Resumo: Este texto aborda alianças e conflitos entre brincantes, gestores públicos, jornalistas e literatos envolvidos direta ou indiretamente com grupos de boi bumbá em Belém do Pará nas décadas de 1920 e 1930. Interações positivas ou negativas garantiam visibilidade e repercussão social (pela oposição ou pela exaltação) aos agentes do boi nas folhas jornalísticas e na produção memorialística de literatos, identificados com as manifestações culturais do que chamavam de povo suburbano de Belém. Os cordões de boi tornam-se então, à despeito de juízos condenatórios de membros das elites e da repressão policial, prática legítima de sociabilidade festiva das classes trabalhadoras dos bairros pobres de Belém diante da apreciação pública. Vinculavam-se a essas manifestações matrizes culturais negras evocadoras de temas e tipos sociais amazônicos (caboclos, índios, vaqueiros), ao mesmo tempo, constituídas como atração do mercado suburbano de entretenimento. O artigo investiga as condições da convivência conflituosa interna e externa ao "pessoal do boi", com foco nas tentativas de agentes de segurança pública de coibir a circulação dos grupos pelas ruas da cidade, bem como na proposição de intelectuais de que os bumbás compunham a tradição da cultura regional.
Palavras-chave: Boi BumbáBoi Bumbá,BelémBelém,intelectuaisintelectuais.
Abstract: This paper approaches the ties and conflicts between players, public officers, newsmen and literati directly or indirectly engaged with boi bumbá troupes in Belém do Pará in the 1920’s and 30’s. Positive and negative interactions provided visibility and social repercussion (by opposition or appreciation) to boi partakers in newspapers or in written memories by authors identified with cultural exhibitions, of what they called the suburban dwellers of Belém. The boi groups became, in the face of the public appraisal, a legitimate practice of festive sociability of the working-class residents of poor neighborhoods of Belém, in spite the condemning view by elite members and the police repression. Black culture heritage was connected to these troupes’ performances by evoking Amazonian themes and social figures (caboclos, Native Brazilians, cowmen), which, themselves, turned into a feature of the entertainment business in working-class districts. This research examines the controversial surroundings concerning the internal and external relations of "boi folks", focusing on the attempts of public security officers in order to forbid the presence of these groups in the streets, as well as on the understanding of intellectuals that bumbás took part in the cultural regional tradition.
Keywords: Boi Bumbá, Belém, intellectuals.
ARTIGOS
Boi de Fama: "Pessoal de bumbá", agentes do estado, jornalistas, literatos e a sociabilidade festiva nos subúrbios de Belém (décadas de 1920 e 1930)
Famous Ox: "Bumbá folks", Public Officers, Journalists, Literati and Festive Sociability in Working Class Districts of Belém (1920’s and 1930’s)
Recepção: 20 Julho 2020
Revised document received: 30 Outubro 2020
Aprovação: 03 Novembro 2020
Em uma quente madrugada de junho de 1915, o jornalista Roberto d’Azevedo despertava ao som dos cantos de boi bumbá que ecoavam pelo bairro de São Brás. Assim começava uma crônica escrita com o intuito de criar uma atmosfera de suspense relativa à presença sonora efervescente de um cordão de bumbá no suposto cenário soturno de um bairro suburbano1 de Belém. O texto publicado na coluna "O Bumbá", no jornal Estado do Pará em 29 de agosto de 1915, invocava a imagem de um encontro inesperado com um cortejo de boi bumbá: o autor fora despertado pela "cantilena errante", acompanhada de "tabuinhas festeiras" (matracas), de um grupo que percorria o "desafogado planalto de São Bráz". Os cantos estimulavam no autor recordações de infância da "encantadora e tradicional diversão dos sertões da minha terra".
As "reminiscências esparsas" do "lar alegre" na "bela quadra fenecida" remontavam a um período anterior à 1895, quando o escritor assistia, no bairro do Jurunas, os ensaios noturnos do Boi Estrela, do amo Antônio Teixeira, conhecido como "Bahia". Os cantos "rústicos e langorosos" da época eram então reencontrados naquela noite de 1915, com a procissão que invadia o silêncio da madrugada de junho. Com a aproximação do grupo, d’Azevedo resolveu contratá-los para uma apresentação ("mandar dançar") com "matação", isto é, com a morte do boi, conforme combinado com o "chefe do bando", descrito pelo autor como "tipo simpático de mulato musculoso, de brejeiras retinas brilhantes". A distribuição de aluá (bebida alcoólica) entre os integrantes do boi mostrava que o contratante estava preparado para esse tipo de evento na sua porta.
A exibição era dirigida pelo amo, que portava o estandarte do grupo, descrito como "aparatoso cetro ataviado de fitas". O crescendo de cantos e danças foi então interrompido por um encenado tiro de espingarda que matou o boi. Desse ponto em diante, segundo o cronista, iniciou-se a "ligeira e chistosa comédia", em que se apresentavam os caboclos ("guerreiros indígenas sarapintados de urucu"), os vaqueiros (com suas "curtas jaquetas lantejouladas"), os "encartelados e circunspectos" doutores, o "apalhaçado" vigário, o pai Francisco (com sua "barba agreste derramada até a boca do estômago"), a mãe Catirina ("com uma rotunda coifa de pano colorido em torno da cabeça") e o "negro Velão", curador responsável por trazer o boi de volta à vida.
O cronista acompanhava a "arrastada cadência rítmica da apresentação" admirando a "inspiração simples e tocante do povo humilde, pacato e bom, que se distrai das amarguras da sorte, amando as suas inesquecíveis tradições". O relato exaltava a "ingenuidade puríssima" das crianças que assistiam à apresentação, com as quais se identificava o autor, embalado pelos "pobres versos singelamente nostálgicos do bumbá". Em meio a um quase transe de rememoração, d’Azevedo despertava com o distanciamento gradual do grupo de foliões "mesureiros, contentes e suarentos (...) cantarolando sempre (...) chocalhando maracás, manejando flechas, brandindo tacapes, gingando a dianteira do boi soberbo".2
Pistas suscitadas por essa crônica apontam o caminho analítico a ser aqui percorrido. Este estudo se propõe a abordar a produção de alianças e conflitos entre brincantes, gestores públicos, jornalistas e literatos envolvidos direta ou indiretamente com os bumbás em Belém do Pará nas décadas de 1920 e 1930. Jornalistas, dentre eles alguns que se dedicavam a carreiras literárias (além de agentes policiais), lidavam com a presença dos cordões nas ruas e praças da cidade nos anos de 1920 e 1930 em função de interesses diversos estipulados por diferentes setores da sociedade.
