DOSSIÊ

IDENTIDADE CULTURAL E RELIGIOSIDADE: a festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas

CULTURAL IDENTITY AND RELIGIOSITY: the party of our Lady of Rosario of Bela Vista of Minas

Sônia Regina Corrêa LAGES
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz deFora; mestre em Ciência da Religião pela UFJF; doutora em Psicossociologia de Comunidades eEcologia Social pelo Departamento de Psicologia da UFRJ, e com pós-doutorado na mesma área. Tematuação na área da Psicologia com interesse pelos temas: religiões e religiosidades afro-brasileiras;religião e direitos humanos; religião e saúde; religião e juventude., Brasil
Kelly ARAÚJO
Mestranda em Ciência da Religião no Programa de Pós-Graduação da UFJF. Graduada emLicenciatura e Bacharelado em História pela PUC/MG, com formações complementares emPatrimônio Cultural e Gestão Cultural., Brasil

IDENTIDADE CULTURAL E RELIGIOSIDADE: a festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas

Interações, vol. 12, núm. 22, pp. 217-234, 2017

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Recepção: 10 Julho 2017

Aprovação: 19 Novembro 2017

Resumo: O presente artigo tem como objeto de pesquisa a Festa de Nossa Senhora do Rosário da cidade de Bela Vista de Minas, situada na região metalúrgica do Médio Rio Piracicaba, MG. Desde o ano de 1950 esse festejo é realizado pelo grupo de Congado local, como um modo de prestar homenagens à sua padroeira. As festas executados pelo Congado apresentam grande notoriedade no cenário das manifestações religiosas de cunho popular do estado de Minas Gerais, preservando as tradições que remetem a um passado escravocrata do Brasil Colonial. O objetivo desse trabalho é analisar a identidade congadeira a partir dos símbolos culturais que compõem a rememoração da coroação dos Rei e Rainha congos, a partir dos conceitos de hibridismo, tradução cultural e terceiro espaço. A metodologia adotada foi a observação participante, e a análise dos dados foi realizada a partir dos pressupostos teóricos dos Estudos Culturais. Este estudo revelou que a construção da identidade cultural congadeira foi capaz de superar as posições binárias e hierarquizadas das religiosidades católica e de matriz africana, criando uma terceira narrativa, que contribuiu de forma positiva para o reconhecimento dessas identidades diaspóricas.

Palavras-chave: Congado, Hibridismo Cultural, Identidade.

Abstract: The present article has as object of research the Festa de Nossa Senhora do Rosário at the town of Bela Vista de Minas, located in the metallurgical region of the Middle Piracicaba River / MG. Since the year 1950 this celebration is carried out by the local Congado group, as a way of paying homage to its patron saint. The celebrations performed by the Congado show great renown in the scene of popular religious manifestations of the state of Minas Gerais, preserving the traditions that refer to a slaveholding past of Colonial Brazil. The purpose of this work is to analyze the Congado identity from the cultural symbols that make up Congo's King and Queen coronation remembrance from the perspective of the concepts of hybridism, cultural translation and third space. The methodology adopted was participant observation, and data analysis was performed based on the theoretical assumptions of Cultural Studies. This study revealed that the construction of the conglomerate cultural identity was able to overcome the binary and hierarchical positions of Catholicism and of religions of African matrix, creating a third narrative that contributed positively to the recognition of these diasporic identities.

Keywords: Congado, Cultural hybridism, Identity.

1 INTRODUÇÃO

O Congado em Minas Gerais é bastante expressivo, sendo executado em diversas localidades onde são variáveis as suas formas de organização e execução de atividades rituais. Algumas cidades contam, por exemplo, com um grande número de grupos associados que resultam em festas expressivas, e, em outras, encontram-se pequenos formatos de celebrações, realizadas por poucos membros. Além disso, há uma vasta diversidade quanto ao uso de símbolos, datas de festividades e invocações. Apesar dessas e outras variedades, há um passado histórico que traz grande representatividade e, em muitos casos, é o que traz inspiração para a permanência ou propagação desses grupos.

A origem das festividades congadeiras é debatida na literatura por meio de diferentes perspectivas, havendo aqueles que apontam uma relação direta com as danças praticadas ainda no continente africano, outros que se referem às festividades das associações religiosas compostas por africanos e europeus em Portugal e, por fim, há os trabalhos que assinalam um berço brasileiro para o surgimento dessas atividades. Estes últimos, mais recorrentes, discorrem que as Irmandades religiosas foram o seio de onde aflorou o Congado. As Irmandades religiosas, no Brasil, funcionaram como importantes espaços de associações de leigos que se agrupavam a fim de oferecer apoio mútuo e exercer suas práticas católicas. Havendo distinções de agrupamentos de acordo com as classes sociais e a cor da pele, as Irmandades de Nossa Senhora do Rosário eram as mais comuns entre os escravos. Nesses ambientes, era possibilitado ao negro realizar festas nas quais certas práticas de sua cultura de origem poderiam ser executadas. Dentre estas, dava-se destaque à coroação dos reis negros, realizada ao ritmo de instrumentos percussivos, acompanhada de danças e cortejos. Apesar do poder dos reis coroados se restringir apenas aos contornos dos escravizados, a entronização ganhava um sentido de ligação com a cultura de origem, além de possibilitar uma “interrupção do ritmo cotidiano, de suspensão temporária da ordem estabelecida, de inversão de hierarquias, de extravasamento de tensões, de exercício do excesso, de confraternização comunitária.” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 228).

Muitas vezes, as coroações dos reis negros eram realizadas em dias de comemorações em homenagem aos padroeiros das irmandades, celebrações estas que somavam uma série de elementos devocionais e festivos que deram contorno ao Congado. Leda Martins (1997) explica que “ainda que sejam tomados um pelo outro, os termos Congado e Reinado mantêm diferenças.”. Segundo a autora, Ternos ou Guardas de Congo podem existir independente das execuções de Reinado, ocorrendo em festas de devoção em comunidade. Por sua vez, os Reinados se definem por uma estrutura simbólica englobada por ritos “que incluem não apenas a presença das guardas, mas a instauração de um Império [...].” (MARTINS, 1997, p. 31-32).

