Artigo Original
Recepção: 11 Maio 2023
Aprovação: 25 Outubro 2023
DOI: https://doi.org/10.1590/2317-6431-2023-2808pt
RESUMO
Objetivo: analisar as dificuldades e facilidades relatadas por fonoaudiólogos em casos de violência intrafamiliar contra crianças e/ou adolescentes.
Métodos: pesquisa transversal, realizada por meio da aplicação de questionários com fonoaudiólogos do Paraná e Santa Catarina. Foram incluídos profissionais que prestavam atendimentos clínicos voltados a crianças e adolescentes, sendo excluídos fonoaudiólogos que atendiam apenas adultos e idosos. Os dados foram explorados por meio da metodologia de Análise do Conteúdo.
Resultados: foram incluídos 75 fonoaudiólogos, sendo 70,7% do Paraná e 29,3% de Santa Catarina. Dos participantes, 52% atenderam crianças e/ou, adolescentes com casos suspeitos ou confirmados de violência. Na análise de conteúdo, os resultados foram alocados em um único eixo, subdividido em três subeixos temáticos: 1.1 profissionais que não relataram dificuldades ou facilidades, subeixo 1.2 as facilidades e subeixo 1.3 as dificuldades.
Conclusão: as facilidades do fonoaudiólogo no atendimento às vítimas de violência intrafamiliar infantil e juvenil estão relacionadas ao bom vínculo terapêutico com paciente e/ou familiares, ao adequado trabalho multidisciplinar/interdisciplinar e em rede. Já as dificuldades no atendimento fonoaudiológico voltado a crianças e adolescentes vítimas de violência são relativas ao diálogo com a família, aos órgãos de apoio, à frequência do paciente, à elaboração de estratégias terapêuticas e à falta de preparo profissional e psicológico do fonoaudiólogo.
Palavras-chave: Fonoaudiologia, Violência, Exposição à violência, Criança, Adolescente.
ABSTRACT
Purpose: to analyze the difficulties and facilities reported by Speech and Language Pathology and Audiology in cases of domestic violence against children and/or adolescents.
Methods: cross-sectional research, carried out through the application of questionnaires with speech therapists from Paraná and Santa Catarina. Professionals from the clinical field who assisted children and adolescents were included, and speech therapists who only assisted adults and the elderly were excluded. The data were explored through the Content Analysis methodology.
Results: 75 Speech and Language Pathology and Audiology were included, 70.7% from Paraná and 29.3% from Santa Catarina. Of the participants, 52% assisted children and/or adolescents with suspected or confirmed cases of violence. In the content analysis, the results were allocated on a single axis subdivided into three thematic sub-axes: 1.1 professionals who did not report difficulties or facilities, sub-axis 1.2 the facilities and sub-axis 1.3 the difficulties.
Conclusion: The facilities of the Speech and Language Pathology and Audiology in caring for victims of child and youth intrafamily violence are related to a good therapeutic bond between the patient and/or family members and adequate multidisciplinary/interdisciplinary and network work. The difficulties in Speech and Language Pathology and Audiology care for children and adolescents victims of violence are related to the dialogue with the family, the support bodies, the frequency of the patient, the elaboration of therapeutic strategies, and the lack of professional and psychological preparation of the speech therapist.
Keywords: Speech and language pathology and audiology, Violence, Exposure to violence, Child, Adolescent.
INTRODUÇÃO
A violência intrafamiliar é definida como toda e qualquer ação ou omissão que acarreta prejuízos na liberdade e no desenvolvimento dos envolvidos, sejam eles membros da mesma família ou agregados e visitantes esporádicos(1). Essa forma de violência pode ser interpretada como uma relação assimétrica e hierárquica de poder, com o objetivo de subjugar o outro, colocando-o em uma posição de desigualdade em razão de sua idade ou gênero(2). Em se tratando da violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes, pode ocorrer em qualquer tipo de configuração familiar. Embora aconteça com mais frequência no ambiente doméstico, não está restrita apenas a este espaço, ocorrendo também em lugares públicos(2).
A violência não tem uma única causa, ao contrário, é multicausal, relacionada a determinantes sociais, econômicos, culturais e com aspectos comportamentais. Diante disso, é preciso haver engajamento de profissionais de diversas áreas, como saúde, educação, justiça, sociedade civil, meios de comunicação e iniciativas públicas e privadas para a prática de ações eficazes perante a violência(3). Entretanto, à medida que se percebe o impacto negativo da violência familiar no bem-estar da vítima, torna-se mais imprescindível a atuação de profissionais e serviços de saúde para seu enfrentamento(3).