Interações sociais, positivas ou negativas, garantiram visibilidade e repercussão (pela oposição ou pela exaltação) aos agentes do boi nas folhas jornalísticas e na produção memorialística de literatos identificados com as manifestações culturais do que chamavam de povo suburbano de Belém. Trata-se, portanto, da existência de graus de intercâmbio simbólico entre esses agentes. O uso da expressão "pessoal do boi" por jornalistas em Belém, no início da década de 1920, é demonstrativo do reconhecimento mútuo entre personagens interessados nos eventos festivos da cidade que envolviam cordões de bumbá.3
Os cordões de boi tornavam-se então prática legítima de sociabilidade festiva das classes trabalhadoras dos bairros pobres de Belém, diante da apreciação pública e a despeito de juízos condenatórios de membros das elites e da repressão policial vivida no período em questão. Vinculavam-se essas manifestações a matrizes culturais negras evocadoras de temas e tipos sociais amazônicos (caboclos, índios, vaqueiros), ao mesmo tempo, constituídas como atração predominante do mercado de entretenimento da cidade (o "Boi de Fama").
Um repertório de fontes destacado neste trabalho são as crônicas publicadas no jornal belenense Estado do Pará. Nas décadas de 1920 e 1930, a folha manteve estreita ligação com jovens literatos identificados com o espírito modernista, em favor da renovação das letras no norte do Brasil. Escritores como Bruno de Menezes, De Campos Ribeiro, Ernani Vieira, dentre outros, alternaram momentos de maior ou menor participação naquele jornal diário no período assinalado, ao mesmo tempo em que desenvolviam atividades propriamente literárias e davam vazão ao seu interesse por manifestações festivas populares. Os cordões de bumbás, em particular, eram tema recorrente nos escritos desses e de outros cronistas da época, além de se fazerem presentes em notas policiais e em anúncios de ensaios e apresentações.
O Estado do Pará, por exemplo, foi fundado por um dos membros da família Chermont, formada por pecuaristas e proprietários de fazendas no arquipélago do Marajó. O diretor do jornal, Antônio Leite Chermont, era filho de um antigo Presidente da Província do Pará (gestão entre 1866-1868) e irmão do primeiro governador do Pará na república, Justo Chermont, que comandou o estado entre 1890 e 1891. Por sua vez, Antônio Chermont era jornalista e agente da Companhia de Comércio do Pará, além de atuar como correspondente do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro.
O cabeçalho do jornal, nas primeiras décadas do século XX, ressaltava: "Composto em máquinas Linotypo e impresso em prelo ‘Duplex’, o Estado do Pará é o matutino de maior circulação e procura no Norte do Brasil".4 A propaganda do emprego de técnicas avançadas de impressão servia para assinalar a importância do investimento no periódico e do seu protagonismo regional como veículo de comunicação. Além disso, a partir de 1923, foi criada em Belém a revista literária Belém Nova com forte vinculação ao Estado do Pará. Magazine com participação de cronistas atuantes no Estado, a Belém Nova era o meio principal de divulgação das ideias de jovens escritores identificados com inovações modernistas no campo das letras.
Em 1921, surgia em Belém a "Associação dos Novos", grêmio que reunia jovens escritores pertencentes a círculos literários menores existentes pela cidade. O núcleo era formado por gente oriunda das elites e por alguns poucos representantes das classes trabalhadoras, como Bruno de Menezes, Abguar Bastos e Jaques Flores, por exemplo. Os primeiros passos da associação foram marcados pela publicação do livro de poemas Os Novos e o centenário: verso e reverso, em 1922, como celebração da independência do Brasil. O lançamento da revista Belém Nova, em 1923, acompanhava os festejos de outro centenário, o da adesão do Pará à independência do país.
Os primeiros anos do pós-Grande Guerra foram o contexto da virada intelectual para a "invenção do popular" no país (OLIVEIRA, 1997, p. 189). A insatisfação com o modelo civilizacional europeu em declínio após o conflito mundial e com a subserviência às referências eruditas europeias abriu caminho para que jovens homens de letras vislumbrassem no povo mestiço brasileiro a fonte para a reformulação da identidade cultural do país (ALBERTO, 2011, p. 10; NEEDELL, 1983, p. 84, p. 99). Emerge em círculos de jovens letrados daquele período uma espécie de "vocação messiânica", encarnada em um sentido de missão em prol da busca pelo conhecimento da realidade brasileira (VELLOSO, 2017, p. 148). O trabalho de registro do folclore e a coleta de manifestações de cunho artístico seriam os instrumentos disponíveis para a "descoberta do povo", combinados com as releituras eruditas que seriam feitas dos acervos coligidos.
Em meio a projetos literários divergentes, emergia a perspectiva do engajamento como marca da condição ética do homem de letras (SEVCENKO, 1999, p. 78-79). Crônicas, ensaios e poemas dedicados às manifestações populares divulgadas no Estado do Pará, na Belém Nova e em outros veículos da época assumiam uma posição política ao identificar determinados folguedos como tradição. Todavia, as distâncias sociais eram relativamente mantidas entre intelectuais e foliões, dependendo da intensidade dos laços existentes entre eles e da possível vinculação de origem do literato ao universo das classes trabalhadoras.
Uma fração pertencente ao grupo dos novos autointitulada "Academia do Peixe Frito" ganhou destaque nos anos 1930. Formada por jovens escritores que não partilhavam das mesmas origens dos seus colegas oriundos de famílias brancas, que prosperaram economicamente na Era da Borracha, a academia fora da academia dedicava-se a temas relacionados à vida no subúrbio, às experiências cotidianas do povo, suas crenças, lendas e costumes (CUNHA, 2018, p. 81-82). Integrantes do grupo como Jaques Flores, Bruno de Menezes, De Campos Ribeiro, Nunes Pereira e Dalcídio Jurandir identificavam no comer peixe frito nas feiras de Belém um marcador de posição social subalterna. Suas produções de cunho literário, memorialístico e folclorístico pretendiam uma aproximação intelectual com o mundo dos trabalhadores pobres (CUNHA, 2018, p. 85), realidade com a qual se identificavam a partir de fatores de procedência social e de condição racial.
Serão discutidas a seguir produções literárias e memorialísticas de Bruno de Menezes, Dalcídio Jurandir, De Campos Ribeiro e Carlos Victor Pereira, todas referentes a grupos de boi bumbá em Belém entre as décadas de 1920 e 1930.5 Com exceção de Pereira, que se dedicava mais especificamente ao jornalismo, os três primeiros literatos eram integrantes da Academia do Peixe Frito. Os membros do grupo se particularizavam pela busca da "simpatia do povo" por conta de suas andanças pelo subúrbio onde, segundo Rocha (1994, p. 14), "tornavam-se reis, como oradores e poetas". Na mesma linha, procuravam, no Ver-o-Peso, captar cenas da vida urbana protagonizada pelos trabalhadores (PEREIRA, 2018, p. 46).