É importante esclarecer que as Guardas ou Ternos são os grupos rituais distintosque formam o Congado, sendo as mais populares e frequentes as Guardas do Congo,dos Marujos ou Marinheiros, dos Catopés e do Moçambique. Rubens Silva (2010)explica que esses grupos se distinguem pelo estilo próprio de suas indumentárias,coreografias e ritmos, elementos esses que “representam símbolos sagrados, umaforma de expressão religiosa da comunidade congadeira e do seu elo com as origensda tradição do Congado”. (SILVA, 2010, p. 17).

As Guardas e Ternos repassaram seus ensinamentos entre gerações, desde o período colonial até os dias de hoje. Esse processo se tornou possível através da oralidade, bem como de outras formas características de transmissão dos saberes da cultura africana, como a corporeidade e a musicalidade, elementos usados de forma integrada na prática religiosa. No Congado, a execução desses ritos traduz-se como forma de conexão a uma ancestralidade africana, além de resistência frente às oposições que foram impostas pelas culturas dominantes em variados contextos sociais, seja por parte das autoridades escravocratas, seja pelas restrições da Igreja Católica. Leda Martins (1997) observa que:

Interditados pela Igreja Católica em meados do século XIX, os festejos de reinado, ainda assim, continuaram alastrando-se e vincando-se pelo Brasil, apesar das perseguições institucionais, da ostensiva ridicularização da sociedade branca ou da tolerância complacente, que os via ou vê como manifestações “folclóricas”, “lúdicas” e “inofensivas”. No entanto, os valores que traduzem, a visão de mundo que espelham, as formas rituais que performam, e a reposição cultural que estabelecem vêm d’além mar, como rizomas ágrafos, reinscrevendo perenamente, no palimpsesto textual brasileiro, a letra africana. (MARTINS, 1997, p. 41).

Como dito anteriormente, Minas Gerais apresenta um quadro em que há grande representatividade dos festejos congadeiros. Bela Vista de Minas é uma das cidades em que essa expressão pode ser identificada, sendo evidenciada na Festa de Nossa Senhora do Rosário promovida pelo Congado 1 de Bela Vista de Minas.

Bela Vista de Minas, mesorregião metropolitana de Belo Horizonte, configura-se como uma pequena cidade mineira, possuindo cerca de 10.399 habitantes (estimativa IBGE, 2016), onde há um grande contingente populacional que depende das cidades metalúrgicas vizinhas para o seu sustento. Além da parceria com os demais municípios no quesito de geração de emprego e renda, é importante considerar que há uma aliança entre grupos de Congado da região, que se organizam através do subdiretório da região designada Médio Rio Piracicaba. Essa associação age regularizando a atuação dos grupos, além de estabelecer normas de conduta para os inscritos, e colabora para a fomentação de trocas de conhecimentos e solidariedades que ocorrem entre os congadeiros.

O Congado de Bela Vista de Minas possui uma história de pouco mais de sessenta anos, sendo que, inicialmente, a associação foi formada apenas por sete homens, mas não tardou e outras pessoas da comunidade local se integraram, havendo hoje cerca de cinquenta componentes. Desde a sua formação, a Festa de Nossa Senhora do Rosário é executada initerruptamente, sendo realizada com distintos rituais e símbolos ao longo de sua trajetória.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas caracteriza-se como o principal evento do ano para o grupo, pois é nessa data que os congadeiros belavistanos homenageiam a sua padroeira e tornam-se os anfitriões dos grupos de Congado atuantes na região do Médio Rio Piracicaba. Esses grupos trocam convites entre si e participam nas festas realizadas nas cidades dos outros, como forma de troca, de agradecimento e de irmandade.

No dia da festa de Bela Vista se reúnem cerca de dez Guardas convidadas, cada qual seguindo as características próprias de sua tradição. O grupo anfitrião apresenta-se como Guarda de Congo, sendo caracterizados pelas seguintes indumentárias: os Dançantes, com blusas e calças brancas, saiotes (geralmente azuis ou rosas), capacetes (como eles chamam as peças que são postas como enfeites sobre a cabeça, com espelhos, fitas coloridas e flores); os Fiscais, Guardas da bandeira e dos Reis, Violeiro e Sanfoneiro com roupas brancas; os Capitães, com conjuntos de blusa e calça azul; o grupo de mulheres, com blusas brancas e saias longas azuis; e o Reinado, com capa, coroa e bastão para todos os Reis, faixas para os Vice e imagem de Santa Efigênia levada nas mãos pela Rainha de Santa Efigênia.

Dentro da Guarda há a divisão entre os cargos que correspondem às funções de cada integrante. O Congado de Bela Vista de Minas é dividido da seguinte forma: Reis Congo (ou Perpétuos); Vice-Rei Congo; Rainha e Vice de Santa Efigênia; Rei de São Benedito; Reis Festeiros; Guardas dos Reis; Príncipes; Capitães (um Regente e dois Mestres); Capitã Mirim; Marechais (1° Marechal Regional e 2º Marechal Local); Guarda da Bandeira; Fiscal da Bandeira; Guardas de Trânsito; Fiscais; Bombeiros e Dançantes 2. Rubens Silva (2010, p. 17), salienta que as Guardas de Congado apresentam uma rígida hierarquia, na qual a autoridade central recai sobre o Capitão regente, que deve apresentar uma bagagem de conhecimentos espirituais e deve conseguir manter a disciplina do grupo. Essa última função também é concedida aos Fiscais. Segundo o autor, a base do grupo está nos Dançantes, que também atuam como músicos e cantadores; estes não possuem poder de decisão, mas desenvolvem a função de homenagens rituais.

