Resumo: Este trabalho discute de modo introdutório o potencial em termos de Paradiplomacia na cooperação transfronteiriça na região trinacional Ciudad del Este-Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú sob a ótica da segurança, do turismo, da diversidade cultural e das consequências da construção da Itaipu. Relacionar essas identidades múltiplas com as identificações dos cidadãos e cidadãs da fronteira, especialmente nas suas interpretações do que constituem os problemas e os desafios para a integração regional. Analisa os paradoxos e os mitos do desenvolvimento no imaginário coletivo e as consequências da falta de políticas públicas locais de cooperação entre as três cidades. Em particular, argumenta-se que os acordos paradiplomáticos podem promover cooperação transfronteiriça respeitando as dinâmicas locais.
Palavras-chave:paradiplomaciaparadiplomacia,cooperação transfronteiriçacooperação transfronteiriça,municípiosmunicípios.
Resumen: Este trabajo discute de modo introductorio el potencial, en términos de la paradiplomacia, de la cooperación transfronteriza en la región trinacional Ciudad del Este-Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú bajo la óptica de la seguridad, el turismo, la diversidad cultural y las consecuencias de la construcción de Itaipú. Relaciona estas múltiples identidades con las identificaciones de los ciudadanos y ciudadanas de la frontera, especialmente en sus interpretaciones de lo que constituyen los problemas y los retos para la integración regional. Analiza las paradojas y los mitos del desarrollo en el imaginario colectivo y las consecuencias de la falta de políticas públicas locales de cooperación entre las tres ciudades. En particular, se argumenta que los acuerdos paradiplomaticos pueden promover la cooperación transfronteriza respetando las dinámicas locales.
Palabras clave: paradiplomacia, cooperación transfronteriza, municipalidades.
Abstract: This paper discusses in an introductory way the potential, in terms of paradiplomacy, of cross-border cooperation in the trinational region Ciudad del Este-Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú from the perspective of security, tourism, cultural diversity and the consequences of the construction of Itaipu. It relates these multiple identities with the identifications of the citizens of the border, especially in their interpretations of what constitutes the problems and challenges for regional integration. Analyze the paradoxes and myths of development in the popular imagination and the consequences of the lack of local public policies for cooperation between the three cities. In particular, it is argued that para-diplomatic agreements can promote cross-border cooperation while respecting local dynamics.
Keywords: Paradiplomacy, Cross-Border Cooperation, Municipalities.
Résumé: Cet article examine de manière introductive, en matière de paradiplomatie, le potentiel dans la coopération transfrontalière à la région trinationale, du point de vue de la sécurité, le tourisme, la diversité culturelle et les conséquences de la construction d’Itaipu. De même, il fait le lien entre ces identités multiples et les identifications des citoyens frontaliers, notamment dans leur interprétation de ce qui constitue les problèmes et les défis de l’intégration régionale. Enfin, il expose l’analyse des paradoxes et des mythes du développement dans l’imaginaire collectif, et les conséquences de l’absence des politiques publiques locales de coopération entre les trois villes. En particulier, il établit que les accords paradiplomatiques peuvent promouvoir la coopération transfrontalière, tout en respectant les dynamiques locales.
Mots clés: paradiplomatie, coopération transfrontalière, municipalités.
Investigación
COOPERAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA NA REGIÃO TRINACIONAL CIUDAD DEL ESTE-FOZ DO IGUAÇU-PUERTO IGUAZU: UM CALEIDOSCÓPIO PARADIPLOMÁTICO
Cooperación transfronteriza en la región trinacional Ciudad del Este-Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú: Un caleidoscopio paradiplomático
Cross-border cooperation in the trinational region of Ciudad del Este-Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú: a paradiplomatic kaleidoscope
Coopération transfrontalière dans la région trinationale ciudad del este-foz do iguaçu-puerto iguazu : un caléidoscope paradiplomatique

Recepção: 15 Maio 2019
Aprovação: 15 Julho 2019
As comunidades localizadas em regiões fronteiriças vivenciam situações de tal modo peculiares, por conta da paradoxal condição de fluidez transfronteiriça da vida e da fragmentação e da descontinuidade das políticas públicas estatais entre um país e outro, que demanda uma compreensão a partir do local, até para que se promovam soluções concretas para que as prestações estatais alcancem a condição transfronteiriça. Até por que o desenho das políticas públicas a partir das capitais não é sensível às realidades das fronteiras, para além das pautas da segurança estatal-militar. É o caso da fronteira trinacional que abrange Ciudad del Este- Foz do Iguaçu-Puerto Iguazú, onde Paraguai, Brasil e Argentina se aproximam, na foz do Rio Iguaçu em seu encontro com o Rio Paraná, combinando a exuberância natural das cataratas e a magnífica obra de engenharia e maior geradora de energia hidroelétrica do planeta da Itaipu Binacional, numa megalópole de quase um milhão de pessoas. O enfoque do presente artigo é sobre esta fronteira trinacional e alguns de seus desafios.
