O LEGADO DE CARLOS HASENBALG (1942-2014)*
O LEGADO DE CARLOS HASENBALG (1942-2014)*
Afro-Ásia, núm. 53, pp. 277-290, 2016
Universidade Federal da Bahia
Carlos Hasenbalg, nascido em Buenos Aires, em 5 de setembro de 1942, foi um dos grandes nomes das ciências sociais brasileiras contemporâneas, responsável pela consolidação dos estudos sociológicos sobre racismo, desigualdades raciais e política racial no Brasil moderno. Fez isso na esteira dos estudos de relações raciais das décadas de 1940 e 1950, principalmente na trilha aberta por Florestan Fernandes e pela sociologia paulista nos anos 1960.
A originalidade da obra de Hasenbalg não passou despercebida dos que o antecederam. Fernando Henrique Cardoso,[1] então o mais renomado dos sociólogos brasileiros, escreveu, na apresentação da primeira edição de Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, em 1979:
Eu diria que ele acrescenta à tradição de estudos raciais brasileiros duas dimensões importantes: situa-os no âmbito da discussão acadêmica internacional, sobretudo norte-americana, retomando temas que foram debatidos internacionalmente nos últimos quinze anos, e põe ênfase na necessidade de análise dos movimentos sociais negros, no quadro de uma sociedade corroída pelo autoritarismo difuso e pela repressão, que servem de suporte às políticas complementares de cooptação social e controles ideológicos sutis, que dificultam a consciência racial e a luta contra as desigualdades e as discriminações.[2]
Como mostra a citação acima, já se tinha — à época dessa publicação — a nítida percepção da importância e do lugar de destaque que Discriminação e desigualdades raciais no Brasil deveria ocupar. A apresentação de Cardoso significava também uma chancela: era, de certo modo, a passagem de bastão para uma nova geração de estudiosos das relações raciais no Brasil. Esse talvez seja o primeiro ponto a destacar. O segundo ponto a sublinhar é que as ciências sociais brasileiras passavam, desde final dos 1960, por um período de refundação sobre novas bases metodológicas e teóricas, em diálogo estreito com o que se produzia no mundo anglo-saxônico, francês e latino-americano. Para tanto, foram fundamentais o impulso da Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO) chilena, o aporte da Fundação Ford à formação pós-graduada de antropólogos, cientistas políticos e sociólogos e, finalmente, a restruturação do financiamento da CAPES e do CNPq à pós-graduação.
Carlos Hasenbalg é filho desse ninho e desse tempo. Tendo se formado em Buenos Aires em 1965, livrou-se da ditadura argentina inaugurada pelo general Juan Carlos Onganía em 1966 que desmontou as universidades, encontrando abrigo na FLACSO, em Santiago do Chile, que reunia, então, a nata da inteligentzia latino-americana. Lá fez seus primeiros estudos de pós-graduação, na escola de sociologia então dirigida por Gláucio Soares. Não tenho notícia de que tivesse defendido tese, mas aprendi, em conversa com César Guimarães, que Hasenbalg foi convidado, provavelmente em 1968, para montar, no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), uma área de survey, por indicação de um colega seu da FLACSO, Wilmar Faria, que havia ministrado disciplina sobre o assunto no IUPERJ. Em 1968, portanto, Carlos Hasenbalg trocou Santiago pelo Rio de Janeiro, onde também encontraram abrigo alguns intelectuais nacionalistas do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), que havia sido fechado pela ditadura, e jovens estudantes do Rio de Janeiro e de Minas Gerais. Nesse amálgama, se formaria uma nova geração de cientistas sociais, financiados pela Fundação Ford, ironicamente referida por Richard Morse como “Santa Casa da Misericórdia” ou “Nossa Senhora”.[3]
De fato, já em 1970, Carlos Hasenbalg segue para o doutorado em Berkeley com uma bolsa daquela fundação, onde estudou sob a orientação de Robert Blauner, com quem cursou o seminário de orientação de 1972. Para quem não o conhece, lembro apenas que foi Blauner o introdutor do conceito de ”racismo institucional” na sociologia, que seria decisivo para toda a obra futura de Hasenbalg e para os movimentos negros no Brasil e nos Estados Unidos. Berkeley vivia então a efervescência intelectual da contracultura, da resistência política ao racismo e ao imperialismo. Os escritos e ensinamentos de Blauner[4] abrigavam, ao mesmo tempo, as tendências inspiradas em Franz Fanon, que alimentavam a teoria colonial da opressão negra, e os impulsos anti-imperialistas que embasavam a resistência à guerra do Vietnã.