Somando-se a esses componentes, há a equipe da diretoria da Associação Cultural do Congado de Bela Vista de Minas (nomenclatura sob a qual estão registrados oficialmente), responsável por reger os trabalhos da Guarda, e algumas pessoas que não estão comprometidas diretamente com os cargos, mas que acompanham todo o cotidiano festivo e organizacional, seja por serem cônjuges dos congadeiros, ou mesmo por afinidade. Todo esse grupo colabora com os preparativos da festa, que são iniciados com meses de antecedência ao grande dia do evento, sendo as várias atividades organizacionais divididas entre os ajudantes.

A programação festiva ocorre anualmente no mês de setembro, havendo flexibilidade em relação à data, que é antecedida por uma novena e pelo levantamento do mastro. O dia principal do evento é programado para o domingo, sendo este o ápice da festividade, data em que o Congado de Bela Vista de Minas sai às ruas locais em cortejos e procissões, acompanhado pelas Guardas convidadas.

Vale mencionar que a atuação do Congado, vivida no cenário mineiro com maior fervor no século XVIII, quando perpetuada nos dias de hoje, rememora o tempo da escravização, realizando os ritos em homenagem aos padroeiros das pessoas negras. Se analisado através dos elementos religiosos e do sagrado, o estudo sobre essa manifestação festiva pode indicar a ocorrência do sincretismo religioso, tendo como fonte a formação de um Catolicismo Africano constituído ainda em tempos anteriores à diáspora, bem como salienta MacGaffey (1994), Mello e Souza (2002) e Thornton (2004). Sanchis (1997), sem adotar especificamente o conceito do Catolicismo Africano, apresenta longos estudos sobre o sincretismo religioso brasileiro e pontua que as tradições africanas já haviam sido sincretizadas antes da chegada dos negros no contexto do Brasil Colonial, mas, que após essa passagem, foram “introduzidas aqui no caldeirão de uma matriz viva, historicamente ativa e [...] processadora das diferenças: o catolicismo.”. Como resultante, o que se viu formar foi: “Nem África pura, nem Catolicismo europeu. Do ponto de vista religioso e do ponto de vista cultural.” (SANCHIS, 1997, p. 105).

Neste artigo prioriza-se a análise dos elementos culturais, e se observa que, fundado em meados do século XX, o Congado de Bela Vista de Minas reconstrói a tradição congadeira em plena modernidade. Considera-se, assim, a representatividade que esse grupo traz, sendo uma associação que preza por realizar a devoção a Nossa Senhora do Rosário. Nesse sentido, se faz necessária, entre outros elementos, a identificação do praticante com a fidelidade religiosa a esta que é considerada a padroeira das mulheres e homens negros. Além disso, há ainda uma identificação entre os participantes e o modo popular de se exercer a prática religiosa, que é vivenciada a partir dos festejos anuais. Assim, a eleição de seus adeptos a essa tradição religiosa e a sua reconstrução em um novo espaço-tempo, pode satisfazer ao anseio pela busca de significados individuais, que, a partir do coletivo, ganha respostas e expressividade. A vinculação entre os congadeiros e o sagrado é então expressa em seus rituais da Festa de Nossa Senhora do Rosário, entendida aqui como formadora de identidades culturais e religiosas. Diante desse contexto, o presente trabalho analisa a identidade diásporica dos congadeiros de Bela Vista de Minas, considerando alguns dos elementos identitários presentes na festa e analisando seus elementos simbólicos – lidos aqui a partir de questões culturais, sociais e políticas –, utilizando-se do conceito de hibridismo e tradução cultural discutido por autores como Hall (2001; 2003), Silva (2000), Bhabha (2010) e Canclini (2015), dentre outros.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário foi registrada entre os anos de 2011 a 2016, a partir da atuação de uma das autoras, inicialmente, como historiadora responsável pela elaboração do dossiê de Registro do Congado de Bela Vista de Minas na esfera do Patrimônio Imaterial Municipal, e dos Relatórios de Registro dos três primeiros anos subsequentes. Posteriormente, a observação de campo se deu como parte integrante do mestrado em Ciência da Religião. Sendo assim, a metodologia de trabalho consiste na análise do material de campo coletado nesse período, bem como no diálogo desse conteúdo com fontes bibliográficas que embasam o tema a ser discutido.

2 A FESTA DE NOSSA SENHORA DO ROSÁRIO

Os preparativos religiosos da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas se iniciam com nove dias de antecedência ao momento ápice do evento, sendo, assim, introduzida por uma novena acompanhada da reza de terço. Este é o momento de preparo espiritual, dentro das tradições católicas, para aqueles que irão atuar como executantes da celebração festiva, bem como para o público, que interage de forma efetiva com a festa.

Em sequência ao encerramento da novena, sempre aos sábados, é realizado o levantamento do mastro, com a bandeira da padroeira Nossa Senhora do Rosário, sinalizando o início dos rituais congadeiros. Para introduzir essa atividade, acontece a “retirada da bandeira”, sendo este instrumento buscado pelos congadeiros, geralmente, na residência dos Reis Festeiros do ano. Rubens Silva (2012, p. 130) aponta para a relevância que o uso da bandeira apresenta dentro dos rituais congadeiros, onde tanto representa em si mesma o sagrado como ainda configura elementos distintivos dos Reinados entre si; pois uma vez no cimo do mastro, está a anunciar quais são os respectivos santos da devoção homenageados no contexto ritual.

No imóvel onde é retirada a bandeira, os fiéis se agrupam e entoam juntos os cânticos congadeiros, acompanhados de seus instrumentos musicais. A adesão ao ritual é dada não somente aos filiados ao grupo, como também aos diversos participantes das atividades católicas de rotina da comunidade.

