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EXTENSÃO, PESQUISA E ENGAJAMENTO: APRENDIZADO DE LUTAS E DORES NO SEMINÁRIO MEMORIAL DAS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS
EXTENSÃO, PESQUISA E ENGAJAMENTO: APRENDIZADO DE LUTAS E DORES NO SEMINÁRIO MEMORIAL DAS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS
Revista Conexão UEPG, vol. 15, núm. 1, pp. 059-068, 2019
Universidade Estadual de Ponta Grossa

Recepção: 21 Agosto 2018
Aprovação: 18 Outubro 2018
Resumo: O texto faz uma descrição e análise do Seminário Memorial das Ocupações Estudantis, promovido pelo projeto de extensão da Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG) Grupo de Estudos sobre a Juventude, ocorrido em novembro de 2016. Por meio de categorias de Walter Benjamin acerca da história e da memória, bem como de Jacques Rancière sobre subjetivação política, analisam-se os registros do planejamento, realização e avaliação pelo Grupo de Estudos sobre o Seminário, bem como os desdobramentos do evento. Como resultados, a consecução do objetivo de valorizar as memórias de luta do movimento das ocupações no Sul de Minas Gerais, ao lado do reconhecimento – não tão esperado – de um grande manancial de angústia e mal-estar entre estudantes que ocuparam escolas e universidade. Conclui-se com a proposição de uma pesquisa que investigará as trajetórias escolares e políticas das/dos ocupas.
Palavras-chave: Evento de extensão, Memória, Ocupações estudantis.
Abstract: This article describes and analyzes the Seminar: Memorial of students’ occupations that took place in November, 2016. The seminar was part of the outreach project from the Federal University of Alfenas (UNIFAL-MG) called Study Group about Youth. The Study Group used Walter Benjamin’s categories about history and memory and Jacques Rancièrs’s category about polítical subjectivation to analyze the planning records, as well as the implementation and the evaluation of the seminar in addition to the unfoldings of the event. The outcomes inclusde meeting the goal of valuing the memories of the struggles of the movement and the occupations in the south og Minas Gerais in addition to the recognition, which was not expected, of a feeling of anguish and discomfort among the students that occupied the schools and the university. At the end of the article, a research proposal is presented. The research will investigate the school and polítical trajectories of the students that participated of the occupation movement.
Keywords: Outreach event, Memory, Students’ occupations.
Introdução
Quando esse movimento for discutido no futuro, não olharemos para as ocupações como um exemplo a ser seguido necessariamente, mas como uma experiência de coletividade que se mostrou uma alternativa possível ante o esgotamento das instituições representativas tradicionais. E esse resultado se fez por meio de mais de mil escolas ocupadas pelo pais e mais de duzentas universidades. Não foi pouco barulho. (Graduando em História, nov. 2017).
A ocupação foi um processo massacrante... (Secundarista mulher, nov. 2017).
Este artigo relata a experiência e os aprendizados decorrentes da organização e realização de um evento de extensão, o seminário memorial das Ocupações Estudantis, na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG), de 6 a 8 de novembro de 2017¹. Enquanto escrevemos este artigo, encontramo-nos autor, coautoras e as/os integrantes do Grupo de Estudos sobre a Juventude de Alfenas, na última fase da pesquisa "A dimensão educativa das organizações juvenis: Estudo dos processos educativos não formais e da formação política no interior de organizações juvenis de uma universidade pública de Minas Gerais", apoiada com Bolsa de Produtividade em pesquisa pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico), bem como por Bolsas de Iniciação Cientifica pelo próprio CNPq e pela FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais).
A pesquisa, por possuir caráter etnográfico, tem realizado a observação participante do cotidiano das organizações e de possíveis ações coletivas por e as perpetradas. A etnografia impõe a abertura da equipe de pesquisa à surpresa do campo. Justamente, uma excepcional ação coletiva aconteceu durante a observação: a ocupação da universidade durante quase dois meses, em 2016, que transformou completamente o cenário das organizações juvenis políticas desta universidade e interferiu no cotidiano dos demais coletivos fossem eles religiosos, culturais ou esportivos. Na verdade, toda a universidade foi afetada pela ocupação, ao menos durante o tempo em que ela durou.
As/os estudantes da universidade estabeleceram, inicialmente, profícuas relações com as/os secundaristas que ocuparam quatro escolas públicas de ensino médio no município sul mineiro pesquisado. Relações que esfriaram com o passar do tempo e o desgaste das/dos ocupas da universidade. Na verdade, a primeira ocupação no município foi iniciativa das/dos secundaristas . Assim como em outros estados do Brasil, as ocupações das escolas é que inspiraram as ocupações das IES (Instituições de Educação Superior) e para além da motivação, as segundas usaram o odeio organizativo já ado do . pelas ocupações secundaristas: assembleias decisórias e horizontais, divisão do trabalho em comissões, atividades de representação e comunicação com mídia e autoridades exercidas de modo rotativo (evitando a formação de lideranças) e preocupação com a paridade de gênero.
O Grupo de Estudos sobre a Juventude imergiu na ocupação da universidade. Ajudamos a promover uma Mesa Redonda sobre a História do Movimento Estudantil e uma Roda de Conversa sobre as relações intergeracionais, que foram parte de um enorme número de atividades durante a longa ocupação da universidade sul mineira, entre outubro e dezembro de 2016 concomitante à greve docente, contrárias à PEC 241/55². Durante o processo de ocupação, o Grupo considerou que uma de suas contribuições poderia também ser acadêmica: atendendo à chamada de um dossiê sobre as ocupações estudantis da revista ETD - Educação Temática Digital, sistematizamos observações em campo e realizamos entrevistas com estudantes da ocupação universitária, a partir do qual escrevemos um artigo que foi aceito pela revista e publicado no início de 2017 (GROPPO et al., 2017).
No pós-ocupação, estudantes. da universidade que apoiaram as ocupações secundaristas no município se aproximaram do Grupo de Estudos sobre a Juventude, por meio do qual foram escritos outros artigos e trabalhos apresentados em eventos, em 2017 e 2018.
