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MÃO DE OBRA CHINESA EM TERRAS BRASILEIRAS NOS TEMPOS JOANINOS: EXPERIÊNCIAS, ESTRANHAMENTOS, CONTRATOS, EXPECTATIVAS E LUTAS
MÃO DE OBRA CHINESA EM TERRAS BRASILEIRAS NOS TEMPOS JOANINOS: EXPERIÊNCIAS, ESTRANHAMENTOS, CONTRATOS, EXPECTATIVAS E LUTAS
Afro-Ásia, núm. 57, pp. 151-185, 2018
Universidade Federal da Bahia
Recepción: 5 Agosto 2017
Aprobación: 14 Noviembre 2017
Resumo: O artigo discorre sobre a presença de trabalhadores chineses no Brasil joanino. Do ponto de vista macro, busca compreender os motivos da vinda dessa mão de obra como uma estratégia de redefinição da importância geopolítica do Império Português, com sua metrópole interiorizada no Rio de Janeiro. E conecta essa peculiaridade conjuntural com os problemas globais que anunciavam o fim do tráfico de africanos escravizados e o fomento do trabalho compulsório. Do ponto de vista micro, procura esmiuçar os contratos firmados entre as partes envolvidas, para que seja possível conhecer as reais expectativas dos sujeitos históricos. Por fim, analisam-se os estranhamentos e as lutas dos chineses para que suas vontades fossem impostas, estivessem elas registradas ou não nos documentos por eles firmados.
Abstract: This paper works on the presence of Chinese workers in Brazil in d. João VI era. From the macro view, it aims at understanding the reasons of the arrival of the man power as a resetting strategy of geopolitical importance of the Portuguese Empire, with its country side metropolis in Rio de Janeiro. And links this conjuncture particularity to the global problems that announced the tragic end of the traffic of African slaves and inputs of the compulsory work. From the micro view, in aims at detailing the agreements entered into between the parties, so it is possible to learn the actual expectations of the history subjects. Finally, we analyze the barriers and the struggles of the Chinese so their wills were imposed, were they registered or not in the documents they signed.
Keywords: indentured labor, Chinese, d. João VI era, global workforce.
Palavras chave: trabalho compulsório, chineses, período joanino, trabalho global
A historiografia especializada indica que, oficialmente, entre 1847 e 1874, mais de 250.000 chineses foram introduzidos em atividades produtivas do Caribe e da América do Sul. No tocante àquele primeiro marco temporal, os registros disponíveis indicam que, no mês de junho, 571 imigrantes asiáticos desembarcaram no porto de Havana. Esses estrangeiros, que fizeram uma dura travessia transoceânica, chegaram ao seu novo destino atrelados a um contrato de trabalho que os obrigava a ficar em Cuba até o fim da prestação de seus serviços. O acontecimento foi fruto de acordos sino-ingleses que passaram a regular a introdução daquela mão de obra para além dos limites do Sudeste Asiático, algo que até então era proibido pelo Império Celestial.1 A mudança política somente foi possível após a assinatura do Tratado de Nanquim, que, em 1842, escancarou as portas da China para os interesses capitalistas após a primeira Guerra do Ópio.2 O outro marco temporal nos remete à proibição da saída de emigrantes pelo porto de Macau, por onde embarcou a maior parte dos trabalhadores chineses para o que se convencionou chamar, no período, de “escravidão temporária” em terras americanas.3
O deslocamento de milhares de chineses para o continente americano, feito legalmente sob o regime de contrato temporário de trabalho, pode ser associado ao que a historiografia mais tradicional chamou de processo de “transição” do trabalho escravo para o trabalho dito livre.4 Contudo, destacamos uma peculiaridade na história da emigração chinesa para o Novo Mundo. Nas primeiras décadas do século XIX, o Caribe e a América do Sul receberam algumas poucas levas de trabalhadores asiáticos, mesmo que à revelia das proibições que eram impostas pelo Império Celestial e da inexistência de acordos internacionais que regulassem a matéria.5 Podemos inferir que os deslocamentos transoceânicos ocorridos no alvorecer dos Oitocentos foram eventos estratégicos, intimamente vinculados às primeiras leis inglesas que proibiram o tráfico atlântico de africanos escravizados. Por isso, parece evidente que a contratação de imigrantes asiáticos no período em quadro foi uma maneira de os capitalistas experimentarem alternativas de “transição” do regime jurídico de trabalho em conjunturas de relativa insegurança quanto ao futuro do escravismo.
