Literatura
O discurso da antropofagia como estratégia de construção da identidade cultural brasileira
The discourse of cannibalism as a strategy of building Brazilian cultural identity
O discurso da antropofagia como estratégia de construção da identidade cultural brasileira
Acta Scientiarum. Language and Culture, vol. 38, núm. 3, pp. 243-251, 2016
Universidade Estadual de Maringá
Recepção: 01 Março 2016
Aprovação: 13 Maio 2016
Resumo: Este artigo apresenta uma reflexão teórica a respeito do termo ‘deglutição’ utilizado por Oswald de Andrade no Manifesto Antropófago (1928). Nesse manifesto, recortamos o conceito de antropofagia, vocábulo que descreve a devoração do Outro no intuito de absorvê-lo, no afã de assimilar as características das estéticas estrangeiras, e que expressa o impacto dos processos colonizadores na formação da identidade brasileira. Partindo da crítica à civilização europeia (colonialista), Oswald de Andrade, nas entrelinhas de seu discurso sobre a antropofagia, dialoga com as atuais discussões acerca da dependência cultural dos países periféricos. Diante desses apontamentos, nosso propósito é traçar um percurso histórico das leituras e apropriações que o termo ‘deglutição’ sofreu ao longo destes 88 anos, na esteira de estudos de críticos consagrados como Candido, Schwarz e Santiago.
Palavras-chave: antropofagia, deglutição, identidade cultural.
Abstract: This paper presents a theoretical discussion about the term ‘swallowing’ used by Oswald de Andrade in Manifesto Antropófago (1928). In this manifesto we cut the concept of cannibalism, a word that describes the devouring of the Other in order to absorb it, in his eagerness to assimilate the characteristics of foreign aesthetic, which expresses the impact of colonizing processes in the formation of Brazilian identity. Given the criticism towards the European civilization (colonialist), Oswald de Andrade dialogues, between the lines of his speech on anthropophagy, with current discussions of cultural dependency of peripheral countries. Given these notes, our purpose is to trace a historical background of the readings and appropriations that the term ‘swallowing’ has suffered over these 88 years in the researches of renowned critics such as Candido, Schwarz and Santiago.
Keywords: anthropophagy, swallowing, cultural identity.
Introdução
Uma das maiores contribuições literárias de Oswald de Andrade para nossa literatura foi a antropofagia cultural. Em 1928, o escritor lançou o Manifesto Antropófago e, desde então, o vocábulo ‘antropofagia’ tornou-se corrente no contexto brasileiro. A antropofagia, no discurso oswaldiano, significa um processo de linguagem, por meio do qual a palavra do colonizador é devorada, digerida, subvertida. Essa deglutição antropofágica trouxe, para o panorama brasileiro, uma nova forma de pensar e de conceber nossa cultura, pois se trata de uma saída possível aos problemas culturais de nosso país.
Nesse contexto, é possível ressaltar que a antropofagia é um instrumento literário, fato que contribui para o reconhecimento da alteridade na proporção em que esta parte do pressuposto da devoração da cultura do Outro. Essa deglutição da cultura europeia, sua (re)apropriação e subversão do tecido cultural consagrado pela cultura elitista que o brasileiro herdou com a colonização, assimilando-o sem muita crítica, quase adotando-o como regra a ser seguida na produção da literatura, demonstra como, para Oswald, a cultura brasileira ainda estava em um estágio primitivo. A antropofagia seria a saída para renovar as artes, introduziria a postura crítica que faltava à produção literária dos românticos, que, via de regra, havia se tornado a maior representante da literatura nacionalista na época em que saiu o Manifesto Antropófago. “Contra o índio de tocheiro. O índio filho de Maria, afilhado de Catarina de Médicis e genro de D. Antonio de Mariz” (Andrade, 1975, p. 7). Essa é a postura de Oswald contra a cultura consagrada pelos românticos, principalmente contra a imagem do índio estabelecida por Alencar no romance O guarani (1996).
Leyla Perrone-Moisés, em Vira e mexe nacionalismo (2007), retoma o conceito de antropofagia como uma estratégia literária de apropriação da cultura europeia como um mecanismo válido de renovação de toda a cultura latino-americana por meio de uma incorporação inovadora:
O que prova a força particular de uma cultura é exatamente esta capacidade de assimilar sem se perder. Um tipo de receptividade crítica e criadora era o que defendia o modernista brasileiro Oswald de Andrade, em sua proposta de antropofagia cultural: devorar (metaforicamente) os aportes estrangeiros para nos fortalecermos, como faziam (literalmente) os índios tupinambás com os primeiros colonizadores do Brasil. (Perrone-Moisés, 2007, p. 24).