O tratamento político e jurídico das fronteiras é um assunto que deve ser privilegiado também para a realização e o reforço dos processos de integração regional em curso – e que recentemente passam por ameaças e tensões (ano-base 2019). Partindo do princípio de que a regionalização ressignifica as fronteiras entre Estados-membros do processo integracionista, a reversão da lógica das normativas que mantinham controle para separação passam a buscar construir controle conjunto das fronteiras, mas agora para integração, para fazer fluir (pessoas, bens e capital). Nessa ótica, o que acontece nas fronteiras passa a gerar interesse de maneira diferenciada, pois as mesmas deixam de ser a margem para serem espaços privilegiados sob nova perspectiva internacional, e demandam novo tratamento jurídico-político (Vieira, 2019), bem como políticas públicas inovadoras que se adequem à realidade transfronteiriça da comunidade e do ambiente que o cerca.
Quanto à abordagem das Relações Internacionais, torna-se cada vez mais evidente a relevância do papel da Paradiplomacia (Rodrigues y Mattioli, 2017), a diplomacia acionada pelos entes subnacionais, como o caso dos municípios, para que os desafios socioambientais possam encontrar caminhos e soluções viáveis. Nesse sentido, a hipótese que pauta o presente artigo é de que o desenvolvimento e a institucionalização da Paradiplomacia na tríplice fronteira é a via institucional mais adequada a ser privilegiada do ponto de vista das políticas públicas locais para a promoção de cooperação transfronteiriça na região, a fim de se permitir um redesenho das políticas públicas sob viés transfronteiriço. A fronteira, que demarca o limite do Estado nacional, numa região transfronteiriça como éo caso da fronteira trinacional, não pode representaruma ruptura ou a perda do exercício de direitos, o fimdo Estado de Direito pelas lacunas legais-jurisdicionaispossíveis, nem mesmo o abandono da proteçãoambiental.
A fim de apresentar este potencial diverso da Paradiplomacia para Cooperação Transfronteiriça, o objetivo deste texto é realizar um cotejo (inicial) dessas múltiplas identidades, realidades, narrativas e desafios da fronteira, com a finalidade de verificar como esse imaginário coletivo se relaciona com os desafios e os problemas locais para a integração regional. Por fim, apresentamos algumas categorias que podem articular os atores subnacionais nesse processo, incluindo de maneira participativa todas as identidades e identificações dos cidadãos e cidadãs transfronteiriços.
Há uma multitude de narrativas para relatar a Fronteira Trinacional, objeto do presente recorte e a opção a seguir toma em conta o dimensionamento geográfico apenas suficiente para atingimos as considerações em Relações Internacionais sob o enfoque da Paradiplomacia, ou melhor, com enfoque da Paradiplomacia para cooperação transfronteiriça (Oddone, 2015).
Observada a partir da margem brasileira da fronteira trinacional, Foz do Iguaçu é a fronteira mais viva do Brasil, e excetuando a fronteira do México com Estados Unidos. Também é a região de fronteira de maior população da América Latina. Ainda que Foz seja um município de porte médio, com 264 mil habitantes, situada no interior do estado do Paraná, é o segundo destino turístico do Brasil, e tem do outro lado do rio Paraná uma população de mais de 600 mil pessoas – que engloba as municipalidades de Ciudad del Este, Hernandarias e Presidente Franco, do Departamento do Alto Paraná no Paraguai – num cotidiano que se faz bastante integrado. Enquanto tríplice fronteira nota-se que do outro lado do rio Iguaçu mais 90 mil pessoas residem em Puerto Iguazu, Província de Missiones, Argentina.
