Relação entre Cor e Produção de Respostas no Rorschach: Implicações
Relation between Color and Production of Responses in Rorschach: Some Implications
Relação entre Cor e Produção de Respostas no Rorschach: Implicações
Revista Iberoamericana de Diagnóstico y Evaluación - e Avaliação Psicológica, vol. 1, núm. 41, pp. 174-181, 2016
Associação Iberoamericana de Diagnóstico e Avaliação Psicológica
Recepção: 14 Maio 2015
Aprovação: 10 Fevereiro 2016
Resumo: Após uma revisão e reflexão sobre os resultados dos trabalhos efectuados sobre o efeito da cor na produção de respostas ao Rorschach, pretende-se, com este artigo, definir algumas implicações do seu significado e alcance, expressos através da variável Afr. A verificação de que a cor é causa principal do aumento de respostas aos cartões coloridos e de que tal aumento só se observa, a partir dos 15 anos de idade, implicam a exclusão daquela variável na análise e interpretação dos protocolos de crianças. Estes dados permitem, por um lado, relevar a natureza desenvolvimental deste fenómeno perceptivo e, por outro, conferem àquela variável o fundamento comportamental, dantes não apontado, e a inerente dimensão de diagnóstico.
Palavras-chave: Rorschach, cor, Afr, crianças.
Abstract: Following a revision and reflection on the results of the study of color on the production of responses in Rorschach, some implications of its meaning and scope as expressed by Afr are referred. Confirmation that color is the main cause of the increase of production of responses to colored cards and that such increase is not observable until the age of 14 implies the exclusion of such variable in analysis and interpretation of children’s records. Having checked and confirmed the developmental nature of this perceptual phenomenon, the variable gains now a behavioral foundation, previously unknown, and the inherent diagnostic dimension, important aspect of an instrument of personality assessment.
Keywords: Rorschach, color, Afr, children.
Introdução
O teste ou o método de Rorschach designa um instrumento ou modo de avaliação da personalidade. O seu material é formado por dez cartões com borrões ou manchas de tinta, designados pelos respectivos números romanos, cinco dos quais em tonalidade escura ou acinzentada, I, IV, V, VI e VII, dois onde o vermelho se junta ao escuro, II e III, e três inteiramente coloridos, VIII, IX e X. A sua aplicação é individual e limita-se a pedir à pessoa que diga, diante de cada cartão, o que lhe parece ser. Após o período de obtenção das respostas, a pessoa é convidada a esclarecer onde viu o objecto indicado e o porquê dessa semelhança.
Trata-se de um dos testes psicológicos mais estudados e utilizados de sempre que, a partir da segunda metade do século passado, após um período de fortes críticas negativas, veio a conhecer um processo de recuperação pelas mãos de John E. Exner, Jr. e sua equipa de estudiosos e investigadores, que lhe valeu ser colocado a par de outros testes bem cotados, como o Inventário Multifásico de Personalidade de Minnesota (1989).
A presença do elemento cor nos borrões de tinta foi, desde sempre, objecto de estudo e reflexão, e muitos são os estudos e investigações que se lhe referem, até porque, antes de mais, se trata de um estímulo perceptivo com características próprias, amplamente aproveitado nos mais diversos campos, pelo seu poder atractivo. Todos sabemos, por experiência própria, o quanto ela se acha ligada ao afecto e à emoção, ainda que tal ligação possa ter um carácter cultural adquirido. Seja como for, importa salientar a sua qualidade de estímulo inevitável, observável já no bebé.
De entre as múltiplas perspectivas segundo as quais a cor possa ser abordada, a questão da relação entre a cor e a produção de respostas nos Cartões coloridos VIII, IX e X do Rorschach, foi nosso objecto de estudo primordial, durante mais de uma década, tendo dado lugar à publicação de diversos artigos constantes das referências bibliográficas. Neste escrito, pretende-se sintetizar os dados encontrados e apontar algumas das implicações que têm na análise e interpretação do Rorschach, seja de crianças seja de adolescentes ou adultos.
