e político Duarte Schutel e o comerciante e político Germano Wendhausen, isso não foi suficiente para garantir sua entrada e permanência na sociedade.
Tentando conciliar a atividade de jornalista com a de poeta, Cruz e Sousa publicou, em 1885, Tropos e Fantasias, seu primeiro livro, escrito em parceria com Virgílio Várzea. O Jornal do Comércio, de 14 de julho de 1885, registrava a publicação na seguinte nota: “Tropos e Fantasias, título de um interessante livrinho de nossos inteligentes conterrâneos Srs. Cruz e Sousa e Virgílio Várzea, editado na Tipografia do A Regeneração”.[34] A pequena obra trazia composições polêmicas, e seu engajamento na causa abolicionista também se fez presente em poemas como “O Padre” e “Litania dos Pobres”.
O Padre
Um padre escravocrata!... Horror!
Um padre o apostolo da igreja,
Que deveria ser o arrimo dos
Que sofrem, o sacrário da bondade,
O amparo da innocencia, o Atleta civilizador da Cruz, [...]
Do amor, das bênçãos immaculadas, o reflexo do Christo [...]
Fazer da igreja uma senzala, dos dogmas sacros leis de impiedade, da estola um vergalho, do missal um prostíbulo. [...][35]
Identifica-se não apenas a condenação ao trabalho escravo, mas um sentimento anticlerical. Na base desse sentimento de revolta estava a contradição flagrante entre os princípios da fé cristã, ocidental e humanista, professada pela sociedade brasileira desde os tempos de sua colonização luso-católica, e a realidade da escravidão, uma violência contra os africanos e seus descendentes. O poema foi dedicado ao amigo João Lopes, proprietário do periódico abolicionista Tribuna Popular.
A publicação de Tropos e Fantasias não passou despercebida da crítica local. Francisco Antônio das Oliveiras Margarida, diretor do jornal O Abolicionista, reconheceu-lhe certa originalidade e que poderia progredir, desde que acompanhasse o estilo dos mestres da época. Mas afirmou que os sonetos de Cruz e Sousa nada tinham de admirável e de novo, a não ser os inúmeros cacófatos e erros de metrificação.[36] Em nota publicada no Jornal do Comércio, o poeta rebateu as críticas recebidas:
Há duas coisas no Brasil que são como que homogêneas. A política e a poesia, por não serem tomadas convenientemente a sério, por serem entregues a muitos espíritos pueris, duma penetração frívola e vulgar. Falar em poesia é, neste país, para a compreensão fácil e leviana de indivíduos inconscientes da verdade filosófica das grandes coisas tangíveis, uma imbecilidade, um entretenimento inútil, uma aspiração oca, vazia de senso e de critério.[37]
Passou também a condenar, pelas páginas de O Moleque, os abusos cometidos nos castigos físicos praticados por senhores aos seus cativos. Em outros momentos, festejava com alegria as iniciativas de alforrias:
O Sr. João do Prado Lemos, deu liberdade a cinco escravizados.
Magnífico.
Só por isso S.S. tem todo o direito a um aperto de mão do Moleque.
E venha elle, o aperto de mão, franco sincero e robusto como o acto do digno negociante.
E anda assim que é bom.
Applausos, applausos.
Trac.[38]
A Exmª. Snrª D. Rita, esposa do Snr. José Manoel de Souza, ex-comman- dante do corpo policial, concedêo liberdade a sua escrava Ursula.
O Moleque, tendo ciência deste facto um tanto tarde, cumprimenta respeitoso a digna Snrª estrungindo no ar gyrandolas de applausos!...
Parabéns a Ursula.
Abençoados os que libertam escravos.