No olhar da mídia convencional, Foz do Iguaçu, por força da localização fronteiriça, aparece a partir do estigma da violência, como polo de criminalidade e espaço de uma subcultura delinquente (Abreu, 2017), onde convergem ou se concentram atos de corrupção, tráfico de drogas, tráfico de armas e de munições, tráfico de pessoas, contrabando de cigarro, medicamentos e eletroeletrônicos (Apreensão de Armas..., 2018). Para se ter uma dimensão quantitativa, 8,5 toneladas de entorpecentes foram apreendidas pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) apenas em 2016, em 2017 a Receita Federal apreendeu 45 toneladas de entorpecentes, no mesmo ano, 122 armas e mais de 13 mil munições pela PRF e a Receita Federal apreendeu 221 milhões de maços de cigarros. Uma única apreensão de 2018 encontrou 1,8 toneladas de cocaína (Receita federal apreende..., 2018). Esses números dão a dimensão do que isso significa para o abastecimento das grandes redes de criminalidade brasileira e que já formaram redes transnacionais.
Falar de Foz do Iguaçu também é tratar da Itaipu Binacional, fonte de 17% da energia elétrica brasileira e 76% do Paraguai, cuja construção de 1974-1984, criou o maior canteiro de obras do Brasil no final da década de 1980, atraindo mais trabalhadores que a população do município à época. Trata-se de um processo profundamente complexo do ponto de vista político, a ponto de se tratar com densidade de uma hidropolítica (Folch, 2019). O processo de construção da usina marcou todos os aspectos do desenvolvimento da região. Estima-se que 40 mil trabalhadores se deslocaram para a construção, e foi necessário construir bairros novos para abrigar os trabalhadores e suas famílias, culminando também no desemprego posterior dos barrageiros que acabaram, em muitos casos, ficando na cidade, e alterando não só a condição urbana quanto à situação socioambiental. O ‘efeito Itaipu’, segundo Paro:
Causou um impacto sem precedentes em Foz do Iguaçu e significou uma quebra de paradigmas em relação aos ciclos econômicos anteriores da cidade, os [ciclos extrativistas de contrabando] da ervamate e da madeira. Um total de 1.350 quilômetros quadrados ficou submerso, dos quais 780 km² no Brasil e 570 km² no Paraguai (Paro, 2016, p. 77).
Os territórios inundados para o reservatório da usina foram conquistados por meio de muitas desapropriações, incluindo bairros, cidades inteiras e comunidades indígenas avás-guaranis. Estima-se que oito municípios teriam deixado de colher 200 mil toneladas de produtos agrícolas. Efeito que a partir de 2003 tem novas dimensões com a assunção, por parte da Itaipu Binacional, da responsabilidade socioambiental que se reverte em investimentos importantes nas áreas ambientais, sociais, de desenvolvimento econômico e de infraestrutura. A responsabilidade socioambiental da Itaipu Binacional tem-se revertido em fontes importantes de recursos para o desenvolvimento estratégico e a reparação de direitos na região.
Na cartografia, Foz é situada no quadrante interno de um ‘L’, que na parte vertical tem o rio Paraná (fronteira com Paraguai), cujo extremo norte situa-se a Itaipu Binacional, e na parte horizontal o rio Iguaçu (fronteira com Argentina), onde na ponta leste estão as cataratas. É uma ponta do extremo oeste do Paraná, região que tem como motor econômico o agronegócio, por isso Foz do Iguaçu tornou-se um polo logístico importante, no corredor entre o Atlântico e Pacífico, conectando porto de Paranaguá ao Chile, por onde grande parte da carga que vem (do) e vai ao Paraguai do Brasil.
Mais recentemente Foz passou a figurar como umpolo universitário, que concentra duas instituiçõespúblicas de ensino superior: Universidade Federalda Integração Latino Americana (UNILA), umpolo da Universidade Estadual do Oeste de Paraná(UNIOESTE) e uma comunitária: Uniamérica –Centro Universitário, e outras privadas (como UDC,e faculdades como Unifoz, CESUFOZ, polos deEAD). Cabe destacar o diferencial da UNILA que,criada em 2010, margeia 6000 estudantes em 29cursos de graduação, 12 mestrados e um doutorado,mais 4 especializações, com corpo de servidores queultrapassa 900 servidores, incluindo mais de 400docentes, com um projeto diferenciado para integraçãosolidária (atualmente com 29% de estudantes de33 nacionalidades diferentes, a maioria de latinoamericanose não-brasileiros – integração que se faz nocotidiano educacional). Atualmente um novo fenômenoafeta a cidade que são os estudantes brasileiros quetem vindo para estudar medicina no Paraguai, que jásomam na cidade vizinha mais de vinte mil estudantes– algumas fontes chegam a falar em 28 mil estudantesde medicina em Ciudad del Este (GDIA, 2019)-, boaparte vivendo em Foz e indo e vindo diariamente eabrindo novo ciclo econômico na cidade paraguaia.