Após a retirada da bandeira de Nossa Senhora do Rosário, a mesma é encaminhada à frente da sede do Congado, onde é feito o seu levantamento através do uso do mastro. Nesse ritual, os congadeiros acompanham rezando e cantando, e, ao final, alguns se dirigem ao mastro realizando três voltas em seu entorno, cruzando seus rosários à sua volta e tocando-lhe com a cabeça, ou passando seus instrumentos em movimentos circulares, também em três voltas. Segundo os participantes, essa é uma forma de pedir a benção para suas próprias vidas e de benzer os seus instrumentos. De acordo com Noronha: “O levantamento dos mastros com as bandeiras é sempre marcado por momentos de muita emoção, concentração e tensão. Ele “caracteriza o centro energético da festa” (GOMES; PEREIRA, 2002, p. 218 apud NORONHA, 2014, p. 121).

3 DOMINGO: A GRANDE FESTA

O domingo é marcado como a data da grande festa, quando as ruas do Bairro Lages, da cidade de Bela Vista de Minas, são ocupadas por grandes cortejos em um misto de cores, sons, rezas, cantos e muito batuque. Nesse dia, a fé é expressa através dos bailados do Congado, quando a vontade de fazer o dia ser completo com todas as atividades preparadas especialmente para devotar à padroeira é superior ao cansaço decorrente das atividades intensas executadas ao longo do dia. Assim, a Festa de Nossa Senhora do Rosário, tão esperada ao longo de um ano inteiro, chega propiciando a continuidade de uma tradição e a renovação da espiritualidade de grupos que creem na manifestação popular de suas devoções. Perez, define a festa:

[…] como fenômeno vindo do fundo da tradição e que, em relação à contemporaneidade mais imediata, possa parecer alguma forma de arcaísmo, de sobrevivência, de nostalgia, ou até mesmo de atraso, é, no entanto, vivida, por aqueles que dela participam, como explosão de vida, como revigoramento e, portanto, como uma espécie de renascimento, pleno de atualidade, de inovação, de ruptura. Festa é a presentificação da tradição enquanto experiência da existência propriamente dita. Ou seja: festa é celebração da vida. (PEREZ, 2014, p. 182).

E assim, celebrando a vida e agradecendo as bênçãos concedidas pelo sagrado em suas vidas particulares, os congadeiros iniciam o dia principal da Festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas logo cedo, findando apenas no tardar da noite de domingo. É nesse dia que se faz possível assistir às performances através dos bailados executados pelos grupos e dos rituais que são feitos em devoção à padroeira.

As atividades de domingo começam com uma Alvorada, iniciada por volta das cinco horas, quando é servido um café da manhã na sede do Congado para o grupo anfitrião e para as Guardas convidadas, que chegam aos poucos, em seus ônibus próprios. Após o lanche, é realizado um cortejo pelas ruas da comunidade, havendo paradas estratégicas: a primeira, para a guarda do andor com a imagem de Nossa Senhora do Rosário (que é buscada mais tarde, em procissão) e as sequentes para visita à enfermos ou entes queridos do Congado de Bela Vista de Minas. As casas que recebem os grupos são geralmente ornadas com flores e bandeiras, e nas paradas são entoados cânticos e rezas em pedido de proteção aos visitados. Durante o cortejo é realizada ainda uma parada importante na residência onde são buscados os Reis do Ano e os Príncipes e, assim, é formada a corte festiva, rememorando a coroação dos Reis Congos da África Central.

O cortejo segue pelas ruas tocando e cantando em ritmos animados, demonstrando a riqueza da diversidade das Guardas, que se distinguem tanto em suas indumentárias como em seus bailados. Gera-se, ao todo, um montante de cerca de trezentos congadeiros, que seguem tocando e dançando entusiasmadamente pelas ruas da localidade. Há que se destacar que tanto na Festa realizada em Bela Vista de Minas, como nas demais em que o Congado local é convidado, há uma aliança considerável entre os grupos, de forma que há uma rede de trocas, não apenas de convites, para que um fortaleça a festa do outro, mas ainda de aprendizados dos cantos e dos significados dos elementos rituais. Assim, uma Guarda está em constante aprendizado com a outra. Noronha (2014, p. 121), chama a esse fenômeno de “reciprocidade em ato festivo encenado.” Por sua vez, Vilarino (2007) assim descreve:

Essa variedade de festas e compromissos festivos ocupa sobremaneira as diversas irmandades, já que uma vez participando de uma festa, o grupo certamente receberá o pagamento da visita pelo anfitrião anterior, criando uma rede de visitações que se encaixa no que Marcel Mauss (1974) chamou de “laços de reciprocidade”, ou seja, um determinado grupo fraternal realiza sua festa, recebe seus convidados, oferece alimentação a todos os presentes e tem por obrigação retribuir a visita a todos aqueles outros grupos que foram ali para abrilhantar seus festejos. A esse compromisso entre “irmãos do Rosário” também se dá o nome de “pares perpétuos”, que são aqueles grupos que formam alianças e compromissos de apoio mútuo juntamente a outros praticantes e parceiros na fé. (VILARINO, 2007, p. 10).

Unidas as Guardas, o cortejo segue um percurso bastante extenso e exaustivo dado à quantidade de morros que há na comunidade em que atuam, mas isso não intimida a participação de crianças, idosos e até mesmo pessoas que apresentam alguma deficiência física. Isso pode ser explicado pela fé dos participantes, apontada como a maior mobilizadora para que os desafios do dia sejam enfrentados. Daniel Silva (2016) destaca que durante estes percursos, os congadeiros: “cantam, dançam e tocam em forma de cortejo para si mesmos, já que muitos dos membros dos congados ali estão também para pagar uma promessa feita a um santo ou para conseguir um pedido qualquer.” (SILVA, 2016, p. 50), o que certamente pode ser aplicado ao caso em questão.