Formara-se uma equipe dedicada, não apenas academicamente mas também politicamente, lutando contra o esquecimento das ocupações e pela responsabilização de quem violou os direitos humanos das/dos ocupas, ou de quem foi conivente com essa violação. Contra o esquecimento, já vínhamos delineando o Seminário Memorial das Ocupações Estudantis. Pela responsabilização, intervenções em reuniões com representantes do poder público.
Memória e ação coletiva
O Seminário Memorial das Ocupações Estudantis nasceu da inquietação diante do esquecimento ensejado por instituições educacionais e a sociedade perante uma ação coletiva ímpar, rica e desafiadora. O evento foi apoiado pela Pró-Reitoria de Extensão da UNIFAL-MG e pela FAPEMIG. Desejava ser uma rememoração festiva do movimento ocupações, em especial, das escolas e campi universitários no Sul de Minas Gerais, no segundo semestre de 2016.
Entretanto, com o evento, descobrimos que o trabalho de esquecimento também era, em. parte, responsabilidade das/dos ocupas, dado o intenso desgaste físico e emocional causado pela participação na ação coletiva, diante da angústia perante o que foi lido como fracasso político do movimento e diante de retaliações e perseguições vividas no pós-desocupação. De um lado, sociedade e instituições desejavam deslegitimar as ocupações, ignorando suas práticas políticas e educacionais inovadoras e horizontais. De outro, parte relevante de estudantes que oram ativistas preferia deixar no ocaso experiências que lhes rememoravam muitas angústias e traumas.
O Seminário foi um palco para a disputa pela memória, ao desejar tirar das sombras a riqueza, a complexidade e as miríades de um movimento, tanto quanto permitir que adolescentes e jovens falassem sobre o tempo em que foram sujeitos na vanguarda História. Forte inspiração para o formato do evento foi Walter Benjamin e suas ideias acerca da História e da memória. Ao mesmo tempo, quem o organizou, o Grupo de Estudos sobre a Juventude de Alfenas, coletivo que combina extensão com pesquisa, tem usado como referência importante a noção de sujeito político de Jacques Rancière. Nesse item, tratamos de alguns conceitos desses autores, que deram fundamentação ao Seminário e à reflexão a respeito de sua realização.
Sobre a memória, pedimos licença para retomar algumas proposições sobre Benjamin que foi desenvolvido em artigo de outrora (GROPPO, 2003). Desde suas primeiras obras, Benjamin vai considerar que a tarefa do historiador é a rememoração, a qual compara com o momento do despertar - breve intervalo entre o sonho e a realidade. Como afirma Benjamin (1994, p. 37), tratando do esforço literário de Proust, ''um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo que veio antes e depois".
A rememoração deseja redimir desejos de liberdade do passado, os quais se expressaram de múltiplas formas, incluindo as artísticas e as políticas. Konder (1989, p. 82-3) afirma que Benjamin defende
[...] o efetivo aproveitamento de toda a riqueza das experiências humanas do passado, em função das necessidades das lutas que travamos no presente
[...] O que os seres humanos quiseram e não obtiveram talvez possa ser alcançado um dia. É por isso que precisamos resgatar tudo.
Ou seja, é possível e necessária uma "salvação histórica para todas as aspirações libertárias do passado" (KONDER, 1989, p.83).
Esta tarefa redentora traça uma linha que integra a multifacetada obra de Benjamin, que trata do teatro barroco do século XVII, dos elementos provisórios da modernidade de Paris do século XIX (as passagens, a fotografia, as barricadas e a arquitetura com ferro}, da poesia de Baudelaire etc. (BENJAMIN, 1985, 1983). A interrupção dos esquecimentos tem como missão multiplicar em quantidade e diversidade as experiências que podem inspirar as lutas emancipatórias. A obra de Benjamin é ela mesma uma prova de que, contra a ''pobreza da experiência" na vida moderna (BENJAMIN, 1983), a luta pela humanização poderia ser feita com a recuperação crítica das ruínas da modernidade.
A ação coletiva é fonte de experiências, que tanto podem alimentar a memória de lutas - cabedal de novos sonhos emancipatórios e táticas de protesto - quanto orientar a assunção de sujeitos políticos, quando aquelas/aqueles supostamente sem voz, sem capacidade de agir e "sem luz" - no caso, as/os estudantes, "alunas" e "alunos" - foram as/os principais sujeitos da resistência contra o regresso social e político vivido. Ou seja, a experiência da ação coletiva é poderosa ferramenta de subjetivação política. A noção de subjetivação política, proposta por Rancière (1996) e desenvolvida para os estudos sobre infância e juventude no Brasil por Lúcia Rabello de Castro, teve importante função heurística nas análises acerca das ocupações estudantis secundaristas e universitárias, durante a pesquisa "A dimensão educativa das organizações juvenis" (GROPPO, 2017, GROPPO, 2018), assim como na proposição do Seminário Memorial das Ocupações estudantis.
A definição do próprio Rancière (1996) sobre subjetivação política, a seguir, demonstra ter grande potência para interpretar e analisar o movimento das ocupações, desde a compreensão da possibilidade de adolescentes erigirem-se como sujeitos políticos, constituídos em ato, ao flagrante dos conflitos entre estudantes e adultos, quando os segundos muitas vezes subjugaram o poder instituinte das/dos ocupas:
A subjetivação política produz um múltiplo que não era dado na constituição policial da comunidade, um múltiplo cuja contagem se põe como contraditória com a lógica policial. [...]Toda subjetivação é uma desidentificação, o arrancar à naturalidade de um lugar, a abertura de um espaço de sujeito onde qualquer um pode contar-se porque é o espaço de uma contagem dos incontados, do relacionamento entre parcela e uma ausência de parcela. (Rancière, 1996, p. 48).
Os estudos sobre a subjetivação política enfatizam dispositivos de subjetivação oferecidos ou criados no campo político para as/os jovens- em vez da imposição de valores e padrões de modo unidirecional por adultos. Enfatizam a importância de conflitos e choques de vontades individuais para forjar identificações coletivas - em vez de "capacitações" para se acomodar aos outros e manejar conflitos (CASTRO; MATTOS, 2009). Destacam espaços não convencionais de participação política, incluindo a arte e a cultura, por meio de coletivos que mobilizam paixões e afetos (CASTRO, 2009). A categoria de subjetivação política ultrapassa o caráter meramente integrador e unilateral da noção tradicional de socialização e socialização política, flagra adolescentes e jovens como seres com capacidade de participar, de modos próprios, da vida social e política, cujas demandas e ações alteram o espaço público e as pautas do debate coletivo, fazendo emergir novos atores e outras formas de atuar politicamente. Na construção de si, adolescentes e jovens dialogam e se confrontam com gerações adultas, por vezes opondo ao que a maturidade espera das gerações mais novas, o que essas trazem como desejo e vivência (CASTRO, 2009).
