Artigo Original
Acesso de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais às Unidades Básicas de Saúde da Família
Access by lesbians, gays, bisexuals and transvestites/transsexuals to the Basic Family Health Units
Acesso de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais às Unidades Básicas de Saúde da Família
Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, vol. 19, e3295, 2018
Universidade Federal do Ceará
Recepção: 05 Dezembro 2017
Aprovação: 11 Junho 2018
Objetivo: compreender o acesso de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais às Unidades Básicas de Saúde da Família.
Métodos: pesquisa qualitativa, realizada com 54 usuários(as). Utilizou-se entrevista semiestruturada e o teste de associação livre de palavras. Os dados foram processados pelo software IRaMuTeQ® e submetidos à técnica de Análise de Conteúdo na modalidade temática.
Resultados: emergiram seis categorias: Silenciamento quanto à orientação sexual e identidade de gênero - o acesso é facilitado desde que não se revelem; Invisibilidade e indiferença aos marcos políticos legais- antagonismo entre o paradigma pensado e executado; Manifestações homofóbicas e efeitos no acesso - uso restrito do serviço; Constrangimento e distanciamento - afastamento e busca por serviços privados; Práticas des(humanizadas) e antiéticas - falta de sensibilização, sigilo; e Estigma e acesso - permanência de estigmas entre Síndrome de Imunodeficiência Adquirida e homossexualidade.
Conclusão: o acesso desta população aos serviços de saúde é limitado, permeado por intolerância, constrangimentos e posicionamentos aéticos e excludentes.
Palavras chave: Acesso aos Serviços de Saúde+ Saúde da Família+ Minorias Sexuais e de Gênero.
Abstract: Objective: to understand the access of lesbians, gays, bisexuals and transvestites/transsexuals to the Basic Family Health Units. Methods: qualitative research held with 54 patients. A semi-structured interview and the free association test were used. The data were processed by the software IRaMuTeQ® and submitted to the technique of Content Analysis in the thematic modality. Results: six categories emerged: Silencing regarding sexual orientation and gender identity – access is facilitated as they do not reveal themselves; Invisibility and indifference to legal political references - antagonism between the paradigm thought and executed; Homophobic manifestations and effects on access - restricted use of the service; Embarrassment and distancing - removal and search for private services; Des (humanized) and unethical practices - lack of awareness, secrecy; and Stigma and access - permanence of stigmata between Acquired Immunodeficiency Syndrome and homosexuality. Conclusion: the access to health services is limited with intolerance, constraints, exclusionary and aerial positions.
Descriptors: Health Services Accessibility, Family Health, Sexual and Gender Minorities.
Introdução
Desde a implantação do Sistema Único de Saúde Brasileiro, dispositivos técnicos-administrativos e organizacionais foram viabilizados no sentido de promover maior equidade no acesso e integralidade do cuidado em saúde. Investiu-se no fortalecimento dos serviços da Atenção Básica e consolidação da Estratégia Saúde da Família como porta de entrada do sistema de saúde. Portanto, estes serviços desempenham um papel central na garantia de que a população tenha acesso a uma atenção à saúde de qualidade, devendo produzir um cuidado integral que considere o sujeito em sua singularidade e seja sensível às especificidades/diversidades socioculturais, étnicas, religiosas e sexuais(1).
Com o compromisso de promover a inclusão e reduzir as desigualdades de acesso de grupos específicos, como é o caso da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, o Ministério da Saúde instituiu em 2011, através da Portaria nº 2.836, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, reforçando, assim, sua importância e seu caráter histórico frente às necessidades de uma população invisível e violentada em seus direitos(2).
Esta política reconhece os efeitos da discriminação e da exclusão no processo de saúde-doença destes grupos sociais estabelecendo proposituras concretas a serem implementadas em todas as esferas de gestão do Sistema Único de Saúde. Visa também reduzir o preconceito institucional e assegurar o respeito às diferenças, fomentar o acesso aos diferentes pontos da rede de serviços de saúde, garantir uma assistência de qualidade e resolutiva, promover iniciativas voltadas à redução de danos, garantir o uso do nome social e legitimar a participação social desta população em Conselhos e Órgãos Deliberativos de instâncias de cunho social e de saúde(2).
Ainda que se percebam avanços importantes no contexto brasileiro, observa-se ainda que o acesso deste grupo aos serviços de saúde é permeado por obstáculos. Estudos identificaram dificuldades no processo de comunicação, escuta seletiva, rejeição, reações discriminatórias, ofensas verbais e barreiras simbólicas(3-4).