"Pessoal do boi" é uma expressão de origem relacional. Resulta dos intercâmbios que jornalistas mantinham com os grupos formados por vizinhos, amigos e parentes que compunham os cordões de boi que circulavam pela cidade nas primeiras décadas do século XX. Ao mesmo tempo, é um termo amplo o suficiente para abarcar a diversidade das agremiações que reuniam crianças, jovens e adultos, homens e mulheres, negros e mulatos, trabalhadores manuais ligados a diferentes campos profissionais e assim por diante. O emprego dessa identificação é um exemplar das interações existentes entre brincantes, jornalistas e literatos.
As relações assimétricas, a despeito de seus opositores na própria imprensa, permitiam aos entusiastas suburbanos dos bumbás reivindicar espaços de apresentação, de visibilidade e de reconhecimento, tendo em vista a busca por um grau maior de autonomia diante das decisões das autoridades públicas sobre manifestações festivas (ABREU; DANTAS, 2011, p. 104). Os foliões de boi exercitavam formas de expressão e de participação política em meio a situações de repressão policial e arranjos clientelísticos (ABREU; DANTAS, 2011, p. 105). As folhas jornalísticas da época e a produção memorialística de literatos que atuaram nos mesmos jornais fornecem pistas sobre os desdobramentos positivos e negativos dessas ações.
Ao mesmo tempo em que alguns cronistas promoviam a idealização das expressões lúdicas do "povo suburbano", organizadores de agremiações recreativas pretendiam se ligar a escritores e literatos como seus aliados (PEREIRA, 2005, p. 204). Laços de patronagem orientavam a construção de relações que garantiam reconhecimento relativamente positivo aos agentes de bumbás no contexto de festejos públicos (BRASIL, 2017, p. 317). Sujeitos de estratos sociais diferentes reuniam-se em torno de referências simbólicas vinculadas à ideia de tradição (PEREIRA, 2013, p. 116), enquanto reinventavam continuamente seus modos de festejar.
A crônica de Roberto d’Azevedo (1915) apresentada no início deste artigo expõe sua visão nostálgica dos bumbás como "encantadora e tradicional diversão dos sertões da minha terra". A "diversão dos sertões" era testemunhada pelo cronista na cidade, mas seu executor era o "povo humilde, pacato e bom", que supostamente correspondia àquele do sertão. Na verdade, cordões de bumbá, como o grupo contratado por d’Azevedo, tinham sede em bairros suburbanos de Belém, em vizinhanças onde famílias chefiadas por trabalhadores pobres construíam vínculos de pertencimento comunitário. Havia novas territorialidades nesses bairros, como nos termos de Velloso (2004, p. 25-26), trechos de uma "cidade paralela" nos quais expressões festivas ajudavam a demarcar a identificação com o espaço.
É o que demonstra a crônica do advogado Paulino de Brito Filho, filho do redator chefe da Folha do Norte à época, mas que publicou o seu texto na coluna "Confidências" do jornal Estado do Pará, na edição de 3 de julho de 1920. O artigo é uma resposta às críticas da jornalista Maria Alice, que estava em visita ao Pará naquele momento e que se apresentava como feminista. O advogado paraense se dizia contrariado ao assistir uma apresentação de boi bumbá no Palace Theatre em Belém após tomar conhecimento das "críticas ferinas" da visitante a esse evento. O autor opõe suas lembranças de infância do "boi bumbá da minha terra" à má impressão de Maria Alice sobre o folguedo, derivada de seus "hábitos civilizados". Paulino de Brito exaltava "a simplicidade rústica, os desafios ao luar, as trovas do boi" e os contrastava com a presença dos bumbás no teatro, por sua adesão à "corrente aniquiladora da novidade", que viria a obliterar a tradição.
O advogado supõe que Maria Alice tenha se decepcionado com o consentimento das elites locais para a presença de bois bumbás em um teatro, o que atestaria o "pouco amor às nossas coisas". No entanto, ele argumenta que na capital federal, que seria "todo o nosso orgulho de brasileiro", o Teatro São Pedro teria recebido circos de cavalinhos no passado, com seus acrobatas, clowns e, certamente, cavalos. Assim, estaria justificada a presença de bumbás em teatro "pequeno e modesto" naquele "afastado rincão brasileiro". Ademais, o autor cogita que seria melhor que Maria Alice tivesse encontrado os cordões de boi nas ruas, onde eles se apresentariam "sem aparato e sem pretensão". O boi "civilizado" do teatro estaria, ao seu ver, exposto "ao ridículo, às gargalhadas de quem não pode te compreender e te amar". E arremata: "o teu lugar era na rua", porque nas vias públicas estariam visíveis seus encantos derivados da "simplicidade".6
Portanto, na opinião de Paulino de Brito Filho, as inovações despontavam como "ameaça de morte" para os grupos de boi, para as "nobres tradições", que não saberiam conviver com a atração que se tornara "vaidosamente artista". O "boi da rua" pertenceria, simbolicamente, àquela "cidade paralela" já mencionada (o subúrbio), onde o advogado/jornalista situava a permanência precária (e ameaçada) da tradição. Mais importante, o "boi rústico" correspondia a prováveis experiências prévias do cronista com grupos de bumbá observados nas ruas desde a infância, reminiscência que o animava a frequentar apresentações de cordões em um teatro. A despeito das diferenças de classe social, os sentidos vinculados a essa manifestação circulavam por todos os setores da sociedade (BARROS, 2007, p. 116) e eram apreendidos por sujeitos de diferentes estratos sociais.
Quatro dias depois da publicação do artigo de Paulino de Brito Filho, Maria Alice rebatia as afirmações de seu correspondente com um texto no mesmo jornal Estado do Pará (edição de 7 de julho de 1920),7 onde falava sobre a "constrangedora decepção" que teve com o bumbá que juntos assistiram. Afirmava, de início, que o "celebrizado boi bumbá" não teria a mesma originalidade dos "sambas sertanejos do meio norte", que a ele careciam atrativos e que teria horror caso se deparasse (na rua?), em "noite sombria", com "aqueles gestos e atitudes canibais". Por isso, considerava uma ofensa chamar aqueles "atos macabros" de "tradição paraense". Textualmente: "as suas cerimônias e cambaleios tresandam à catinga do mocambo, na atordoada do batuque e do curimbó, recordando-nos, dolorosamente, os tristes e enegrecidos dias em que a nossa amada pátria era o país das senzalas". A irritação de Maria Alice fora tanta que, em sua avaliação final, considerava o boi bumbá como "indigno duma cidade democrática e progressista, como é Belém do Pará". Por isso, se fosse a intendente local, "pediria o auxílio da polícia para reprimir esses velhos costumes que tanto nos deprimem aos olhos malignos do estrangeiro que nos visita".8
A controvérsia da autora com Paulino de Brito Filho é reveladora de que, nos anos 1920, não sobressaía como voz única a defesa do ideal civilizacional de reprodução de padrões culturais europeus (principalmente franceses) nos trópicos (CHALHOUB, 2012, p. 252; NEEDELL, 1983, p. 92). Crônicas dedicadas a identificar manifestações de atraso e barbárie na realidade nacional (PEREIRA, 2005, p. 208) poderiam receber réplicas de autores que idealizavam com nostalgia os festejos populares e os viam na iminência de desaparecimento frente ao progresso. Mas isso não encerrava a cruzada da imprensa (e da polícia) contra as celebrações com tambores, ainda denunciados como imorais, bárbaros e alvos legítimos para a repressão policial. Persistiu o apoio de parte da imprensa à intolerância contra práticas de matriz africana (ALBUQUERQUE, 2009, p. 231-232), mas conviveu com a crescente curiosidade de homens de letras pelo feitio exótico de cordões carnavalescos, dos grupos de bumbás e de pássaros, povoados pela população negra suburbana (DANTAS, 2011, p. 90).