Ao tomarem como referência analítica o período entre os anos 1800 e 1870, os especialistas continuam encontrando dificuldade para se aproximar do total de chineses que emigrou para o Caribe e para a América do Sul. De qualquer forma, antes de 1847, quando a emigração para outros continentes era terminantemente proibida pelo Império Celestial, há indicativos de que o número de embarcados para as terras americanas foi mesmo muito insignificante do ponto de vista demográfico. Sendo assim, o quantitativo total não extrapolaria, de forma muito significativa, os mais de 250.000 chineses computados. Por sua vez, quando reduzimos a escala espacial de nossa observação, encontramos um problema metodológico semelhante. Ao estudarem os registros dos imigrantes que desembarcaram nos portos brasileiros entre a regência de d. João e o império de d. Pedro II, os pesquisadores que se debruçaram sobre a temática afirmam, sem muita segurança empírica, que entre 1.000 e 2.500 súditos do Império Celestial chegaram às terras brasileiras.6 Em termos estatísticos, podemos sugerir que apenas um inexpressivo montante entre 0,4% e 1% de chineses emigrados trabalhou por aqui.
Podemos dividir em três vertentes a bibliografia que lançou seu olhar sobre a imigração chinesa ocorrida no Brasil entre os anos 1800 e 1870. Na primeira delas, temos os trabalhos de historiadores e de cientistas sociais que colecionaram fontes de naturezas diversas, fizeram análises mais tradicionais sobre política, cultura e economia e publicaram suas obras fora do país — especialmente em Macau e Portugal, em vista do maior interesse pelo tema nessas localidades. Sem dúvida, o mais destacado pesquisador dessa corrente é Carlos Francisco Moura, que, desde a década de 1970, revela e interpreta fontes brasileiras, macaenses e portuguesas sobre a presença de chineses em nosso país.7 Na segunda vertente, encontramos os historiadores que estudaram os debates oitocentistas que foram travados entre acadêmicos, políticos e proprietários brasileiros, que apontaram para os prós e contras da imigração chinesa entre os anos 1850 e 1880, quando da desagregação do escravismo.8 A última vertente reúne os mais diversos escritos que não tiveram como interesse principal a antiga imigração chinesa para o Brasil, mas que, de alguma forma, tocaram na questão.9
Apesar desses importantes esforços de divulgação e de interpretação, os pouquíssimos chineses que desembarcaram no Brasil entre os anos de 1800 e 1870 ainda são desconhecidos. Eles permanecem praticamente invisíveis quer para os historiadores, quer para o público em geral. O texto que agora ofereço ao leitor, sobre o trabalho compulsório executado por chineses no tempo da regência e do reinado de d. João nos trópicos, é o início de uma investigação de mais fôlego. Ela tem como balizas o projeto de introdução de culturas chinesas (principalmente o chá) na metrópole recém-interiorizada, fruto da transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, e os relatos da permanência de uma “colônia chinesa” na mesma cidade no final do império de d. Pedro II. Especialmente sobre esta última baliza, os cronistas da Primeira República ainda escreviam sobre a presença dos chineses em locais “pestilentos” como cortiços e quiosques, onde se “amontoavam” para fumar ópio e vender peixe.10 Na base dessas descrições, sempre surge o viés racista que atribuiu ao povo chinês natural “incapacidade”, “perfídia” e “melancolia”.11
O objetivo geral da pesquisa que inicio, e que tem como primeiro resultado este texto, é realizar interpretações sobre as experiências dos trabalhadores chineses que se instalaram em nosso país, no transcorrer do século XIX, por meio das chaves analíticas oferecidas pela história social, especialmente quando estão vinculadas às questões relativas ao trabalho compulsório em sociedades escravistas.12 Nesse sentido, o estudo das relações laborais e cotidianas que envolveram os imigrantes chineses permitirá que adensemos as análises que demonstram os tênues limites entre o trabalho dito livre, o trabalho compulsório e o trabalho escravo. E isso será feito por meio de um objeto absolutamente peculiar à trajetória da historiografia social brasileira, que possui significativa e reconhecida produção acadêmica sobre os efeitos dos regimes de trabalho precarizado nas vidas tanto de imigrantes europeus, quanto de negros na diáspora. Por meio das fontes documentais, pretendo que meus estudos sobre os imigrantes chineses ofereçam mais elementos comparativos para que melhor compreendamos as opressões e as exclusões que fundamentam a formação da sociedade brasileira.