Todavia, ressalta-se que elementos culturais advindos do padrão heterossexual influenciam de modo subjetivo o atendimento dos profissionais da saúde a essa população. Logo, as transformações no modus operandi da rede de atenção à saúde na perspectiva de promover um cuidado mais qualificado também dependem das mudanças no modo de pensar e de agir desses profissionais(5). Sabe-se que as situações de discriminação e preconceito institucional bem como o despreparo, a falta de conhecimento sobre identidade ou expressão de gênero e orientação sexual, somados ao completo descaso e a ignorância formam o cerne da questão e que muito precisa ser feito para reverter minimamente os efeitos de anos de exclusão e invisibilidade(6).
Dessa forma, este estudo torna-se importante pela visão que os (as) próprios (as) usuários (as) possuem ante suas especificidades e acesso aos serviços públicos de saúde no Brasil, especialmente em uma cidade do interior do estado da Paraíba. Pauta-se, ainda, no fortalecimento para ressignificação das ações de saúde voltadas a esse grupo, no sentido de fomentar estratégias para minimizar o impacto das lacunas identificadas. Sendo assim, questiona-se: como ocorre o acesso de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais aos serviços de saúde da Estratégia Saúde da Família? Para responder a essa questão, objetiva-se analisar sob a ótica de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais seu acesso aos serviços de saúde das Unidades Básicas de Saúde da Família.
Métodos
Estudo qualitativo, realizado em uma associação de pessoas lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais de Cajazeiras-PB, Brasil. A definição da amostra partiu da base populacional dos 32 associados e os demais, identificados pelo método bola de neve (snowballsampling). Caracterizou-se, portanto, em uma amostra não probabilística, que utilizou cadeias de referência linear, onde cada participante indicou um possível participante até a repetição de indicações e esgotamento das possibilidades de participações(7). Após a aplicação desse procedimento e sua saturação, chegou-se a um quantitativo de 54 entrevistados. Como critérios de inclusão, considerou-se: autodeclarar-se lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais, com idade acima de 18 anos. Foram excluídas pessoas com diagnóstico de transtornos psiquiátricos e não alfabetizadas.
A coleta de dados ocorreu no período de março a junho de 2016, mediante agendamento. Para obtenção dos dados, foram utilizados: 1) formulário estruturado contendo informações sociodemográficas (idade, sexo, gênero, raça/cor, renda, escolaridade, orientação sexual), 2) entrevista semiestruturada que contemplou questões inerentes ao acesso aos serviços de saúde, 3) Teste de Associação Livre de Palavras utilizando como estímulo indutor a seguinte frase: quando eu digo acesso aos serviços das Unidades Básicas de Saúde da Família para lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais, diga-me cinco coisas que imediatamente vêm à sua cabeça. A partir das evocações livres oriundas do Teste de Associação Livre de Palavras, elaborou-se o dicionário lexicográfico, o qual foi encaminhado a dois experts para determinação da palavra raiz e suas palavras derivadas. Após devolutiva dos experts, foram feitas as substituições de palavras derivadas pelas palavras-raiz.
Com os resultados das 54 entrevistas transcritas na íntegra e do dicionário lexicográfico, elaborou-se o banco de dados para processamento no software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). Operacionalmente, este software efetua a Classificação Hierárquica Descendente, com o objetivo de classificar os segmentos de texto em função dos seus respectivos vocabulários, repartindo-o com base na frequência das formas reduzidas, além de permitir uma análise lexográfica do texto, apontando o surgimento de contextos (classes), categorizadas segundo os segmentos de textos partilhados(8).
Após a leitura do material arquivado, construiu-se o modelo analítico composto pelas classes de palavras geradas pelo software IRaMuTeQ. A análise interpretativa do corpus se deu pela Técnica de Análise de Conteúdo na modalidade temática(9).
O corpus contém as seguintes variáveis: faixa etária: id_1 idade entre 25-36 anos, id_2 idade entre 37-48 anos, id_3 idade acima de 49 anos; sexo: sex_1 feminino, sex_2 masculino. A classificação das faixas etárias foi feita a partir da menor e da maior idade dos sujeitos do estudo.
As categorias geradas representaram o ambiente de sentido das palavras: acesso ou exclusão de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais aos serviços das Unidades Básicas de Saúde da Família. Foi elencada a letra U para relacionar as falas dos usuários (as) nos segmentos de falas descritos.