Vale mencionar que acompanha o cortejo não apenas os congadeiros em si, como também o público envolvido com a festa. De acordo com Rubens Silva (2012):

Andar “atrás dos Ternos”, significa seguir cortejos que percorrem ruas e avenidas que cortam bairros e ligam a periferia ao centro da cidade, percorrer quilômetros de distância acompanhando os grupos que vão fazer visitações a reis e princesas ou com destino a algum templo católico (tradicionalmente, uma Capela de Nossa Senhora do Rosário) para, em frente do mesmo, fazer as suas apresentações rituais, com danças e cânticos ao som do toque incansável dos tambores. Essa caminhada é, em verdade, uma peregrinação feita todos os anos pelos congadeiros para prestar homenagens e agradecer aos santos da crença deles. (SILVA, 2012, p. 192).

O cortejo é findado com o desfrute de um almoço abundante, servido na sede do Congado, que é preparado desde o dia anterior por um grupo de voluntários que viram a noite trabalhando nessa função. Os alimentos são servidos a todos os interessados, independente se participantes ou não das atividades congadeiras. Além da confraternização vivenciada nesses momento, todas as Guardas empenham-se em realizar do melhor modo possível os seus cânticos em agradecimento ao alimento que está sendo ofertado. Vânia Noronha (2014) destaca as especificidades que o alimento ganha a partir dos rituais do Congado, onde através do almoço farto, o ato de se compartilhar da mesa posta ganha contornos especiais:

Nas festas do congado, a necessidade de se alimentar se transforma em sacramento. Em todas as festas, come-se, ritualisticamente, numa valorização da alimentação e dos alimentos, que são considerados sagrados. “Agradecer a mesa” é um ritual feito com alegria e com respeito, pois se trata do agradecimento pela recepção do alimento sagrado, que o mantém vivo e com energia para sempre louvar o rosário de Maria, enquanto tiver forças. Nesse momento, todas as honras e as glórias se dirigem a São Benedito, o santo cozinheiro. (NORONHA, 2014, p. 122).

Após o almoço é realizada uma procissão, na qual o andor com a Imagem de Nossa Senhora do Rosário é retirado da residência onde foi abrigado pela manhã, com destino à igreja católica local, onde é celebrada a Missa Conga. Sobre as procissões, Juliana Corrêa (2014) ressalta que: “De fato, a festa é também espetáculo, assim as coroas com seu brilho necessitam ser exibidas, por isso a forma processional é marca das festas do catolicismo popular brasileiro, seja nas ruas ou no terreiro da irmandade.” (CORRÊA, 2014, p. 170). Assim, com o destaque à padroeira representada pela imagem no andor, a procissão segue composta por todas as Guardas, fazendo uma movimentação calorosa pelas ruas da localidade, onde se veem trajados Reis, Rainhas e toda a sua Corte, sendo protegidos por seus santos de devoção.

A Missa Conga marca o encerramento festivo, momento em que todas as Guardas participantes tomam a cena na igreja católica, realizando seus cantos e toques de instrumentos intercalados às celebrações do pároco local. A Guarda de Bela Vista de Minas é a última a entrar na igreja, pois, no momento de sua chegada, fecham-se as portas da igreja, abertas apenas após o grupo entoar o canto conhecido como Lamento Negro, em que os congadeiros pedem ao padre que conceda a licença para que eles possam adentrar o templo. O canto do Lamento Negro é uma representação do tempo da escravidão, quando os negros não podiam frequentar a igreja dos brancos, sendo essa encanação uma prática comum de abertura das Missas Congas, embora existam variações nos formatos desse culto.

Durante a Missa Conga, os congadeiros que exercem os maiores cargos na Guarda ocupam o altar juntamente ao pároco, sentados nas cadeiras em seu entorno. Assim, posicionam-se os Reis Festeiros do ano, os Reis Congos, os Guardas de Rei, os Marechais e o Capitão Regente. A celebração é realizada conforme o folheto da diocese, seguindo, assim, a liturgia padrão das missas dominicais. No entanto, acrescenta-se a esse modelo as pausas feitas pelo pároco, cedendo espaço para que sejam entoados os cânticos dos congadeiros. Na maioria das vezes esses cantos são iniciados pelo capitão da Guarda de Bela Vista de Minas, enquanto os grupos que participam como convidados acompanham ritmando o som com seus instrumentos musicais. Também há espaço para que os congadeiros se direcionem até o altar levando a Bíblia, as imagens dos santos católicos e as bandeiras de Nossa Senhora do Rosário. A participação do Congado é bastante expressiva, os sons dos instrumentos e as vozes ressoam em alto tom no templo, e o momento mais marcante é realizado ao final, quando se encerra a celebração com a coroação dos novos Reis Festeiros.

No rito de coroação, os Reis do ano anterior passam a coroa para os Reis do ano em questão, sendo suas indumentárias transpostas pelo padre, com o auxílio dos Reis Congos. Percebe-se que esse ato é carregado de muita emoção, quando os coroados deixam transparecer por suas lágrimas, ou por suas expressões faciais, a seriedade que lhes é tomada pelo ato. A esse momento somam-se não apenas as responsabilidades que são atribuídas aos reis, como também as energias espirituais que são invocadas no momento da coroação. Por essa razão, o rito é composto por um conjunto de símbolos, dentre eles: o cruzamento de seis espadas sobre a cabeça dos entronados, a colocação de um terço sobre essas espadas, a prece feita por uma Rainha Conga, convidada para fazer suas orações, que se dirigem apenas ao coroados, não sendo soadas ao público. Acredita-se que somados esses elementos, os novos reis tornam-se protegidos contra influências energéticas que sejam negativas e sentem-se mais fortes para a jornada a ser iniciada. Há nesse momento uma mescla entre elementos cristãos a crenças e métodos de proteção que são comumente aplicados nas religiosidades de matriz africana, como o preparo do corpo contra o mau-olhado e inveja, ou a invocação de entidades do panteão afro-brasileiro, que pode ou não ocorrer durante o ato.