Oriente, geopolítica e o Império Português no tempo da transferência da corte
Desde o final do século XVIII, certos grupos britânicos planejavam “substituir”, nas Índias Ocidentais, a mão de obra africana escravizada pela chinesa contratada. Em 1806, pioneiramente, um número entre 150 e 200 chineses foram introduzidos por empreendedores ingleses nas culturas de Trinidad, mas, por causa de conflitos e de distratos, a iniciativa foi relativamente malsucedida. Certamente, os responsáveis pelo empreendimento econômico sabiam o que estava por vir. Um ano depois, o governo inglês decidiu pelo fim do tráfico de africanos escravizados em seus domínios, o que, inicialmente, dirigiu para a Índia o problema da imigração de trabalhadores contratados. Portugal não estava alheio às conjunturas e soube compreender o momento. Por mais que fosse contrário ao fim do tráfico de africanos escravizados e tenha mantido o fluxo de cativos do continente negro para o Brasil, seus súditos aumentaram o uso do porto de Macau para transportar trabalhadores chineses, sob o regime de precariedade laboral, para os mais diversos pontos do Sudeste Asiático. Eles sabiam o quanto era lucrativo e estratégico esse negócio oriental.13
Parece evidente que, para os portugueses, essa opção de “traficar” um expressivo contingente de trabalhadores chineses precarizados era uma chance de potencializar novos negócios e significativos ganhos em sua possessão asiática. Desde as primeiras décadas do século XVII, os lusitanos perderam seu protagonismo na mediação comercial entre Ocidente e Oriente — o que representou grandes perdas financeiras para seus combalidos cofres. No período em quadro, isso aconteceu porque chineses e outros europeus começaram a enfraquecer a importância mercantil da colônia portuguesa, pois estavam incomodados com sua autonomia geopolítica e econômica no Sudeste Asiático. Outros portos do Império Celestial começaram a oferecer substanciais vantagens no comércio com os ingleses, entre outros agentes. Nessa conjuntura, o porto do Cantão ganhou especial destaque, ultrapassando rapidamente o volume de importações e de exportações que era registrado por Macau. Esse último entreposto comercial foi ainda mais prejudicado pela perda de sua conexão oficial com Manilha e pela conquista de Malaca pelos holandeses.14
A autonomia de Macau e de seu porto frente ao Império Celestial abria espaço para que o governo português conseguisse arregimentar os mais diversos tipos de excluídos, fugitivos da Justiça e párias de localidades vizinhas, especialmente de Cantão, para que trabalhassem sob o sistema de contratos.15 Os cantonenses e demais chineses que saíam de seus domínios para buscar refúgio na colônia portuguesa acabavam encontrando novos problemas. Por exemplo, eles não estavam protegidos pelo decreto de 1761, que ordenou o mesmo tratamento para os súditos cristãos que fossem asiáticos, africanos orientais e europeus nascidos na metrópole.16 Na condição de estrangeiros que também professavam religiões consideradas pagãs, uma das poucas formas que encontravam para sobreviver era o engajamento em serviços precarizados que fossem oferecidos em alguma localidade do Sudeste Asiático. Antes de embarcarem para seus destinos, recebiam tratamento similar ao que era imputado ao africano escravizado no infame comércio atlântico. Todos ficavam confinados em barracões, aguardando o momento da partida. Durante a viagem ainda eram maltratados.17
Em 1807, na Bahia, o magistrado e desembargador João Rodrigues de Brito estava atento ao que acontecia na geopolítica do período, como podemos observar em sua resposta à consulta feita pelo príncipe regente ao conde da Ponte, que era o governador-geral da referida capitania. Nas Cartas econômico-políticas sobre a agricultura e o comércio da Bahia, aquela autoridade judiciária, que também era homem de saber ilustrado, demonstrou toda sua crítica ao trabalho executado pelos africanos escravizados em sua região. No lugar dos cativos, em sua ótica, deveriam ser atraídos para a economia local “chinas e índios orientais, como já fizemos em outro tempo e fazem atualmente os ingleses, povoando com eles a sua colônia de Pulpinan”. Para João Rodrigues de Brito, vinculado ideologicamente ao liberalismo clássico, que era absolutamente favorável ao dito trabalho livre e à dita liberdade dos mercados, a contratação de asiáticos motivados com a venda de sua mão de obra permitiria que a colônia ganhasse “não só braços laboriosos, mas ativos, industriosos, e peritos na prática das artes e agricultura”.18