A proposta de Oswald é dialética. Não se nega a cultura europeia que está na base da formação da cultura brasileira. Mas opera o mesmo princípio de violência equivalente à do colonizador ao se apropriar da cultura do Outro. No entanto, a deglutição agora é cultural, a antropofagia é metafórica. Exagera-se na forma ritual do ato antropofágico, revestindo-o de um caráter quase religioso pagão de devorar o Outro, a fim de assimilá-lo.
A antropofagia oswaldiana abre as portas para toda a forma de (re)apropriação, (re)utilização, de subversão da cultura europeia em solo americano. Investido da herança europeia, os autores brasileiros devem assumir a postura de retomada de sua cultura, abolindo as antigas heranças culturais, religiosas, literárias, devorando-as, fazendo do festim antropofágico o baluarte da nova literatura. “Contra a memória fonte do costume. A experiência pessoal renovada” (Andrade, 1975, p. 7). A antropofagia é, assim, o mecanismo de renovação da cultura brasileira. A palavra de ordem é mudança. Para isso, retomar a postura dos índios antropófagos é se (re)apropriar da origem brasileira na sua forma combativa contra a herança colonial.
Entre idas e vindas, o conceito de antropofagia foi diversamente articulado ao longo desses 88 anos de apropriação do termo, impulsionando repercussões marcantes na crítica literária brasileira, por intermédio do diálogo estabelecido, sobretudo por Antonio Candido, Roberto Schwarz e Silviano Santiago.
Antonio Candido, no ensaio Literatura e Subdesenvolvimento (1989), a partir da abordagem sociológica da cultura, trabalha de maneira específica o tema da dependência cultural. Em sua obra Formação da Literatura Brasileira, admite a dependência cultural brasileira como fator determinante de nossa literatura, denominada por ele de ‘galho secundário’. Já Schwarz (2009a), em seu ensaio Nacional por Subtração, retoma as ideias de Oswald nos anos 70, no intuito de destacar a importância do antropofagismo como um movimento de ruptura e de revolta, além de evidenciar o atraso cultural de nosso país; contudo, diagnostica algumas falhas.
O antropofagismo também se faz ouvir em Santiago. O ensaio denominado O entre-lugar do discurso latino-americano (Santiago, 2000) não só apresenta a violência do processo colonizador, como também rebate e recontextualiza a crítica da influência e da cópia.
Heloísa Toller Gomes, em seu texto ‘Antropofagia’, registra que
[...] o grande achado de Oswald de Andrade foi fazer da noção de antropofagia - em vários de seus aspectos conhecidos ou presumíveis: místicos-rituais, punitivos, metafísicos, vingativos, nutrientes - a metáfora central a partir da qual entender o Brasil (Gomes, 2005, p. 47).
or intermédio dos críticos supracitados, percebemos que a retomada do conceito antropofágico contribuiu para a recuperação da literatura brasileira, outrora desprestigiada em relação à estrangeira, relegada ao segundo plano. Sob essa perspectiva, o objetivo de nosso artigo é discutir o termo ‘deglutição’, instaurado por Oswald de Andrade e a apropriação do mesmo ao longo dos anos a partir de três críticos: Candido, Schwarz e Santiago.
O Termo Antropofagia
O termo antropofagia tem origem grega e foi transformado em canibalismo no século XVI, passando do âmbito europeu ao americano por intermédio da similaridade entre Caribe = canibal = Caliban (Greenblatt, 1996). Assim, esse vocábulo denota a ação de comer carne humana, associado erroneamente com a prática canibal, que consiste em um animal devorar outro pertencente à mesma espécie. Esse tema sempre causou certo desconforto entre os ocidentais, uma vez que desconsideram a cultura tribal.
Dentro da cultura tribal, há a prática de um ritual denominado de antropofágico, cujo objetivo era colocar os indígenas em contato com os deuses. Dessa forma, a antropofagia se propunha como uma espécie de renovação ritual, ou seja, um ato que, em termos culturais, metaforicamente se daria via devoração das culturas primitivas. De acordo com Benedito Nunes, esse ritual derivaria da “[...] própria libido como vínculo orgânico e psíquico ligando o homem à terra” (Nunes, 1970, p. 33). Esse vínculo de prazer com a terra possibilitaria ao literato reassumir seu vínculo com o Brasil no seu estado mais primitivo de originalidade, que levaria à devoração do Outro, do elemento estranho à sua cultura, não sem absorvê-la em partes, mas incorporando-a na sua espiritualidade.
O conceito de antropofagia, no contexto latino-americano, permite à sua literatura libertar-se do rótulo de inferioridade, demonstrando que a cultura europeia passa por um processo de absorção seletiva: deglute-se apenas aquilo que é imprescindível para renovar a literatura brasileira, devora-se (metaforicamente) somente as ideias que permitem rever a trajetória formativa da cultura brasileira pelo olhar do europeu. Dessa maneira, o discurso antropofágico se converte em instrumento para reagir à força suplantadora do colonizador, que insiste em apagar a cultura daqueles povos considerados inferiores pelo europeu.
