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"Socioeducação”: do ideal da educação social ao purgatório das vidas matáveis
"Socioeducação”: do ideal da educação social ao purgatório das vidas matáveis
O Social em Questão, vol. 23, núm. 46, pp. 187-202, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Resumo: O presente texto busca analisar de que forma a “Socioeducação”, enquanto política pública utiliza a sua função precípua de (re) educar para mistificar a sua função (concreta) de contenção e gestão das “vidas matáveis”. Trata-se de reflexões iniciais acerca da função político-social da “Socioeducação”, sob a égide do Estado neoliberal. Partindo da concepção de uma lógica do aprisionamento, que possui um sentido, produz efeitos e se refuncionaliza de acordo com as necessidades vigentes de seu tempo histórico, propomos uma reflexão crítica sobre o encarceramento juvenil na contemporaneidade.
Palavras-chave: Socioeducação, Encarceramento Juvenil, Punição, Necropolítica.
“Socioeducação”: do ideal da educação social ao purgatório das vidas matáveis
Anne Caroline de Almeida Santos1
Resumo
O presente texto busca analisar de que forma a “Socioeducação”, enquanto política pública utiliza a sua função precípua de (re) educar para mistificar a sua função (concreta) de contenção e gestão das “vidas matáveis”. Trata-se de reflexões iniciais acerca da função político-social da “Socioeducação”, sob a égide do Estado neoliberal. Partindo da concepção de uma lógica do aprisionamento, que possui um sentido, produz efeitos e se refuncionaliza de acordo com as necessidades vigentes de seu tempo histórico, propomos uma reflexão crítica sobre o encarceramento juvenil na contemporaneidade.
Palavras-chave
Socioeducação; Encarceramento Juvenil; Punição; Necropolítica.
"Socioeducation": from the ideal of social education to the purgatory of killable lives
Abstract
The present article seeks to analyze how "socioeducation", as a public policy, uses its primary function of (re) educating to mystify its (concrete) function of containment and management of "killable lives". These are initial reflections about the socio-political function of "Socioeducation" under the aegis of the neoliberal State. Starting from the conception of the logic of imprisonment, which has a meaning, produces effects and is given new functional objectives according to current demands, we propose a critical reflection on juvenile incarceration in the present.
Keywords
Socioeducation; Juvenile Imprisonment; Punishment; Necropolitics.
Artigo recebido em junho de 2019.
Artigo aceito em setembro de 2019.
O nascimento da “Socioeducação”
A “Socioeducação”2 , tal como é apresentada à sociedade brasileira, nasce com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) na década de 1990 e, portanto, data de um período recente da nossa história, marcado por avanços ainda decorrentes da abertura política e democratização, mas também por recuos provocados pelo aprofundamento do modelo neoliberal no Brasil, sobretudo, a partir de 1994, com o Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Procurando romper com uma lógica punitiva e de criminalização da pobreza, presente no Código de Menores (1927 e 1979), o pedagogo Antônio Carlos Gomes da Costa, que foi um dos redatores do ECA, apresentou o conceito de Socioeducação extraído do Poema Pedagógico, de Anton Makarenko3, transformando as “Medidas” prescritas aos “menores infratores” em “Medidas Socioeducativas” impostas a adolescentes em conflito com a lei. Tal mudança buscava ressaltar o caráter pedagógico das Medidas, compreendendo que o adolescente possui a condição peculiar de pessoa em desenvolvimento (BISINOTO et. al., 2015, pp. 580-581).
Portanto, em uma primeira aproximação com o tema podemos inferir que o conceito de Socioeducação carrega, em seu nascedouro, uma intencionalidade de ruptura com a lógica punitiva e criminalizante, guardando uma relação de proximidade com a ideia de educação social, tal como Makarenko praticava. As medidas socioeducativas (MSE) figuram no capítulo IV do ECA, parte do Título III – Da Prática de Ato Infracional e possuem um duplo caráter – (jurídico) sancionatório e (ético) pedagógico, onde ao passo que responsabiliza o adolescente pelo ato infracional praticado, procura oferecer condições para a construção de autonomia e acesso a direitos sociais por meio de políticas públicas. Esse caráter pode ser considerado uma herança da perspectiva crítica de Makarenko, que tem suas bases na educação social. De forma bastante sucinta, importa registrar que a educação social advém de uma concepção marxista, tendo por foco segmentos minoritários, de reduzida (ou nula) participação social, pertencentes aos estratos mais pauperizados da sociedade. Sua finalidade é a superação das desigualdades sociais por meio de uma pedagogia centrada na autonomia e construção da participação social como prática emancipatória4.