Este estudo seguiu todos os requisitos formais presentes nos padrões regulatórios nacionais e internacionais para pesquisas envolvendo seres humanos e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob nº 1.382.819.
Resultados
Os resultados obtidos mostram a caracterização sociodemográfica dos usuários participantes desta pesquisa e suas percepções sobre o acesso aos serviços de saúde.
Verificou-se na amostra pesquisada que 44 (81,5%) do(as) participantes se autodeclararam homens, sendo 41 (75,9%) do gênero masculino, três (1,2%) pertencentes ao gênero feminino e 38 (70,3%) com orientação homossexual. As participantes que se autodeclararam mulheres, corresponderam a 10(18,5%). Houve predomínio na faixa etária de 18 - 24 anos, representada por 35 (64,8%). A raça/cor parda foi autodeclarada por 32 (59,2%), 23 (42,5%) cursaram até 12 anos de estudo e 34 (62,9%) informaram renda mensal entre 1 a 3 salários mínimos (62,9%).
Através dos fragmentos de falas dos usuários, emergiram as partições do corpus pelo software IRaMuTeQ gerando as seguintes categorias: Silenciamento quanto à orientação sexual e identidade de gênero; Invisibilidade e indiferença aos marcos políticos legais; Manifestações homofóbicas e efeitos no acesso; Constrangimento e distanciamento; Práticas des(humanizadas) e antiéticas; e Estigma e acesso.
Categoria 1: Silenciamento quanto a orientação sexual e identidade de gênero
A categoria 1 compreende 13,0% do corpus, composta pelo sexo masculino e idade entre 18 e 36 anos. Observa-se que os fragmentos de falas apontam o acesso à Unidade Básica de Saúde da Família livre de entraves, desde que não revelem real orientação sexual/identidade de gênero ou algum indício que leve a essa associação: Quando busco a unidade de saúde, não tenho problema, pois me visto como a sociedade dita como normal (U01). É totalmente diferente com uma travesti, uma lésbica masculinizada ...as dificuldades são inúmeras e a principal delas é de expor a orientação sexual (U11). Nunca cobraram gênero na unidade, mesmo vendo o cabelão ou outros traços... se disser minha orientação sexual, aí, sim, as coisas mudariam, por causa do preconceito (U15).
Categoria 2: Invisibilidade e indiferença aos marcos políticos legais
A categoria 2 compreende 11,9% do corpus é composta com maior representatividade do sexo masculino e idade entre 18 e 25 anos. Verifica-se a falta de divulgação da existência da política, uma vez que não é exercida pelos profissionais da equipe saúde da família, como mostram os fragmentos de falas abaixo: Ouvi falar de uma política que ajuda na orientação da saúde sexual, mas essa não é exercida ... esperamos pelos direitos (U05). Existem políticas públicas para propagar os direitos, só que não são divulgadas (U15). As políticas públicas estão aí, resta a sociedade e os profissionais da saúde conscientizarem-se, colocando-as em prática e ofertando direitos iguais para melhorar o acesso (U48).
Categoria 3: Manifestações homofóbicas e efeitos no acesso
Representando 17,3% do corpus, esta categoria composta por ambos os sexos e idade entre 25 e 36 anos aponta que devido às manifestações homofóbicas o acesso é restrito, resumindo-se à realização de exames e busca de preservativos: As pessoas não estão preparadas para atender esse público, vivo a homofobia diariamente... esperamos que, com a política, tratem-se bem as pessoas travestis... as mulheres masculinizadas... temos o direito a ter igualdade na saúde (U29). Os profissionais não me chamam pelo nome social... o acesso na Unidade Básica de Saúde da Família não é integral; já fui buscar esse serviço só para fazer exames e pegar preservativos... (U45).
Categoria 4: Constrangimento e distanciamento
A categoria 4 é composta por 24,3% do corpus, do sexo masculino e idade entre 18 e 36 anos. Estes participantes percebem a indiferença e o constrangimento no atendimento, causando barreiras e excluindo-os da Unidade Básica de Saúde da Família: É constrangedor, quanto ao modo de agir e de entender a pessoa (U26). Desrespeito, má preparação dos profissionais... prefiro procurar um serviço privado, sinto-me mais à vontade (U14). O constrangimento já acontece na recepção; deveriam ter um conhecimento maior sobre sexualidade para diminuir ou abolir problemas (U15). Há olhares diferentes, piadas, risadinhas, que interferem no atendimento... enfermeiros, quando veem o jeitinho, a voz, o olhar, já soltam piadinha (U21). O jeito das pessoas olharem constrange-nos muito ... ouço insultos, piadas, palavras sem graça só porque gosto do mesmo gênero que o meu, escuto ainda que isso tudo é porque nunca fiquei com um homem que me fizesse mulher (U10). Chamam-me de viadinho, mulherzinha (U16). ...veem-nos como se fôssemos palhaços, comediantes, ...ouço piadas bestas que me deixa mal (U18). Quando a gente chega na unidade, há os olhares e, quando procuro, sou mal-atendida (U30).