A obra de Hasenbalg, entretanto, talvez seja até mais devedora de sua vivência no Rio de Janeiro e no IUPERJ que de Berkeley, onde passou, inicialmente, apenas dois anos. É muito provável, por exemplo, que o interesse pelo tema das relações raciais no Brasil tenha surgido de seu envolvimento com lideranças negras cariocas. O fato é que, em 1977, ele publicou na Dados seu primeiro artigo relacionado com a tese que viria a defender no ano seguinte.[5] No Rio de Janeiro, Hasenbalg circulava e tinha a confiança dos meios intelectuais e ativistas negros, dívida que ele reconheceu plenamente na dedicatória de sua tese de doutorado: “Para Maria Beatriz Nascimento e para os organizadores da Semana de Estudos do Negro da Universidade Federal Fluminense: João, Andrelino, Alcebíades, Marlene, Rosa Virginia, Sebastião e Alcides”. Sobre a primeira escreve, ainda em seu “Prefácio e Agradecimentos”: “Sem a mediação de livros, Maria Beatriz ensinou-me o significado existencial de ser negro e ser mulher no Brasil”.
Colegas como César Guimarães, Amaury de Souza, além de Alícia Zicardi, Edmundo Campos, Edison de Oliveira Nunes, Elisa Reis, Fernando Uriocochea, Olavo Brasil e Wanderley Guilherme dos Santos foram decisivos para que a tese tivesse o escopo político inovador que Cardoso ressaltou em sua apresentação. O clima intelectual do IUPERJ vivenciado por Hasenbalg fica patente quando ele se refere, em Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, à teoria das classes sociais em Bourdieu através das coletâneas organizadas no Brasil por Neuma Aguiar (Hierarquias em classe) e Sérgio Miceli (A economia das trocas simbólicas). Pierre Bourdieu, como se sabe, começou apenas a ser conhecido nos Estados Unidos a partir de 1979, com a publicação de A reprodução e A distinção.[6] De fato, entre 1973 e 1977, período em que Hasenbalg afina seus argumentos e suas teorias, ele está no Rio de Janeiro, retornando a Berkeley apenas para concluir a tese, que defendeu 23 de junho de 1978, e foi depositada em Ann Arbor em dezembro daquele ano.
Essa breve introdução serve apenas para colocar Carlos Hasenbalg no seu tempo, entre os seus.
Voltemos à “Apresentação” de Cardoso, na qual, depois de reconhecer que, com Hasenbalg, os estudos de relações raciais no Brasil ganhavam um novo enquadramento internacional, aponta o que seriam as suas novidades teóricas e metodológicas. Primeiro, a descoberta dos “ciclos das desvantagens cumulativas” enterrava, de uma vez por todas, argumentos como os de “persistência do passado”, pois, a cada geração, as desigualdades raciais se ampliavam; enterrava, ao mesmo tempo, as explicações historicistas ou culturalistas de herança escravocrata ou de etos católico e assimilacionista. Segundo, o que Hasenbalg chamava de “subordinação aquiescente dos negros” tinha uma explicação eminentemente política. Escreveu Cardoso:
Pela primeira vez, de forma nítida, vejo ressaltada a falta de “sérios cismas entre os grupos dominantes” como parte da explicação de por que os movimentos de rebeldia das classes subordinadas têm seus impulsos amortecidos.[7]
Faltou-lhe observar três outros argumentos decisivos utilizados por Hasenbalg: a ideologia ou habitus de classe, conceitos que ele usou conforme se movia de Gramsci a Bourdieu, e que fundamentam sua explicação para a força da democracia racial enquanto um mito que amortece os conflitos raciais; a ausência de mercados de trabalho racialmente segmentados, que impede a explicitação de interesses de opressão racial no interior das classes subalternas, enquanto a “válvula de escape do mulato” (mulatto escape hatch), o mecanismo teorizado por Degler para a absorção dos mulatos claros no grupo branco, evita que se evidenciem os traços raciais das desigualdades.[8]
Tal falta, entretanto, pode ser um silêncio que explique uma mudança sutil operada entre a tese de junho de 1978 e o livro de novembro de 1979. Como se sabe, o livro é uma tradução do texto em inglês, feita por Patrick Burglin. No entanto, enfatiza em seu título a relação causal presumida entre discriminação racial e desigualdades sociais entre brancos e negros, evidenciada no ciclo das desvantagens cumulativas. O título da tese (“Race Relations in Post-Abolition Brazil: The Smooth Preservation of Racial Inequalities”), ao contrário, enfatiza os mecanismos institucionais de subordinação aquiescente dos negros. São dois climas políticos bastante distintos. Nos Estados Unidos, o que parecia problemático e que deveria ser explicado era a ausência de conflitos raciais num país de tantas desigualdades, ou seja, a acomodação dos negros a uma ordem racial crescentemente injusta; no Brasil, ao contrário, a agenda política negra já colocava na arena política a denúncia da democracia racial enquanto mito e a banalização do racismo. O libro era uma demonstração científica do ciclo de desvantagens cumulativas dos negros, prova de que as desigualdades eram geradas no presente por comportamentos atuais e instituições sociais atualmente existentes. As evidências empíricas apontavam, pois, para a existência de discriminação racial generalizada e racismo institucional.