Contudo, o ideal da educação social como práxis voltada à autonomia e emancipação humana colide com a estrutura societária forjada pelo modo de produção capitalista. Nesse sentido, Rusche e Kirchheimer (2004), ainda na década de 1930, estabeleceram uma relação direta entre as formas de punir e o sistema econômico vigente, no qual afirmavam: “Todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção” (p. 20). Ainda que caibam particularidades à Justiça Juvenil, a estreita relação que esta mantém com os processos penais, desde a apreensão/prisão, passando pela fase de instrução processual até a execução da medida socioeducativa/pena, nos remete à história das prisões e à sua lógica subjacente.
Seguindo esta trilha, ao analisar a “função oculta do sistema penal”, Malaguti Batista (1998) nos traz subsídios que também permitem pensar no modo como a “Socioeducação” vem sendo construída e executada:
Embora na teoria [formulações teóricas modernas de reforma carcerária] os aspectos pedagógicos reeducativos passem ao primeiro plano, a prática dos tempos modernos (os investimentos requeridos, a dificuldade para encontrar mercados e a pressão da opinião pública) não permitia a implantação de qualquer programa educacional efetivo. Desprovido de qualquer caráter educativo, o mais importante do sistema moderno gradual é a disciplina, a reprodução e uma atitude completamente conformista (MALAGUTI BATISTA, 1998, pp. 38-39).
O resgate de uma perspectiva de reeducação ou reabilitação acaba por substituir o ideal da educação social e a preencher o conceito de “Socioeducação” com uma lógica mistificadora. A centralidade do trabalho contida na proposta de “reinserção social” que permeia esta política pública está assentada em uma função disciplinadora – ainda que esta não seja mais preponderante5 – e detentora de um viés moralista, que passa a ser justificativa para o encarceramento.
Nessa direção, a inserção em atividade laborativa (seja ela qual for, desde que lícita) irá contribuir para a definição da medida socioeducativa aplicada ao adolescente. A inserção escolar assume uma importância quase acessória, onde o pensamento predominante é: “Não estava estudando, mas pelo menos estava trabalhando”, deixando claro que a educação é um produto a ser consumido por alguns. Para outros, a inserção escolar torna-se mera formalidade burocrática; exigência de uma medida protetiva a ser cumprida ou parte dos requisitos obrigatórios do cumprimento da medida socioeducativa, passível de ser deixada de lado quando a medida cessa.
No exame dos processos do arquivo do Juizado de Menores, nos anos de 1968 a 1988, em pesquisa realizada por Malaguti Batista (1998), verifica-se que permanece praticamente inalterada a organização das oficinas profissionalizantes. Cursos como eletricista de automóvel, pintura de construção civil, solda, mecânica de automóveis (pp. 112-113) ainda em 2018 são oferecidos como “qualificação profissional” alternativa à situação de delinquência, o que demonstra uma continuidade entre as práticas institucionais da FUNABEM6, agora incorporadas como “práticas socioeducativas”, a partir do ECA.
“Ressocializar, reeducar e profissionalizar. Objetivos aparentes do sistema encobrem com a sua negação os seus verdadeiros objetivos: manter sob controle uma parcela muito bem delimitada da população” (MALAGUTI BATISTA, 1998, p.115). Um exemplo da “negação” explicitada por esta autora é a determinação de medida socioeducativa de internação como forma de suprir a ausência de outras políticas públicas – são os casos de afastamento escolar, situação de rua, uso prejudicial de álcool e outras drogas etc.
A seguir, trataremos dessa “parcela muito bem delimitada da população” e o modo pelo qual o Estado mantém o seu controle.