É inegável que a proposta antropofágica de Oswald de Andrade também passou pelo mesmo processo de deglutição na ensaística latino-americana, ganhando novos contornos, politizando-se como instrumento de resposta à cultura opressora. Por isso, a antropofagia original, em termos oswaldianos, que também já era uma reapropriação do conceito ao modo do escritor, expandiu-se em releituras que deram a possibilidade de olhar a cultura na América Latina por um viés de contraproposta a uma teoria da literatura eurocêntrica que marginalizava a produção literária feita nos países periféricos.
Os termos ‘antropofagia’ e ‘antropófago’ se popularizaram no Brasil em 1928, quando o ‘Manifesto Antropófago’, escrito por Oswald de Andrade, eclodiu. A preocupação expressa nesse manifesto era deslindar a nossa cultura, ainda uma incógnita, pela volta às origens. Nesse retorno, a ideia subjacente é de que o homem precisa se libertar de todo o sistema ocidental.
No entanto, seríamos rasos se apenas afirmássemos que a Antropofagia ao modo proposto por Oswald seria uma forma de libertação total de uma cultura precedente. A proposta é maior: prevê a antropofagia como o único meio de unir todos os homens de maneira igualitária, mostrando o caráter de interdependência no qual vive submersa a humanidade:
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
Tupi or not tupi that thes question (Andrade, 1975, p. 7).
O homem é um devorador, está em seu instinto devorar insensivelmente o Outro. É essa característica que irmana a todos, desde o ponto de vista social, econômico ou filosófico. Esta seria a lei que a humanidade repete de forma mascarada, que vai além das religiões e agora sendo retomada de forma consciente e figurativa, daria a possibilidade de no Brasil praticar a devoração simbólica da cultura europeia, que não é um acervo cultural loteado, mas pertencente ao mundo. Mais adiante, Oswald afirma categoricamente: “Sem nós a Europa não teria sequer a pobre declaração de direitos do homem” (Andrade, 1975, p. 7). Em outras palavras, o homem vive em um sistema de interdependência cultural.
A antropofagia oswaldiana estabelece uma clara relação com questões do Brasil pré-colonial, em que a civilização sofreu com os modelos culturais impostos pelo patriarcalismo luso-europeu. A arte brasileira imita padrões culturais e comportamentos que são estrangeiros. O que o conceito antropofágico propõe é o devoramento crítico da cultura estrangeira e sua adaptação ao panorama brasileiro. Trata-se da alegoria do canibalismo que se apresenta como uma maneira de reagir contra a dependência cultural, de rebelar-se contrariamente aos cânones artísticos e culturais inseridos na sociedade da época.
De fato, a antropofagia expõe o devoramento, a deglutição, a digestão de nossa herança cultural europeia como possíveis soluções para os impasses culturais brasileiros. Essa atitude denota certa negação dos padrões hierárquicos estabelecidos, já que, no processo digestivo, ocorre a absorção do estrangeiro.
Ao propor uma ‘deglutição seletiva’, Oswald de Andrade coloca a literatura brasileira no mesmo patamar da literatura europeia, por meio de uma atitude de diálogo. Deglutir também é uma metáfora do processo criativo de uma literatura que passa a se apropriar da cultura do Outro, de maneira a não apagá-la, porém colocando-a em posição de relacionamento criativo com a literatura já canonizada, desrespeitando deliberadamente seus preceitos e lugares privilegiados, antes tidos como intocados pela crítica literária de caráter eurocêntrico.
Na verdade, Oswald já aponta, em seu manifesto, esse caráter de rebeldia alegre na postura dos primeiros habitantes do Brasil, e também na literatura. O carnaval, a forma de celebração alegre e brasileira de todas as classes sociais, foi nosso primeiro ato nacional de falsa assimilação da cultura europeia, ou pode-se dizer de dissimulação frente à força impositiva da cultura transplantada para o país:
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses (Andrade, 1975, p. 7).
O conceito de antropofagia determina a possibilidade de questionar o sistema colonial e, simultaneamente, abre caminho para se pensar a identidade brasileira em sua complexidade. Logo, o termo utilizado por Oswald de Andrade propicia reflexões dentro de uma perspectiva cultural, conduzindo a crítica literária brasileira a formular conceitos da dependência cultural. Para tanto, a virada do século XIX para o século XX foi decisiva, visto que, desde então, o nacionalismo literário buscava argumentos para expressar uma identidade cultural independente dos modelos europeus.