A violência sofrida por crianças e adolescentes em suas diversas manifestações - física, psicológica, sexual, negligência ou abandono -, aumenta a demanda de atendimento nos serviços de saúde. Por esse motivo, o setor da saúde é considerado a principal porta de entrada de atendimento às vítimas de violência, possibilitando seu reconhecimento, sobretudo quando praticada pela família contra seus filhos(4). Isso significa que os profissionais de saúde estão na posição de identificar prováveis situações de violência, tendo em vista que as vítimas buscam os serviços de saúde em consequência de danos físicos ou emocionais(3).
Percebe-se, contudo, que há impasses entre os profissionais da saúde a respeito do enfrentamento da violência(5). Dentre tais obstáculos, destacam-se a falta de informações sobre sinais e sintomas de violência infantis e juvenis; a desestrutura física, social, econômica e emocional para condução de situações de violência, uma vez que muitos profissionais se sentem desamparados, não apresentando condições para orientar a família; o desconhecimento de aspectos legais a serem considerados no encaminhamento de vítimas de violência, assim como de órgãos de apoio; a carência na oferta de cursos de capacitação sobre a violência intrafamiliar(5,6). Pesquisas também apontam para dificuldades profissionais envolvendo aspectos como a negação, o preconceito e o medo relacionado às obrigações legais que devem ser assumidas em casos de notificações aos órgãos específicos como os Conselhos Tutelares(7,8).
Face ao exposto, o profissional da saúde necessita refletir e se apropriar de conhecimentos que lhe forneçam suportes para atuar e intervir de maneira efetiva em situações de violência familiar. Ao apresentar condições para garantir ajuda à vítima e a toda sua família, o profissional tende a abandonar ações que incriminam e marginalizam as pessoas envolvidas, inclusive os violentadores. Assim, não basta que o profissional identifique casos, também deve estar preparado para conduzir cada situação, amenizando a culpa e a vergonha das pessoas envolvidas, na rede familiar e, de forma mais ampla, na dinâmica da comunidade(9).
Entre os profissionais de saúde que se deparam com violações infantis e juvenis inclui-se o fonoaudiólogo. A proximidade que esse profissional pode estabelecer com a criança ou o adolescente, aliada ao fato de eles permanecerem em um ambiente privado, sem a presença dos responsáveis, torna o acompanhamento mais favorável para a identificação de possíveis vítimas. Além disso, os frequentes contatos com a família podem ajudar na identificação de situações, sendo um momento importante de prevenção e intervenção, pois pode quebrar o ciclo da violência que se repete no seio de diversas famílias(9).
Diante do apresentado, o presente artigo objetivou analisar as facilidades e as dificuldades relatadas por fonoaudiólogos no atendimento clínico a crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar.
MÉTODOS
Estudo aprovado por Comitê de Ética da Universidade Tuiuti do Paraná, com no. 34894720.6.0000.8040, de caráter transversal, descritivo e analítico, realizado a partir do envio de questionários no mês de março de 2021 a 4.297 fonoaudiólogos atuantes no Paraná e em Santa Catarina, inscritos no Conselho Regional de Fonoaudiologia – 3ª região (CREFONO-3).
O questionário foi estruturado na plataforma Google Forms, com 29 questões, tendo como embasamento um instrumento desenvolvido em pesquisa anterior(9). Porém, foi adaptado para abranger questões capazes de responder aos objetivos deste estudo. A parte inicial do questionário, contendo oito perguntas, abordou dados sociodemográficos e de formação dos participantes, tais como local de residência; tempo de formação; áreas de atuação; nível acadêmico. A segunda parte enfocou a atuação do fonoaudiólogo em situações de violência, incluindo número de casos atendidos; gênero e faixa etária da vítima; facilidades e dificuldades encontradas pelos profissionais. Por fim, na última questão, havia um espaço aberto para depoimentos ou comentários.
O próprio CREFONO-3 enviou o questionário por e-mail aos profissionais, no dia 12 de março de 2021, permanecendo aberto para respostas por dois meses. Optou-se por esse método visando atingir o maior número de profissionais atuantes nos dois estados de forma rápida e simultânea. Inicialmente, foram recebidos 60 questionários respondidos em um mês. Devido ao reduzido número de engajamento, foi realizado um segundo envio do instrumento aos fonoaudiólogos no mês seguinte, sendo respondidos mais 25 questionários. Assim, foram coletados 85 questionários, no total. Os participantes tiveram suas identidades preservadas, sendo codificados e reconhecidos por meio de números arábicos de 1 a 85.