Do paraíso (ideal) ao purgatório (real): desvelando a “Socioeducação”
Para compreendermos o deslocamento de sentido no conceito de “Socioeducação” e a sua função político-social, faz-se necessário retomarmos o contexto macrossocial (político, social e econômico) em que seu surgimento está inscrito, bem como sua conexão com o cenário mundial. Conforme já apontado anteriormente, a “Socioeducação” surge no início da década de 1990, com o ECA, em um período que é caracterizado tanto por avanços – sobretudo no plano jurídico – quanto por retrações, principalmente no que tange à esfera socioeconômica.
Em sendo assim, cabe destacar que, no mesmo período, o neoliberalismo avançava no Brasil de forma contundente, inaugurando o chamado Estado Mínimo a partir do aprofundamento da crise (1989-1990) e do esgotamento do Estado Desenvolvimentista (SOARES, 2009), ganhando feições mais claras com a “Era FHC” (1994-2002). Com o Estado Mínimo, há uma progressiva redução do gasto social (enxugamento de investimentos na rede de proteção social) para o cumprimento de uma agenda estritamente econômica, desviando esses recursos para compor o superávit primário.
Por outro lado, é possível observar uma “expansão contínua do programa criminalizador, verificada a partir dos anos 1990, e a consequente expansão acelerada do encarceramento” (FERNANDES, 2016, p. 104)7. É neste ponto que, a exemplo da realidade norte-americana estudada por Wacquant (1999), vemos emergir um Estado Penal a partir do desmonte do que seria (ainda que de forma muito incipiente) um Estado de Bem-Estar Social (ou Estado-Providência), o que ele denominou de “novo senso comum penal”.
De acordo com Wacquant (1999), a progressiva desregulamentação da economia – desemprego em massa e flexibilização do trabalho – e a diminuição de investimentos na área social, tendo por consequência a erosão do sistema de proteção social, exigia respostas para conter sua produção constante de “refugo humano” (nos dizeres de Bauman8). Era preciso, então, encontrar formas para a gestão e controle da pobreza crescente. Desse modo, o autor aponta para a emersão de um “ethos punitivo”, que irá caracterizar a passagem do Estado-providência (atrofia da rede de proteção social) para o Estado-penitência (hipertrofia de um Estado Penal). É nesse cenário que se desenvolve a “doutrina de tolerância zero”, perseguição irrestrita e agressiva da pequena delinquência e, nesse sentido, repressão aos miseráveis (p.16). Através de dados empíricos, Wacquant demonstra, no entanto, o quanto esta doutrina é seletiva e, portanto, direciona sua capacidade de encarceramento majoritariamente a negros e imigrantes.
Como podemos perceber, o capitalismo avançado encontra no Estado Penal uma saída (provisória) para o excedente de força de trabalho, que constitui o “refugo humano” ou aquela “parcela muito bem delimitada da população”. A prisão, então, se solidifica enquanto espaço de contenção e gestão da miséria.
Ao tratar da refuncionalização do espaço prisional e, nesse sentido, da formação de grandes modelos de encarceramento punitivo, Foucault (2009, p. 119) afirma que “Entre o crime e a volta ao direito e à virtude, a prisão constituirá um ‘espaço entre dois mundos’, um lugar para as transformações individuais que devolverão ao Estado os indivíduos que este perdera” (grifos nossos). Para as necessidades daquele tempo histórico, era preciso que a prisão se constituísse como lugar de disciplina, capaz de transformar o indivíduo moralmente e torná-lo útil, produtivo. Desse modo, Foucault resgata o conceito de Homo economicus, pertencente ao postulado da racionalidade (de matriz positivista), onde o indivíduo é reduzido à esfera produtiva e à esfera do consumo. A prisão teria, nesse caso, a “missão” de reconstituir o Homo economicus, aquele capaz de produzir e, principalmente, consumir.