A propósito, Oswald de Andrade, em seu ‘Manifesto Antropófago’ (1975), foi um dos primeiros intelectuais brasileiros a atacar de frente o problema da dependência cultural em todos os âmbitos da produção artística. Criticou o artificialismo romântico do índio, a suposição de que os europeus haviam catequizado os índios, legando para nós sua religião; desconstruiu a questão do patriarcalismo, propondo o ‘Matriarcado de Pindorama’, numa clara valorização da figura feminina na cultura brasileira, em abandono a todas as imposições do sistema patriarcal na organização do país:
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do Matriarcado de Pindorama (Andrade, 1975, p. 7).
Candido, Schwarz e Santiago: Reflexões sobre a Antropofagia
Antonio Candido descreveu uma reflexão fundamental em torno da literatura brasileira. Pioneiro na perspectiva sociológica da crítica literária brasileira, suas obras apresentam profícua discussão da articulação entre literatura nacional e literatura latino-americana, bem como o conceito de sistema literário e sua relevância para o estudo da recepção literária. No prefácio e introdução da obra Formação da Literatura Brasileira (1975), notamos a relação de dependência da literatura brasileira: “A nossa literatura é galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas” (Candido, 1975, p. 9).
No entanto, essa dependência sobre a qual Candido comenta refere-se não só à literatura portuguesa, mas à francesa também de onde deriva a portuguesa, ou seja, nossa literatura é duplamente colonizada porque Portugal já era colônia econômica da Inglaterra. Gomes (2006), em seu ensaio Condição Pós-Colonial, Cultura Afro-Brasileira, comenta que o Brasil teve um colonizador direto e um indireto: o direto foi o português, o indireto foi o inglês. Seguindo essa linha de raciocínio, nosso país foi duplamente colonizado em virtude das ligações históricas entre Portugal e Inglaterra.
Nesse sentido, nossa dependência em relação à literatura portuguesa e, sobretudo, em relação à cultura ocidental advém da percepção do movimento dialético entre tendências universalistas e particularistas que se combinam de variadas formas: as universalistas dominam nas concepções neoclássicas; as particularistas, nas românticas. Para Candido, nossa literatura só é independente após o período romântico, quando se apresenta inserida em um sistema e ainda mantém laços com o fator social estrangeiro. Para o crítico, é imprescindível que o leitor brasileiro mantenha contato com a literatura estrangeira no intuito de evitar o provincianismo.
Anos depois, Leyla Perrone-Moisés, retomando essa mesma linha de pensamento do crítico Antonio Candido, defende a abertura da literatura latino-americana ao produto estrangeiro como forma de libertar-se de um localismo sem sentido:
Nosso objetivo deveria deixar de ser ‘abafar na Europa’, e simplesmente mostrar a ela o que fizemos de diferente com o que ela nos trouxe (Perrone-Moisés, 2007, p. 27, grifo do autor).
Embora se queira evitar um provincianismo exagerado, admitindo a filiação portuguesa nos momentos de formação da literatura brasileira, o sentimento de nacionalidade que acompanha Candido leva-o a montar uma estrutura da criação literária cerceada em premissas a partir da exposição de seu método de abordagem e de seus pressupostos teóricos. O caráter inaugural de sua obra se desvela na medida em que apresenta ao leitor as ideias de formação, sistema, valor, função e tradição. Isso porque o crítico atribui à literatura um caráter sistêmico, no qual a noção de formação se desenvolve pela tríade: autor, texto, leitor.
A existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive, e um mecanismo transmissor [...] que liga uns aos outros (Candido, 1975, p. 23).
Embutidos nessa noção de sistema literário fundamentado pelo tripé: autor, obra, público, percebemos que Candido entende que o sistema literário pressupõe interação entre os três elementos, além do processo de continuidade na produção de romances, contos, peças teatrais, poesias, que só passou a existir com o advento do Romantismo no Brasil. Para tanto, acredita que a formação da literatura se dá em contraste com aquela da qual provém (no caso, a portuguesa) e com outras literaturas europeias, levando em conta os vários momentos de intersecção. O problema é que, a partir dessa premissa, ocorre a exclusão da contribuição de importantes literatos tais como Antônio Vieira e Gregório de Matos.
Anos depois, nos estudos de comparatismo literário, Tania Franco Carvalho Carvalhal, seguindo as ideias do crítico peruano Antonio Cornejo Polar (Polar & Valdés, 2000), formulou a questão da dependência cultural brasileira em termos do ‘próprio’ e do ‘alheio’, numa clara reformulação do que seria o ‘universal’ e o ‘local’ de Candido, fruto de uma literatura em permanente embate da necessidade de produzir uma literatura original e, ao mesmo tempo, não perder o compasso da tradição europeia estabelecida há séculos.