Os estudos efectuados
O primeiro estudo publicado em 2002 e intitulado The effect of colour on productivity of Card X of the Rorschach (Silva, 2002) resultou de uma proposta de Exner relativa àquele cartão do Rorschach. Dos seus estudos sobre a cor (Exner 1959, 1962), subsistiu a seguinte questão referente ao maior número de respostas frequentemente observado, no Cartão X: seria ele devido ao aspecto dividido do cartão ou à sua qualidade cromática? Como se sabe, Klopfer estabelecera, há já alguns anos, sem que alguém o tivesse contestado, que o maior número de respostas dadas a este Cartão se devia à sua estrutura dividida ou fragmentada, considerada como o factor facilitador daquele dado. Concretamente, avançou a norma segundo a qual, se o número de respostas ao Cartão X ultrapassasse 20% dos 40 ou mais por cento das respostas dadas aos cartões coloridos, isso resultaria daquele efeito facilitador, pelo que perderia o significado de “reactividade geral aos estímulos emocionais do ambiente” (1954, p.297) atribuído à variável Percentagem de Respostas aos Cartões VIII, IX e X (RC%).
Neste estudo, observámos a metodologia indicada pelo próprio Exner. Aplicou-se a versão estandardizada e uma versão acromática do Rorschach a dois grupos: um de 20 jovens adultos de ambos os sexos, outro de crianças também de ambos os sexos, com idades de 9/10 anos. O Roschach foi aplicado em ambas as versões, na ordem directa dos cartões e na sua ordem inversa. Os resultados revelaram de forma clara, contrariamente à indicação de Klopfer e em resposta à questão levantada por Exner, que a mais alta frequência de respostas ao Cartão X se deve à característica cromática do borrão e não à sua estrutura fragmentada. Este constituiu um facto algo surpreendente para os utentes do Rorschach, pois o dado perceptivo referente ao carácter dividido da mancha como que se sobrepõe ou parece mais óbvio do que o cromático na percepção do estímulo, disponibilizando o prático ou o estudioso a aceitar sem crítica a proposta de Klopfer. Apenas alguém como Exner, que se havia dedicado ao estudo do efeito da cor na produção de respostas e obtido os resultados conhecidos, teria podido pôr em questão a sugestão de Klopfer. Se, no entanto, tivermos em conta o carácter imperativo do estímulo cor, compreende-se que ele predomine sobre o carácter dividido ou fragmentado do espaço ocupado pelos borrões de tinta.
Outro e não menos importante aspecto revelador deste estudo, acerca do qual ainda ninguém se interrrogara, foi o facto de que o aumento do número de respostas aos cartões cromáticos, também geralmente reconhecido e aceite, verificou-se no grupo de jovens adultos a quem se aplicara o Rorschach, mas não no grupo de crianças de 9/10 anos a quem os mesmos cartões foram aplicados. Neste segundo grupo, em nenhum dos cartões se verificou aumento significativo do número de respostas, desconhecendo-se a razão duma tal ocorrência. Não deixa de ser curioso o facto de que esta ausência de reactividade à presença da cor tenha passado despercebida, particularmente aos utilizadores do Rorschach como instrumento de avaliação de crianças. Tanto quanto sabemos, apenas uma especialista no Rorschach infantil, Rausch de Traubenberg, suspeitava e considerava que a cor, nos protocolos de crianças, não pode ser encarada segundo a perspectiva e significado que lhe é atribuída nos protocolos de adultos (ver Rausch de Traubenberg e Boizou, 1977, pp. 48-58). Não deixa de ser digno de nota o facto de que, no subcapítulo desta sua obra, dedicado às interpretações de cor, não ocorre nenhuma referência explícita à variável RC%.
Face àqueles resultados, duas outras questões se levantaram e constituíram tema de um novo estudo: (1) dada a ideia de que a cor é considerada meio de expressão da dimensão afectivo-emocional e o facto de que esta última constitui ainda o modo de expressão dominante na idade de 5/6 anos, será que o número de respostas dadas aos cartões coloridos aumenta neste período etário? (2) em que idade a cor adquire a propriedade de aumentar a produção de respostas aos cartões coloridos do Rorschach?