O interesse por tradições negras se deparava com outros limites importantes. É o caso do constrangimento de pessoas "bem-nascidas" diante do julgamento de estrangeiros relativo ao grau de civilização do país. Autores como Antônio Cândido e Sérgio Buarque de Holanda já demonstraram em seus escritos como o sentimento de ser estrangeiro na própria pátria é um fenômeno enraizado e duradouro na história das elites brasileiras (SEVCENKO, 1999, p. 32, p. 36). Por isso, a manifestação de Maria Alice propunha o banimento dos bumbás da "democrática" capital paraense. Assim, os "velhos costumes" não oprimiriam os letrados brasileiros diante dos "olhos malignos do estrangeiro".
Mas a presença de grupos de boi nas ruas e nos teatros impunha, inclusive aos literatos, o diálogo com os foliões por meio da linguagem da tradição (DANTAS, 2011, p. 90). As agremiações, cada vez mais notórias no espaço público, teriam valor reconhecido em páginas de revistas e de jornais principalmente pela importância do seu passado, de suas heranças ancestrais, pelo que revelavam sobre as matrizes da formação cultural da nação. Em grande medida, por conta do entusiasmo de intelectuais vinculados ao trabalho jornalístico, as atividades dos cordões do presente ganharam as páginas da imprensa, como nos anúncios sobre as "saídas à rua" dos grupos de boi.
Uma nota informativa do Estado do Pará de 25 de junho de 1921 atestava a familiaridade dos profissionais de imprensa com fatos relacionados ao cotidiano dos bumbás. A notícia intitulada "Pai do Campo versus Canário" comunicava que o "célebre boi (...) do bairro dos Jurunas" tinha saído na noite anterior em "longo cortejo" pelas ruas acompanhado por "duas praças de cavalaria", com o intuito de manter a "ordem". A exibição marcada para o dia 29 daquele mês passaria em frente ao curral (sede) do seu "velho rival", o Boi Canário, no bairro do Umarizal. Por isso, o autor recomendava alteração no itinerário da comitiva, para que se evitasse um "provável encontro, cuja consequência é bem fácil prever".9
Aqui, o jornalista demonstra ciência sobre as divergências internas entre foliões de bois vigentes naquele momento. Os encontros eram conflitos ritualizados que ocorriam quando se deparavam cordões de bois por ruas e praças a caminho de um lugar de apresentação. O que iniciava como desafio musical, de toadas provocativas, podia descambar em enfrentamentos físicos liderados por capoeiristas, geralmente com o objetivo de se capturar o boi-artefato do grupo rival. O anúncio do Estado do Pará pretendia prevenir esse tipo de acontecimento, que recebia muita atenção da polícia.
Ressalta-se aqui um exercício de negociação prévia relativo à saída do Pai do Campo pelas ruas da cidade. A folia do boi projetava simbolicamente (e de forma passageira) poder sobre os espaços públicos (VELLOSO, 2004, p. 90), marcados pelo cortejo de um grupo de brincantes negros e pobres vindos do bairro suburbano do Jurunas, nesse caso. Tratava-se de um ato de territorialização efêmera nas ruas, manifestado por corpos expressos como entes simbólicos que invocavam lugares de pertencimento e que projetavam marcas culturais pela cidade (VELLOSO, 2004, p. 99-100).
As interações praticadas nos bairros suburbanos ganhavam destaque nas ruas centrais da cidade, lugar privilegiado de visibilidade e de trocas simbólicas. Os cortejos podiam mobilizar espectadores, atrair a atenção da imprensa (e da polícia) e resultar em contratos para apresentações de boi a particulares. Por isso, exercitar o direito de circular pelas ruas em grupo com fantasias, danças, batuques e cantos constituía uma forma de obtenção de prestígio e de visibilidade (GONÇALVES, 2006, p. 76). A repercussão nos jornais das rivalidades internas ao campo dos foliões de bumbá significaria também uma espécie de reconhecimento numa esfera mais ampla. Aliás, as sedes de bumbás reuniam não apenas os moradores do subúrbio, mas também poderiam receber a visita de jornalistas convidados para acompanhar determinados eventos (PEREIRA, 2012, p. 165) ou contar com a presença de poetas declamadores, como alguns dos participantes da Academia do Peixe Frito.
A sociabilidade festiva10 experimentada nas redes de identidade e de diferença organizadoras da vida nas vizinhanças suburbanas (PEREIRA, 2012, p. 165) transbordava nos cortejos e nos encontros por ruas da região central da cidade. Em suas memórias, De Campos Ribeiro revela a força que esses eventos projetavam sobre sua audiência no subúrbio. Gostosa Belém de Outrora evoca uma visão positivada dos encontros de bois, liderados por capoeiristas (balisas) que chefiavam as "malocas" (grupos de personagens indígenas), qualificados como "bailarinos da braveza", protagonistas de contendas que poderiam resultar em "cabeças quebradas, cortes de navalha e furadas de punhal" (RIBEIRO, 1966, p. 53).
A recordação saudosa dos encontros, naquelas crônicas, orientava a exaltação da tradição, em oposição aos "novos rumos" demandados pela ênfase teatral nas apresentações a partir dos anos de 1930 (RIBEIRO, 1966, p. 99). A obra literária como registro histórico, nesse caso, assume a função de classificar e normatizar as manifestações populares e definir o conteúdo da tradição (BARROS, 2007, p. 177). Não se oferece, no texto, a possibilidade de se considerar aquela como uma interpretação baseada no ponto de vista (e nas experiências) de um literato que produziu a memória em um momento diferente daquele em que acompanhou os fatos narrados.