Novamente, voltam ao centro das preocupações sobre a literatura produzida na América Latina as discussões sobre dependência cultural. Como se livrar de uma herança europeia de tantos anos e que foi alvo de admiração dos primeiros escritores românticos no Brasil. A literatura brasileira vive nesse labirinto entre o ‘próprio’ e o ‘alheio’, este último a incomodar constantemente, a assombrar com o fantasma da dependência cultural de que tanto os escritores tentaram se livrar, como é o exemplo de Oswald com seu Manifesto Antropófago, que propõe deglutir o Outro, retirando dele sua força criadora, para o novo em solo brasileiro. Tania Franco comenta estas interpenetrações do ‘alheio’ no ‘próprio’:
Observa-se, então, que a oposição entre o próprio e o alheio se relativiza quando considerado na perspectiva intrínseca da produção literária, onde a absorção do alheio participa na construção do próprio. Portanto, a distinção operatória e metodológica, que polariza os dois elementos, não deve impedir que se perceba a interpenetração do alheio no próprio ou do imitado na obra que resulta dessa inspiração (Carvalhal, 2003, p. 138).
A autora discute, na verdade, os processos de apropriação e (re)apropriação da cultura europeia na brasileira e quais as consequências desses trânsitos simbólicos para as duas culturas. Em que medida uma carrega interpenetrações da outra? A apropriação do alheio não daria à literatura brasileira o caráter nacional que tanto almejava? Não estaria, por trás desse processo de apossamento, a prática de deglutição seletiva do Outro, proposto por Oswald? As formulações se dão em outros termos, como ‘interpenetração do alheio no próprio’, mas no fundo está esse devorar o Outro lenta e progressivamente, como se nas ruminações dessas idas e vindas culturais, o nacional mostrasse seu caráter combativo a fim de obter sua literatura.
Haroldo de Campos (1992), no ensaio Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira, propõe uma história da literatura brasileira que incorpore autores que romperam com os modelos canonizados tais como Antônio Vieira, autor de Os Sermões (2008), e Gregório de Matos (2010), barroco literário, o primeiro, na opinião do crítico, a realizar a ‘razão antropofágica’. A abordagem que Campos apresenta acerca da dependência cultural brasileira leva em conta o diálogo entre as culturas, no qual um novo produto cultural pode surgir. Ao atribuir a importância à interdependência universal entre os povos e ao relacionamento dialógico supracitado, o crítico declina a classificação de literatura subdesenvolvida proposta por Candido.
No decorrer das colocações de Haroldo de Campos, aparece a proposição de uma historiografia que leva em consideração os mecanismos de produção literária e cultural, além de estabelecer noções de diálogo e diferença que permeiam a literatura brasileira. Tais noções, segundo o crítico, se alimentam da antropofagia oswaldiana e foram antecipadas pelo poeta Gregório de Matos.
Na mira de Campos, está o crítico Antonio Candido, que ao embasar seu conceito de literatura como sistema, posterga escritores que não teriam contribuído para o mesmo, caso de Matos e Vieira, já citados anteriormente. Campos acredita que esse projeto de composição da literatura nacional é falho. É nítida, portanto, a postura de ruptura do crítico, que se divorcia do percurso proposto por Candido e propõe um discurso que estabelece novas bases para a concepção de uma tradição literária.
Na esteira de Candido, as questões relacionadas à dependência cultural brasileira, ao cosmopolitismo e à dialética entre o universal e o particular repercutiram na crítica literária brasileira, estabelecendo um diálogo com Roberto Schwarz. O ensaio Nacional por Subtração, de Schwarz, dá continuidade às ideias discutidas por Candido, além de demonstrar um efetivo mal-estar diante do caráter postiço e imitado de nossa cultura. No entanto, quando o autor pensa na renúncia à cópia, na destruição da ideia de imitação, conclui que as contradições da sociedade brasileira não são produzidas pela veia imitativa, mas decorrentes do processo do funcionamento do sistema capitalista. Nesse viés, o sentimento de civilização postiça é fruto da estrutura social.
Um dos apontamentos que move a crítica de Schwarz pode ser a retomada das ideias de Oswald de Andrade. O crítico destaca a importância do Antropofagismo como um movimento de ruptura, de revolta, já que contribuiu para a interpretação de nosso atraso, situando a cultura brasileira na atualidade mundial:
Em lugar de embasbacamento, Oswald propunha uma postura cultural irreverente e sem sentimento de inferioridade, metaforizada na deglutição do alheio: cópia sim, mas regeneradora (Schwarz, 2009a, p. 121).
Com efeito, parece que, para Schwarz, as ideias europeias devem ser antropofagicamente digeridas para celebração dos elementos locais. Sendo assim, seguindo a linha de raciocínio do crítico, é possível reaproveitar temas, estilos, princípios compositivos e propostas estéticas forjadas nos países europeus, modificando os dados iniciais tomados do modelo.
A questão da cópia não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e político, e liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada (Schwarz, 2009b, p. 136).