Não é meu objetivo nesta seção entrar no mérito das considerações racializadas e economicistas do magistrado e desembargador João Rodrigues de Brito, mas quero destacar que existiram autoridades coloniais deste lado do Oceano Atlântico, baianas, no caso, atentas ao fim do tráfico na Inglaterra e às novas demandas que isso poderia gerar na obtenção de trabalhadores pelo mundo. Com a transferência da corte para o Rio de Janeiro, em 1808, as novas conjunturas no mundo do trabalho conquistaram interessantes contornos. No dia 6 de março do ano seguinte, o ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, sabedor da rentabilidade obtida com a contratação de chineses, propôs o envio de “operários de todas as classes” para os mais diversos serviços que seriam precisos na criação da nova metrópole.19 A historiografia recente permite inferir que essa proposta foi desconsiderada, tendo em vista a maciça presença de africanos escravizados nas obras da recém-promovida capital do Império Português. Os cativos eram arregimentados nas prisões da corte, que acabaram por fornecer mão de obra de baixo custo e de fácil obtenção legal pelas autoridades locais.20
No início do século XIX, parece evidente que a contratação de trabalhadores chineses em cidades como Rio de Janeiro, Recife e Salvador somente seria viável caso não ferisse os interesses do tráfico atlântico e de suas redes políticas, sociais e econômicas. Isso porque aquelas importantes praças comerciais eram absolutamente dependentes do trabalho dos africanos escravizados e dos capitais acumulados com sua compra e venda. Não por acaso, no período em quadro, falhou o plano do conde de Linhares, d. Rodrigo de Souza Coutinho, que pretendia introduzir em terras brasileiras dois milhões de chineses para que a povoassem e trabalhassem nas mais variadas atividades agrícolas e artesanais.21 Nesse sentido, especialmente após a transferência da corte para os trópicos, quando o tráfico de africanos escravizados se intensificou, os súditos do Império Celestial somente teriam mais chances de desembarcar em portos brasileiros caso ganhasse força algum projeto de introdução de suas culturas nativas no hemisfério sul, para que pudessem tocá-las com a expertise adquirida em sua terra natal e torná-las economicamente viáveis para a Coroa portuguesa e seus apaniguados.
Um dos mais ambicionados projetos de introdução de culturas chinesas abaixo do Equador era a aclimatação do chá no Rio de Janeiro, para que a Coroa portuguesa e seus apaniguados entrassem na disputa pelo absolutamente lucrativo comércio dessa mercadoria.22 Atento a essa ambição, na mesma época em que ofereceu operários chineses para executarem obras na nova corte, o Ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, sugeriu o envio de sementes e plantas de chá para a metrópole interiorizada, que seriam devidamente acompanhadas de agricultores especializados em seu cultivo e cuidados.23 Pouco tempo depois, em 1810, foi publicada uma carta régia que recomendava a plantação da amoreira na Bahia.24 Como se sabe, o bicho-da-seda se alimenta das folhas dessa árvore, sendo o fio produzido por esse inseto a principal matéria-prima do mais desejado tecido oriental. No ano seguinte, 1811, o conde das Galveias, d. João de Almeida Melo e Castro, em ofício expedido para aquela mesma autoridade macaense, recomendava que o ópio fosse produzido e comercializado em terras brasileiras, em razão de seu alto consumo no continente asiático.25
No atual estágio de minha investigação, que está em sua fase intermediária, nada posso comentar sobre o plantio do ópio em terras brasileiras, pois faltam (ou inexistem) materiais empíricos sobre o assunto. Contudo, especificamente sobre o cultivo da amoreira, há alguns indícios de que a carta régia de 1810 mobilizou alguns corações e mentes do lado de cá do Oceano Atlântico. No mesmo ano da publicação do referido documento oficial, as fontes permitem afirmar que existiram arbustos daquela planta sendo aclimatados no Campo de Santana e na chácara de Antonio Gomes Barroso — provavelmente localizada na corte ou em seus arredores.26 Na Bahia, em 1811, observamos que o produtor rural Francisco Ignácio de Siqueira usava uma variedade local da amoreira para alimentar seus bichos-da-seda e, com isso, auferir alguma lucratividade.27 Por sua vez, no ano de 1815, no Espírito Santo, buscando viabilizar a criação de uma indústria americana de tecidos mais refinados, um pesquisador regional afirmou ter descoberto uma espécie nativa daquele valorizado inseto, que seria tão produtiva e qualificada quanto sua congênere chinesa.28