Mesmo a tendência à teatralização talvez já fosse uma característica mais antiga de bois e pássaros e não significasse exatamente uma mudança de rumos para os grupos juninos. Os cordões estavam nas ruas e nos teatros e, em ambos espaços, alimentavam suas desavenças e suas redes de compromisso e de apoio. Por exemplo, um anúncio em 30 de junho de 1920 do Estado do Pará destacava o encerramento de um "interessante torneio" para a escolha do campeão (junino) daquele ano. O concurso realizado no Palace-Theatre contava com a presença do "invencível Caranguejo", anunciado como "um dos melhores grupos que percorrem as ruas de Belém, levando por onde passa uma verdadeira procissão de admiradores".
O cordão de sucesso nas ruas e no teatro já havia conquistado, no ano anterior, o segundo lugar no "concurso promovido em prol do Leprosário", mas estava "pesado de verdade" em 1920, por conta de sua "organização artística" e pela "excelência da música de Cyrillo Silva".11 O cordão era composto por trabalhadores do Arsenal de Marinha e tinha como patrono o tenente Benjamin Sodré, filho do então governador do Estado do Pará, Lauro Sodré, em seu segundo mandato (1917-1921). Conhecido como Mimi Sodré, o patrono da agremiação fora também jogador do Botafogo Futebol e Regatas e da Seleção Brasileira. O apoio de um personagem tão significativo vinculado ao mais alto círculo político do estado, além do talento, da experiência (em concursos de cordões) e do prestígio do músico negro Cyrillo Silva eram garantia de sucesso aos foliões do Caranguejo.
Vê-se, portanto, que cordões de boi, de pássaros e de bichos estavam presentes nas ruas e nos teatros desde, pelo menos, o início da década de 1920, exercitando suas rivalidades e alianças de formas diversas em busca de reconhecimento. Além disso, tomavam parte no mercado de entretenimento urbano, não apenas em espetáculos pagos por particulares, mas também em apresentações competitivas, onde eram cobrados ingressos para cadeiras e camarotes. Havia, portanto, uma espécie de interpenetração entre manifestações de rua e exibições teatrais, que resultavam na abertura de espaços de atuação profissional para músicos negros e para atores/foliões que, na vida cotidiana, podiam ser simples operários (ABREU; DANTAS, 2011, p. 114; CUNHA, 2005, p. 556).
As histórias do amo de boi "Quintino Profeta" no romance Chão dos Lobos, de Dalcídio Jurandir, referem-se a Raimundo "Bicudo", dono do boi Estrela d’Alva, do bairro de São João do Bruno. O bumbá que circulava por "rua, palanque e arraial" tinha a casa de seu amo como camarim e o seu curral como espaço principal de apresentação.12 Ali, o cordão entrava com "trinta estrelas clareando na mão da tropa, estandarte, orquestra, a indiada com as suas plumagens saltando". A toada anunciava o seu valor: "Já chegou, já chegou, tá no terreiro, tá no terreiro, nosso fama caprichoso, alevantou, alevantou, pra pisar orgulhoso". O boi era, antes de tudo, apresentado "às damas e cavalheiros, às autoridades e demais convidados". A reverência era importante porque garantia que o grupo dançasse em arraial, na rua e "em sala de branco" sem intervenção policial ("polícia aí vendo sem piar"). Ademais, "Quintino Profeta tinha cartão de senador conseguido numa audiência" (JURANDIR, 1976, p. 199, p. 201).
O acesso a protetores do folguedo, por meio de alianças entre sujeitos socialmente desiguais, ajudava a contrabalançar o peso da repressão policial à manifestação pública dos cordões, a despeito de sua popularidade. Inclusive a presença de policiais nos grupos como foliões, como Barros (2007, p. 124) demonstra ocorrer nos bumbas13 de São Luís na mesma época, era mais um elemento nas negociações com as autoridades para garantia de liberdade de circulação. Os amos precisavam conhecer e praticar tais articulações políticas, para que de fato seus bois pudessem almejar a fama (ALBUQUERQUE, 2009, p. 233).
Quando da criação de seu Estrela d’Alva, Quintino Profeta decidiu sobre o percurso que faria para garantir o reconhecimento do bumbá: iria a um cartório registrar seu nome nos livros; buscaria um pajé na Pedreira14 para benzer seu bicho; plantaria os "tajás15 protetores do boi" (em frente ao curral?); procuraria o jornalista Seabra e combinaria com ele um encontro regado a cachaça e peixe frito no bar Bonitinho (no Ver-o-Peso?), para que publicasse notícias de seu cordão (JURANDIR, 1976, p. 207). O registro oficial do nome e a proteção espiritual deveriam ser necessariamente completados com a divulgação positiva na imprensa. Dalcídio Jurandir, autor dessa história, trabalhou em redações em Belém na década de 1930 e é possível que tenha presenciado a busca de donos de boi por aliados nos jornais.
Tal como ocorria na capital federal no mesmo período, os jornalistas eram vistos como intermediários acessíveis aos grupos festivos, com os quais as diretorias de clubes suburbanos poderiam contar (PEREIRA, 2013, p. 113). A circulação de repórteres pelos subúrbios em dias de festa tinha sua contrapartida na visita de foliões às redações (VELLOSO, 2004, p. 35, 36). A projeção social dos cordões de boi, de pássaro e bichos, viabilizada por alianças assimétricas, contribuiu para que autoridades públicas buscassem incorporar manifestações culturais de grande popularidade em ações de política cultural (SOIHET, 2017, p. 315), nas quais atrações como os bumbás ocupavam importante posição.
Vicente Salles afirma que, por volta de 1922, ao mesmo tempo em que a polícia limitava a circulação dos bois pelas ruas, a chefia de segurança pública "liberou uma grande área na Avenida Independência, próxima do largo de São Bráz, para as exibições do célebre bumbá Pai da Malhada" (SALLES, 1994, p. 347). É provável que as boas relações do dono do cordão tenham favorecido a decisão daquela alta autoridade em seu benefício. O logradouro foi denominado oficialmente "Parque Recreativo Paraense" e permaneceu ativo como centro de festejos juninos até os anos de 1930. Segundo Salles (1994, p. 347), em 1935, aquele era um dos terreiros mais disputados da cidade, pois ali havia "cinema ao ar livre", carrossel e barraquinhas de bebidas e comidas com a presença de "garçonetas", o que era então novidade.
Tal como ocorria na mesma época em São Luís, os apreciadores de bumbás em Belém oriundos das classes dominantes contribuíam para as estratégias dos cordões de conquista de visibilidade (MARTINS, 2017, p. 369, p. 376). Ainda em 1915, um artigo assinado com o pseudônimo "Zed" e lançado no Estado do Pará (edição de 27 de junho de 1915) reclamava das medidas policiais que proibiam os cordões de boi de saírem às ruas. Para o autor, elas ameaçavam os "divertimentos tradicionais, (...) a sinceridade nativa", de modo que "a nossa gente já ia perdendo o hábito de brincar". Zed afirmava que as gentes de elite que se aglomeravam nas "terrasses dos cafés" mantinham distância das festas do "Zé Povo", de São João e de Natal, em que se destacavam bumbás e pastorinhas. Os riscos dessas festas se tornarem "intramuros" seriam que o "povo" aderisse a "costumes importados", perdesse o gosto pelas tradições e se tornasse "revolucionário" ou "anarquista".