Foram incluídos os profissionais que atuavam em âmbito clínico junto a crianças e adolescentes, sendo excluídos fonoaudiólogos que atendiam apenas adultos e idosos. Foi utilizada a amostra por conveniência, sendo admitidos os participantes que responderam ao questionário e se adequaram aos critérios de elegibilidade. Todos os indivíduos incluídos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
As respostas coletadas foram exploradas por meio da Análise do Conteúdo (AC), pois essa metodologia permite explorar o conteúdo linguístico coletado em função de critérios quantitativos e qualitativos(10). A análise qualitativa desenvolveu-se a partir do reconhecimento de temas presentes nos discursos dos participantes, organizados em categorias, permitindo a interpretação e a discussão(10). Esta análise foi organizada em três fases.
A primeira etapa, chamada de pré-análise, visou à organização do material da pesquisa. Compreendeu a seleção dos documentos, a formulação de hipóteses e a elaboração de indicadores que sustentaram a interpretação final. Nesta etapa, considerou-se a regra da exaustividade em que todos os elementos do corpus pesquisado foram considerados(10).
A segunda fase voltou-se para a exploração do material, por meio da codificação, buscando transformar sistematicamente os dados brutos em unidades comuns(10). A codificação ocorreu por meio do recorte textual das unidades de registro, que apresentaram natureza e dimensões variáveis, enfocando as temáticas(10). Feito isso, aplicaram-se as regras de enumeração para avaliar as frequências das unidades de registro(10).
A terceira fase ocupou-se da classificação e agregação das unidades de registro em categorias, Este procedimento deu-se mediante o agrupamento das unidades de acordo com suas características comuns, organizadas em categorias temáticas(10).
Na análise quantitativa, as repostas foram agrupadas para análise estatística descritiva com o cálculo da porcentagem. As análises foram realizadas por meio do software estatístico Jasp, versão 0.14.1.
RESULTADOS
Embora tenham sido coletados 85 questionários, 2 profissionais decidiram não participar do estudo após a leitura do TCLE e 8 foram excluídos pelo fato de atenderem apenas adultos e idosos. Portanto, foram incluídos 75 fonoaudiólogos.
Dos 75 participantes, 70,7% eram do Paraná e 29,3% de Santa Catarina. A respeito do tempo de formação, 5 (6,7%) se graduaram há menos de um ano desta pesquisa, 30 (40%) se graduaram entre 1 e 5 anos, 15 (20%) entre 6 e 10 anos, 13 (17,3%) entre 10 e 20 anos e 12 (16%) há mais de 20 anos. Quanto ao nível acadêmico, 37 (49,3%) dos fonoaudiólogos possuíam especialização ou aperfeiçoamento, 27 (36%) apenas a graduação, 6 (8%) mestrado e 5 (6,7%) doutorado.
Em relação às áreas de atuação, 53 (70,7%) atuavam como generalistas, 11 (14,7%) atuavam com linguagem, 7 (9,3%) com audiologia, 1 (1,3%) com voz, 1 com (1,3%) motricidade orofacial, 1 (1,3%) na fonoaudiologia educacional e 1 (1,3%) trabalhava no serviço especializado em violência.
Dos 75 pesquisados, 39 (52%) atenderam crianças e/ou adolescentes com casos suspeitos ou confirmados de violência. O público mais acometido pela violência foram as crianças entre 2 e 12 anos (48%), seguidas de adolescentes (32%) e bebês (13,3%). Os tipos de violência encontrados foram a violência psicológica (41,3%), violência física (38,7%), violência sexual (36%) e negligência e abandono (26,7%). As dificuldades ou facilidades relatadas pelos fonoaudiólogos que atenderam casos de violência familiar contra crianças e/ou adolescentes estão descritas na Tabela 1.

As categorias de composição dos eixos e seus subeixos, juntamente com exemplos das unidades de registro que representaram o material analisado, estão apresentados no Quadro 1. Os componentes das categoriais estão descritos na coluna entre as categorias e os exemplos das unidades de registro, sintetizando o conteúdo de cada categoria constituída em função das respostas elaboradas pelos participantes aos itens do questionário. Cada unidade de registro foi seguida pela indicação do numeral arábico do participante que a enunciou.