Sobre a condição migratória, apenas em Foz do Iguaçu, segundo dados da Coordenação-Geral da Polícia de Imigração, estão inscritos na divisão de cadastro do registro de estrangeiros mais de 40 mil pessoas, ou seja, aproximadamente 16% da população é composta por estrangeiros de 90 nacionalidades diferentes. Desses, 14 mil são paraguaios, nove mil libaneses e quatro mil chineses e outros quatro mil argentinos. Trata-se de uma cidade intercultural, conforme destacado no livro Foz do Iguaçu Intercultural de Nara Oliveira (2012), próprio das regiões de fronteira, que é potencializado pelo grande fluxo de pessoas e mercadorias, como Foz do Iguaçu.
O conjunto de discursos e representações, que denominam o espaço fronteiriço das águas do Iguaçu, também registra problemas e desafios já que tríplice fronteira é “um espaço de fluxos transnacionais, mas nem todos circulam e aqueles que circulam não fazem isso da mesma maneira” (Béliveau, 2011: 63). É preciso reconhecer que a condição transnacional da região possui limites que obedecem às hierarquias, preconceitos e controle dos dispositivos de segurança. Todos esses elementos compõem o imaginário coletivo sobre os obstáculos à integração.
Nesse sentido, as fronteiras acabam sofrendo uma relativização na relação centro-periferia também por serem as margens, ou melhor, as periferias do ponto de vista da centralidade decisória das capitais políticas e dos centros econômicos. Isso implica não apenas na distância física, mas também numa falta de sensibilidade dos centros decisórios quanto à realidade que o cotidiano das fronteiras demanda, bem como na (não) realização ou implementação de políticas públicas de construção plena do Estado de Direito, ante o déficit de políticas de segurança públicas, e dos direitos sociais, como se pode perceber nas condições sociais: educacionais e econômicas, por exemplo, dos municípios de fronteira do Brasil.
Os novíssimos desafios para construção de políticas públicas de fronteira são profundamente impactados pelas transformações em curso no Direito e nas Relações Internacionais, que ressignificam a função exercida pelo seu princípio basilar, a soberania, solapada, sobretudo com as inovações da regionalização. Afinal, é justamente no âmbito dos processos integracionistas que ocorrem as concessões mais significativas de soberania.
Ao mesmo tempo em que os processos de integração regional são replicados em diversos continentes, o modelo institucional que deverá perdurar ainda parece ser uma incógnita, a despeito das insistentes cópias que se fizeram do desenho europeu, sem por vezes construírem-se mediações locais mais adequadas. Por isso, é preciso frisar que, ainda que a União Europeia se consolide como uma referência, os processos em curso comportam diferentes modelos, missões e visões, as quais precisam adaptar-se às singularidades locais das mercoregiões.
Disso, pode-se depreender que, conforme omarco de integração regional interestatal implicado,e também conforme os desafios próprios de cadaregião de fronteira, poder-se-ia pensar em políticaspúblicas transfronteiriças específicas, mediadas pelosatores locais, governamentais e não-governamentais– como aponta Benvenutto (2016) ao abordar aintegração regional a partir da fronteira da Argentina,Brasil e Paraguai. Ou seja, os gargalos do processointegracionista transfronteiriço que desafiamLivramento-Rivera (entre Brasil-Uruguai) são dísparesao que vivencia Posadas-Encarnación (Argentina-Paraguai) ou na fronteira trinacional de Ciudad delEste-Foz do Iguaçu-Puerto Iguaçu (Paraguai-Brasil-Argentina).
“Paradiplomacy is an increasingly importantdimension of contemporary International Relations(IR). In fact, the international relations of noncentralgovernments challenge the traditional Westphalian IR paradigm in which national statesare the only relevant actors”
(Rodrigues y Mattioli,2017: 429).