Aprendizado de lutas e dores
Movido pela indignação diante da tentativa de colocar nas sombras um movimento tão impactante na história da universidade, o Grupo de Estudos sobre a Juventude promoveu um evento de extensão que tinha a intenção de ser uma espécie de comemoração do primeiro aniversário da ocupação. Foram várias as reuniões para a organização do Seminário. Entre atividades de divulgação, chegamos a ir panfletar nas escolas que tinham sido ocupadas em 2016, inclusive naquela em que a direção mais reprimiu as/os ocupas.
Em novembro de 2017, durante três dias, aconteceu o Seminário Memorial das Ocupações Estudantis, que contou com três mesas, uma formada por pesquisadora e pesquisador, outra só com ocupas de escolas do Sul de Minas e a terceira só com estudantes de Instituições de Educação Superior (IES) do Sul de Minas. Também, duas rodas de conversa, abertas, para debater sobre o movimento das ocupações no Sul de Minas e no país.
Nessa parte do texto, intentamos registrar e refletir sobre alguns dos relatos e dados sobre as lutas e as dores no movimento das ocupações, trazidos ao longo do Seminário Memorial das Ocupações Estudantis. O que era para ser apenas uma festa, o rememorar de lutas, foi também tempo de luto e de um acerto de contas com a derrota.
O próprio Seminário foi espaço de disputa de narrativas. A luta sobre o sentido do movimento das ocupações reaparecia, um ano depois, opondo Estado e estudantes, bem como militantes experientes e novas/novos ativistas. Dois exemplos merecem ser citados.
Primeiro, na Mesa 1, durante os debates, fala de representante da Secretaria Estadual de Direitos Humanos, a qual alegou que o governo estadual buscou ''mediar'' os conflitos decorrentes das ocupações secundaristas, trouxe claro incômodo às/aos secundaristas presentes, que manifestaram, em forma de rumores e comentários, sua irritação, levando inclusive o representante a abreviar sua fala. Estudantes afirmaram que, na verdade, a partir de certo momento, o governo estadual teria atuado pelo arrefecimento da ação coletiva, desestimulando a ocupação de mais escolas e forçando as/os ocupantes a aceitarem a convivência da ocupação com as aulas "normais".
Segundo, na primeira Roda de conversa, houve uma disputa sobre o legado das ocupações na universidade, com estudante e professor remontando às ocupações de 2012 e 2013, tratadas como a fonte da ocupação de 2016, e criticando o "basismo" deste último (que parecia ter medo da "direção"). Ocupas da universidade, em 2016, reconheceram que iniciaram sua formação política junto ao movimento e coletivos anteriores, quando foram "franjinhas" (termo para designar membros da base com pouca ou nenhuma tarefa política) e tiveram lideranças daqueles momentos como modelo e inspiração. Mas buscaram demonstrar as especificidades e a força própria da ocupação de 2016, incluindo a larga inspiração nas ocupações secundaristas e o papel central das/dos independentes, cuja força o Diretório Central Estudantil (DCE) e os coletivos organizados procuraram respeitar e valorizar.
As/os independentes teriam sido capazes de fazer formulações políticas próprias na ocupação universitária, sem necessariamente precisar de orientações da direção política de um partido ou de uma corrente partidária. Um independente, na primeira roda de conversa, afirmou que ''muita gente disse que só continuaria na ocupação se a metodologia continuasse a ser aquela" - baseada nas assembleias cotidianas para avaliação e decisões - e "que iriam embora se fosse formado um 'núcleo duro"'. Ainda na primeira roda, estudante do DCE valorizou muito as/os independentes: "O movimento só avançou com a participação e ação dos independentes, quando a única bandeira levantada era a Universidade, como a ida a Belo Horizonte. Pessoas que ficavam só ouvindo nas assembleias antes das ocupações, às vezes de longe, foram muito mais atuantes e importantes na ocupação".
Além de valorizar a capacidade de formulação política das/dos independentes, ocupas trataram seguidamente do sentimento de coletividade criado pelas ocupações, fazendo uso de termos como ''união" e "família", não apenas na primeira roda, mas também na segunda roda e nas mesas 2 e 3. Um independente disse, na primeira roda de conversa, que ''politicamente, a impressão é que a gente perdeu tudo, mas o que vai ficar na história é o movimento conseguir aglutinar os estudantes".
Outro, organizado, na mesma roda, redefiniu a noção de poder e política, valorizando - tal qual Rancière (2014, 1996) e mesmo Arendt (2007) -, o poder como a auto-organização da ação coletiva: ''Trampo coletivo é poder, não é precioso tomar o poder [referindo-se ao Estado] para construir algo coletivo. Transformação. As pessoas passam a ser chamadas pelo nome, não pela organização ou por ser independente. Vencida a barreira entre o eu e o nós." Na Mesa 2, a professora mediadora relembrou que, na ocupação, foram construídos o sentimento de família, laços e relações muito profundas. Para um ocupa da universidade, assim como apareceu em diversos outros relatos, o que mais causa angústia é "voltar para a universidade e não ter mais aquela riqueza, aquela convivência".
A Mesa 2, de secundaristas, se bem que destacou as dores do movimento, trouxe também, em especial pelo estimulo dos debates, as experiências de luta, tratadas como "experiência libertadora" por uma ocupa, que também disse que "ocupar é uma luta, não uma vagabundagem". Em uma das escolas, em município em que as violências e retaliações foram relativamente menores, houve um relato de uma ocupa em que o processo de organização e luta foi mais central que o das dores:
Víamos as ocupações em outros estados, e aqui no Sul de Minas estava tudo parado. Se reuniram para debater sobre como as pessoas poderiam saber sobre o que estava acontecendo. A ideia da ocup, de inicio, era só para três dias, mas foram 21 dias. De inicio, a maior dificuldade foram os próprios alunos, mais os do 3° ano do Ensino Médio. Depois, com os pais dos alunos, mais os do Ensino Fundamental. Houve muitas ameaças, a mídia ficou contra. Tinha medo de andar na rua. Mas também tivemos apoio dos pais, abriram a escola para pais e alunos em palestras, e ganharam mais apoio com isso. (Secundarista mulher, out. 2017).