O Eixo 1 referiu-se às dificuldades ou facilidades apresentadas pelos fonoaudiólogos em casos de violência intrafamiliar contra crianças e/ou adolescentes e foi constituído por 3 subeixos: 1.1, cujos profissionais não relataram dificuldades ou facilidades; 1.2, as facilidades elencadas pelos fonoaudiólogos e 1.3, as dificuldades encontradas.
DISCUSSÃO
A discussão sobre as dificuldades e facilidades apresentadas pelos fonoaudiólogos em casos de violência intrafamiliar contra crianças e/ou adolescentes foi organizada a partir de três subeixos.
Subeixo 1.1: Sem dificuldades ou facilidades
Neste subeixo, 5,3% dos fonoaudiólogos não relataram dificuldades ou facilidades em casos de violência intrafamiliar contra crianças e/ou adolescentes. Para entender o relato desses participantes, convém esclarecer as especificidades que permitiram a condução dos casos: um fonoaudiólogo trabalhava no serviço especializado de violência; um fonoaudiólogo era pesquisador da área há mais de 20 anos; outro profissional realizou todos os treinamentos oferecidos pela secretaria municipal de sua localidade e o outro aprimorou-se na temática por meio das capacitações promovidas pelo Ministério da Saúde/Fiocruz.
Observou-se que os profissionais mencionados estariam, em tese, mais preparados para lidar com situações de violência devido a sua experiência profissional e à busca por formações específicas. Dessa forma, não relataram dificuldades ou facilidades para conduzir os casos. Em consonância, estudo aponta que treinamentos e capacitações aumentam as oportunidades da condução adequada de situações de violência intrafamiliar(11). Ou seja, quanto mais capacitação ou experiência em um determinado assunto, maior será o preparo para lidar com ele em sua prática clínica.
Dois (2,7%) participantes referiram não ser função do fonoaudiólogo atuar em casos de violência, o que leva à necessidade de refletir a respeito do mito da não violência, retratado na fala dos dois fonoaudiólogos e enraizado na sociedade brasileira. O mito da não violência opera como alicerce na construção mítica da sociedade como boa, una, indivisa, pacífica e ordeira, erguendo-se a imagem de um povo generoso, alegre, solidário, que desconhece situações de violência e de despeito ao ser humano(12). Essa imagem impulsiona os sujeitos a ignorarem as situações de violação dos direitos humanos, terceirizando a função de agir nesses casos(13).
Considera-se também a tradição corretivo-normatizadora que sustenta a prática fonoaudiológica de muitos profissionais, limitada apenas ao tratamento das queixas de linguagem, não olhando para o sofrimento do sujeito, de seus familiares e a violência que se institui nesta relação(13). Ressalta-se, do mesmo modo, o fato de existirem poucos trabalhos que abordem a violência e a fonoaudiologia, sendo uma forma de negação para essa realidade, que consolida o mito da não violência(13).
Subeixo 1.2: Facilidades
No subeixo facilidades, dois (2,7%) fonoaudiólogos relataram facilidades em razão do vínculo terapêutico. Em suas falas, evidenciou-se a importância da relação de vínculo entre o profissional e o paciente e entre o profissional e os familiares. O vínculo consiste na construção de relações de afetividade e confiança resultantes da aproximação e acolhimento, responsabilidade e resolutividade que potencializam a atenção integral ao sujeito e ampliam a porta de entrada para o atendimento, especialmente às vítimas de violência(14).
Ao conceber a escuta como produtora de efeitos sobre o sujeito, a clínica fonoaudiológica constitui-se como geradora de cuidado e transformação(15). Em se tratando dos familiares, a escuta emerge como potência vincular entre eles e o terapeuta. Os pais modificam a qualidade do diálogo e da relação com seus filhos a partir da experiência terapêutica com o fonoaudiólogo, tornando-se figuras com mais recursos linguístico-discursivos(15). Desse modo, é imprescindível reconhecer a família como integrante do processo terapêutico e não apenas como auxiliar ou recebedora passiva do trabalho. A partir da relação de confiança estabelecida entre o fonoaudiólogo e os familiares, surgirão caminhos para a ressignificação de situações de violência(15).
A fonoaudiologia contribuirá nas ocasiões de violência dando voz às vítimas silenciadas(9). A relação terapêutica resulta em interações clínicas que proporcionam segurança ao paciente, permitindo a ele dialogar livremente(16). Em vista disso, o vínculo terapêutico estabelecido entre a vítima e o fonoaudiólogo colaborará para a quebra do silêncio, a busca por ajuda, a interrupção da situação de violência e a ressignificação do contexto familiar dos envolvidos(17).