O potencial e a diversidade de agendas da Paradiplomacia é tão ampla quanto diversa. Assim como emerge enquanto manifestação da autocompreensão institucional de sua condição pós-nacional, por conta das implicações da mundialização sobre as diversas entidades nacionais e subnacionais (Vieira, 2015), também permite uma outra dimensão, que é a de resistência em caso de dissonância com a política externa estatal, como no caso do desalinhamento dos EUA com agenda ambiental do Protocolo de Quioto, por vezes assumida pelos estados em contrariedade à união, bem como o que se sugere atualmente Rodrigues acerca dos desafios brasileiros em relação à política externa em curso (Rodrigues, 2019).
A diversidade de pautas possíveis na Paradiplomacia na tríplice fronteira pode assumir a metáfora do caleidoscópio. Em 1817, o físico escocês Dawid Brewster criou um tubo cilíndrico de espelhos que contém um fundo com três vidros coloridos. Quando levado à luz, ele projeta múltiplos reflexos gerando desenhos assimétricos variados. O caleidoscópio, cujo significado em grego é vejo belas imagens, converteu- se em brinquedo para adultos e crianças há várias gerações. Falamos do caleidoscópio porque nos ajuda a pensar o processo de construção social do território denominado tríplice fronteira, configurado por identidades, dinâmicas locais e transnacionais das mais diversas. As belas paisagens naturais formadas pelas cataratas e o Parque Nacional do Iguaçu convivem com a falta de planejamento urbano e a má gestão dos resíduos sólidos, por exemplo. Por isso compreender os significados da tríplice fronteira exige uma atitude também transdisciplinar dos pesquisadores do campo das Relações Internacionais.
Cada fronteira do Mercosul possui uma dinâmica própria, assim como os seus cidadãos percebem a integração e seus problemas por meio dos imaginários culturais. Desse modo a abordagem preferível para a integração fronteiriça real deve partir de um diálogo entre os campos das Relações Internacionais com a História e Antropologia, a fim de compreender como as identidades e as identificações dos cidadãos fronteiriços interferem nas dinâmicas locais das mercoregiões.
Krishna (2012) comenta que as Relações Internacionais têm sido resistente à esse tipo de desconstrução, porque o campo é muito dependente dos conceitos da política externa americana e do tema da guerra. Para ele, o trauma das grandes guerras produziu uma obsessão pelo tema de Segurança Internacional, que hoje constitui campo privilegiado nos estudos dos internacionalistas. Essa abordagem prevalece na maioria dos estudos sobre a tríplice fronteira desde as Relações Internacionais.
Para além da narrativa que associa a tríplice fronteira à constante vigilância e controle, Béliveau identificou o que políticos e funcionários municipais de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este pensam sobre a região:
A “riqueza originária”, poucas vezes discutida, sempre fantasmagórica, aparece associada com frequência a um ato de espoliação que altera o “destino de glória” que esse patrimônio alguma vez antecipou. Assim como a pobreza é uma falta cotidiana, a riqueza é uma ausência mítica que articula desejos e projetos. Aquilo que parece como um particular da zona da “Tríplice Fronteira” é que essa riqueza é pensada em relação a um dos elementos que compõem a generalidade dos “dons da natureza”: a água. (Béliveau, 2011: 66).
A relação entre dons da natureza/riqueza/gestão das águas pode ser considerada uma das representações coletivas que mais caracteriza a região. Essa identificação é acionada repetidamente pelas mídias e governos subnacionais; e pode ser atribuída tanto a presença da Itaipu e dos projetos desenvolvidos dentro do Programa Água Boa, quanto das obras de infraestrutura financiada pela empresa binacional nas cidades de Foz do Iguaçu e Ciudad del Este. No entanto, a gestão das águas superficiais e do Aquífero Guarani não são temas de políticas públicas locais, tão pouco o acordo avançou nas esferas decisórias do Mercosul. Por isso, o discurso da riqueza da região associada ao “petróleo branco” (Béliveau, 2011: 67) ocupa um lugar de mito do desenvolvimento regional, porque nenhuma das entidades subnacionais está disposta, por exemplo, a criar políticas públicas e fortalecer os dispositivos de fiscalização da preservação da Mata Atlântica, o bioma que preserva as águas superficiais e o potencial de recarga do Aquífero.