Categoria 5: Práticas des(humanizadas) e antiéticas
Compreende 17,5% do corpus, formada pelo sexo masculino e idade entre 25 e 48 anos. Essa categoria mostra que a experiência vivenciada nos espaços de saúde não remete a uma assistência humanizada e ética, devido à falta de sensibilização e sigilo ético dos trabalhadores da Unidade Básica de Saúde: ...A maioria dos trabalhadores da equipe de saúde é desprovida de compreensão ou sensibilidade (U19). Falta o preparo, sensibilidade, informação, humanização (U20). O sigilo profissional no atendimento é quase inexistente; falta ética, conduta profissional, punição para esses profissionais (U42, U46).
Categoria 6: Estigma e acesso
A categoria 6 corresponde a 17,8% do corpus, composta por usuários unicamente do sexo masculino e idade entre 25 e 36 anos. Os conteúdos evidenciam a permanência de características estigmatizantes que associavam a Síndrome de Imunodeficiência Adquirida (AIDS) à homossexualidade. A discriminação social, existente hoje, pode estar associada às particularidades atribuídas à doença, onde as pessoas vivendo com aids, no passado, em sua grande maioria, eram homossexuais: Fui procurar a unidade para realizar um teste rápido da AIDS e sífilis, olharam-me diferente porque o olhar que os profissionais de saúde têm a nosso respeito é esse (U06). Se emagrece, está com AIDS, se é gay, tem AIDS... uma vez na doação de sangue, identifiquei-me como gay e o profissional de saúde disse que não poderia doar porque era gay, afirmando que os índices mostram que as doenças sexualmente transmissíveis são bem maiores nessa população (U13). Ao chegar a uma instituição de saúde, eu disse a opção sexual, então os profissionais foram logo fazendo o teste rápido (U48).
Discussão
Ainda que a sociedade brasileira seja historicamente estratificada e permeada por profundas desigualdades sociais, as assimetrias orientadas por marcadores sociais da diferença, tais como: gênero, orientação sexual, etnia/raça, classe social, convergem e se articulam produzindo vulnerabilidades econômicas, culturais e políticas consideráveis para determinados grupos sociais(10). Em se tratando da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, a confluência destes marcadores acentua a discriminação, reforça a exclusão e dificulta o acesso à educação, ao trabalho e aos cuidados em saúde.
Neste estudo, o perfil sociodemográfico da população investigada retrata predominância de pessoas jovens, de cor parda, economicamente vulneráveis e com baixa escolaridade. Tais características determinam e contribuem para o acesso inadequado à educação, moradia, trabalho, saúde, serviços públicos e oportunidades financeiras. Pesquisa conduzida em área carente na cidade do Rio de Janeiro, envolvendo 45 pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, verificou que 50,0% abandonou os estudos, 57,0% dependiam de auxílio financeiro de familiares, parceiros ou amigos e apenas 39,0% estavam empregados, a maioria com baixa remuneração(10).
É necessário considerar que, para além da desqualificação profissional e das limitadas oportunidades para acessar o mercado de trabalho, a discriminação e a violência que este segmento populacional sofre repercutem diretamente nas necessidades de cuidado com a saúde: pressão alta e ansiedade pelo medo de doenças e violência, alcoolismo, infecções sexualmente transmissíveis, efeitos colaterais de hormônios, complicações cirúrgicas, depressão e tentativa de suicídio(11).
Contudo, ainda que nas instâncias do Sistema Único de Saúde venham sendo implementadas medidas concretas para enfrentamento das iniquidades e desigualdades em saúde desta população, sua efetivação requer aperfeiçoamento e sensibilização dos profissionais de saúde para reconhecer e acolher as demandas e necessidades deste grupo(2).
A partir dos relatos, observou-se que o acesso aos serviços de saúde é assegurado aos os usuários que silenciam sua orientação sexual ou identidade de gênero. No entanto, quando revelada, o acesso à Unidade Básica de Saúde pode variar de restritivo à excludente, gerando constrangimento, sofrimento psíquico, exclusão social e agravo físico.