Fizeram também a ocupação do prédio da Superintendência de Ensino, que ficava nesse município, para mostrar que lá estavam armazenados "computadores e geladeiras, que eram para ir à escola, mas estavam guardados". Outro ocupa, da mesma escola, relata que a oposição ao movimento por vezes fez uso de táticas não violentas, como docentes que organizaram marcha contra a ocupação vestindo o branco da ''paz" - mas não foram capazes de deter a ação coletiva.
Nos comentários aos relatos das/dos ocupas, durante a Mesa 2, as estudantes da universidade destacaram a preponderância das mulheres no movimento, não apenas em quantidade, mas em iniciativa e decisão, e demonstraram o ensaio de outra forma de educação, durante as ocupações. Muito mais que um interdito ao processo de ensino, praticou-se ''uma escola mais próxima do ideal, o que os educadores não conseguiram". O graduando comentador, ainda que tenha buscado valorizar a capacidade de luta das/dos secundaristas, se angustiou ao ''ver o quanto ainda há de dor em nossos alunos". Durante os debates, uma docente da universidade buscou ser ainda mais propositiva: "É preciso ver o quanto a gente ganhou e caminhou, não só focar no que a gente perdeu".
Sob o estímulo dos debates, as/os secundaristas da Mesa 2 foram redescobrindo e valorizando os ganhos com a luta. Sobre a nova forma de escola ensaiada, assim relatou uma ocupa: "Com a ocupação, muita gente que não gostava de aula participou muito das atividades. Alguma coisa está errada com o modelo tradicional de escola. Lutamos porque acreditamos na escola". Outra ocupa destacou a formação política propiciada: ''Tive acesso à Constituição na escola só com a ocupação, nos aulões. Descobri que tipo de cidadã eu queria ser". Outro ocupa diz que, depois da ocupação, entrou em um coletivo político de juventude. Sobre a transformação pessoal, um ocupa foi contundente: "Cada um que estava ali dentro saiu da ocupação totalmente mudado." No crescente de valorização da experiência na ação coletiva, ocupas ainda disseram: "o ser humano nasceu para lutar" (uma ocupa); "Eu sou uma menina de luta" (outra ocupa).
Algo semelhante apareceu nos relatos sobre a ocupação da universidade. Na segunda Roda de conversa, um ocupa disse que, com a ocupação, ''pela primeira vez se sentiu mesmo na universidade. [...] A ocupação realmente acabou, e é mais por aí que vem o sentimento de derrota, mais do que pela aprovação da PEC ou por apanhar da policia". Outra ocupa revê o espaço da universidade, lembra de música, de luz, da entrada da reitoria cheia de cartazes e de jogos de voleibol durante a madrugada: "houve a ressignificação do espaço, era uma outra universidade. [...] O lugar nos aproximava, e as coisas, voltando a ser como antes, nos desunem".
A Mesa 3 teve como destaque a análise política de um estudante independente, graduando em História, autor da primeira epígrafe deste artigo. Outros excertos de sua fala referendam o que estudante do DCE, também presente na Mesa, logo reconheceu: a participação política não institucional é uma alternativa válida e não necessariamente antagônica à participação institucional:
[...] interpretamos um esgotamento da política representativa formal, momento em que entendemos que nossas demandas não poderiam ser alcançadas sem uma atuação política direta e participativa. Nossa participação na ocupação não foi um evento, foi um processo. [...].
A formação política que organizou-se ali dentro da ocupação naquele período, seja por meio das aulas abertas, das rodas de conversa, assembleias, ou pela exibição de filmes, foi um fato que independia de coletivos, que contou com a participação deles, mas que era construída por todos nós como classe estudantil. A organização em coletivos é uma forma de luta, mas definitivamente, não a única.
[...] Além de ter sido um marco para o movimento estudantil de todo o país, a ocupação também foi um marco para todos aqueles que a construíram individualmente. Para mim, em particular, uma espécie de emancipação, no sentido de que a ocupação possibilitou pensar com uma maior bagagem o meu lugar social dentro da coletividade, saber que as ações espontâneas são necessárias para a luta política, mas que a organização política em coletivos também o é. A própria ocupação é resultado de espontaneísmo e de organização política. [...].
E sim, a ocupação de um espaço público é um espaço de disputas. Disputamos tanto por esse espaço quanto por disputas internas. E tais disputas não implicam em desordem, ao contrário, estimulam o aperfeiçoamento de ideias em conflito, estimulam a autocrítica e o enfrentamento. Estávamos ali para aprender, afinal. Nossos erros e acertos foram parte de um processo de aprendizagem que não cessou.
Durante esse enfrentamento, pensamos que o ato de ocupar não deveria se restringir ao fato de estarmos meramente dormindo naquele local, nossa proposta era conhecer e ressignificar aquele espaço. [...].
Nossa ocupação não promoveu a interrupção de aulas, nós transformamos aqueles prédios em espaços de formação política, professores ofereceram aulas abertas nas quais compareceram mesmo pessoas que não estavam ocupando. [...].
A questão é que esse movimento produz uma cultura política de participação na universidade.
Esse relato demonstra que a ocupação, por meio das/dos independentes, propôs e praticou uma política da participação direta e horizontal, na qual se promovia a formação política por meio da própria ação, em que se buscava a transformação social congregada à transformação de si e se praticava a democracia como disputa pelo espaço e por ideias - mais do que um processo formal em busca de maioria ou consenso. Esboçou, enfim, como outros relatos de ocupas da universidade, outra forma de universidade e de relações educacionais.