Falando ainda da percepção da integração por meio das ausências e do paradoxo riqueza mítica/ pobreza cotidiana, cabe destacar a falta de uma política integrada da gestão dos resíduos sólidos na região, pois os milhões de turistas que circulam na tríplice fronteira deixam para trás um número considerável de resíduos. O circuito turístico da região destina Foz do Iguaçu como a cidade dormitório, Ciudad del Leste com o turismo de compras e Puerto Iguazu com o lazer noturno. O resultado dessa circulação de pessoas é também um movimento dos resíduos Brasil-Paraguai-Brasil, logo convergem nesse trânsito pessoas, bens e lixo.
E nesse roteiro turístico encontram-se os catadores de materiais recicláveis, pois o trabalho dessa categoria acompanha os fluxos do roteiro de compras. Se por questões de câmbio financeiro aumentam as vendas no Paraguai, o mercado de consumo fica melhor na outra margem, logo os trabalhadores de materiais recicláveis de Foz do Iguaçu se dirigem para outra margem e vice-versa, independente da nacionalidade. Assim os trabalhadores de materiais recicláveis migram em suas práticas cotidianas, de modo que ultrapassar a ponte é tão corriqueiro, que os limites ficam praticamente invisibilizados. Logo, o catador além de agente ambiental, também é trabalhador migrante internacional.
Além disso, as divergências legislatórias impedem o avanço da inserção desses atores na governança do tema dos resíduos sólidos de maneira coordenada entre os três países. Logo, o problema do desemprego na região reconhecido pelas autoridades políticas e funcionários de Ciudad del Este e Foz do Iguaçu (Bélieveau, 2011) tem impacto no aumento dos trabalhadores para o mercado informal de catadores de materiais recicláveis.
Quase toda a população mais pobre e desempregada da região encontra-se no trabalho informal dos resíduos em condição de vulnerabilidade social relacionada ao ingresso na profissão. Os catadores autônomos ganham menos que os cooperados e às vezes ficam reféns dos atravessadores, em condições muitas vezes análogas ao trabalho escravo. Outra questão importante a ser destacada é a liderança feminina dentro da cooperativa e no trabalho com os resíduos (Sá y Oliveira, 2019).
As desigualdades sociais que marcam a tríplice fronteira na relação entre turismo/consumo/resíduos e catadores são um cenário revelador de como as assimetrias dentro do Mercosul constituem não só obstáculos para a integração regional, como também não promovem bem estar social. E funcionários e políticos da região sabem disso:
As assimetrias tornam-se explícitas nos discursos e nas ações dos funcionários e políticos, mostrando- nos uma paisagem que toma a presença do outro nacional comum dado inexorável no âmbito de uma construção desigual. Assimetria de poder de recursos de modos de administrar a linguagem no diálogo: a integração proposta pelo MERCOSUL terá que levar em conta as texturas do território lidar com essas desigualdades (Béliveau, 2011: 98).
As assimetrias do Mercosul na fronteira trinacional é um caleidoscópio de imagens que precisam ser mapeadas e articuladas para a promoção de cooperação. Insta-se por reconhecer esse novo sentido para fronteiras no contexto da integração regional. A realização das políticas públicas estatais, nacionais e pós-nacionais, de integração regional entre Estados nacionais, passa por ressignificar o papel que tem exercido e o sentido que às fronteiras intrarregionais têm atribuídos a esse processo por meio das suas dinâmicas locais.
Originariamente, as fronteiras nacionais são símbolos de ameaças à segurança nacional e marcos de separação, delimitação. Entretanto, para a consolidação da integração regional, as fronteiras devem ser identificadas como espaços de cooperação e de aproximação entre os povos – evidentemente, sem perder de vista as políticas públicas de segurança e inteligência que contemplam desafios específicos e não pouco densos e complexos.
Um jogo de escalas que pode ser solucionado através da construção de redes de cooperação transfronteiriça com a viabilização da paradiplomacia. (Gomes, 2017; Oddone, Rodríguez Vázquez y Oro Quiroga Barrera, 2018). A paradiplomacia é neologismo que significa assistente da diplomacia, esse conceito e prática das relações internacionais permite que atores subnacionais- as cidades, estados, províncias e regiões- atuem no sistema internacional.