Por isso, o jornalista defendia que os bois dessem o "ar de sua graça", saudassem o "plenilúnio chuvoso de São João" e pudessem cruzar as ruas a noite inteira. Anos mais tarde, os encontros de grupos de boi nas ruas ganharam versões favoráveis, em que se exaltava a figura do capoeirista suburbano como símbolo de uma época em que existia a "verdadeira tradição".16 É o caso das crônicas de Carlos Victor Pereira reunidas no livro Belém Retrospectiva, publicado em 1962. No capítulo "São João de Antanho", o autor apresenta os "malandros hábeis na capoeira" como os líderes das "lutas encarniçadas" de bumbás que ocorriam "todos os anos".17 No cordão, o "tripa", dançarino que dá vida ao boi-artefato, era selecionado por ser "capoeirista de fama". Bois como o "Pai do Campo", por exemplo, "dominavam" seus bairros por que seus "brincantes se faziam respeitar".
Em seguida, Pereira descreve uma cena de encontro marcado de bumbás, em "visita" do Boi Canário, do Umarizal, ao Pai do Campo do Jurunas. Na manhã do dia combinado, as famílias se recolheram ainda cedo e ficaram a "bisbilhotar" a chegada do adversário. O Canário chegou na hora acertada com seus "balões multicores" e sua guarda de honra (dedicada ao boi-artefato) formada de índios. Iniciou-se então uma troca de canções guerreiras acompanhadas de matracas: "Eh! Meu Canário querido, veja o bicho valentão, pra gente cuspi na cara, e arresorvê no facão!". A narrativa se encerra sem apontar o desfecho do encontro descrito. Informa somente que as lutas podiam envolver armas e revólveres e que apenas acabavam com a presença da cavalaria, "quando se verificavam as vítimas inertes no chão, baleadas ou esfaqueadas" (PEREIRA, 1962, p. 43-45).
A dramaticidade do fato opõe-se à atualidade do momento de publicação da crônica. Os bois dos anos de 1960 dedicavam-se a concursos folclóricos e não mais tinham os capoeiristas como seus protagonistas. A fase trágica da "brincadeira afro-brasileira" estaria para trás, mas se consagrava como marco histórico, em um período quando a manifestação supostamente ainda rústica era caso de polícia e tinha seu "sabor folclórico" ressaltado (PEREIRA, 1962, p. 43-45). Não podemos esquecer, aliás, que tais relatos são construções literárias, apoiadas em memórias de infância e em narrativas de terceiros, que não se dedicam a precisar casos específicos e resultados trágicos concretos.18
Personagem representativo da "fase heroica" (enquanto versão literária) dos bumbás de Belém é o capoeirista "Pé de Bola" (Américo Gonçalves), assim apelidado por conta de um defeito físico. Ele é mencionado nas já referidas memórias de Carlos Victor Pereira e de De Campos Ribeiro como capoeirista e "valentão" do Jurunas. Vicente Salles o apresenta como "um dos campeões da capoeiragem no Pará" e destaca sua "célebre valentia e petulância" à frente do boi (SALLES, 1994, p. 361). O autor Lauro Palhano o transformou em personagem do seu romance O Gororoba, publicado em 1931.
A bravura dos amos de boi foi um dos aspectos realçados na repercussão literária construída por intelectuais interessados nessa manifestação popular. Além das habilidades guerreiras, outras qualidades de líderes e demais brincantes são ressaltadas nos registros memorialísticos. De Campos Ribeiro (1966, p. 100) destaca o talento dos "bambas tiradores de toadas", que eram respeitados "pelo poder da improvisação nos encontros onde a arma de combate era a resposta pronta, a glosa do mote do contrário". Em Chão dos Lobos, o narrador menciona a morte do "velho Timbó", tirador que "já de vela na mão ainda parecia fazer toada" (JURANDIR, 1976, p. 206). Era um "toadeiro de raça" que "não renegava". Outros são destacados por De Campos Ribeiro (1966, p. 100): Primo, do Boi Galante; Vicente Teixeira, do Veludo; Moisés Branco, do Canário; Maurício, do Brilhante; Nenê Castro, do Pai do Campo; e Raimundo Bicudo, do Estrela d’Alva.
Exemplo singular de protagonismo no bumbá é tratado por De Campos Ribeiro no relato sobre um boi de mulheres. O autor apresenta a "Nêga Lourença, cafusa boêmia, maioral da Vila dos Inocentes", do bairro do Umarizal, filha de uma "velha mingauzeira" que cantava seu pregão pelo bairro. Lourença fora a criadora do Boi Anizeta, composto apenas por mulheres. O nome do cordão derivava da bebida alcoólica consumida pelas mulheres pobres de então. As integrantes vestidas com "tecidos de preço" recebiam elogios das famílias, que para isso "punham de lado as convenções". Já os taberneiros, caixeiros e padeiros portugueses "derretiam-se, embasbacavam-se de admiração concupiscente" pela "Nêga Mônica". A jovem é descrita pelo memorialista como "adolescente de quadris virginais, de pele sedosa, fina, dentes de pérola, olhos rasgados, brilhantes e sedutores". A lembrança do autor dá destaque à dançarina "bamboleante (...) à frente das brincantes com seu calção de veludo vermelho" (RIBEIRO, 1966, p. 102).
As fronteiras sociais de raça, de classe e de gênero mostram-se bem nítidas nesse relato. A chefia de um boi de mulheres caberia a uma "maioral" de um trecho de bairro suburbano. Mas a liderança feminina de um folguedo que era eminentemente masculino (PRADO, 2007) competia às personagens situadas na posição de maior inferioridade na ordem social: as mulheres negras, "boêmias", filhas de trabalhadoras pobres. O nome do grupo referido pelo memorialista indica essa condição. Diferentemente das mulheres de elite, que não deveriam consumir álcool, as integrantes do Boi Anizeta exaltavam a bebida característica de seus momentos de lazer e recebiam as atenções de "famílias" e de trabalhadores portugueses desejosos de possuir sexualmente as foliãs.
Duas integrantes do cordão são nomeadas pelo memorialista como "nêga", forma racializada de tratamento de mulheres das classes trabalhadoras que teria uso corrente na época em que De Campos Ribeiro conheceu o Boi Anizeta. O relato não esconde o desejo do próprio memorialista, que ressalta o "calção de veludo vermelho" da "Nêga Mônica". O registro acompanha a inclinação de escritos de folcloristas, desde fins do século XIX, de inferiorizar e animalizar a figura da mulher negra e mestiça, particularmente por sua suposta sexualidade desenfreada e degenerada (ABREU, 2004, p. 13). O pertencimento dessas mulheres aos setores subalternizados da sociedade era a base de apoio para juízos preconceituosos que condenavam ou desvalorizavam a presença feminina em áreas de domínio masculino.