Essa atitude do crítico revela a incorporação do discurso do outro em terras brasileiras, pois a cultura ocidental, ou seja, o elemento externo é transformado em elemento interno, um dado a partir do qual se constituirá a literatura brasileira, numa tentativa de ressignificar o discurso do ocidente, do Outro, ou seja, a crítica dialética de Schwarz expõe como os elementos externos, no caso o sistema econômico social, estão presentes nas obras, se diferenciando da literatura europeia, o que pode representar um modo de deglutição, visto que importamos o molde, mas atribuímos novo sentido em nossa cultura.
Cevasco (2008) atribui a Roberto Schwarz uma decisiva contribuição para o desenvolvimento dos estudos culturais no Brasil. Segundo a autora, a ideia de ‘nacional por subtração’ é um tema definidor para a cultura brasileira porque desata o nó da dualidade entre nacional e estrangeiro no debate sobre a cultura nacional.
Silviano Santiago, por sua vez, aponta uma versão oposta à ideia de postiço e ornamental de Schwarz. Para o crítico, em seu ensaio Apesar de dependente, universal (Santiago, 1982), a obra latino-americana encontra-se inferiorizada por dois fatores: o temporal e o qualitativo. O temporal refere-se ao atraso cultural brasileiro em relação ao europeu, o qualitativo refere-se à ausência de originalidade na cultura dominada. No entanto, a partir do desconstrucionismo francês (Derrida), o crítico atribui força aos textos ditos colonizados ou influenciados, repensando a dependência pela antropofagia. Segundo o autor, pela antropofagia, a literatura pode se transformar, se reordenar e se desarticular da cultura dominante.
Realmente, as obras brasileiras imitam ou repetem aspectos das obras europeias, fatores que podem denotar ausência de originalidade bem como atraso cultural de nosso país. Entretanto, Campos acredita que pode transformar os valores culturais oriundos da Europa e adaptá-los às necessidades locais e temporais por intermédio da transculturação, ou seja, pela desconstrução da cultura estrangeira.
Para Campos, a retomada da antropofagia recupera a literatura brasileira em relação à estrangeira do desprestígio, pela ênfase conferida à transculturação, termo que se refere à apropriação dos originais europeus pelos brasileiros, com o intuito de construir os próprios modos de representação. As obras constituem um universo cognitivo que passa a ser considerado híbrido, absorvidas pela cultura europeia, ou seja,
[...] não existiriam nem influência simples e pura nem influenciador e influenciado, mas uma mistura. Ambas as culturas envolvidas no processo seriam transformadas pelo choque entre elas (Ribeiro, 2008, p. 2).
Esse hibridismo compreende a fusão de duas culturas: a europeia e a brasileira, ou seja, a mistura entre o original e a cópia. Esse conceito, de acordo com Bhabha (1991), implica uma condição e um processo. A condição do discurso colonial na sua enunciação ocorre pela autoridade colonial em situações de confronto político entre poderes desiguais. Outrossim, é um processo de negociação cultural, uma vez que negocia os conflitos que emergem mediante o novo.
O autor indiano configura o hibridismo como uma ameaça à autoridade cultural e colonial pela imprevisibilidade e pela subversão do conceito de origem ou identidade pura da autoridade dominante. A partir desse conceito, Bhabha transgride o discurso dominante e exige o reconhecimento da diferença, assumindo então os ‘entre-lugares’, espaços intersticiais de produção de significados.
Na mesma linha de pensamento, Silviano Santiago (2000), em seu ensaio O entre-lugar no discurso latino-americano, entende esses espaços como locais onde ocorrem a assimilação, a aprendizagem e a reação, a falsa obediência do produto cultural brasileiro. Logo, depreendemos que o crítico aposta no processo antropofágico como espaços de contato com outras culturas.
A cena antropofágica recuperada por Silviano desloca e desconstrói os valores e as práticas coloniais. Nesse sentido, vislumbramos a deglutição como o devoramento crítico da cultura estrangeira, pois no processo digestivo opera-se a absorção do estrangeiro, ato que consiste na originalidade brasileira, no nascimento de uma nova literatura, marcada pelo hibridismo e pela transculturação.
Roberto Fernández Retamar (2004), no ensaio intitulado Caliban, retoma Shakespeare em The Tempest e propõe a releitura de Calibã como símbolo de resistência latino-americana. O ensaio Caliban ante la antropofagia apresenta comparações de seus argumentos com o movimento antropofágico brasileiro.
En lo que a mi cuenta, a sabiendas de la existencia de la antropofagia ritual en muchos pueblos, la cual sobrevive sutilizada en ciertas ceremonias modernas, me proponía exculpar Caliban/canibal de la indiscriminada acusación de antropofagia tantas veces hecha sin suficiente fundamento, con la sola finalidad de subrayar su presunto carácter bestial y la inevitabilidad de exterminarlo o civilizarlo (Retamar, 2005, p. 148).