A importância das cidades é decorrente, entre outros fatores, da ampliação da população urbana, que há poucos anos passou dos 50% do total da população mundial, e da compreensão que, ao fim e ao cabo, é onde vivem as pessoas – assim, sua mobilidade e bem- estar estão diretamente ligados às decisões tomadas por entes públicos estatais muitas vezes distantes demais das realidades cotidianas das cidades periféricas, como é o caso daquelas localizadas em faixa de fronteira.
Entes público-estatais subnacionais, como os municípios e os Estados membros da federação são legitimamente promovidos cada vez mais enquanto atores da geopolítica – razão pela qual progressivamente os municípios e os Estados têm constituído suas próprias secretarias ou órgãos administrativos análogos de relações internacionais, inicialmente mais reativas aos eventos e demandas que chegam, mas necessariamente deverão se aprimorar de modo mais propositivo à geopolítica que lhe impacta. Não é ao acaso que o próprio Mercosul promoveu o Mercocidades/ Mercociudades, ou que se fez também uma organização para cidades de fronteiras da América Latina como a Organização Latino-Americana de Cidades Fronteiriças (OLACIF). De outro lado, percebe-se a tendência atual de as administrações municipais instituírem suas assessorias ou secretarias de Relações Internacionais, para que estejam capacitadas a participarem de maneira mais técnica desses novos espaços decisórios, pós- nacionais. Isso tudo é parte dos novos horizontes da paradiplomacia.
Nesse contexto chama atenção novos tratados bilaterais voltados à integração fronteiriça que atribuem papéis importantíssimos às políticas públicas locais, como o Acordo Argentina-Brasil sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas, assinado em Puerto Iguazú, na Argentina, em 30 de novembro de 2005, aprovado pelo Congresso Nacional em 2 de junho de 2011 pelo Decreto Legislativo 145 e entrou em vigor em 7 de julho de 2011, que serviu de referência para o Acordo Brasil- Paraguai sobre Localidades Fronteiriças Vinculadas firmado em 2017. Tais acordos fomentam a cooperação transfronteiriça em matéria de saúde, educação, trânsito vicinal, com foco na integração, demandando, para sua efetiva implementação, o engajamento das políticas públicas locais.
A fundamentação das negociações do Acordo levou em consideração a ideia de localidades fronteiriças vinculadas como a formação de um verdadeiro instituto, um espaço territorial próprio e sui generis. De maneira análoga ao que tem se chamado de cidades gêmeas, a caracterização basicamente toma como referente a existência de uma mesma comunidade, que partilha um território binacional transfronteiriço, ou melhor, marcado por estar segmentado por uma linha divisória entre dois Estados nacionais, porém com vínculos e níveis de conexão e integração pré-existentes. O que do ponto de vista institucional criou severas segmentações quanto ao fluxo e ao ritmo das tomadas de decisões políticas e jurídicas, com graves efeitos sociais, econômicos e ambientais. Tem enfoque na melhoria da vida das pessoas.
Contudo, a entrada em vigor do Acordo coloca agora a sua implementação sob a responsabilidade de um conjunto de atores subnacionais que ainda encontram desafios para compreender a profundidade do seu significado, desenvolver condições para sua implementação e constituir os entes encarregados dessas importantíssimas tarefas. E o monitoramento por parte da sociedade civil tende a ser fundamental para a prosperidade do Acordo.
Nos termos da legislação, o Acordo de Localidades fronteiriças (ALF) define quem são os agentes e quais as políticas de bem-estar, que devem ser construídas. Assim, o Plano de Cooperação deverá prever o encontro desses atores para formação e construção coletiva de uma agenda comum, pois todos formam uma comunidade de aprendizagem que deve ser o grupo focal do processo de construção do diagnóstico e das soluções conjuntas para a cooperação. Nos princípios do (ALF), elaborar um Plano de Cooperação transfronteiriço, que não inclua a mobilização social da cidade, seria incoerente. Por tudo isso, abre-se uma tendência contemporânea por políticas interestatais transfronteiriça, resultante dos novos arranjos para os novíssimos tempos, integracionistas, que se inauguram.
Com todas as imagens caleidoscópicas apresentadas até aqui, oportunizam breves conclusões, incluindo categorias que envolvem os atores subnacionais da tríplice fronteira para a promoção de espaços de cooperação paradiplomáticos.