Por fim, ao final da Missa Conga é servido um lanche de encerramento e as Guardas convidadas retornam para as suas cidades de origem. Nesse encerramento, mais uma vez os congadeiros cantam e tocam seus instrumentos, em um ritmo de bastante alegria, como se a longa jornada do dia não tivesse afetado o entusiasmo com o momento de festejar. Analisando o papel exaustivo desempenhado por congadeiros após uma longa jornada festiva, Daniel Silva (2016) comenta:

Alguns capitães destacam que a atuação no congado, “no rosário”, como costumam dizer, deve ser vista como uma missão a ser cumprida pelos congadeiros, do começo ao final do festejo. Com efeito, a exigência de participação efetiva durante todo o dia festivo não é de pouca monta, pois em geral se inicia por volta das 5 horas da manhã e vai se encerrar após às 22 horas. (SILVA, 2016, p. 50).

Essa “missão a ser cumprida pelos congadeiros” está diretamente relacionada à fé e à devoção que motivam a participação desses agentes dentre tantas atividades. Porém, para além desse ponto inicial, o resultado da manifestação religiosa é um transplante de uma realidade comum a um mundo novo – o do festejo. Para Schechner (2012), tanto o ritual como o jogo tem a capacidade de transportar as pessoas de uma realidade à outra, que difere da sua condição cotidiana. “Quando temporariamente se transformam ou expressam um outro, eles performam ações diferentes do que fazem na vida diária. Por isso, ritual e jogo transformam pessoas, permanente ou temporariamente.” (SCHECHNER, 2012, p. 50).

4 DENTIDADE, HIBRIDISMO CULTURAL E O CONGADO BELAVISTANO

O conceito de identidade é problematizado em diversos estudos, estando em questão, dentre outras, a discussão sobre a sua fluidez e a sua dinâmica no mundo contemporâneo. Quando ele se refere aos processos de reestruturação das comunidades negras na diáspora, ele se torna bastante complexo, pois nesse recorte entram em jogo o poder e a força do sistema colonial que tentou, de diferentes maneiras, a destruição dos saberes locais e dos povos que foram escravizados para abastecer de mão de obra o empreendimento econômico da metrópole nas colônias.

A riqueza da diversidade, das diferentes visões de mundo, dos diferentes tipos de organização social e política foram inferiorizados e invisibilizados diante de uma ideologia que procurou normalizar, fixar as identidades a partir de referenciais etnocêntricos e eurocentrados. Normalizar, como coloca Silva (2000), “significa eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquizadas” (SILVA, 2000, p. 83). É a partir desse parâmetro que a identidade normal “é natural, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identidade”. (idem, p. 83).

Mas, se de um lado estão os processos que tentam estabilizar as identidades, por outro lado estão aqueles que resistem, que tentam desestabilizar, reverter, diferenciar o processo de homogeneização identitária.

No processo de diferenciação as identidades não convivem harmoniosamente, elas são disputadas, envolvendo recursos materiais e simbólicos. Onde existe, pois, “a diferenciação – identidade e diferença –, aí está presente o poder” (SILVA, 2000, p. 81), construindo fronteiras entre o nós e o eles; e construindo classificações: bons/maus; puros/impuros; racionais/irracionais; desenvolvidos/primitivos; e normalizando quem o normal e o anormal. (Idem, p. 81).

Nesse sentido, a identidade se torna um problema apenas para os “eles”, para os que foram definidos, e que se tornaram objetos de injúria, de desprezo, de exclusão, de injustiças; ou como objeto de pesquisas, como os vários estudos sobre a identidade negra, por exemplo, e não sobre a identidade branca; ou sobre os homossexuais, em detrimento dos heterossexuais. O que é étnico será sempre a religião do outro, a comida, e a música do outro.

Nesse jogo de disputas identitárias, movimentos sociais se posicionam politicamente, defendendo suas bandeiras culturais e construindo narrativas, que fazendo uso do simbólico, de uma comunidade imaginada, oriunda dos processos migratórios e de diáspora, conseguem fortalecer as lutas pelos reconhecimento de suas identidades. Pode-se aqui pensar nas narrativas que o congado elabora para si.

Para Hall (2003, p. 26), as nações não são apenas entidades políticas, mas “comunidades imaginadas”, onde um “sujeito imaginado está sempre em jogo”, buscando a sua terra de origem, rompendo as distâncias, imaginando suas relações de pertencimento com um espaço nunca antes visto. Para o autor, é significativa para os povos diaspóricos a versão da diáspora no Velho Testamento, em que se relata a trajetória do povo escolhido, que levado à escravidão no Egito, mergulhado em sofrimento, mas sob a liderança de Moisés, foi libertado do cativeiro e marchou em busca da Terra Prometida. Essa narrativa “tem fornecido sua metáfora dominante a todos os discursos libertadores negros no Novo Mundo”, e é representada “como teleológica e redendora: circula de volta à restauração de seu momento original, cura toda ruptura, repara toda fenda através desse retorno” (HALL, 2003, p. 26). Para esse autor, essa esperança foi “condensada, para o povo caribenho, em uma espécie de mito fundador” (HALL, 2003, p. 29), de uma grande visão, capaz de remover montanhas.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas é uma narrativa do Reinado africano, com seu Rei e Rainha Congo, com sua Guarda, soldados e capitães, com a sua corte. O cortejo pelas ruas da cidade é a demonstração da força do mito fundador, necessário para reunir pessoas e formar uma comunidade, criando laços imaginários que conseguem ligar os sujeitos a uma origem comum, explicar seus ritos, os sentidos dos símbolos, rememorar um território de pertencimento, e fazer repetir, e repetir, todos os anos, uma história, agora afrocentrada. Essa história tem outra versão, enaltece a África, suas lideranças, sua organização política e social. Justo o momento mais marcante da festa é a coroação dos próximos Rei e Rainha. Nesse momento funda-se, simbolicamente, uma identidade nacional, uma volta à terra de origem, e ali é sacralizado esse pertencimento. Outros símbolos que reforçam o sentimento de nacionalidade também estão presentes: as marchas (cânticos), as bandeiras, a Guarda de Rei e da Bandeira, os Marechais e Capitães.