Como que honram a maioria de Guilherme Tell, o grandioso libertador da Suissa.[39]
Mas foi o cotidiano da cidade e as disputas políticas que, por maior tempo, ocuparam as páginas da pequena folha, sempre abordadas sob a perspectiva do cômico. Com a criação da personagem O Moleque, que, por meio de desenhos e litogravuras, adornava a capa e algumas páginas do jornal, as lideranças políticas e pessoas a elas ligadas eram representadas em cenas burlescas. Na análise da folha, não foi encontrada a autoria dos desenhos, mas pode-se aventar a possibilidade de serem atribuídos a Virgílio Várzea, professor de Desenho do Liceu de Artes e Ofícios.[40]
A condenação à morosidade dos políticos e o descaso com a cidade foram temas constantes. Em nota publicada em julho de 1885, condenou a sujeira e o estado de abandono em que se encontravam as praias:
Praia do Menino Deus.
O leitor ao ver a nossa epigrafe acima, julgará talvez que vamos falar do Menino Deus da... Praia. Não, unicamente da praia e... só da praia.
Já este assumpto de praia, não é dos mais decentes porque lembra immundice, enchurro, lodo, podridão e tal e cousa...
Não obstante, todas essas rasoabilidades da Lógica, precisamos fallar da... praia e... sempre da praia.
[...] Pois esta praia, esta tão sympathica e conhecida, que vê desfilar na sua frente todos os carnavaes, todos as procissões, carnavaes de mesma maneira, carnavaes sagrados, todas as manifestações políticas, esta praia, dizemos, não tem sequer as honras de limpeza, é uma praia suja, não se lava; [...][41]
Seu discurso oscilava entre a ironia, o deboche e o ataque direto aos envolvidos. Os esgotos e os lixos depositados nas praias continuaram, por um longo período, sendo o centro de muitos protestos na imprensa local. A praia em questão era a do Menino Deus, local conhecido dos moradores, por onde passavam os festejos do carnaval e as procissões. No trecho seguinte da nota, com certa ironia, chamava a atenção das autoridades e cobrava as devidas providências:
[...] Se a Câmara por um esquecimento dos seus deveres, se lembrar do limpamento da Praia do Menino Deus, nós prometheriamos uma vela de sebo a Santa Vergonha e ao Milagroso Santo Cynismo para que ella tivesse um bom parto de idéias fucturas nas fucturas presidências [...].[42]
A mesma terminava assinada por Zé K. e criticava a morosidade e a falta de comprometimento das autoridades políticas para com a cidade, lembrando-os de seus deveres e obrigações. “É na sátira política que o riso vai se deleitar. O início da Democracia, as discussões parlamentares, e a liberdade de imprensa criam as condições ideais para que a ironia venha a ser convidada a participar.”[43]
Encontra-se registrado, em Iaponan Soares,[44] um dos principais memorialistas de Cruz e Sousa, a afirmação de que Zé K, Zat, Zot e Trac foram pseudônimos muito utilizados pelo poeta, e tal afirmativa coincide com o período em que ele esteve à frente da pequena folha, ao lado de Virgílio Várzea.
Seguindo essa mesma direção, foi publicada no jornal O Moleque uma crítica cujo alvo era a atuação dos fiscais:
O fiscal
Passa na rua com ares de engenheiro,
Usa bonet, trajando blusa parda.
N’elle se encherga da polícia um guarda
Que monta um magro e trotador sendeiro
Fazer mal é capaz ao mundo inteiro;
Se vê água, uma multa nunca tarda,
De que uma parte, elle contente guarda,
A sorrir-se de alegre ante o dinheiro.
Eleitor é, mas de votar se arreda,
Si o feroz animal assim decreta,
Que em política tem a pose treda,
No districto primeiro, venenosa.
Matéria deita aos cães, esse pateta,
Que a alcunha de peito bronze goza.
A. d’Olpho[45]
Em forma de versos, o autor satirizava a ação do fiscal e a autoridade que ele representava. A crítica denunciava uma relação de dependência, apadrinhamento e troca de favores entre aqueles que eram nomeados para o cargo de fiscal e a autoridade responsável por escolhê-los e nomeá-los. A nota terminava com a assinatura de A. d’Olpho, possivelmente um dos pseudônimos utilizados pelos colaboradores do jornal ou, talvez, pelo próprio Cruz e Sousa.