Este foi o objectivo do segundo estudo sobre cor e produção de respostas, numa perspectiva desenvolvimental, publicado segundo diferentes perspectivas, (Silva & Marques, 2008), (Silva, 2009a, 2009b, 2011a). Tendo em vista responder às questões formuladas, observaram-se dois grupos de crianças de ambos os sexos: um de 5/6 anos de idade, período de transição do estádio pré-operatório para o das operações concretas; outro de crianças de 11/12 anos, período de transição para o estádio das operações abstractas. A metodologia adoptada foi idêntica à do estudo anterior. Os resultados obtidos em ambos os grupos não acusaram quaisquer indícios de aumento de produção de respostas em nenhum dos cartões. Apenas se detectou um ligeiro decréscimo nas médias de respostas entre os 5/6 e os 11/12 anos. A média mais elevada detectada no grupo de 5/6 anos, mais jovem, poderá ser indício da presença mais acusada da reacção marcadamente emocional, comum neste período etário, ao passo que a redução progressiva das médias poderá indicar o progressivo domínio das operações concretas, presididas pelo pensamento lógico, no acto de produção de respostas.
No que respeita aos resultados do segundo estudo, a ausência de aumento no número de respostas, no início do estádio das operações abstractas, na perspetiva de Piaget, sugere que o desenvolvimento operatório e perceptivo, atingido nessa idade, ainda não permite que a cor tenha esse efeito fecundo ou enriquecedor que virá adquirir mais tarde.
Com o objectivo de lograr uma resposta para a segunda questão, referente à idade em que a cor se impõe como causa do aumento da produção de respostas, decidiu-se, em acordo com o parecer de uma colega especialista em psicologia do desenvolvimento, observar um grupo de adolescentes, de ambos os sexos, com 15/16 anos (Silva & Ferreira, 2014). Neste estudo, tendo sido chamado à atenção para o facto de que não se impunha, nesta investigação, proceder à aplicação do Roschach em ordem inversa, já que tal prática não tem lugar na utilização deste instrumento, decidiu-se omitir esse passo. Por outro lado, decidiu-se, também, dado o objectivo do estudo, proceder à aplicação de apenas os cartões VIII, IX e X. Tendo, no entanto, em atenção o carácter raro do material do Rorschach, particularmente para quem o desconhece, houve o cuidado de fazer preceder a apresentação dos cartões coloridos, em ambas as versões, com a do Cartão I, como modo de adaptação.
Os resultados obtidos confirmaram a hipótese de que é, neste período etário, que a cor adquire a propriedade de aumentar a produção de respostas, confirmando a condição desenvolvimental do processo.
Todos estes resultados – (1) A cor é o primeiro factor responsável pelo aumento da produção de respostas ao Cartão X, não a sua estrutura fragmentada; (2) a cor não tem qualquer efeito na produção de respostas, em crianças entre os 5/6 e os 14 anos; o efeito da cor no aumento da produção de respostas ocorre na idade dos 15/16 anos – têm implicações teóricas e práticas na utilização do método de Rorschach.
Antes, no entanto, de ir mais adiante, devo referir que o alcance transcultural dos resultados encontrados tem os seus limites, pois estes podem não se encontrar em outras culturas ou níveis de desenvolvimento. Com efeito, num estudo efectuado em Quelimane, uma cidade de província da República de Moçambique, com amostras de crianças de ambos os sexos e idades de 11/12 anos e de adolescentes de 15/20 anos, em tudo semelhantes aos observados em Lisboa, os resultados obtidos foram semelhantes no grupo mais jovem de 11/12 anos, mas sem qualquer relação com os obtidos com o grupo de adolescentes (Silva e Ferreira, 2011). Seria interessante repetir este estudo com jovens adultos, eventualmente estudantes universitários, para verificar em que medida os aspectos culturais são essenciais no alcance dos resultados verificados.