Um mito fundador remete a um momento crucial do passado, diz Silva (2000),

[…] a algum acontecimento, em geral heróico, épico, monumental, iniciado ou executado por alguma figura providencial que inaugura as bases de uma suposta identidade nacional. Pouco importa se os fatos assim narrados são “verdadeiros” ou não; o que importa é que a narrativa fundadora funciona para dar à identidade nacional a liga sentimental e afetiva que lhe garante uma certa estabilidade e fixação, sem as quais ela não teria a mesma e necessária eficácia. (SILVA, 2000, p. 85).

É nesse movimento que o Congado de Bela Vista de Minas desfila sua identidade cultural pelas ruas da cidade. Mas como já visto, a construção de uma identidade é extremamente complexa, pois envolve relações sociais e patrimônios simbólicos culturalmente compartilhados. E essa complexidade pode ser observada no Congado, quando diferentes elementos culturais são ressignificados: a bandeira, os cânticos, a música, o rosário, o mastro, dentre outros. O retorno imaginário à Terra Prometida inclui negociações com a cultura local, negociações que exigiram criatividade, resistência, coragem. Isso acontece devido à multiplicidade de povos que formaram a nação brasileira, sob o processo colonizador que vem se perpetuando ao longo da história, sob diferentes disfarces. Não existe uma continuidade com o passado de origem dos povos negros no Brasil, ela se deu na forma de uma ruptura violenta, escravizadora, perversa. Não se pode mais voltar para a África e localizar antepassados e amigos. E, além disso, a África é “uma construção moderna, que se refere a uma quantidade de povos, tribos, culturas e línguas, cujo principal ponto de origem comum situava-se no tráfico de escravos”. (HALL, 2003, p. 30).

No entanto, movimentos contra-hegemônicos foram construídos e se consolidaram, enfrentando o desmonte cultural pretendido pela sociedade escravocrata. No caso brasileiro, país miscigenado, o contato com diferentes povos cabou por misturar diferentes elementos culturais, descartando a possibilidade de se encontrar os elementos autênticos de cada país. Mas ao contrário da ideia de uma impureza, de uma perda de elementos originais, as novas combinações culturais conseguiram criar uma terceira posição, que fogem das combinações binárias do vencedor e vencido da história. Toda a festa do Congado belavistano diz desse hibridismo cultural – da combinação e incorporação de diferentes elementos religiosos –, culminado por dois momentos centrais da festa: o levantamento do mastro e a coração do Rei Congo. No ritual de coroação da festa, o Rei anterior passa a coroa para o Rei do ano em questão, e suas indumentárias são levadas pelo padre, ajudado pelos Reis Congos.

Por hibridismo cultural, entende Bhabha (2010) que é um modo de conhecimento, um movimento ambíguo e tenso que acompanha as transformações sócio-culturais, e que contém traços de todos os discursos que estão em seu entorno, num jogo de diferenças e referências que impossibilita dizer o que é o autêntico cultural; ou ainda: é como a cultura é traduzida. A cultura migrante

[…] do “entre-lugar”, a posição minoritária, dramatiza a atividade da intraduzibilidade da cultura; ao fazê-lo desloca a questão da apropriação da cultura para além do sonho do assimilacionista, ou do pesadelo do racista, de uma “transmissão total do conteúdo”, em direção a um encontro com o processo ambivalente de cisão e hibridização que marca a identificação com a diferença da cultura.”(BHABHA, 2010, p. 308).

O processo de tradução cultural é um processo incompleto, sempre em transição, tenso, e em constantes negociações. Não é uma adaptação ou uma apropriação como diz Bhabha, é um processo de revisão dos sistemas de referências, de normas e valores. Isso se dá porque a tradução cultural se confronta permanentemente com os poderes, ideologias, valores e estéticas que serão traduzidos; e por outro lado do que se nega a ser traduzido.

O mastro, conforme o Dicionário Aurélio (2017), é um termo náutico, uma peça vertical que sustenta outras peças da embarcação; e poeticamente, é a parte mais visível quando se distancia da terra, ocultando-se no horizonte, e por outro lado, a mais visível, quando se aproxima do seu local de destino (WIKIPÉDIA, 2017). Na festa congadeira belavistana, o alto do mastro carrega a bandeira de Nossa Senhora do Rosário. Estão presentes nessa estética símbolos importantes para a compreensão dos movimentos da tradução cultural. Apesar de muitos sentidos, não há como não fazer referência à travessia do Atlântico Negro, à genealogia da geografia e dos acontecimentos derivados dela. Paul Giroy (2008, p. 38), faz referência à imagem de navios como “um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento”, que pode ser lido como forte símbolo do retorno redentor à terra natal africana. O mastro, a guarda dos Marinheiros, considerando a diáspora negra no Brasil, pode fazer pensar sobre os cruéis e tristes porões dos navios negreiros, na travessia do Atlântico, como a um desejo profundo, de por esse mesmo mar de águas, escarpar, voltar para a terra de origem.

Mas o mastro no Congado carrega bem no alto a bandeira de Nossa Senhora do Rosário, demonstrando a capacidade de experiências culturais tão diferentes, conforme Canclini (2015), que existiam de formas separadas, se combinarem para gerar novas estruturas, objetos e práticas. Não é possível, analisando-se a identidade cultural congadeira a partir dos elementos que compõem sua performance, falar de essências de uma etnia ou de uma nação, de “essências auto-contidas e ahistóricas” (CANCLINI, 2015, p. 23), de traços fixos. O que existe, sim, é um processo híbrido, em que os laços entre as culturas são afrouxados, não se podendo mais se afirmar a quem pertence os elementos religiosos que formaram o Congado. Há nesse processo uma dupla consciência, que está presente no cortejo, e que faz referência à terra de origem, o local de residência.