Acreditamos que o Seminário Memorial das Ocupações Estudantis, um ano depois do final do movimento, praticou ainda mais uma tática de luta: a política da rememoração. O Seminário recebeu, por isso, reconhecimento das/dos ocupas, como na Mesa com secundaristas: "Estou feliz com o memorial das ocupações, depois de terem se esquecido do movimento durante o ano" (uma ocupa). "É muito triste saber que o movimento foi esquecido, que parece ter sido em vão.É importante relembrar o movimento" (outra ocupa). Uma ocupa da universidade assim relatou durante os debates nesta Semana: ''nosso evento aqui mostra que existem pessoas que não se esqueceram e se preocupam com o que aconteceu, vocês não estão sozinhos". Durante a segunda Roda de conversa, uma ocupa da universidade reconheceu: "após um ano, não falamos muito das ocupações, agora é que estamos reprocessando. [...] O Memorial é como um momento de renascer", contudo, o ''trauma ainda existe, tem gente que não quer conversar ainda sobre o assunto".
No final da segunda Roda, a mediadora buscou também valorizar as experiências de luta e, citando Ecléa Bosi, afirmou que "dá trabalho lembrar" e que "as pessoas cresceram naqueles meses mais do que muitas pessoas em muitos anos". A mediadora, no inicio da Roda, havia lido uma história de Eduardo Galeano, "A morte do papagaio". Uma ocupa universitária, que mobilizara outras/outros ocupas para montar uma república, disse: "Até agora, tinha visto o movimento mais como derrota, mas, com a história contada do Galeano, vi que foi um renascer também, nasceram novos passarinhos".
Na primeira Roda de conversa, graduanda que apoiou ocupação secundarista, contou que a ocupação foi um "enfrentamento pessoal", um "enfrentamento de você consigo mesmo". Já nos adiantava o que seriam os relatos das ocupas secundaristas, em que as histórias de sofrimento, angústia, desamparo e perseguições seriam mais fortes. Essa preponderância de dores deveu-se não à menor força física e autonomia da adolescência, e sim ao contexto mais "tenso e perigoso" (na definição de graduando, em roda de conversa) vivido nas escolas ocupadas: na universidade, os seguranças protegiam as/os estudantes ocupantes, enquanto que, em escolas periféricas, secundas receberam ameaças tanto de traficantes quanto de policiais, mas mesmo em escolas mais centrais, durante a noite, pessoas passavam fazendo barulho para acordar e amedrontar ocupas; enquanto que, na universidade, a maior parte da docência apoiou o movimento e entrou em greve, assim como a reitoria não pediu a reintegração de posse, nas escolas, grande parte da docência se omitiu ou perseguiu as/os ocupas, assim como parte relevante da gestão se colocou contra a ação coletiva; sob a influência de nefasta campanha de veiculo da mídia local de um dos municípios, responsáveis e comunidade local colocaram-se, por vezes violentamente, contra as/os ocupas, agredindo filhas e filhos, chegando a fraturar a perna de mãe que defendia sua filha ocupa.
A mesa 2, de secundaristas, foi a mais marcante nesse sentido. Para uma ocupa, ainda que tenha sido uma "experiência libertadora, acima de tudo, que trouxe novos olhares para o mundo, o que passou foi terrível". Segundo ela, "a omissão da escola e do município continua pela cidade, ruas e salas de aula, com olhares de deboche e desprezo. Machuca. Indiretas, olhares nos corredores da escola". Ela criticou "alguns professores, que não acreditaram na capacidade de seus alunos de fazer algo", mas foi muito enfática ao reconhecer o apoio de professor de sua escola, que estava presente na plateia, demonstrando a importância do diálogo e coaprendizado entre gerações: "Ele apoiou o movimento, confortou os estudantes, foi um verdadeiro professor''.
Outra secundarista da mesma escola foi vitima de muitas ameaças por meio de redes sociais: "se fosse só as pessoas não apoiarem, tudo bem. Mas houve ameaça pesada pelo WhatsApp, insinuando uso de armas, para criar medo". Denunciou o assédio moral da superintendência estadual, que, junto com a direção, manteve ocupas em reunião durante cinco horas: "Levaram café e comida para a supervisão, não para as estudantes, que já tinham ficado em reunião de quatro horas antes. Faziam perguntas que eles, supervisão e professores, deveriam responder, sobre reposição de férias, notas, entre outros".
Outra escola secundarista, agora periférica, foi representada por um ocupa. Ele denunciou os maus tratos da direção, que forçou o retomo das aulas em concomitância à ocupação, jogando as/os ocupas "em uma sala pequena". Marcou-se uma assembleia com responsáveis, em que, diferentemente do combinado, estudantes não conseguiram falar, tendo voz apenas docentes e direção. Indignado, o ocupa discutiu com vice-diretora, mandou ela se calar e se virou, sendo agredido por ela com um tapa nas costas. O ocupa não quis denunciá-la, mesmo tendo toda uma assembleia como testemunha. Ainda relatou momentos de medo, durante a noite, quando pessoas passavam ameaçando e jogando pedras.A escola que teve o maior nivel de violência, durante um "trancaço" que foi reprimido por policiais e pessoas da comunidade, sob a conivência da direção, teve uma ocupa que a representou. Sua fala é reiterativa ao teor da Mesa: "apesar de todo o crescimento que a gente teve, foi difícil". No dia do trancaço, a policia invadiu a escola, jogou spray de pimenta no rosto de estudante, agrediu outro, enquanto a diretora gravava a violência com seu celular, rindo. "Quando eu lembro de tudo aquilo, eu choro". Com o retomo às aulas, seguiram-se retaliações da direção: ocupas foram separadas/separados em turmas diferentes e tiveram vetada sua participação em reuniões para representar a discência.
Durante a segunda Roda de Conversa, após a bela história de Galeano, "A morte do papagaio", relatos saudosos da convivência coletiva durante a ocupação da universidade abundaram, assim como dos sofrimentos por manter um movimento muito longo e a angústia de retomar aos mesmos espaços e perceber que, aparentemente, nada mudara.