Ainda neste subeixo, um profissional (1,3%) citou facilidades graças ao trabalho em rede. Quando se trata da violência intrafamiliar, salienta-se a dinâmica do trabalho em rede por meio da articulação entre diferentes setores e áreas, buscando uma interlocução que possibilite efetivar a integração entre a assistência social, a educação, a saúde, a defesa social e a cultura. Esse trabalho fortalece a proteção social às crianças e aos adolescentes(18). A atuação interdisciplinar promove a troca de experiências de forma integrada e coordenada entre os profissionais, além de proporcionar segurança no momento de acionar os órgãos de apoio(19).
O trabalho em equipe surge como potencialidade de enfrentamento às situações de violência, pois se constitui como espaço propício para a discussão de casos e eventos violentos e para a formalização de fluxos do atendimento. O enfrentamento da violência requer um diálogo sistemático entre os profissionais, fator que contribui para a notificação e a superação de atos isolados, desarticulados e de competência individual de cada profissional(20).
Subeixo 1.3: Dificuldades
Dentre as dificuldades do fonoaudiólogo em situações de violência contra crianças e adolescentes, destacaram-se os impasses em dialogar com a família, relatados por sete (9,3%) profissionais. Neste sentido, salienta-se que as primeiras aprendizagens da criança ocorrem no seio familiar. Assim, é indiscutível que a família assume papel primordial no desenvolvimento das crianças e adolescentes. Caracterizada como o principal agente educativo e o núcleo central do desenvolvimento integral do infante, a família é a integrante primordial do processo terapêutico e não apenas coadjuvante desse processo(16,21). A relação entre terapeuta e família contempla o acolhimento das demandas familiares e não se restringe meramente a orientações(16).
Dificuldades em relação aos órgãos de apoio foram mencionadas por sete (9,3%) fonoaudiólogos. Apesar de não ser a conduta mais adequada, frequentemente os fonoaudiólogos enfrentam a violência sozinhos, pois não contam com apoio institucional, apresentando dificuldades em relação aos órgãos de apoio(13). Existem lacunas intersetoriais entre as atuações do Conselho Tutelar e o setor da saúde, visto pela comunidade como porta de entrada para tratamento de lesões, que, muitas vezes, são oriundas da violência. Por isso, há a necessidade de uma parceria entre o Conselho Tutelar e os serviços de saúde, visando facilitar e tornar eficaz a comunicação e a articulação das ações, proporcionando espaços de diálogo e encontrando mecanismos para padronizar o atendimento e acompanhamento das vítimas(13).
Três profissionais (4%) relataram dificuldades no manejo terapêutico com o sujeito vítima de violência. Quanto a esse fator, em muitos casos, o fonoaudiólogo ignora a vida subjetiva de seu paciente e se defronta com ele como se fosse apenas um corpo biológico, ignorando o real sofrimento e restringindo sua atuação às queixas fonoaudiológicas(13). Outra explicação para essa dificuldade está no déficit da abordagem desse assunto na formação do profissional da saúde, acarretando obstáculos no atendimento das questões subjetivas das vítimas(22).
Destaca-se, também, que criança violentada pode estar com sua capacidade lúdica embotada devido a sentimentos de culpa, medo, raiva, apatia e sentimentos negativos(22). Por essa perspectiva, a persistência da proposição de atividades lúdicas pode ser uma forma de enfrentamento dessa situação. O brincar terapêutico possibilita equilíbrio e reorganização, diminuindo os sentimentos negativos ocasionados pela violência(23). Por meio de brincadeiras, as crianças e os adolescentes passam a expressar o que vivem. Ao brincar, é possível para eles se separarem de situações traumáticas, enquanto se situam no presente, passado e futuro, simbolizando, falando e representando conteúdos perturbantes. Dessa maneira, o infante sente-se livre para descobrir novos significados em resposta as suas experiências(23).
Um profissional (1,3%) mencionou dificuldades em relação à frequência do paciente nas terapias. Na fonoaudiologia, as pesquisas apontam que a descontinuidade do acompanhamento terapêutico é um fator recorrente nos atendimentos clínicos(13, 17, 24). Dentre as possíveis causas para essa ocorrência, estiveram relacionadas a condução inapropriada do caso por parte do fonoaudiólogo e a falta de conhecimento para agir nessas situações(13, 17).