Assim é que o terço se torna objeto de benzeção; o mastro, em vez de carregar a bandeira de Iemanjá, carrega a de Nossa Senhora do Rosário, mas os tambores estão presentes e mexem com os corpos dos congadeiros, enfeitados, coloridos, lembrando os sons e cores africanos; reis e rainhas, príncipes, guardas, espadas, marinheiros. Onde mesmo que se está? Na África, no Brasil?

No entanto, não se pode dizer, como afirma Hall (2003), que numa formação híbrida, os diferentes elementos que a compõem estabelecem uma relação de igualdade uns com os outros: “estes são sempre inscritos diferentemente pelas relações de poder” (HALL, 2003, p. 34); e, ainda, que as histórias imperiais continuam a ser vivamente retrabalhadas, sendo necessárias uma constante luta cultural, de revisão e reapropriação. É a partir disso que se observa as tensões no momento da Missa Conga, quando a Guarda pede licença ao padre para entrar na igreja, rememorando os tempos que os escravizados não podiam entrar nas igrejas dos brancos. Há uma inversão simbólica e temporária da ordem estabelecida, tornando possível reverter as posições do poder hegemônico. Os congadeiros ocupam o altar, se sentando ao lado do padre; em procissão, outros levam a Bíblia ao altar; cantam as músicas do Congado; e na coroação do próximo Rei Congo, é o padre quem leva as indumentárias do rei.

As identidades culturais diaspóricas, através dos processos de hibridização que as formam, subvertem as identidades culturais hegemônicas que pretendem a unidade a partir de uma imposição, das tentativas de fixá-las. Segundo Silva (2000, p. 87) “a identidade que se forma por meio do hibridismo não é mais integralmente nenhuma das identidades originais, embora guarde traços dela”. Bhabha (1996) segue dizendo que a importância da hibridização não é seguir os rastros dos dois momentos originais do qual emerge um terceiro, mas

[…] o terceiro espaço que permite as outras posições emergirem. Esse terceiro espaço desloca as histórias que constituem e gera novas estruturas de autoridade, novas iniciativas políticas que são inadequadamente compreendida através do saber recebido. (BHABHA, 1996, p. 36-37).

E, ainda, que o processo de hibridação cultural “gera algo diferente, algo novo e irreconhecível, uma nova área de negociação de sentido e representação” (BHABHA, 1996, p. 36-37). Na Missa Conga, no ritual de coroação, o terceiro elemento surge aos olhos dos participantes da festa, rompendo os binarismos, descontruindo saberes hegemônicos: o cruzamento de seis espadas sobre os coroados, o terço sobre as espadas, a prece da Rainha Conga mobilizando as energias de proteção ao novo Rei, ou seja, todo o ritual remete claramente às religiosidades de matriz africanas, sendo realizado num espaço sagrado cristão.

E é justo isso o inusitado. A festa do Congado de Bela Vista de Minas causa uma sensação de maravilhamento diante de algo totalmente diferente, que não pode ser localizado no tempo e no espaço; ela toca nos afetos das pessoas não deixando ninguém imune aos sons dos tambores e ao festival de cores, registrando a ideia de que diálogos são possíveis.

O final da festa é celebrado com muita música, alegria e planos para o ano seguinte. A festa, como reconhecimento positivo das identidades congadeiras, recarrega de energia os filhos e filhas do Congado, colocando-os a postos para a volta ao cotidiano, para o enfrentamento das lutas de sempre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir das análises aqui realizadas, entende-se a Festa de Nossa Senhora do Rosário de Bela Vista de Minas, através da atuação do Congado, como uma celebração religiosa e cultural formadora de identidades coletivas e individuais, exercidas a partir de rituais e da definição de grupos ou cargos específicos. Essas identidades foram construídas a partir de um longo processo de formação que teve início na diáspora negra no Brasil, e que envolveu negociações que diziam respeito a elementos religiosos de matriz africana e católicos. Superando essas binaridades, uma terceira narrativa, então, foi construída, possibilitada pelos processos de hibridização. Em torno de uma santa negra, protetora do povo negro – Nossa Senhora do Rosário –, a identidade cultural de um grupo, os congadeiros, pôde ser narrada. A presença de elementos culturais-religiosos, sociais e políticos africanos, juntamente com símbolos religiosos católicos, se faz fortemente nessa narrativa, estando visíveis nos rituais que compõem os diferentes momentos da festa.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário permite, pois, não apenas o transporte dos sujeitos congadeiros de uma situação cotidiana à uma outra realidade, em que o louvor ao sagrado suspende todas as diferenças e desigualdades, mas permite também a fiel determinação de que todo ano esses sujeitos irão reclamar, de forma simbólica, o reconhecimento político de uma identidade diaspórica. Os Reis e as Rainhas Congo estão ali presentes, reivindicando o reconhecimento de valores, de uma organização social e política que foi ignorada e destroçada pelo poder colonial escravagista. A tradução cultural feita pelos congadeiros dos elementos religiosos do catolicismo é uma demonstração de criatividade que reposiciona a África como um lugar imaginado, no desfile do Congado pelas ruas de Bela Vista de Minas, recuperando o orgulho e a positividade de se ter uma raiz naquele continente.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Neste trabalho, o uso da palavra Congado é utilizado tanto para o ritual festivo, quanto para a Guardade Bela Vista de Minas, já que em suas fontes primárias há a recorrência da inscrição “Congado de BelaVista de Minas”.
2 Serão usadas iniciais maiúsculas para designar os cargos e o termo Guarda, para que os mesmos não sejam confundidos com outros significados. Por exemplo, quando se fala de Bombeiros, ou Fiscais de Trânsito, está-se referindo a estes postos que são ocupados por congadeiros nos dias de festa, sem que isso tenha relação com bombeiros ou fiscais que desempenham atividades profissionais efetivas.
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