Implicações
As implicações dos resultados encontrados no estudo de 2002, designadamente a ausência do efeito da cor no aumento da produção de respostas aos cartões coloridos, nos protocolos de crianças até aos 14 anos, apontam para a inutilidade de uma variável como Afr, no SIR, RC% em outros sistemas ou R8910% do Sistema de Avaliação do Desempenho (SADR) de Meyer, Viglione, Mihura, Erard e Erdberg, na análise e interpretação de protocolos deste período etário. A indicação desta inutilidade, justifica-se pelo efeito da cor na produção de respostas por crianças aos cartões coloridos, o qual se traduz pela ligeira tendência para a reduzir ou pelo menos não aumentar. Tal efeito acha-se claramente confirmado pelos dados normativos do Rorschach de crianças entre os 5 e os 11 anos, de Exner e Weiner (1995), em que as médias de Afr decrescem e as de R (número total de respostas) crescem ao longo de todo esse período.
Esta redução ou ausência de reacção à presença da cor na produção de respostas, pode ser resultado do poderoso efeito do estímulo cor, vigente na criança, desde um período precoce do desenvolvimento. Da intensidade desse efeito sobre o sujeito deriva a afirmação geral de passividade associada às respostas cor. Por sua vez, o carácter irresistível do estímulo cor, que exige uma reacção imediata, permite ponderar quão árdua poderá ser para a criança, no estádio das operações concretas, dar uma resposta aos cartões coloridos.
A partir dos 5/6 anos, o mundo transforma-se dramaticamente. A criança começa a aceder ao pensamento lógico e suas regras, avança no campo da linguagem, da leitura, da escrita e do cálculo, onde dominam outra vez as regras, regras que estão também presentes em todas as novas formas e campos de aprendizagem, inclusive o dos jogos, regras que introduzem de modo irrecusável as ideias do certo e do errado, correcto e incorrecto, bom e mau.
Face a este estrito e regulador mundo educacional da aprendizagem, que, ao-fim-e-ao-cabo, alcança toda a actividade da criança, é fácil reconhecer que a presença ou interferência de um estímulo como a cor dificulta o funcionamento mental da criança. Ela já aprendeu a seguir o pensamento lógico e muitas das suas regras na solução de um sem número de problemas, todos eles requerendo, por natureza, reflexão e dilação do impulso, condições que a presença da cor e sua exigência ou imposição excluem.
A criança, por conseguinte, não está ainda dotada dos recursos adequados para enfrentar os requisitos do estímulo cor. Esta situação complexa leva-a a inibir a reatividade ao estímulo cor. Mas uma tal dinâmica do estímulo cor nada tem que ver com a atração natural que a criança sente por ela, a qual permanece atuante, até porque inevitável. O que está em jogo aqui é a necessidade de resolver um problema cognitivo em que a cor está presente e perturba o funcionamento mental da criança, dando lugar a uma reacção inibitória. Nesta linha de pensamento, poder-se-ia dizer que a variável Afr, RC% ou R8910% não tem utilidade interpretativa na interpretação dos protocolos de crianças, mas também não indica receptividade aos “estímulos com tonalidade emocional” nem a redução progressiva da excitabilidade das crianças mais jovens, como o indica Exner (2003, p. 322).