É preciso desvelar e enfrentar os desafios socioambientais das regiões de fronteiras. As políticas públicas pensadas à luz da problemática evocada pelas fronteiras nacionais têm sido tradicionalmente concentradas para as instituições policiais e as forças armadas: polícia rodoviária federal, polícia federal, receita federal, exército, marinha e aeronáutica. São políticas públicas evidentemente necessárias para garantia do Estado de Direito nos limites da jurisdição nacional, sobretudo por se tratarem de espaços geográficos propícios para criminalidade, conforme o contexto e os desafios do(a) outro(s) lado(s) da(s) fronteira(s). Entretanto, quais são os desafios sociais, conexos/atrelados aos já conhecidos problemas de segurança, que as políticas públicas sociais, no marco da governança de fronteira, demandam. Especialmente no caso de Foz do Iguaçu a preocupação com a questão ambiental porque a natureza desconhece fronteiras e o tabuleiro geográfico da região é o mesmo, sem falar da gestão das águas superficiais e subterrâneas que exige consenso e políticas comuns. Outro motivo que também reforça esse tema de cooperação é o alto impacto das mudanças climáticas na região (Sakai, Sakai, Schneider, Fontana Oberling, Oreggioni, López, Franzini, Aquino, Tischner, Caballero Y Penagos, 2017).
Urge a interlocução com mais e novos atores transfronteiriços. Da mesma forma com que as Relações Internacionais incorporam cada vez mais atores não tradicionais – que não são personalidades internacionais - nos seus foros decisórios, como membros da sociedade civil, o mesmo deveria ser refletido na redefinição das políticas de fronteira. Até porque a governança das situações fronteiras correm sérios riscos de se desconectarem da realidade, caso não incluam os atores locais enquanto entes que tem compreensões, interesses e demandas legítimas para a reformulação das políticas de fronteiras. Desconexão que obviamente não se restringe à realidade fronteiriça. Entretanto cabe destacar que a distância física entre capitais e fronteiras, como é o caso de Brasília a Foz do Iguaçu, também gera um distanciamento de demandas e desafios que tendem a ser pouco e mal compreendidos nos foros políticos deliberativos.
A projeção dos municípios/cidades como atores locais/globais ou glo.ais demanda um conjunto de ações sincrônicas, que transita desde o alinhamento com a política externa estatal até a capacitação dos tomadores de decisão dos municípios. Ou seja, é necessário todo um rearranjo da compreensão das políticas públicas locais que passam a ser compreendidas sob espectro cooperativo internacional. Sem, com isso, permitir com que a paradiplomacia dos atores subnacionais acabe por superar a atribuição precípua da diplomacia estatal, mas sim, criando uma sintonia fina e sinérgica em ambas.
Fronteiras distintas têm atores diferentes e demandam políticas específicas. A vocação das políticas transfronteiriças é assumir um caráter de especificidade que permita mediações e arranjos capazes de atender a ampla diversidade de demandas que de constituem a partir das múltiplas realidades locais. Dito de outro modo, uma política única e homogeneizante, sem arranjos locais/localizados, nos milhares de quilômetros de fronteiras que o Brasil tem, não é capaz de viabilizar a integração transfronteriça em seus potenciais e necessidades. O que é necessário para cidades gêmeas como Santana do Livramento e Rivera (Uruguai) é distinto do que precisamos entre Foz do Iguaçu e Ciudad del Este (Paraguai) e assim nas centenas de circunstâncias e sociedades transfronteiriças que formam uma única realidade, pouco e mal compreendidos do ponto de vista das políticas públicas estatais construídas nas capitais.
Por fim, promover a cooperação transfronteiriça desde a tríplice fronteira implica construir conhecimento desde a região e cidadãos e cidadãs transfronteiriços, por consequência desconstruir os parâmetros globalistas canonizados pelos teóricos das relações internacionais. A Paradiplomacia aplicada à região deve considerar todas as formas de alianças, cooperações e conflitos entre os diversos grupos e etnias que compõem a diversidade do território das águas do Iguaçu, incluindo evidentemente os mais vulneráveis socialmente, suas instituições familiares e comunitárias, suas relações interétnicas e ancestrais. E ao mesmo tempo, todas as relações que o Sul global mantém com o centro colonial global. Entendida como relações, antes do internacional, a fronteira trinacional pode se transformar em um caso de boa prática paradiplomática e reduzir as desigualdades sociais herdeiras do processo colonial, reparando historicamente uma região que sempre esteve unida antes mesmo da construção dos estados nacionais brasileiro, argentino e paraguaio.