Realmente, as ideias contidas no artigo do cubano vão ao encontro de alguns pressupostos da antropofagia oswaldiana. Se levarmos em consideração que a origem da antropofagia no Brasil é o símbolo da devoração pelos índios baianos (americanos) do primeiro bispo (europeu), entendemos que há uma resistência aos europeus. O próprio nome Caliban, que intitula a obra de Retamar (2004), numa releitura de A Tempestade (2013), de Shakespeare, indica resistência.
Retamar ilustra o vocábulo em questão quando retoma o ensaio de Candido, publicado em 1971. Nesse artigo, o crítico afirma que houve a devoração dos valores europeus incorporados à nossa realidade, os quais tiveram que ser destruídos, assim como os índios canibais devoravam seus inimigos para trazer o poder destes para a própria carne (Retamar, 2004). Realmente, o vocábulo ‘devorar’ utilizado por Candido não tem relação sinonímica com ‘destruir’. Por intermédio da devoração do inimigo, extraímos sua força, ou seja, absorvemos sua cultura, assimilamos sua identidade.
Outra forma de resistência advém da leitura da obra Utopia Selvagem (1982), de Darcy Ribeiro, citada no ensaio Caliban ante la antropofagia. Trata-se da releitura/re-escrita da peça A Tempestade de Shakespeare (2013). Pela leitura do texto original, é possível depreender o processo antropofágico no qual o leitor/escritor latino-americano recria o sentido da obra quando o incorpora, por intermédio de recursos da paródia, produzindo um novo texto, com o intuito de subverter o texto original tradicional. Essa subversão do texto original é emblemática no processo de resistência, do qual estamos falando.
Diante desses apontamentos, ponderamos que a literatura produzida na América Latina só faz sentido quando analisada sob o viés da antropofagia, ritual responsável por desconstruir a ideia de discurso homogênico. Sendo assim,
A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem do questionamento dos conceitos de ‘unidade’ e pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural [...] (Santiago, 2000, p. 16, grifo do autor).
Ademais, o discurso literário latino-americano é formado pela mistura do discurso local com o estrangeiro, portanto precisa ser compreendido como um discurso heterogêneo. Sobre isso, Santiago registra que seria impossível tentar compreender a literatura produzida na América Latina como um discurso desvinculado dos textos oriundos da tradição cultural europeia.
Agora o intelectual latino-americano pode reler a tradição literária pelos olhos da antropofagia, da ‘deglutição seletiva’ dos signos poéticos, que em terras americanas são confrontados por anos de colonização que não podem ser apagados; dá-se, assim, aos poetas, romancistas e ensaístas o direito de questionar o olhar soberano do europeu, usando e abusando do cânone eurocentrista ao quebrar seu pretenso hermetismo de textos que jamais poderiam ser reescritos.
Observamos também que, nas afirmações de Retamar acerca de Oswald de Andrade e seu manifesto, ressoa a necessidade de engajamento político-social dos escritores brasileiros e latino-americanos. Dessa forma, ambos se unem via pensamento antropofágico na crença de uma América Latina unida e descolonizada.
Na mesma linha de pensamento, podemos enquadrar Maria Elisa Cevasco, cujo comentário vem ao encontro do percurso traçado:
[...] a linha d’água que diferencia os estudos culturais é seu projeto político, seu impulso claro de fazer ligações com a realidade social e diferença na prática cultural (Cevasco, 2008, p. 174).
Considerações finais
Por meio do estudo desenvolvido, constatamos que o termo antropofagia colaborou com os diálogos críticos acerca da dependência cultural brasileira. A importância atribuída às questões sobre a identidade cultural ganhou força no final do século XIX para o início do século XX com o nacionalismo literário que procurava por argumentos que fossem capazes de expressar uma identidade cultural independente dos modelos europeus vigentes.
Sob essa ótica, a crítica literária brasileira, na ânsia de formular conceitos sobre a dependência cultural, acabou propondo uma trajetória de busca pela nossa identidade cultural. Antonio Candido, com sua metáfora orgânica de que nossa literatura é ‘galho secundário’ da portuguesa, procura formular nossa identidade literária. Outrossim, considera que é a partir do Romantismo que todo o sistema literário brasileiro será formado.
Haroldo de Campos contesta as ideias de Candido, resgatando o conceito de antropofagia do manifesto oswaldiano. Para o crítico, a partir da Antropofagia, podemos pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com o universal, posto que o termo antropofagia ilustra com propriedade nossa herança de colonizados.