Em entrevista ao jornal A Província do Pará publicada em 21 de junho de 1981, Mestre Setenta, amo do Boi Tira Fama (do bairro do Guamá), recorda que na época de sua juventude os bumbás de Belém não tinham mulheres. Sabia que "só no Pai do Campo, do Jurunas, que tinha uma mulher".19 Brincante do antigo Estrela d’Alva, Setenta rememora uma época em que, mesmo nas apresentações teatrais, os papeis femininos dos bois eram desempenhados por homens travestidos (PRADO, 2007). Mas as brechas possíveis existentes nessa barreira eram acessadas pelas mulheres das classes trabalhadoras. Além do exemplo do Anizeta, há também casos de bumbas20 de mulheres em São Luís na década de 1930 (BARROS, 2007, p. 125).21
As mulheres negras e pobres fazem parte do universo heterogêneo e complexo que cronistas e memorialistas invocavam de forma homogênea com o termo "povo". Dalcídio Jurandir chamava seus personagens de "aristocracia de pé no chão", gente das estivas, das oficinas e das fábricas,22 que no caso do mundo do boi bumbá correspondia à "cabroeira da cachaça", aos músicos, coletores de donativos, brincantes e foliões (JURANDIR, 1976, p. 197). Quintino Profeta, o personagem inspirado em Raimundo Bicudo do Estrela d’Alva, é descrito em Chão dos Lobos diferentemente da liderança incomum da "Nêga Lourença", de "Gostosa Belém de Outrora", como alguém destinado desde a infância para ser amo de boi: "Desde zinho, zinho, o seu Profeta brinca de Boi. Balançando no macuru23 já via o Boi. Gatinhava atrás do Boi, se emperreando para ficar com o maracá do índio. Sua primeira palavra: Boi!".
A criança fascinada pela figura central do folguedo "principiou a botar Boi na rua com seus parceiros moleques, Boi-curumin", até que na idade adulta fundou o Dois de Ouro, "Boi que fez tremer terra" (JURANDIR, 1976, p. 204). Nessa época, Raimundo Bicudo tornou-se serralheiro e depois foguista de embarcações fluviais e marítimas. Músico de rabecão (contrabasso), dividia-se entre o bumbá e as apresentações de seu conjunto musical "Flor do Brasil" em festas dançantes (MENEZES, 1993, p. 108). O Dois de Ouro fora criado em 1901, quando seu amo tinha 18 anos. De Campos Ribeiro (1966, p. 99) afirma que, em um encontro com o Pingo de Ouro (do Umarizal), o Dois de Ouro foi incinerado pela polícia. Bicudo resolveu então formar o Estrela d’Alva, que se manteria ativo até 1948.
Quando a Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF), do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, esteve em Belém em junho de 1938 para fazer registros de pajelança e de boi bumbá,24 apenas um contato foi feito com o amo do Estrela d’Alva. O trabalho de coleta, no caso dos bumbás, concentrou-se nas toadas e performances do Pai do Campo do Jurunas. No único encontro com os membros da missão, Bicudo informou que havia em Belém bois de batuque e de comédia.25 O seu Estrela d’Alva oscilava entre as duas modalidades, assim como desde a segunda década do século alternavam-se os cordões entre as ruas e os teatros.
O que na visão dos defensores do folclore era avaliado como declínio e perda de encanto, o pessoal do boi poderia traduzir como atualização. Em outras palavras, havia novas possibilidades de se obter prestígio, considerando a vinculação dos brincantes às iniciativas dos amos de bumbás. A tradição presente nas toadas, nos figurinos, nas danças e nas encenações seria redimensionada nas apresentações em arraiais públicos e em currais, tornados verdadeiros parques de diversão.
Contraditoriamente, para folcloristas como Vicente Salles, a transformação do boi em teatro de revista correspondia à desfiguração do folguedo, à desintegração da tradição e à extinção do conteúdo folclórico. Concorreriam para isso a atuação de intelectuais e de artistas profissionais na produção de roteiros, a introdução de música "popularesca" nas exibições e o envolvimento de produtores do teatro de revista.26 Apesar dessa apreciação negativa, o autor conclui seu artigo de 1970 afirmando que "é da tradição renovar-se, absorver influências" (SALLES, 1970, p. 28, p. 31-33). Portanto, tratava-se duma tendência inevitável que apenas relegava ao pesquisador a função de constatar e agir para registrar o que ainda perdurava como original.
Do lado dos brincantes, a percepção do que seria tradição estaria, por certo, mais próxima das escolhas recorrentes de aceitação ou rejeição de mudanças, em resposta aos caminhos inovadores que vislumbravam. Como sustenta Shils (1981, p. 46), as tradições são sempre pontos de partida para novas ações, ou seja, para a adoção de novos modos de participação e reinvenção de práticas festivas, por exemplo (AVORGBEDOR, 1999, p. 145). Tal como no caso de clubes recreativos de trabalhadores negros do Rio de Janeiro na Primeira República, os cordões de bumbá de Belém tendiam a combinar práticas costumeiras com modismos e influências vindos de fora (PEREIRA, 2013, p. 107).
Enquanto a perspectiva intelectual ensejava, a partir dos anos 1930, uma concepção "mítica" do popular (VELLOSO, 2004, p. 80), atrelada à busca pelas matrizes da identidade cultural da nação (PEREIRA, 2005, p. 227), grupos recreativos populares envidavam esforços por ampliar e desdobrar seus espaços de atuação. Ao prestígio das ruas pretendido pelos foliões de bumbás foi acrescentada então a fama dos currais, como centros de entretenimento. Lá onde o amo, o tirador de toada, os músicos e os brincantes eram as estrelas principais, também se exibiam outros cordões (pássaros e bichos), gente da vizinhança podia praticar esportes, visitantes consumiam comidas e bebidas e a imprensa era bem-vinda para registrar ensaios e apresentações.
A profissionalização de grupos de boi com o investimento em currais é um exemplo histórico de como o caráter dinâmico das manifestações populares (CAVALCANTI, 2001, p. 72) torna os elementos de tradição sempre aptos a assumir novos significados (HALL, 2003, p. 260). É o caso dos desafios, cantos fundamentais dos encontros, ainda presentes nos currais da década de 1930. Diz o narrador de Chão dos Lobos: "Agora a toada é um cumprimento, um dizer não fazer, mais por ser bonito" (JURANDIR, 1976, p. 208).