Sobre as características físicas do poeta, Virgílio Várzea traçou um interessante retrato:
[...] possuía um talhe ESPIÈGLE e elegante, muito preocupado com sua pessoa, [...] Tinha uns dentes belíssimos e alvos, fazendo quando sorria, uma pequenina lua de opala, a sua boca um negro-escarlate, onde bailava uma ironia casquilhante perene. Era um crioulo de compleição magra e estatura meã. Não obstante, tinha o rosto oval, de traços delicados e de um conjunto atraente e simpático. Nos seus olhos, grandes e bonitos, havia um forte brilho intelectual e uma vaga expressão de tristeza e humildade.[46]
Araújo Figueiredo relatou que o poeta “vestia uma vistosa indumentária: terno justo, cor clara, salpicos azuis e amarelos, tudo coroado por berrante rosa na lapela, e bengala de junco, dependurada no braço esquerdo”.[47] Provavelmente, as extravagâncias apontadas por Araújo Figueiredo estivessem relacionadas com as escolhas feitas pelo poeta; a ênfase no imaginário e na fantasia denunciavam a sua aproximação com a estética simbolista e com o desejo de ser moderno, enquanto a sátira, o espírito irônico, debochado e gozador de um dândi.
Em seu estudo, Henrique Albuquerque destacou a observação feita por Paulo Barreto, o João do Rio, quanto à figura do poeta: a “estranheza que causava não apenas o comportamento dândi de Cruz e Sousa, mas o fato de ser um negro a se comportar assim”.[48]
Por meio dos jornais, do teatro e da literatura, os mencionados jovens tentaram se inserir no ambiente sociocultural de Desterro. Projetavam-se como portadores de uma consciência crítica da realidade com base nos postulados da modernidade, do progresso e da racionalidade. Influenciados pelos ideários que, no Brasil, aportaram a partir da segunda metade do século XIX, do qual faziam parte o liberalismo, o evolucionismo, o positivismo e as concepções literárias, tentaram, por seus esforços, buscar a mobilidade social e promover mudanças na produção literária local.
No início de 1888, coincidentemente no mesmo ano em que foi decretada a Abolição, demonstrando certo cansaço e sem muitas perspectivas de realização de seus objetivos em Desterro, Cruz e Souza resolveu partir para o Rio de Janeiro, onde já estavam seus amigos dos tempos do Ateneu Provincial. Contudo, vale lembrar que os anos que se seguiram após ser decretado o fim do trabalho escravo foram marcados pelo fortalecimento do discurso racial, que contribuiu para um recrudescimento das relações.
Em fevereiro de 1893, já residindo na capital, Cruz e Souza publicou Missal e Broquéis. A primeira obra, escrita na forma de poesia em prosa, foi lançada no mês de fevereiro; a segunda, em agosto do mesmo ano, representou a primeira experiência do poeta com a poesia pura. Ambas foram lançadas pela Editora Magalhães & Companhia, que as expunha na Livraria Moderna. Esse lançamento demonstrou o amadurecimento intelectual do poeta e definiu a estética decadentista como identidade. Nem as obras, nem a estética escolhida agradaram. A crítica devastadora de Araripe Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero acentuaram ainda mais o preconceito sobre o autor e sua obra.