O caminho crítico adotado por Schwarz aproxima-se da linha de raciocínio proposta por Candido, porém Schwarz adiciona a perspectiva marxista à sociológica. Então, quando aponta as ideias estrangeiras em nosso país, admite nossa subordinação, uma vez que, para ele, a cópia se configura como característica de nossa literatura.
Silviano Santiago apresenta pensamento convergente ao de Haroldo de Campos, pois acredita que a situação de dependência cultural pode se reverter a partir do movimento dialógico da diferença. Empreendendo a retomada da antropofagia como conceito operatório, ambos os críticos colocam a literatura nacional em um patamar de igualdade com a literatura estrangeira via transculturação e desconstrução das noções de original, cópia e simulacro (Souza, 2002).
Segundo Santiago, é no trabalho do segundo texto sobre o primeiro que aparecerá a direção que o artista pode dar e criar sobre o texto matriz. É aprendendo a técnica do outro que o criador poderá avançar na sua obra para além do ponto de convergência da criação, que a crítica atrasada denomina de fonte e/ou influência. Esse tipo de leitura quebra o mal-estar que advém do caráter imitativo, da dependência de nossa literatura.
No afã de tentar superar esse mal-estar, Oswald de Andrade, com seu manifesto antropófago, contribuiu para a busca da identidade nacional. Gomes (2005) anota que a antropofagia oswaldiana compreende a devoração do nosso legado cultural, ou seja, nesse processo, os padrões culturais pré-estabelecidos seriam negados para que os elementos constitutivos de nossa formação cultural pudessem ser valorizados. Dessa forma, a antropofagia evidenciaria os paradoxos de nossa formação sociocultural.
A autora comenta ainda que, para Oswald, a noção de antropofagia funciona como uma metáfora a partir da qual seria possível compreender nosso país e o nosso processo de formação cultural. A devoração crítica operada pela antropofagia oswaldiana, após quase 100 anos, aponta para um diálogo mais paritário com a cultura europeia. Nesse sentido, a noção de diferença configura-se em um caminho efetivo para que a dependência cultural seja repensada e destituída, para que a literatura e a cultura brasileira se desloquem definitivamente da ideia de inferioridade e dependência.
Diante dos fatos mencionados, é possível constatar que a contribuição de Oswald de Andrade para a crítica literária brasileira é modelar. O manifesto oswaldiano tem despertado o interesse da comunidade acadêmica nacional e internacional porque aborda questões relacionadas à dependência cultural e a outras temáticas pertinentes aos estudos culturais e pós-coloniais. Assim, podemos abstrair que o reconhecimento da dependência cultural em nossa sociedade colonizada pode ser o caminho para a constituição da originalidade de nossa literatura.
A literatura brasileira só pode discutir sua originalidade, emergindo do espaço do ‘entre-lugar’, ali onde o processo de deglutição joga com o próprio e o alheio, tornando a antropofagia um local de enunciação que permite nascer o novo, nem europeu nem índio, mas latino-americano, disposto a transformar os textos legíveis em ‘(re)escrevíveis’, em se apropriar da cultura do Outro sem o ressentimento da dependência cultural.
Nessa conjuntura, confirmamos o termo deglutição como absorção, assimilação cultural. Então, não se trata de negar o modelo eurocêntrico, mas de negar a reprodução impensada, robotizada, uma vez que a cópia, de certa forma, continua a ocorrer, porém de forma consciente, no nível da assimilação. Viver no ‘entre-lugar’, como nós vivemos, ‘ser brasileiro’, consiste em ser um indivíduo composto por traços do habitante nativo de nossas terras e por traços do colonizador europeu. Sendo assim, nossa literatura é resultado de uma condensação de culturas, que liberta de rótulos, não apresenta preocupação sobre o valor do original ou da cópia. Enfim, a originalidade de nossa literatura consiste no diálogo entre as culturas.
A releitura desses críticos que se debruçaram sobre a antropofagia oswaldiana como um viés possível para interpretar o Brasil mostra o quão longe ainda estamos de uma verdadeira independência das ideias. O mal-estar da colonização, da dependência cultural ainda assombra a produção literária no Brasil. E, por incrível que pareça, quase um século depois, a frase de Oswald de Andrade: “A nossa independência ainda não foi proclamada[...]” (1975, p. 7), ressoa como um alerta para a necessidade de pensar a produção cultural brasileira desde seu lugar de enunciação, livre de um olhar estrangeiro, europeizado, mas com os olhos do carnaval, daqueles que nunca foram colonizados, mas resistiram contra as imposições culturais da colônia, devolvendo o riso escrachado da carnavalização dos costumes: “Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar espírito bragantino [...]” (Andrade, 1975, p. 7). Esse é o papel da crítica literária brasileira que deseje compreender o Brasil por meio do fenômeno da literatura: expulsar o espírito europeu que, muitas vezes, ainda deixa rastros na produção ensaística sobre o país.
Referências
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