Por mais que diversas intervenções, tanto de estudantes do Grupo de Estudos quanto de docentes, buscassem valorizar as experiências de luta, em uma tática ou política da rememoração, conforme relatamos acima, não se esperava que tamanho estoque de dores, angústias e traumas estivesse represado. Para nós próprios, membros do Grupo de Estudos sobre a Juventude, que organizamos o Seminário, acabou sendo penoso. Logo no inicio da segunda Roda de Conversa, tão logo foi narrada "A morte do papagaio", uma das ocupas universitárias, membro do Grupo de Estudos, saiu da sala, angustiada. No inicio da noite, enquanto organizávamos a terceira e última Mesa Redonda, outros indícios se somaram àquele. Membro do Grupo me relatou que não conseguira dormir naquela noite, enquanto outro mandou avisar que não conseguiria participar do último dia, ambos sob o impacto da Mesa 2. Mais dois me pediram remédio para dor de cabeça. Esse autor mesmo, muito cansado, não registrou nada durante a Mesa 3.
No dia seguinte, os autores registraram alguma coisa. Outros membros do Grupo, nas reuniões de avaliação, trouxeram poucos registros a mais. Além do cansaço e do peso das angústias, a noite teve mais alguns aborrecimentos. Primeiro, do músico que faria a abertura artística da Mesa 3: estudante muito elogiado por ter animado a ocupação um ano antes, teve acesso de estrelismo e não cumpriu nada do combinado (relembrar canções da ocupação em voz e violão). Segundo, membros de um coletivo estudantil fizeram falas provocativas contra a atuação de outros coletivos durante a ocupação e ao próprio Seminário - sem sucesso, foram ignorados. Ainda assim, a Mesa 3 teve relatos muito bons, tanto de representantes do DCE, que realmente estiveram mais envolvidos com a ocupação da universidade, quanto de independentes. Especialmente de independentes, como vimos acima.
O Grupo de Estudos sobre a Juventude fez uma reunião para avaliação do Seminário em 14/nov./2017. Era o começo de um acerto de contas com os sentimentos que nós despertamos em nós próprios com o evento, incluindo a responsabilidade por conhecer o sofrimento das/dos ocupas e das violências que secundaristas continuavam sofrendo. Conversamos sobre o público, bom - 170 pessoas, em sua maioria estudantes da UNIFAL-MG - mas menor que o de eventos que promovemos em outros anos. Também, sobre o destino do belo painel com a linha do tempo das ocupações - para os quais tínhamos bons planos, mas ele segue guardado na casa de uma integrante do Grupo.
Em seguida, a Reunião tratou sobre o atendimento aos objetivos do Seminário. O objetivo geral era "Revigorar a memória sobre os movimentos das ocupações [...]. Reviver e revigorar lutas aparentemente fracassadas". Consideramos que foi atendido, apesar de que, segundo um dos integrantes, não conseguimos chegar nas pessoas que não participaram das ocupações e nas que foram contrárias. Teria sido um evento mais para os ocupas, para digerirem o que foi o movimento, até mesmo para terem um momento para chorar. O evento teria cumprido muito bem esse processo de elaboração. Para outra integrante, revigorar não traz necessariamente alívio, pode ser o retomo de um peso. Para a coordenação do Grupo, não era, a principio, objetivo do Seminário trazer "alívio" à dor e angústia, mesmo porque não tínhamos a devida dimensão da necessidade disso.
Ainda sobre esse aspecto, consideramos muito pertinente a avaliação da coordenadora adjunta do Grupo de Estudos, a professora Renata Nunes Vasconcelos. Segundo ela, o objetivo inicial proposto foi atingido, mas apareceram outros objetivos ou demandas, destacando-se a necessidade de publicizar e elaborar os sofrimentos vividos, em especial pelas/pelos secundaristas. O evento explicitou que a política envolve sempre a subjetividade, que não dá para separar política da subjetividade. Ainda, o evento mexeu com um ''vespeiro", pois as ocupações contestaram as relações educacionais e as relações entre adultos e jovens. O sentimento mais presente parece ter sido o da angústia: angústia de lidar com uma sociedade dura e conservadora, de perceber o quanto somos frágeis diante dela. Vimos o sofrimento de estudantes, que ainda são punidos por se rebelarem contra lógica institucional da escola e da família.
Entre os encaminhamentos, decidimos cobrar da Superintendência e da própria Secretaria da Educação do Estado um retomo sobre as denúncias de violações de direitos contra as/os ocupas. Como será narrado, fizemos duas intervenções públicas, interpelando diretamente representantes da Secretaria, com boa repercussão, ainda que, ao final, a decisão das autoridades tenha sido o arquivamento das denúncias.
Nosso Grupo ainda realizou mais duas reuniões em 2017, que tiveram, na pauta, a discussão da relação entre política e subjetividade no movimento das ocupações estudantis. Em uma delas, debatemos um texto que trazia a psicanálise de Lacan como referência para tratar da ocupação de uma escola no Rio de Janeiro no inicio de 2016 (ANDRADE; COUTINHO, 2017). No texto de Andrade e Coutinho (2017) não aparece a categoria da angústia, indicando que esse sentimento não se manifestou com a mesma força em todos os locais, em especial onde houve vitórias, como no Rio de Janeiro. Antes, destacam-se os conceitos de laços sociais e sujeito desejante. O texto afirma que a ocupação revelou uma relação paradoxal entre adolescente e mestre, perturbada pela ocupação, que trouxe à tona a dimensão do desejo.
A coordenação do Grupo manifestou o seu desejo de que essas reuniões servissem para elaborar melhor a angústia que nós próprios ainda sentíamos pelos sentimentos despertos e as violências conhecidas graças ao Seminário. Percebemos que não eram suficientes, que era necessário reconhecer que o trabalho de elaboração daquela memória deveria continuar, mas por outros caminhos. Um deles logo se avistou, as intervenções públicas, face de uma ação política de nosso Grupo. Outro, se construiria ao longo de 2018, a proposta de um novo projeto de pesquisa, para conhecer os efeitos das ocupações secundaristas naqueles que foram seus principais sujeitos, as/os ocupas. O projeto está sendo construído e apresentado para agências nacionais de fomento à pesquisa, ainda que pretenda ter uma face importante ligada à extensão.
Enquanto isso, graças ao convite de Adriana Alves Fernandes Costa e o apoio de várias autoras e autores de vários estados do pais, foi organizada a coletânea "O movimento das ocupações estudantis no Brasil", lançada enquanto escrevíamos esse artigo (COSTA; GROPPO, 2018). Ela deseja também ser outro instrumento da política da rememoração e revalorização das lutas estudantis.