Apesar das fortes indicações dos bem conhecidos factos antes referidos, o papel da cor na análise e interpretação de protocolos de crianças continua por adotar. É certo que uma coisa é a reactividade à presença da cor, nos borrões de tinta, outra é a opção da cor como determinante puro, primário ou secundário de uma resposta. Tratando-se, em ambos os casos, do lugar da cor na interpretação de protocolos de crianças, é bem plausível que a interpretação da variável RC% ou Afr ou R8910% continue a ser feita segundo os princípios estabelecidos aplicados com adultos tal como acontece com as respostas cor. Em apenas um trabalho de Rausch de Traubenberg e Boizou (1977) já invocado, encontrei o que consideraria a perspectiva adequada sobre o significado da cor nos protocolos de crianças. A sua análise da presença da cor nos protocolos do Rorschach ultrapassa os códigos clássicos, para defender uma análise qualitativa dos gestos, exclamações, linguagem, silêncios, gestos ocasionais, etc., afinal uma série de indícios comportamentais que deixam transparecer as vivências da criança. As autoras não consideram os códigos, em si mesmos, como dotados de um significado particular nem mesmo da capacidade de traduzirem o grau de intensidade do afecto, quando é esse o caso, correntemente atribuído nos adultos, em função da predominância da cor sobre a forma. A seguinte citação que nos permitimos fazer, ainda que longa, proporcionará uma ideia mais clara da sua perspectiva:
“Enquanto dado perceptivo sensorial, a cor é muitas vezes usada apenas segundo esta perspectiva de reconhecimento do material. Neste caso, será, então, importante apurar se a sua acção constitui um entrave ou uma facilidade no processo: deste modo, uma denominação da cor (Cn), geralmente considerada uma reacção reflexa intensa, pode ter um alcance menor, em termos de ressonância emocional, do que uma resposta FC. Mais, a mera impressionabilidade sensorial pode significar mais do que uma imagem precisa dada como um C Puro. A hierarquia das respostas cor é de aplicação inadequada em crianças; e, embora os modos C e CF sejam traduzidos em termos de cativação, sugestibilidade, narcisismo, imaturidade ou egocentrismo, sabe-se muito bem que o modo CF não é o único intérprete dessas dimensões” (Traubenberg e Boisou, 1977, p. 58).
No caso da variável que nos ocupa, número de respostas dadas aos cartões coloridos, os dados recolhidos indicam, como se referiu atrás, que o seu uso não se justifica.
A verificação de que o efeito da cor, no aumento da produção de respostas aos cartões VIII, IX e X, se concretiza a partir dos 15/16 anos e de que, por conseguinte, a presença da correspondente variável não faz sentido, antes destas idades, não pode deixar de ser tida em consideração na reflexão sobre o significado da variável que se mantém na análise de protocolos de adultos.
Com efeito, penso que este dado, repetidamente confirmado, confere à variável Percentagem de Respostas aos Cartões Coloridos um atributo que tem ainda de ser devidamente considerado na sua revisão e estudo. No Rorschach Performance Assessment System (2011), recentemente publicado, esta variável é codificada “R8910%”. Encontra-se entre as variáveis da Página 2, onde se acham aquelas variáveis com menor apoio da investigação e do comportamento. Segundo os autores, esta variável não tem, por um lado, um processo de resposta suficientemente claro e, por outro, a sua validade nomotética carece de mais investigação. Como seu fundamento teórico, os autores referem “a ideia de que, nas pessoas que são estimuladas e atraídas por situações emotivas, a produção de respostas deve aumentar com as cores vivas” (Meyer et al., 2011, 454). Comentam, no entanto, que “a reacção à cor e a elevação de R8910% reflectem provavelmente processos que não se confinam ao processamento relacionado com a emoção, mas estão também ligados a uma reactividade mais geral a estímulos fortes, irresistíveis e excitantes” (2011, p. 454). Apontam ainda para o facto de que o cálculo da variável e respectivo processo de resposta geram inconsistências. E escrevem “O R8910% pode ser enganador em casos de muitas respostas simplistas aos três últimos cartões (traduzidas quase sempre pela multiplicação de códigos «D A 2 F » no Cartão X, dado que o número destas respostas pode revelar algo mais sobre a dificuldade de integração das manchas fragmentadas em perceptos mais amplos do que o impacto da cor" (2011, p. 454).