Contudo, observamos atualmente um declínio desta intencionalidade, em consonância com as transformações societárias sob a égide do capital. Não há um interesse em “ter de volta” esses indivíduos supostamente “recuperados”. Em seu processo de refuncionalização (respondendo às demandas do modo de produção capitalista), o Estado assume como um de seus papéis a regulação da massa excedente, reduzida a refugo, posto que esta não chega a compor efetivamente um exército industrial de reserva. Para efetivar tal regulação, o Estado, então, precisa assumir a morte – e suas diversas faces, concreta e/ou simbólica – de forma implícita, enquanto política. Aqui, nos parece ser o ponto nevrálgico, onde se opera a passagem de uma “reconstrução do Homo economicus” à construção do Homo Sacer, expressão da Necropolítica. Ao delimitar a “vida nua” (Agamben, 2002), define-se quem não merece viver.
Segundo Agamben (2002, p. 86), Homo Sacer é aquele que é “santo e maldito”, pois sustenta, em sua unidade, a impunidade para aquele que executar a sua morte (portanto, vida matável) e o veto de seu sacrifício, em um aparente paradoxo. O autor traça uma analogia com o lobisomem, para demonstrar que o Homo Sacer está no limiar entre o homem e o animal, pois embora tenha mostrado sua face desumanizada (transfigurado em lobo), ainda assim trata-se de um homem, inscrito, portanto, em alguma sociabilidade. Por seu turno, o conceito de vida nua, indissociável do Homo Sacer, apresenta-se, a meu ver, mais claramente neste fragmento: “O estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento, torna-se agora uma nova e estável disposição espacial, na qual habita aquela vida nua que, em proporção crescente, não pode mais ser inscrita no ordenamento” (AGAMBEN, 2002, p. 182; grifo meu).
Se considerarmos aqui o trabalho o modo pelo qual o indivíduo se inscreve no ordenamento – uma vez que só é possível fazê-lo por meio da venda da sua própria força de trabalho – a vida nua diz respeito a esse excedente populacional, que já não se constitui mais como reserva. Trata-se da “vida indigna de ser vivida”9 (AGAMBEN, 2002, pp.143-150).
Ainda segundo Foucault (2009), o poder disciplinar não tem por objetivo aniquilar o indivíduo, uma vez que sua função é “torná-lo útil”. Todavia, em uma sociedade de “descartáveis”, tal função vai perdendo progressivamente o sentido. Até que ponto um indivíduo é potencialmente útil ao Sistema? Quando ele deixa de ser útil?
Voltemos à necropolítica. Partindo do conceito de biopoder (Foucault) – exercício de um controle sobre a vida, podendo chegar à eliminação física (a exemplo do racismo) – Achille Mbembe, intelectual camaronês, desenvolve o conceito de necropoder articulado à ideia de soberania como o direito de matar (MBEMBE, 2016, p. 128), conforme segue:
Em minha argumentação, relaciono a noção de biopoder de Foucault a dois outros conceitos: o estado de exceção e o estado de sítio. Examino essas trajetórias pelas quais o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar. Em tais instâncias, o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, emergência e a uma noção ficcional do inimigo (MBEMBE, 2016, p. 128 – grifo nosso).
O que Mbembe (2016) nos propõe é a radicalização da tomada da morte como política de Estado, entendendo que a noção de biopoder já não responde mais à relação vida-morte na sociedade contemporânea. Ou, como o próprio autor afirma:
propus a noção de necropolítica e necropoder para explicar as várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, armas de fogo são implantadas no interesse da destruição máxima de pessoas e da criação de “mundos de morte”, formas novas e únicas da existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de “mortos-vivos” (p. 146).
Fazendo uma analogia, as unidades de atendimento “socioeducativo”, particularmente as de internação, podem ser comparadas ao que Mbembe chama de “mundos de morte” – ou, como tratei no enunciado deste texto, purgatórios – assim como os adolescentes que ocupam esses espaços são meros “mortos-vivos”.
Conforme o dicionário contemporâneo da língua portuguesa Caldas Aulete, purgatório, em seu sentido religioso na tradição católico-romana, refere-se ao “lugar onde as almas dos que não cometeram pecados graves devem purgá-los antes de chegar ao paraíso” e, por extensão, significa “qualquer local de sofrimento e provação”10. Observando a relevância da moral cristã para a conformação de nosso ordenamento jurídico, podemos compreender purgatório como um lugar para a expiação de culpa/pecado (crime) a fim de purificar a alma (recuperação).