Extensão, pesquisa e engajamento
Entre os desdobramentos do Seminário Memorial das Ocupações, primeiro, fomos conhecer nos dias seguintes uma ''república" de estudantes que se formou a partir da amizade criada durante a ocupação - que inclusive fez uso de colchões que sobraram da ocupação da universidade. Surpreendeu nos o relato, durante a segunda Roda de Conversa, da estudante que mais esteve à frente da formação dessa república: testemunhou que, mesmo entre quem morava na república, pouco se conversou sobre a ocupação durante o ano que se passou.
Mais importante, sob o estímulo de estudantes da universidade que acompanharam mais de perto ameaças e agressões a secundaristas nas escolas, buscamos apoiar e participar de intervenções para a apuração de responsabilidades acerca dessas violações de direitos das/dos adolescentes. Das quatro escolas ocupadas, em ao menos três houve denúncias de violações durante as ocupações e no pós-desocupação.
No caso mais grave, durante um dia de ''trancaço", em que um grupo de estudantes tentou dar início à ocupação da escola, alguns pais, estudantes e outros adultos contrários ao movimento usaram porretes e marreta para abrir à força o portão. Mas os golpes de marreta não foram desferidos apenas contra o portão. Um golpe quebrou a perna da mãe de uma ocupa. A Polícia Militar invadiu a escola, intimidou e agrediu estudantes, sob a conivência da direção. A mãe agredida, estudante da universidade, um ano depois, participou do Seminário Memorial das Ocupações. Já no início de 2018, desiludida, nos entregou cópias da documentação com as denúncias ao governo do Estado e ao Ministério Público, que acabaram arquivadas. Mas outras agressões e violações de direitos foram praticadas durante as ocupações e no pós-desocupação, em sua maioria nunca denunciadas, algumas guardadas para serem narradas apenas um ano depois, como a agressão que um estudante sofreu da vice-diretora de sua escola, durante assembleia descrita anteriormente.
Algumas denúncias foram recolhidas em audiência pública na Câmara dos Vereadores do município, em março de 2017, e em duas ocasiões buscamos averiguar a resposta dos órgãos competentes. Primeiro, em dezembro de 2017, quando da passagem da Secretária Estadual da Educação no Sul de Minas, MC e G, integrantes do Grupo de Estudos sobre a Juventude, e ocupas secundaristas participaram de reunião com a Secretária e cobraram dela respostas sobre as denúncias anteriormente citadas. Relato de MC conta que a reunião foi desmentida e remarcada algumas vezes durante o dia, como se as pessoas que organizaram a reunião quisessem evitar a presença de secundaristas. Não evitaram, mas dissuadiram uma presença massiva de ocupas. Ainda assim, se conseguiu uma virada na pauta do encontro, que teve de discutir sobre as violências nas ocupações e a negligência do Estado. Diante da fala da Secretária, que alegou não ter sido comunicada sobre as denúncias, assim respondeu a estudante do Grupo de Estudos:
Os secundaristas que participaram das ocupações, em sua maioria, não são organizados. Logo, eles não estiveram em nenhum outro espaço de debate, de luta, nenhum espaço no qual pudessem ser ouvidos ou falar sobre isso. Pelo contrário, voltaram para a escola, que fingiu que nada aconteceu, voltaram a conviver diariamente com professores, funcionários e pessoas que os reprimiram. Estamos perdendo jovens de luta, devido à negligência do Estado. Eles não querem mais estar presentes em processos de enfrentamento.
Em janeiro de 2018, nós, do Grupo de Estudos sobre a Juventude, iríamos participar do II Simpósio Aproximações com o Mundo Juvenil, na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte/MG. Mesa, no dia 25, contaria com a presença da Secretária da Educação. Para tanto, preparamos uma Moção de apoio às/aos estudantes secundaristas para ser lida durante os debates, após as palestras. A versão final da moção foi escrita pelo autor e coautora e foi lida para a plateia. Cito trechos dela:
Nós, estudantes da Universidade Federal de Alfenas, divulgamos essa Moção de Apoio aos secundaristas de Alfenas, que durante o movimento de ocupação de suas escolas, no final de 2016, tiveram seus direitos humanos violados por meio de ações coercitivas em forma de assédio moral, agressão física e psicológica e ataques da mídia local, com noticias falsas que minaram e deturparam a imagem das ocupações frente à cidade.
[...] Desejamos reforçar o que já comunicamos em reunião em dezembro de 2017 com a secretária de educação, para que haja um retomo sobre os processos que correm em relação às responsabilidades dos gestores do Estado para com essa violação sofrida por secundaristas que exerciam seu legitimo direito à manifestação política.
Manifestamos que esta negligência constitui-se também uma irresponsabilidade pedagógica, considerando que os estudantes vitimados não tiveram quaisquer respostas à violação de seus direitos e continuaram sofrendo no cotidiano com as retaliações e ameaças daqueles que deveriam ter o papel de educadores.
Manifestamos enfim nosso estranhamento diante da adesão de um governo Popular à reforma do ensino médio promulgada de modo ilegítimo, como medida provisória, por um governo federal que é fruto de golpe institl.lcional. Reforma contra a qual os secundas se mobilizaram por meio das ocupações.
Adesão manifesta justamente na escola onde mais ocorreram violências contra os secundas, onde está sendo implementado um experimento de escola dita integral preconizada pela reforma do governo federal e fegítimo.
Essa adesão significa o completo descarte de riquíssimas experiências educacionais e políticas cultivadas no cotidiano das ocupações, cujo exercício de auto-organização e a riqueza das atividades formativas realizaram, aqui e agora, a utopia de uma outra escola realmente democrática e significativa às e aos jovens.
Mas a Secretária não esteve na Mesa. Enviou um representante, o responsável pelo Ensino Médio no Estado, que, em sua resposta, afirmou estar a par das denúncias e que elas estavam sendo apuradas. Já sabemos que elas acabaram sendo arquivadas e não houve punição alguma.