Perante os estudos que consistentemente mostram que a cor é o principal responsável do aumento da produção de respostas, em cada um e no total dos cartões coloridos, não parece que os comentários que apontam a frequência de respostas simplistas ou raras, ricas e organizadas sejam realmente satisfatórios ou consistentes. O que está em jogo na variável R8910% é o reconhecimento de que esta percentagem apresenta uma média geralmente mais alta do que a proporcionalmente encontrada para os restantes sete cartões. Se assim não fosse, não haveria qualquer razão para identificar esta variável. A proposta de Klopfer de que o significado desta variável é posto em causa, quando a percentagem de respostas ao Cartão X ultrapassa os 20% da percentagem total de 40%, “limite máximo da reactividade comum”, releva também da sua afirmação de que “o cartão X presta-se de si próprio a mais respostas dada a sua facilitação de respostas D” (Ainsworth & B. Klopfer, 1954, p. 297), isto é, do seu aspecto dividido. O comentário de Meyer e demais autores, antes referido, enquadra-se nesta perspectiva. Se o impacto da cor nos Cartões VIII, IX e X se manifesta em cada um deles pelo aumento da produção, que tipo de critério nos pode impedir de considerar as respostas simplistas, no caso da sua ocorrência em grande número, um efeito desse impacto. Há que ter presente que Klopfer, como é óbvio, desconhecia que o maior número de respostas ao Cartão X se devia, antes de mais, ao seu carácter cromático e não à sua estrutura fragmentada, causa primordial da facilitação por ele afirmada para justificar o maior aumento de respostas neste cartão. Com efeito, o facto de a cor ser a principal responsável do aumento de respostas no Cartão X, como nos demais cartões coloridos, não resulta sem consequências para a interpretação do número de respostas dado àquele Cartão. Deste ponto de vista e na nossa perspectiva, torna-se mais complexo explicar a redução do número de respostas, relativamente aos demais cartões, do que o número elevado, ainda que com respostas simplistas. Por que não será adequado considerar que a presença da cor, para alguns indivíduos, pode ser facilitadora de respostas simplistas a estes cartões sobretudo ao Cartão X? Poderia ser uma maneira de reagir ou furtar-se ao seu impacto, tanto quanto as respostas com determinante cor estão longe de alcançar a frequência esperada no Cartão X . Com efeito, tendo em conta o número de respostas dadas a cada um dos cartões VIII, IX e X, a percentagem de respostas, com determinante cor, dadas ao Cartão X é a mais baixa dos três (ver Exner e Erdberg, 2005, p. 501 e seguintes), um dado que tem o seu quê de surpreendente. É compreensível admitir-se que a estrutura dividida ou fragmentada do Cartão X facilita a ocorrência de respostas «D A 2 F ‒» isto é, respostas de detalhe comum, conteúdo animal visto em ambas as metades da mancha e determinado pelo aspecto formal «‒» mas o que não pode ser omisso é que a primeira e principal causa do aumento de respostas neste cartão é o facto de ser colorido, ainda que este dado não facilite a integração da cor nas respostas. Este é um elemento essencial no fundamento teórico da variável RC% ou R8910%, mostrando-se secundário o aspecto dividido do cartão.
Um outro aspecto que nos parece importante na consideração desta variável releva do carácter eminentemente perceptivo das respostas ao Rorschach, particularmente o da tolerância à presença da cor. Considerou-se já o facto da redução da produção de respostas aos cartões coloridos, entre os 5/6 e os 11 anos, tendo-se, então, sugerido que tal redução resultaria da dificuldade em responder, de forma operatoriamente correta, face à presença da cor, tida por nós como factor inibidor de resposta. Nesta linha de pensamento, os fenómenos referidos de redução de respostas com determinante cor, no Cartão X, e de aumento de respostas aos cartões coloridos, nos adolescentes e adultos, poderiam ter duas justificações diferentes: o primeiro seria devido à persistência da dificuldade de integração da cor na resposta; o segundo resultaria, naturalmente, do domínio adquirido das operações perceptivas implicadas na resposta. O aumento da produção de respostas aos cartões coloridos, expresso na variável R8910%, não tem de ser interpretado como uma manifestação da tendência nas pessoas para serem estimuladas e atraídas por situações emotivas ou outras formas de reactividade emocional. O que revelam os estudos referidos é uma evolução da percepção da cor e dos seus efeitos na produção de respostas. Após uma redução do número de respostas influenciadas pela cor, entre os 5/6 anos e os 11/12 anos de idade ‒ período do efeito inibitório da cor na produção de respostas ‒ segue-se, a partir dos 15/16 anos, o período do seu aumento. A interpretação deste dado comportamental pode assentar apenas no processo de desenvolvimento perceptivo e global. Como se referiu antes, a inibição da produção de respostas poderia ser consequência do conflito entre a exigência imediata de reacção na percepção da cor e a exigência de reflexão ou ponderação lógica; o aumento da produção pode ser o indicador de que tal conflito deixou de ter lugar, mercê do desenvolvimento cognitivo, afectivo-emocional e de outras potencialidades. Este último permite que a percepção da cor “venha, nos últimos estádios do desenvolvimento perceptivo, realçar a articulação formal e consumar funções adaptativas” (Shapiro, 1977, p. 267). Isto é, o aumento da produção de respostas aos cartões coloridos do Rorschach, a partir dos 15/16 anos, é uma resultante do desenvolvimento e deve ser considerado exactamente como um indicador de que tal desenvolvimento teve lugar e não, prioritariamente, um indicador de reactividade emocional.