Há também que ressaltar que Discriminação e desigualdades raciais no Brasil foi publicado como o volume 10 da Biblioteca de Ciências Sociais da Editora Graal, junto com autores muito decisivos na discussão da esquerda brasileira daquele momento: Nicos Pulantzas, Charles Bettelheim, Leandro Konder, Samir Amin, Luciano Gruppi, Louis Althusser, entre outros. Ou seja, o livro representava bem a aliança democrática entre a esquerda intelectual e o movimento negro.[9]
No título do livro, joga-se por completo com os fatores políticos ressaltados por Cardoso:
[...] a modificação e o significado da raça, como critério de alocação a posições na estrutura de classes e estratificação social, parece depender [...] de fatores tais como a mudança no clima ideológico internacional, o nível de mobilização política dos grupos racialmente subordinados e políticas raciais.
E conclui de modo premonitório:
[a ruptura do padrão autoritário-permissivo] que caracteriza, em geral, a dominação na sociedade brasileira [...] (ainda que por movimentos reivindicatórios não raciais) teria um efeito dinamizador no padrão de espoliação e de acomodação inter-racial.
Ambos, Hasenbalg e Cardoso, vivenciavam, em 1979, as primeiras lutas sindicais que dariam origem ao Partido dos Trabalhadores (PT) meses depois e a um novo padrão de dominação política que tornaria possível as cotas raciais do século XXI.
Mas estou me adiantando. Essas relações precisam ser tratadas com mais vagar. Por enquanto, basta lembrar que o livro teria ampla recepção no meio negro, potenciada ademais pelo continuado convívio de Hasenbalg nos meios intelectuais e com o ativismo negro. Esses ativistas faziam a denúncia da democracia racial como ideologia dominante dos brancos e redefiniriam o termo negro para englobar pretos e pardos, com o intuito de entupir a válvula de escape do mulato. Trata-se, portanto, de um livro programático e político, que viria juntar-se com A integração do negro na sociedade de classes, de Florestan Fernandes, e O negro revoltado, de Abdias do Nascimento, compondo o elenco dos títulos brasileiros fundamentais na estante da formação intelectual negra.[10]
Por um bom tempo, até encontrar a parceria de Nelson do Valle Silva, nos anos 1980, Hasenbalg se dedicou a explorar estudos que observassem e não apenas inferissem a discriminação racial.[11] Vale lembrar que, já na publicação do livro brasileiro, ele acrescentaria à tese defendida em Berkeley dois anexos em que refletiu sobre notícias de discriminação em jornais diários. Em 1982, durante sua parceria com Lélia Gonzalez, publicou também um estudo sobre estereótipos raciais na propaganda, em busca de explicitar e entender mecanismos de subordinação racial, para além da ideologia da democracia racial e da válvula de escape do mulato.[12]
Em 1986, quando Peter Fry assumiu a função de officer no escritório da Fundação Ford no Rio de Janeiro, uma nova fronteira se abriria na forma de um programa de desenvolvimento acadêmico, dirigido por Carlos Hasenbalg no extinto Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), da Universidade Cândido Mendes, em três eixos: os estudos de estratificação e desigualdades raciais, que Hasenbalg tocaria com Nelson do Valle Silva; a formação pós-graduada de estudantes em relações raciais, principalmente estudantes negros, que se desenvolveria tanto no CEAA, quanto no agora também extinto IUPERJ; e de animação e liderança nacional dos estudos sociológicos, históricos e políticos sobre o negro brasileiro, por meio de dois canais: o grupo de trabalho Tema e Problemas da População Negra Brasileira, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), transformado, em 1994, em Relações Raciais e Etnicidade, e a revista Estudos Afro-Asiáticos, do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), que ele editou até 1996.