Estudo realizado nos Estados Unidos recrutou 1014 pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transexuais residentes em zona rural para investigar o impacto da exclusão e estigma na utilização de serviços de saúde. Do total da amostra, 37,0% não utilizavam os serviços. Entre os que frequentavam, 43,0% informaram que sua orientação sexual ou identidade de gênero não afetava sua saúde e 27,0% disseram que esta informação não interessava aos profissionais de saúde. Maiores escores nas escalas de estigma estiveram associados com menor utilização de serviços de saúde para o grupo transgêneros. No geral, 50,0% da amostra apresentou sintomas que podem indicar um quadro depressivo, sendo que entre os transgêneros esta taxa alcançou 65,0%. Aproximadamente um terço dos entrevistados foi diagnosticado com uma ou mais doenças crônicas e 14,0% preencheram os critérios para o consumo abusivo de álcool. Como potencialidade para o aumento da utilização de serviços de saúde, destacou-se a necessidade ampliar as competências dos profissionais de saúde para prestar cuidados individualizados(12).
Interessante notar que, programas e/ou projetos que, na prática, traduzem uma orientação e uma decisão política previamente tomadas, não garantem sua execução e ou implantação. Dependem, sobretudo, de como são percebidas e tratadas no cotidiano dos serviços. Os participantes desse estudo solicitam que tenham a mesma visibilidade de outros usuários, independentemente de sua orientação sexual ou identidade de gênero. A omissão e o desconhecimento sobre a realidade intrínseca e particular do(a) usuário(a) pode propiciar um (des)cuidado assistencial e repercutir na pessoa de maneira a patologizar e/ou medicalizar sua sexualidade e ou identidade de gênero(11).
Por outro lado, os participantes mencionaram que a revelação da orientação sexual ou identidade de gênero causou constrangimento durante o atendimento pelos próprios profissionais, exatamente por não conhecerem ou negarem a possibilidade das diversidades sexuais e de gênero, principalmente, para as travestis, transexuais e lésbicas masculinizadas.
A mudança de algo que seja destoante dos padrões socioculturais, religiosos e educacionais resulta em ações que podem determinar posturas, práticas e discursos e interferir negativamente no processo de trabalho dos profissionais da saúde, desconsiderando os preceitos éticos(6,13). Compreende-se, portanto, que as equipes de saúde necessitam de capacitação e sensibilização no atendimento à essa população, a fim de não gerarem barreiras na utilização dos serviços(14-15).
O processo de humanização implica em uma conversão no processo de pensar e agir do usuário e do profissional da saúde, a fim de manter o respeito e reconhecer as distintas possibilidades da vivência da sexualidade(13). A mudança subjetiva de comportamento conota na conscientização da equipe, em que a humanização é utilizada com a finalidade de assistir o usuário integralmente, valorizando, ainda mais, o nível de qualidade do cuidado que é oferecido e prestado. Porém, mesmo que prevaleça a capacidade técnica, deve-se respeitar os direitos desta população nas suas singularidades(16).
Contudo, esse direito é violado quando o usuário detecta que o profissional adota postura contrária às condutas éticas, na disseminação de informações obtidas durante a prática de saúde. O sigilo profissional está atrelado a questões éticas que perpassam a técnica. Essas despertam os dilemas do exercício profissional incentivando uma postura reflexiva da realidade, para que possam ultrapassar atos burocráticos/técnicos, por meio de ações éticas não preconceituosas(17).
Conclusão
Sob a perspectiva de lésbicas, gays, bissexuais e travestis/transexuais, evidenciou-se que o acesso aos serviços de saúde ainda é pontual, permeado por constrangimentos e ausência de posicionamentos éticos. Sensações de desamparo, exclusão, omissão e rechaço permanecem na assistência apesar da existência de Políticas Públicas específicas e formação para profissionais e usuários dos serviços de saúde.
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Autor notes
Oliveira GS contribuiu para a concepção e projeto, análise e interpretação dos dados, redação do artigo. Nogueira JA e Costa GPO contribuíram na análise dos dados e redação do artigo. Silva FV contribuiu com a análise e interpretação dos dados e redação do artigo. Almeida SA contribuiu na redação do artigo, revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada.
Autor correspondente: Geane Silva Oliveira. Rua Ernesto de Sousa Diniz, 409, Jardim Oásis – CEP: 58900-000. Cajazeiras, PB, Brasil. E-mail: geane1.silva@hotmail.com