Estes dados levam-nos a considerar que o estímulo cor, determinante do aumento da produção de respostas aos cartões coloridos, constitui um dado seguro e consistente que caracteriza e diferencia o processo de resposta da variável RC% ou R8910%. Este aspecto constitui, a nosso ver, um ponto crucial na compreensão do processo de resposta da variável RC% ou R8910%, procurado pelos autores do SADR, e reforça a afirmação que encara esta variável “como relacionada com a reactividade comportamental a estímulos externos evocadores” (Meyer et al., p.454). Outra questão é a de interpretar este dado como indicador de estimulação e atracção por situações emocionais. Dentro desta mesma linha, não pode deixar de enfatizar-se o óbvio interesse diagnóstico que estes resultados estimulam.
A dimensão diagnóstica que a variável RC% ou R8910% pode assumir, permite, designadamente, avaliar a maior frequência de respostas D A 2 F, ditas simplistas, indicadora da dificuldade em integrar o carácter dominante das cores vivas e atraentes dos cartões ou, na sua ausência, da capacidade contrária de as integrar. Seja como for, a definição da norma referente a esta variável permitirá sempre avaliar as modalidades de excesso ou insuficiência da produção alcançada e proceder à respectiva análise. A indicação do nível intelectual e cognitivo do respondente e o exame do modo de funcionamento nos restantes cartões permitirão elucidar como a cor afectou ou não a reactividade do examinado aos cartões coloridos.
No termo deste escrito, gostaria de convidar os colegas de diversas latitudes e longitudes a avaliar o alcance destes resultados no estudo do efeito da cor na produção de respostas. As diferenças transculturais podem ser importantes.
Conclusão
1. A principal causa do aumento da produção de respostas no Cartão X é a cor e não o seu carácter dividido. Este aumento só se verifica a partir dos 15 anos e indica que a percepção cromática exige um estádio avançado de desenvolvimento cognitivo
2. O facto de a cor não determinar o aumento de respostas, até à idade dos 14 anos, constitui um dado novo indicador de que a interpretação das respostas cor, até àquela idade, não deve reger-se pelas propostas interpretativas usuais nos protocolos de adultos. Assim, uma variável como Afr ou RC% ou R8910% não deve ter lugar na interpretação de protocolos de crianças e de pré-adolescentes.
3 Os resultados do estudo do efeito da cor na produção de respostas e a revelação do carácter desenvolvimental que o fundamenta dotam o processo de resposta desta variável de uma base comportamental verificada e devidamente confirmada. Subsiste, no entanto, a questão cultural que, no caso da cor, seu reconhecimento e diversidade de designações identificadoras, admite importantes variações nas múltiplas sociedades e culturas.
4. Confirmado o processo desenvolvimental subjacente ao efeito da cor na produção de respostas, o seu interesse na perspectiva de elemento de diagnóstico, quer na criança quer no adulto, é manifesto.
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