O que dizer da recepção acadêmica das ideias e das atividades de Carlos Hasenbalg?
Certamente, Discriminação e desigualdades raciais no Brasil teve uma recepção aquém da que merecia e daquela que Cardoso previra em sua apresentação. O livro parece ter ficado em nicho muito restrito das ciências sociais, sem que suas teses ecoassem entre sociólogos e cientistas políticos, como seria de esperar. As razões para tanto são várias, vou me deter nas duas que considero principais.
A primeira, de ordem cultural, tem a ver com o choque entre a obra e o etos nacional. Explico-me: ao demonstrar a existência do racismo brasileiro e sua íntima relação com a exploração de classe capitalista, Hasenbalg se punha contra a corrente dominante dos mitos fundadores nacionais. A segunda, de ordem teórica, foi apostar nas explicações estrutural-funcionalistas e promover uma articulação original e profícua entre as teorias da estratificação social e suas técnicas, por um lado, e as teorias marxista e weberiana de classes sociais, por outro, para, conjuntamente, dar conta de dois fenômenos distintos, presentes nas obras de Marx e de Weber, a saber, respectivamente, a exploração de classe e a opressão política.
A verdade é que essa teorização original já se encontrava em gestação na Berkeley University dos anos 1970, e seria desenvolvida, em seguida, por muitos autores, alguns deles contemporâneos de Hasenbalg no curso de Doutorado em Sociologia, como Erik Olin Wright. Para ele, enquanto a teoria da exploração e a teoria de classes davam conta de explicar as relações sociais de produção e a estrutura social — ou seja, os “lugares vazios” —, a teoria da estratificação complementava a explicação no nível micro, detalhando os sujeitos possíveis de serem recrutados para tais lugares pelas relações de opressão. Muito interessante é que esse amálgama teórico se fazia sem apelar para qualquer individualismo metodológico, rigorosamente consistente com a sociologia de tradição marxista e durkheimiana. O segredo dessa bem-sucedida combinação estava na noção de “racismo institucional”, desenvolvida por Robert Blauner.
Mas a inovação teórica que o sociólogo lançava no Brasil deveria ser, ao mesmo tempo, um programa para a esquerda marxista: afinal, em países pós-escravistas, como Brasil e Estados Unidos, não se poderia pretender superar a exploração de classe sem compreender seus elos íntimos com a opressão racial. Infelizmente, no entanto, o marxismo acadêmico no Brasil vivia mais de modas que de reflexões práticas inovadoras, e continuamos a discutir o pós-estruturalismo francês e nos atendo às novidades europeias trazidas por Foucault, Bourdieu, Giddens e Habermas. Todavia, esse amálgama entre teoria da estratificação e das classes sociais será muito mal recebido no Brasil pelos acadêmicos marxistas ou liberais. Os primeiros, presos à ortodoxia, quando muito tendendo a incorporar Bourdieu a suas análises; os segundos, quase todos economistas ou sociólogos da estratificação, trabalhando sob o paradigma do individualismo metodológico e recusando qualquer teoria da exploração ou de variáveis que não fossem diretamente observáveis.
Repito, também, que o insulamento dos estudos de relações raciais na academia brasileira atuou, e de modo muito claro, como um fator a retardar a absorção de Discriminação e desigualdades raciais no Brasil ao mainstream das ciências sociais. Como disse, certa feita, Evaldo Cabral de Mello, o problema do negro na sociedade brasileira, para as ciências sociais, fora esclarecido por Gilberto Freyre, em 1933, e atualizado por Florestan Fernandes, em 1964.[13] Nada de novo haveria de existir nesse campo.