Um fonoaudiólogo (1,3%) relatou dificuldades em relação ao próprio paciente fazer a denúncia ao órgão responsável. Convém esclarecer que a notificação compete a qualquer cidadão que é testemunha, tome conhecimento ou suspeite de violações dos direitos de crianças e adolescentes(19). A notificação, em última instância, é uma responsabilidade institucional e não meramente individual. Os profissionais, em especial, os que atuam diretamente no atendimento à população, devem realizá-la(25).
O profissional de saúde deve conversar com os familiares, explicando a necessidade de notificar para poderem ser beneficiados com uma assistência adequada. A pessoa que acompanha a vítima precisa de apoio, seja no caso de ser o próprio agressor, seja para lidar com o agressor. Portanto, a relação do profissional com o acompanhante da criança ou do adolescente deve ser firme, sincera e, em simultâneo, demonstrar a sensibilidade que esse momento requer(25). É preciso esclarecer que a notificação não é um favor, nem um ato de caridade que o profissional poderá ou não prestar, é o seu dever(19).
Dentre as dificuldades relatadas pelos fonoaudiólogos em casos de violência contra crianças e adolescentes, a mais citada foi a falta de preparo profissional, com dez (13,3%) menções. É comum a queixa de profissionais a respeito do pouco conhecimento sobre a violência, da falta de estrutura para lidar com os casos, do desconhecimento do fluxo de notificação e das dificuldades de uma abordagem integrada e intersetorial(18). Também há o medo de afetar a segurança pessoal do profissional e a recusa em se envolver com burocracias judiciais(26). Salienta-se que o profissional de saúde precisa lidar com diferentes acontecimentos e anseios para os quais, muitas vezes, não se sente apto ou não foi devidamente preparado. Se de um lado, há o desejo de afastar-se, de outro, existe a obrigação moral de ajudar as vítimas e suas famílias(18).
A falta de preparo psicológico relatada por três (4%) fonoaudiólogos foi declarada como dificuldade perante situações de violência. É importante pontuar que o medo de retaliação aflige o profissional de saúde e faz com que, muitas vezes, ele exerça uma assistência reducionista, omitindo-se do papel a ser desempenhado. Nesse sentido, é preciso considerar as demandas de cuidado direcionadas a esses profissionais, identificando seus sentimentos e contribuindo para serem implementadas ações de reestabelecimento e promoção de sua saúde geral(25). O profissional, ao não se sentir acolhido e protegido, ou, ainda, não compreender seu papel na proteção da vítima, tende a realizar uma assistência fragmentada, desumana e omissa, alicerçada no modelo biomédico de saúde, reduzido apenas a identificar e a tratar doenças, deixando de lado a situação de violência(26).
Uma limitação desta pesquisa se referiu ao número restrito de participantes, supondo-se que a temática abordada justificaria a baixa devolução dos questionários. Observaram-se dados semelhantes em outros estudos sobre violência(27,28). Destaca-se que o comportamento tabu em torno da violência se presentifica no meio social, gerando o silenciamento do visto e vivido, concebendo-se como uma regra de convivência aprendida nos grupos sociais, mas, sobretudo, indicando um campo “sacralizado” que impede a discussão, o falar e o refletir sobre a violência(29).
CONCLUSÃO
As facilidades no atendimento fonoaudiológico às vítimas de violência intrafamiliar infantil e juvenil estão relacionadas ao bom vínculo terapêutico entre paciente, familiares e fonoaudiólogo e, também, a um adequado trabalho multidisciplinar, interdisciplinar e em rede. Já as dificuldades no atendimento fonoaudiológico às crianças e adolescentes vítimas de violência, estão vinculadas ao diálogo com a família, aos órgãos de apoio, à falta de frequência do paciente ao trabalho clínico, à elaboração de estratégias terapêuticas adequadas para atender o paciente/vítima e à falta de preparo profissional e psicológico por parte do fonoaudiólogo.
Em relação aos fonoaudiólogos que não relataram dificuldades ou facilidades no andamento de casos de violência, destaca-se que a realização de treinamentos e capacitações colaboram para tal situação. Nesse sentido, confirma-se a necessidade de capacitações e formações continuadas referentes à temática abordada.
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Notas
Autor notes
Autor correspondente: Lucas Jampersa. E-mail: ljampersa@gmail.com
Declaração de interesses