Araripe Júnior era um crítico de formação naturalista, cientificista e determinista, para quem o meio físico era determinante para a produção literária. Sua crítica estava assentada sobre duas certezas inabaláveis do período, o determinismo e o discurso racial. O crítico afirmava que, “essa transplantação literária torna-se tanto mais curiosa quando se trata de um artista de sangue africano, cujo temperamento tépido parecia o menos apropriado para veicular a flacidez e a frialdade hierática da nova escola.”[49]
A questão racial sempre esteve ligada a uma suposta incompatibilidade entre um poeta de origem africana e uma estética simbolista de origem europeia. Mesmo após a sua morte, Cruz e Sousa não escapou das comparações, sendo chamado por Araripe Júnior de “o puro poeta astral antropomórfico das raças primitivas”.[50]
A crítica de Sílvio Romero pautava-se, também, nos modelos cientificistas e naturalistas. Seu pensamento foi definido por Antonio Candido como um turbilhão de ideias, devido às muitas influências que constituíram a base de sua formação, o evolucionismo, o positivismo, entre outros. Suas ideias e teorias sempre geraram muitas polêmicas, tendo sido, muitas vezes, acusado de ser um imitador do pensamento europeu no contexto brasileiro. Romero tentou, por diversas vezes, assi- milar bases intelectuais europeias, transformando-as em bases próprias, para que fornecessem instrumento de análise à realidade brasileira e, a partir desse esforço, buscou compreender o surgimento do movimento simbolista no Brasil. Desse empenho nasceu até certa simpatia pelo Simbolismo, chegando a reconhecer nele mais que uma literatura importada, imitação do modelo francês — via no movimento a mais legítima forma de expressão estética.[51]
Romero criticou a forma hostil pela qual o Simbolismo foi recebido no Brasil, principalmente por parte de Araripe Júnior, chegando mesmo a afirmar que a nova estética precisava de um ponto de vista novo, faltavam à nossa crítica instrumentos capazes de entender o movimento. “Especialmente a última forma, a derradeira mutação por que tem passado a arte, peculiarmente a poesia, neste final de século, lhes tem escapado de todo”.[52] Encontrando na teoria evolucionista a forma de compreensão da nova estética, a poesia, para Romero, passava por uma evolução, uma mutação, processo esse não aleatório mas cronológico e com sólidas raízes em seu tempo histórico.
Quanto a Cruz e Sousa, o crítico não poderia deixar de notar a condição racial do poeta. Mesmo simpático ao Simbolismo, não deixou de analisá-lo pelos parâmetros predominantes também entre os demais críticos: o meio e a raça. Para Romero, Cruz e Sousa era superior porque soube dominar os códigos culturais da civilização e da literatura de sua época; o poeta era a prova de que, pela incorporação dos elementos da cultura branca europeia era possível livrar o país da barbárie.
O último crítico pertencente à tríade, José Veríssimo, dono de uma crítica mordaz, priorizou o caráter estético em sua análise. Entretanto, mostrou pouca disposição e simpatia pelo movimento. Para o crítico, simbolistas, decadentistas, deliquescentes, nefelibatas, naturalistas, entre outros, resumiam-se em um caso de macaqueação,[53] reiterando a crítica de Araripe Júnior que considerava o movimento simbolista como meramente um caso de imitação da última moda na Europa. Quanto ao principal nome do movimento simbolista brasileiro, Veríssimo atribuiu a Cruz e Sousa o “dom de melodia, que é comum nos negros”,[54] afirmando que a musicalidade e a repetição dos versos e sons seria “um verdadeiro cacoete, próprio dos primitivos”.[55] Os critérios adotados por Veríssimo ao analisar a poesia de Cruz e Sousa pautaram-se em bases raciais e em uma antipatia pessoal pelo poeta.
Para o poeta, as críticas às suas obras já eram, possivelmente, esperadas, visto que sua estética já havia sido alvo de críticas quando da publicação de seus primeiros poemas na imprensa carioca. Elciene Azevedo, em seu estudo sobre a trajetória de Luiz Gama em São Paulo, vem corroborar a compreensão dos limites da cor impostos aos afrodes- cendentes naquele período:
Para Luiz Gama, um literato jamais o reconheceria como um igual devido as significações sociais de ter o autor do livro uma “fachada” negra. Embora estivesse agora em meio ao “mundo letrado”, continuava a ser um sapateiro, já que o critério que Luiz Gama julgava ser o adotado por literatos “farsolas” e “brejeiros” era o racial e não o estético.[56]
O poema “Emparedado”, publicado em Evocações, talvez seja aquele que melhor sintetizou as frustrações, as desilusões e as insatisfações do poeta com a sociedade:
Tu és dos de Cam, maldito, réprobo, anatematizado! Falas em abstrações, em Formas, em Espiritualidades, em Requintes, em Sonhos! Como se tu fosses das raças de ouro e da aurora, se viesses dos arianos, depurado por todas as civilizações, célula por célula, tecido por tecido, cristalizado o teu ser num verdadeiro cadinho de idéias, de sentimentos — direito, perfeito, das perfeições oficiais dos meios convencionalmente ilustres! Como se viesses do Oriente, rei!, em galeras, dentre opulências, ou tivesses a aven- tura magna de ficar perdido em Tebas, desoladamente cismando através de ruínas; ou a iriada, peregrina e fidalga fantasia dos Medievos, ou a lenda colorida e bizarra por haveres adormecido e sonhado, sob o ritmo claro dos astros, junto às priscas margens venerandas do Mar Vermelho! Artista! Pode lá isso ser se tu és d’África, tórrida e bárbara, devorada insaciavelmente pelo deserto, tumultuando de matas bravias, arrastada sangrando no lodo das Civilizações despóticas, torvamente amamentada com o leite amargo e venenoso da Angústia! A África arrebatada nos ciclones torvelinhantes das Impiedades supremas, das Blasfêmias absolutas, gemendo, rugindo, bramando no caos feroz, hórrido, das profundas selvas brutas, a sua formidável Dilaceração humana! A África laocoôntica, alma de trevas e de chamas, fecundada no Sol e na Noite, errantemente tempestuosa como a alma espiritualizada e tantálica da Rússia, gerada no Degredo e na Neve — pólo branco e pólo negro da Dor! Artista?! Loucura! Loucura! Pode lá isso ser se tu vens dessa longínqua região desolada, lá do fundo exótico dessa África sugestiva, gemente, Criação dolorosa e sanguinolenta de Satãs rebelados, dessa flagelada África, grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de gemidos, tetricamente fulminada pelo banzo mortal [...].[57]
O longo poema, um dos mais belos e ao mesmo tempo comoventes, foi escrito nos últimos anos de sua vida. Repleto de referências à África, denunciava estereótipos construídos historicamente como justificativa para a dominação.
Considerações finais
Embora a memória cristalizada sobre Cruz e Sousa tenha dado maior ênfase aos anos finais de sua trajetória, relegando-lhe apenas o papel de assimilado e vitimado, buscou-se evidenciar, neste artigo, a partir dos documentos pesquisados, outras experiências sociais do poeta. Entre tantos sentimentos e sensações, experimentou o prazer da aventura de sair de um acanhado ambiente provinciano e viajar país afora. Conheceu o prazer do poder de dominar, de compreender e de transformar palavras em poesia e arte. Boêmio, desfrutou das relações de sociabilidade de parentes e amigos. Galanteador, fez das mulheres suas principais musas e inspiração, foi noivo de Pedra, mas acabou casando-se com Gavita Rosa Gonçalves, com quem teve quatro filhos. Soube aproveitar-se do crescimento adquirido pela compreensão de novos valores, técnicas e refinamento de sua estética. Encontrou, no desejo de viver das letras em Desterro ou na capital do Império, os seus limites e, em Baudelaire e na estética simbolista, os melhores tradutores de um sentimento de desencanto com a sociedade de sua época. Para ele, os limites se configuravam de forma clara: era um homem livre de cor e letrado, vivendo durante o período de vigência da escravidão e assim continuou sendo no pós-abolição. Para ele, que trazia as marcas do passado escravista, não era possível exercer seus direitos de cidadão sem ser lembrado de sua origem racial e sua condição social. A mudança no regime político e nas relações sociais, quando passaram a ser valorizadas não mais a capacidade individual mas as relações de compadrio e apadrinhamento, dificultaram a ocupação de algum cargo público que lhe garantisse a sobrevivência. Como literato, nunca chegou a fazer parte da Academia Brasileira de Letras; pelo contrário, foi de alguns de seus membros que partiram as críticas mais duras à sua estética e à sua origem africana.
O desencanto com os ideais libertários, do pensamento liberal e republicano, com as bandeiras que defendeu em sua juventude e com os sonhos que acreditou um dia poder realizar produziram em Cruz e Sousa uma sensibilidade de decadência, transformada em poesia de protesto contra uma sociedade materialista e ensurdecida. Dessa forma, a estética escolhida também se constituiu em um limite para a sua mobilidade social, visto que a sua não era uma literatura sorriso, mas, sim, uma literatura que mostrava as mazelas e o empobrecimento do espírito daquela sociedade.
Notas