A insulação dos estudos das relações raciais, entretanto, não significou o isolamento de Carlos Hasenbalg, nem como intelectual, nem como homem. Ao contrário, ele foi figura de proa, muito bem relacionado no meio acadêmico brasileiro e internacional, e de muita força política. Boa parte dessa força deveu-se, sem dúvida, ao lugar estratégico que ocupou no campo acadêmico das ciências sociais, desenvolvendo com Valle Silva um estilo de pesquisa único na sociologia brasileira, que a Fundação Ford ajudara a criar no Brasil, na segunda metade dos anos 1970.[14] Enquanto vice-diretor do CEAA, de 1986 a 1996, aquela instituição transformou-se no epicentro dos estudos sobre raça e racismo no Brasil, atraindo visitantes estrangeiros que passavam pelo Brasil e todos os acadêmicos brasileiros interessados no tema, oferecendo um centro de documentação organizado e rico e, principalmente, a oportunidade de partilhar o conhecimento e a amizade de Carlos Hasenbalg. A revista Estudos Afro-Asiáticos, durante sua gestão, por outro lado, publicou os mais importantes autores nas áreas de antropologia, ciência política, história e sociologia que pesquisaram sobre o tema.[15]
Ademais, e este é um comentário que não desenvolverei aqui, Carlos Hasenbalg era homem de fazer muitos amigos, e conseguir mantê-los durante a vida, além de orientar e formar pesquisadores. Na segunda edição de Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, em 2005, lista apenas alguns deles.
Profissionalmente, a nova conjuntura política dos anos 1990 trouxe muitas adversidades para Hasenbalg, desde problemas de financiamento no CEAA e no IUPERJ, até dificuldades em conseguir uma aposentadoria digna. A década de 1990 representou, também, uma guinada em sua produção intelectual, fazendo-o mesmo se afastar do campo acadêmico das relações raciais, que ajudara a consolidar no Brasil. Passo aqui a alinhavar algo que ainda merece investigação. Sei, ao certo, somente que, em algum dia, no final daquela década, o convidei para um seminário e ele se recusou, dizendo que já não trabalhava mais com o tema e passara a se dedicar, exclusivamente, a pesquisas sobre estratificação, mobilidade e classes sociais. Ainda insisti no convite em outras duas ocasiões e, só depois de mais recusas, me convenci de que aquela decisão era irreversível. O que o terá feito tomá-la? Passo a conjecturar.
Não me recordo de Carlos Hasenbalg no seminário realizado em Brasília, em julho de 1996, organizado pelo Ministério da Justiça, mas, no livro organizado por Jessé de Souza a partir dos textos ali apresentados, encontra-se um capítulo de sua autoria sobre “O contexto das desigualdades raciais”. A sua última publicação sobre relações raciais feita no Brasil foi em 1998, numa coletânea que organizou conjuntamente com Lilia Schwarcz e Kabengele Munanga.[16] O livro, publicado com Nelson do Valle Silva e Márcia Lima, no ano seguinte, reúne apenas antigos artigos.[17] Daí em diante, silenciou sobre o tema, não tendo nem mesmo participado ativamente da luta por cotas raciais nas universi- dades públicas, como confesso que esperava. Perto de deixar o Brasil, escutei-o defender as cotas na homenagem que lhe foi feita na ANPOCS, em 2005.[18] Um ano depois, pedi para declarar sua posição por escrito, numa entrevista, quando ele apenas respondeu: “Estranho seria se quem pesquisou e denunciou as desigualdades raciais no Brasil durante mais de vinte anos não apoiasse o sistema de cotas e programas como o ProUni”. Em 21 de julho de 2007, na Aula Magna proferida no IUPERJ, disse, um pouco irritado com os amigos que o criticavam por defender as cotas: “Ora se as desigualdades raciais no Brasil não são produtos de racismo e de discriminação, qual é a teoria ou explicação alternativa para dar conta das desigualdades constatadas?”[19]
Sejam quais fossem seus motivos para deixar o campo, o fato é que, nos anos 1990, começou a se romper o bloco acadêmico antirracista nutrido pela Fundação Ford, com algumas antigas lideranças acadêmicas insurgindo-se contra a nova política racial patrocinada pela instituição. A Ford não só ampliava sua atuação junto aos movimentos sociais, como passava a dar mais atenção aos programas comunitários e às organizações negras e à formação de redes internacionais, em detrimento dos estudos acadêmicos. A preparação para a conferência de Durban, em 2001, foi um marco, um evento que pressionou, inclusive, o governo brasileiro, à frente do qual estava Fernando Henrique Cardoso, a se posicionar a favor de ações afirmativas para o combate à discriminação racial. O movimento negro tornava-se cada vez mais radical, e a Ford se redirecionava inexoravelmente para a sustentação de um novo eixo acadêmico e jurídico de sustentação às cotas. Algumas teses defendidas por Hasenbalg, que se haviam tornado bandeiras do movimento negro, tal como a denúncia da democracia racial enquanto ideologia dominante de sustentação da opressão racial no Brasil, passaram a ser castigadas incessantemente pelos adversários das cotas, alguns dos quais seus amigos muito próximos. A luta política passava a estressar e tensionar as relações pessoais.