Entretanto, na contemporaneidade, tal como já enunciado acima, inexiste o ideal da recuperação do indivíduo, pois não há razões para torná-lo produtivo. O poder disciplinar e, em outro patamar, o biopoder não possuem mais a mesma função de outrora, sendo o dispositivo “prisão” ressignificado. É nesse sentido que a necropolítica guarda uma radicalidade na forma de operar o binômio vida-morte e, por conseguinte, da “seleção” daqueles que “merecem morrer” – “vida indigna de ser vivida”. Na operacionalização da necropolítica é posta em marcha as diversas faces da morte do sujeito.
Com base no relatório temático do Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MPCT), “Presídios com Nome de Escolas – inspeções e análises sobre o Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro” (2017), é possível avaliar as condições para o exercício da “socioeducação” e concluir que estas se encontram bastante aquém daquela almejada através da educação social, aproximando-se em muito da imagem anunciada por Mbembe – “mundos de morte”:
Dentre os aspectos observados, podemos destacar as precárias condições físicas, condições de higiene e salubridade, mau cheiro, vários relatos de enfermidades adquiridas pelos adolescentes devido à situação do lugar (doenças de pele) e uníssonas reclamações sobre agressões físicas e verbais no cotidiano. [...] Assim, a superlotação e a insalubridade a qual os adolescentes estão submetidos cotidianamente nas instituições traduzem a falta de garantia de direitos dos adolescentes autores de ato infracional e em nada cumprem os preceitos da educação na socioeducação, a ênfase recai sobre a segurança (pp. 54-59 – grifo nosso).
As unidades de privação de liberdade para adolescentes a quem se atribui um ato infracional são, nessa linha de raciocínio, lugar para a expiação de uma culpa (ato infracional imputado), mas que não tem por função a redenção. Ao contrário: ratifica a sua eliminação paulatina.
Mas o que torna banal e (implicitamente) legítimo o aprisionamento daquela “parcela muito bem delimitada da população”, particularmente nas condições citadas acima? Mbembe (2016, p. 128) nos fornece pistas para responder a esta questão, quando articula o exercício do necropoder à construção de uma “noção ficcional do inimigo”, que já mencionamos acima.
A mídia possui um papel fundamental para a construção da imagem desse inimigo, ocupante das fileiras mais rasas da pirâmide social e em situação de “risco social”, o que requer intervenção por parte do Estado – não para retirá-lo da situação de risco (para si) e modificar a sua condição de vida, mas sim para prevenir que esse “inimigo” se constitua como risco a outrem. O cenário belicoso forjado na construção do inimigo estabelece a ideia de um “permanente Estado de Exceção”, que não é declarado e age sobre determinada parcela da população. Ou seja: conserva as características de um Estado de Exceção11, mas não se instala de forma generalizada, deliberada e provisória. Há, para tanto, uma permissividade seletiva, que define os alvos preferenciais para esse tipo de ação por parte do Estado.
Fica muito claro a partir do “caso emblemático” Rio de Janeiro [Plano Verão] como, aos jovens pobres, não é importante direcionar políticas garantidora dos seus direitos, e ao contrário disso, urge encontrar meios para controlá-los. E a grande mídia, como apontamos, tem um papel fundamental na constituição dessas percepções sobre a pobreza em nossa sociedade.
Para essa parte da população cabe ao Estado reprimir, vigiar, controlar e prender ou matar se necessário. Os garotos das favelas a caminho da praia não conseguem ser sujeitos de direitos e deveres, pois antes de tudo são entendidos como ameaça à ordem, como perigosos ao convívio. É baseada em concepções higienistas, racistas e classistas que se forja o dispositivo da periculosidade para tratar da existência dos jovens pobres. Dessa forma, a virtualidade desses jovens passa a ter mais importância do que suas existências. Assim, não basta que a sociedade se preocupe tão somente com as infrações por eles cometidas, mas também, e principalmente, é necessário ocupar-se daquelas que poderão vir a acontecer. Esse é o lugar social que se oferece a um jovem quando ele é impedido de seguir até a praia por parecer perigoso ou, quem sabe, vulnerável (MPCT, 2017, pp. 46-47).