O bumbá ainda circulava nas ruas, mas então com presença marcante nos currais e nos concursos, o que significava a promoção daquela modalidade de lazer popular por toda a cidade. Cresciam, com isso, as possibilidades de projeção social dos foliões como agentes dotados de autonomia no mercado de entretenimento da cidade. Do ponto de vista do pessoal do bumbá, a separação entre boi das ruas e boi de comédia, como aventada por literatos, era uma falsa oposição. As formas de mobilização dos grupos eram coexistentes e se ajustavam às suas possibilidades performáticas e às condições relacionais com sujeitos do mercado de atrações festivas.
Nos anos de 1930, os bois estavam nas ruas e nos teatros. Não por acaso, em pleno "Estado Novo"27, o chefe de polícia do estado, Salvador Borborema, publicou a Portaria 152, em 7 de junho de 1940.28 Determinava-se então, "a bem da ordem pública", que não fossem concedidas licenças para exibições de bumbás e outros cordões em ruas e praças da capital. Que tais eventos fossem limitados às sedes dos grupos, a "casas de famílias" ou outras "casas de diversões". Acrescentava que os "comparsas" dos grêmios deveriam seguir para os locais de apresentação "dispersos e não em agrupamentos", que as "funções" deveriam limitar-se ao período entre a véspera de Santo Antônio (dia 12 de junho) e terminar no dia 30 do mês festivo, não se permitindo que "as diversões se prolonguem além das quatro horas da manhã".
A leitura à contrapelo dessa determinação oficial é muito reveladora. Em primeiro lugar, a ordem de não concessão de licenças para exibições públicas era enfática porque, de fato, bumbás e bichos ainda obtinham permissões de apresentação em ruas e praças no limiar da década de 1940. Mais ainda, a menção preconceituosa aos "comparsas" (cúmplices, como nos crimes) denotava que os foliões ainda seguiam em grupo para os locais de apresentação, provavelmente fantasiados, praticando seus cantos e danças. Por fim, a mobilização dos foliões tendia a se estender para além do período junino, também em festas que duravam noites inteiras e só terminavam na manhã seguinte.
Portanto, os bois de rua estavam bem ativos na mesma época em que as comédias projetavam a fama das trupes de foliões. Os contatos e as alianças com autoridades e jornalistas serviam às táticas dedicadas a burlar o poder e a vigilância das elites (VELLOSO, 1988, p. 53), garantindo a circulação pela cidade, inclusive para se acessar parques e arraiais. Brincar o boi envolvia agenciar inúmeras ferramentas lúdicas, políticas, econômicas e relacionais, o que implicava na polivalência simbólica da expressão "brincadeira" (PRADO, 2007). Incorporar o discurso intelectual sobre o "boi tradicional" favorecia os grupos na disputa por ocupar o território físico urbano, ao mesmo tempo em que ajudava no enfrentamento simbólico da exclusão social (VELLOSO, 2004, p. 32, 33).
Palcos e ruas eram, para os foliões, lugares de festejar, mas também de fazer-se conhecido, de estabelecer contatos com outros sujeitos, de enfrentar (direta ou indiretamente) os rivais, enfim, de exercer as "liberdades dos subalternizados" (VELLOSO, 1990, p. 27). Por isso, havia a necessidade permanente de abrir espaços de apresentação e circulação (VELLOSO, 1990, p. 225), acompanhada da oposição tenaz das autoridades policiais, aqui ou ali enfraquecida por agentes de segurança pública que eram apreciadores ou filiados a cordões.
Em meio às atividades de clubes recreativos das elites, das sauteries e dos cotillons da alta sociedade (como dizia em 1915 o cronista Zed), o pessoal do boi empregava coletivamente a energia lúdica dos seus corpos em prol de alcançar um lugar na tradição festiva da cidade (SILVA, 2012, p. 124). Assim, trabalhadores negros, pobres e suburbanos experimentavam algum grau de influência nas relações de poder (VELLOSO, 1990, p. 224) implicadas nas celebrações públicas dos tempos pós-escravidão. Por exemplo, o "bumbá folclórico", como narrativa construída por literatos e profissionais de imprensa, resultava também da capacidade de mobilização dos promotores e participantes dos bois (BARROS, 2007, p. 176). Não por acaso, nessa narrativa, os foliões não eram representados como bárbaros, mas sim como pessoas corajosas e capacitadas para liderar. As práticas dos brincantes estabeleceram a pauta histórica na qual os intelectuais realizaram a seleção de traços componentes do folclore do boi (BARROS, 2007, p. 128, p. 134).
As combinações entre tradicional e moderno nos palcos das comédias nos anos de 1930 resultaram de ações e interesses diversos agenciados na interação entre foliões e seus interlocutores, que orientavam a incorporação ou a rejeição de inovações (CAVALCANTI, 2001, p. 74, p. 77). A meta desses novos arranjos era de expandir o alcance de público, difundir a fama do grupo e conquistar novos espaços, como nos arraiais organizados pela polícia e pela prefeitura (BARROS, 2007, p. 164). Ao mesmo tempo, o objetivo último do folião constituía o direito de festejar em si mesmo. Participar do boi tinha um sentido em si, demarcado pelo prestígio de ser um dos protagonistas do boi de fama. É o que menciona o narrador de Chão dos Lobos sobre Quintino Profeta: "Mestre de Boi-Bumbá, isso era, que era, era. Ninguém lhe negava o bom brincar, o saber consumir-se, o merecer a Taça" (JURANDIR, 1976, p. 203).
Os gastos com o boi, a repressão da polícia, o preconceito da imprensa, o desafio dos rivais, o enfrentamento de todos esses obstáculos resultava no exercício do que Soihet (2017, p. 301) chama de "cidadania cultural". As ações ligadas ao universo da festa culminavam, no caso dos foliões do subúrbio, na incorporação de uma conotação política na sociabilidade festiva. As tradições ligadas ao universo da festa e praticadas coletivamente de modo lúdico (COSTA, 2002, p. 484) assumem significação política (num sentido amplo) na medida em que se impõem como engajamento existencial, no qual são se divisam as fronteiras entre o estético e o social, na vida cotidiana dos sujeitos (AVORGBEDOR, 1999, p. 153).
Os modos de ser e os modos de festejar do pessoal do boi estavam imbricados e, por isso, conectavam a conquista da fama com anseios correspondentes de cidadania, em escala mais ampla. A festa era uma oportunidade para a agência em prol dessa aspiração, possibilitada pela interação com sujeitos situados em posições superiores na ordem social (MARTINS, 2017, p. 394). A pretensão de conquista da fama não possuía lógica utilitária, de uma pauta específica político/ideológica ou econômica,29 uma vez que pertencia predominantemente aos domínios da sociabilidade. O prazer estético dos foliões e dos fãs dos bois era de natureza comunal (CHAKRABARTY, 1999, p. 137), provinha da expectativa coletiva de ser reconhecido como um dos protagonistas do boi de fama, que faz a terra tremer.30
Agradeço à dra. Carolina de Souza Martins por sua contribuição com este trabalho.