Temos reencontrando, com alegria, algumas/alguns ocupas na universidade, agora como estudantes de graduação. Mas sabemos que há número relevante de ocupas que abandonaram o ensino médio, e a negligência do Estado em relação às violações que sofreram é apontada como uma das causas dessa evasão - violações que continuam a marcar as memórias inclusive de quem conseguiu completar esse nível de ensino. Há as/os ocupas que ainda estão no Ensino Médio. Entre as/os que se formaram, a maioria massiva não ingressou e provavelmente não vai ingressar na Educação Superior. A ocupação foi talvez única experiência de enfrentamento e atividade política dessas/desses, e o retomo ao cotidiano de exploração e desumanização reservada à juventude das classes trabalhadoras dificilmente trará outra experiência de subjetivação política tão potente quanto foram as ocupações.
Considerações Finais
Na abertura do Seminário Memorial das Ocupações Estudantes, MC, integrante do Grupo de Estudos sobre a Juventude leu um tocante poema que escreveu para registrar sua experiência como ocupa em uma escola de Ensino Médio. Trechos do poema, reproduzidos a seguir, trazem um pouco das memórias de lutas e dores que foram tematizados ao longo deste artigo.
Em seu poema, MC vai narrando as experiências iniciais da ocupação, em que transborda a alegria de estar juntos, de criar uma coletividade inesperada, ter a voz valorizada e ouvida e participar de uma luta que tinha muito sentido. O trabalho de subjetivação política faz com que alo ocupa se reconheça como alguém que pode e deve intervir nas questões públicas, que descubra que o seu ponto de vista sobre as coisas, seja o cotidiano escolar, ou a grande política institucional das Reformas e das PECs, é único e valioso.

Logo, entretanto, o poema registra momentos de conflito, em que as/os ocupas tentam se reinventar como sujeitos e manter o próprio movimento, apesar das adversidades. Registra também as muitas recusas ao reconhecimento do valor da luta e das ocupações. Em certos momentos, tanto no poema quanto nos relatos de secundaristas na Mesa 2, parece que as ocupações foram virando trincheiras, cercadas de adversários por todos os lados. Nessa segunda categoria de experiências, que talvez tenhamos demorado a reconhecer, as ocupações não eram apenas espaço criativo para que estudantes reinventassem as formas de lutar e ensinar-e-aprender, mas notadamente lugar em que número reduzido de ocupas mais insistentes se viu acossado por muitas pessoas que se colocaram contra o movimento - docentes, gestão, responsáveis, representantes da sociedade civil e mídia.
Neste artigo, tanto quanto no Seminário, buscamos registrar e revalorizar as memórias de lutas de um movimento que não deveria ser relegado às sombras da história, apenas por aparentemente ter sido derrotado em suas pautas explicitas. Na verdade, essa derrota só caracteriza o que chamamos de segunda onda do movimento das ocupações estudantis, no 2° semestre de 2016, em que ela se nacionaliza a partir do rechaço de políticas do governo federal - a Reforma do Ensino Médio e a PEC 241/55. Em sua primeira onda, desde o final de 2015, houve muitas vitórias contra políticas estaduais regressivas para a educação, em especial no primeiro movimento, em São Paulo, que impediu a "Reorganização" das escolas estaduais - que fecharia inúmeras escolas paulistas de Ensino Médio.
Nesse sentido, o silenciamento não se deve apenas à derrota de uma importante porção desse movimento, mas principalmente à negação da assunção desses novos sujeitos políticos, especialmente estudantes secundaristas de escolas públicas. Contra a política do esquecimento, o Seminário buscou acionar, inspirado em Walter Benjamin, a política da rememoração. Para tanto, foi necessário superar um sentimento ingênuo e mal informado, de que pouco poderia se esperar de adolescentes de escolas públicas de Ensino Médio - dada a precariedade dessas instituições e à suposta apatia política e alienação da adolescência das camadas populares. Sentimento que, na verdade, boa parte de nós, profissionais da educação e da pesquisa, tínhamos quando começou o movimento das ocupações, dai o espanto geral - algo semelhante foi vivido com o início das Jornadas de 2013.
Rancière (2014) tenta nos ensinar que a política, como criação, como ruptura de uma dada ordem injusta supostamente consolidada, acontece quando pessoas, até então consideradas como externas à comunidade dos que podem agir e falar, emergem como sujeitos políticos, atuam e falam justo nos lugares e nos momentos em que se esperava de tais apenas passividade e docilidade. Continuaremos a tratar tais sujeitos políticos com desonesta arrogância, tentando explicar que elas/eles não sabem agir e falar - em uma paradoxal tentativa de negação que apenas afirma o contrário do que se quer? Ou iremos dialogar abertamente com elas/eles, aprender-e-ensinar, na convivência de uma luta, no embate de ideias?
Quando a luta termina, as barricadas são desmontadas, as instituições são desocupadas e os sujeitos se calam - ou são calados -, mas apenas aparentemente a ordem de outrora volta a se instaurar. Uma ruptura muito profunda costuma se instalar, e as coisas devem se rearranjar de outros modos, ainda que a injustiça e a desigualdade teimem em se reconstruir. E quando a ruptura se instala no próprio âmago das pessoas? O que há de ser a subjetividade de quem foi ocupa, diante de vitórias e derrotas, reconhecimentos e negações, honrarias e perseguições?
Ás/aos ocupas do Sul de Minas, os sujeitos com quem conversamos mais até então, parece que o lado negativo do retomo do que Rancière (1996) chama de "ordem policial" tem sido predominante, bem como as dores e angústias na subjetividade das/dos ocupas. Ás/aos ocupas da universidade, isso apareceu mais na forma de uma rotina acadêmica heteronormativa, burocrática e extenuante que retoma, naqueles lugares em que foi inventada uma "famHia", se improvisou um lar, foram feitas festas e jogos, se exercitaram outras formas de ensino e se organizou a luta. Ás/aos ocupas secundaristas a violência se deu menos pela potência passiva da rotina e mais pela violação ativa de supostos sujeitos educadores e gestores. Foi mais cruel, levou ocupas a evadir, negar sua experiência riquíssima de luta ou contar os dias para terminar o Ensino Médio.
Em especial para ocupas secundaristas, esse artigo serve como uma denúncia. Reconhecemos que isso não basta. Por isso, estamos organizando uma nova pesquisa, como já foi anunciado, que ouvirá ex estudantes que foram ocupas de escolas e que quer, parafraseando Paulo Freire, não apenas trazer as
Referencias
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Notas