Portanto, a “lógica do inimigo interno” (ZAFFARONI, 2007; MBEMBE, 2016) é o que autoriza a “ilegalidade” nas ações do Estado e, desse modo, autoriza as “práticas mortíferas”. Quando se define o “inimigo interno”, passa a ser definido quem irá morrer – as vidas matáveis (AGAMBEN, 2002).
Segundo Zaffaroni (2007), ao ser equiparado à “coisa perigosa”, o inimigo pode ser privado dos direitos inerentes ao humano, face à sua desumanização.
A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho. Por mais que a ideia seja matizada, quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não-pessoas), faz-se a referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixaram de ser considerados pessoas [...]. Não é a quantidade de direitos de que alguém é privado que lhe anula a sua condição de pessoa, mas sim a própria razão em que essa privação de direitos se baseia, isto é, quando alguém é privado de algum direito apenas porque é considerado pura e simplesmente como um ente perigoso (ZAFFARONI, 2007, p. 18 – grifos no original).
Assim sendo, não são raros os casos de adolescentes que ingressaram no Sistema Socioeducativo com uma trajetória de “mortes simbólicas”, no aguardo de que esta, enfim, se torne concreta. Longe de ser um espaço para a educação social, o purgatório “socioeducativo” nos parece uma sala de espera para aquilo que Malaguti Batista (1998, p. 85) chamou de “crônica de uma morte anunciada”, ao apresentar o caso de um adolescente ameaçado de morte que, embora a família tenha dado ciência ao Judiciário, foi assassinado seis meses depois. Nada foi articulado para a sua proteção.
O Sistema de Justiça Criminal e, em seu esteio, o Sistema Socioeducativo – tendo em vista que são regidos por uma mesma lógica – vão incorporando traços de uma necropolítica, utilizando-se, primeiramente, da construção de estereótipos em um franco processo de criminalização de jovens pretos (em sua maioria) e pobres. A fala de suas famílias sobre o risco de morte é sumariamente destituída, colocando em evidência as prioridades daquela política pública – distante de fazer cumprir um objetivo de “(re)educação” – e nos situando sobre quais vidas realmente importam.
Considerações Finais
O encarceramento juvenil, tal como vem sendo desnudado, lança ao descrédito o caráter pretensamente pedagógico das chamadas “medidas socioeducativas”, inflando a dimensão sancionatória. Nesse sentido, “responsabilizar” torna-se um eufemismo para punir o adolescente em conflito com a lei – punição essa que se desdobra em diversas punições/castigos, contribuindo para a mortificação daquele sujeito coisificado.
Conforme vimos anteriormente, o conceito “Socioeducação” embora tenha sido evocado a partir da noção de educação social, foi preenchido por aquilo que Malaguti Batista (2008) caracterizou como ilusões “re”: reeducação, ressocialização, reintegração. Desta feita, tendo em vista o caminho teórico que percorremos até aqui, podemos inferir que a função político-social da “Socioeducação” se desdobra em duas (sub) funções, que se complementam: 1) a função mistificadora da (re) educação (e demais ilusões “re”); 2) a função – concreta, mas implícita – de contenção e gestão das vidas matáveis.
Lançar luz sobre a mistificação presente no conceito “Socioeducação” é o primeiro passo para que possamos pensar em estratégias cotidianas de enfrentamento e produção de resistências nos espaços sócio-ocupacionais onde esta política pública é executada. Produção de vida em territórios já mortificados, os purgatórios das vidas matáveis ou “mundos de morte”.
Por fim, destacamos aqui uma perspectiva bastante interessante e pertinente, no sentido da produção de resistências (e de vida!). Trata-se de um trecho do artigo Adeus às ilusões “re”, no qual Malaguti Batista (2008) propõe estratégias de redução de danos para fazer frente a este cenário sombrio. Segue:
Na trincheira do judiciário, aonde desfila em massa nossa pobreza, temos que trabalhar a partir do fim das ilusões. Se a criminalização é um processo histórico de controle seletivo, nas instituições penais só podem avançar as estratégias de redução de danos, transformando a terapêutica do correcionalismo numa clínica política e libertária (p. 198).
Referências
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