Na luta pelo poder e reconhecimento acadêmicos, economistas ligados a órgãos governamentais como o IPEA acabaram por firmar-se mais alinhados com os interesses conjunturais dos movimentos negros, à medida que estavam mais próximos das agências governamentais e dos centros que desenhavam e implementavam as políticas públicas, além de terem maior exposição na mídia.
Havia a inclinação da Ford para voltar-se para os movimentos sociais, restringindo seu apoio ao campo acadêmico das ciências sociais. Mas havia também a crescente proeminência do PT, cindindo o campo político-acadêmico formado, nos anos 1960, na frente de luta contra a ditadura militar. Mais decisiva que tudo, a campanha pelas cotas acabava por fraturar completamente o campo acadêmico da esquerda liberal.
Carlos Hasenbalg retirou-se do campo acadêmico das relações raciais no final dos anos 1990, talvez para salvaguardar velhas amizades, talvez por ter-se sentido deslocado, talvez, como escreveu Livio Sansone, para evitar protagonismo político[20] — enfim, não sei, difícil saber, exatamente, as razões. Seria preciso avaliar com mais cuidado, e de posse de mais informações, cada uma dessas possibilidades. Certamente, ele sabia que já tinha feito, e muito bem, a sua parte. O que podemos dizer, ademais, sem qualquer dúvida, é que nenhuma das ideias que estavam em jogo na arena política lhe era estranha, e que nada do que estava a acontecer deixava de ser devedor do seu trabalho de vinte anos.
Finalmente, em 2005, Hasenbalg se aposentou e retornou à sua Buenos Aires, acalentando o desejo de estudar temas afro-argentinos e mapuches. Seus melhores amigos não entenderam direito os motivos do retorno; embora caloroso, ele era um homem reservado em relação aos seus sentimentos. Restringia-se a um comentário aqui, outro ali, com eles geralmente em algum botequim. Sua história pessoal e seus vínculos com a Argentina, sua infância e juventude estão bem guardados.
Não me lembro da última vez em que estive com ele. Entrevistei-o por e-mail, em 2006, mas não tive mais a oportunidade de encontrá-lo pessoalmente. Em 5 de outubro de 2014, Carlos Hasenbalg morreu em Buenos Aires, aos 72 anos de idade.
Obras selecionadas de Carlos Hasenbalg
Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Rio de Janeiro: Graal, 1979. A segunda edição, de 2005, foi publicada em São Paulo, pela Humanitas.
“Apresentação do dossiê Laboratório de Pesquisa sobre Desigualdades Raciais”, Estudos Afro-Asiáticos, n. 23 (1992), pp. 5-6.
“Privilégios: relato de uma trajetória acadêmica”, Dados, v. 57, n. 4 (2014), pp. 905-17.
Estrutura social, mobilidade e raça, Rio de Janeiro: Vértice, 1983 (em coautoria com Nelson do Valle Silva).
Relações raciais no Brasil contemporâneo, Rio de Janeiro: Rio Fundo, 1992 (em coautoria com Nelson do Valle Silva).
Origens e destinos: desigualdades sociais ao longo da vida, Rio de Janeiro: IUPERJ; UCAM; Topbooks; Faperj, 2003 (em coautoria com Nelson do Valle Silva).
Cor e estratificação social, Rio de Janeiro: Contracapa, 1999 (em coau- toria com Nelson do Valle Silva).
Lugar de negro, Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982 (em coautoria com Lélia Gonzalez).
Racismo: perspectivas para um estudo contextualizado da sociedade brasileira, Niterói: EDUFF, 1998 (em coautoria com Kabengele Mu- nanga e Lilia Schwarcz).
Notas