A bibliografia especializada, por sua vez, indica que existiram algumas tentativas de cultivo do chá no litoral sul da Bahia. Há informações de que, por lá, as primeiras sementes da planta oriental teriam germinado em 1811.29 No ano seguinte, na corte, encontramos indícios de que o chá também começou a ser cultivado no Real Horto, espaço criado e administrado pela Coroa portuguesa para a aclimatação de plantas consideradas exóticas e com significativo potencial econômico — o que vai ao encontro do que afirmei mais acima, sobre o desejo lusitano de competir pelo mercado da lucrativa bebida.30 Segundo os dados até aqui disponíveis, a Real Fazenda de Santa Cruz, localizada no Rio de Janeiro, teria sido o espaço escolhido pelas elites letradas e proprietárias para que a exploração do chá ganhasse fôlego comercial. O início do plantio se deu em finais do ano de 1814, quando a propriedade rural já estava sob o controle do governo joanino.31 Na cidade de São Paulo, poucos anos depois, mais precisamente em 1818, também encontramos relatos de que existiu uma experiência com o cultivo daquela planta.32
Os costumes (in)comuns dos imigrantes chineses no Brasil joanino
No transcorrer do texto, apontei para a imprecisão demográfica nos dados disponíveis sobre a imigração chinesa no Brasil oitocentista. Dentre os viajantes que estiveram em terras brasileiras no tempo da regência d. João, Wilhelm Ludwig Von Eschwege afirmou que 400 ou 500 deles chegaram ao porto do Rio de Janeiro no ano de 1812.33 Talvez baseado em considerações dessa natureza, Robert Conrad tenha calculado aproximadamente 500 imigrantes chineses no Brasil nos anos 1810.34 Nas poucas (mas importantes) fontes que foram publicadas e analisadas por Carlos Francisco Moura, e que estão guardadas no Arquivo Histórico Ultramarino, observamos que dois chineses seguiram para o Brasil em 1811. Uma leva de 25 e outra de 140 trabalhadores embarcaram em 1813. Aguardando para seguirem aos seus destinos, em 1814, 68 estiveram aquartelados na Ilha das Cobras. No ano seguinte, mais dez desembarcaram por aqui.35 Nas fontes do Arquivo Nacional, notamos que os asiáticos também se deslocavam internamente, como no caso da apresentação de quatro passaportes de chineses que viajaram, em 1814, de Caravelas, na Bahia, para a corte.36
Além da provável origem cantonense dos imigrantes, em razão das questões que discutimos, podemos imaginar que alguns deles fossem oriundos de Fukien. Dois fatos apoiam essa hipótese. O primeiro deles é que essa província foi uma das maiores fornecedoras de braços para o Caribe e para a América do Sul.37 O outro nos remete aos relatos de Johann Emanuel Pohl, pois, quando visitou a Real Fazenda de Santa Cruz, em 1818, identificou que a variedade de chá plantada na propriedade rural era oriunda daquela localidade chinesa.38 Por sua vez, Spix e Martius, ao visitarem o Real Horto no ano de 1817, registraram que a mão de obra nele empregada veio do interior da China, onde se produziam as melhores plantas.39 Os relatos de John Luccock parecem ratificar as impressões daqueles dois naturalistas bávaros, pois, quando esteve no Real Horto, em 1813, teve a oportunidade de conversar com o mestre do chá vindo da província central de Nanquim.40 Parece factível que os emigrados da China sejam naturais de todas essas localidades, na medida em que era preciso arregimentar os mais variados trabalhadores com os mais variados níveis nos místeres que envolviam a produção da planta.
Há outra coisa que também precisa ser destacada no texto do viajante Wilhelm Ludwig Von Eschwege: no tocante ao gênero, todos os emigrantes chineses que saíram de sua terra natal e seguiram para a corte, nos anos 1810, foram referidos como indivíduos do sexo masculino. De fato, a bibliografia especializada afirma que os chineses solteiros foram os que mais se lançaram na aventura transoceânica.41 Os homens casados geralmente estavam comprometidos com suas famílias. E suas mulheres, por sua vez, tinham compromissos sagrados em uma sociedade tradicionalista, que estava fundamentada em princípios confucionistas. Nesse sistema filosófico e religioso, a elas cabia o zelo com a casa, o papel de boas mães e de atenciosas esposas e o cuidado com os altares familiares dedicados aos ancestrais.42 De qualquer forma, sobre as questões que envolvem a ausência de mulheres chinesas em terras brasileiras, precisamos compulsar mais documentos, isso porque encontramos relatos de que existiram contingentes delas vivendo em lugares como Trinidad, Cuba, Suriname e Martinica no transcorrer do século XIX.43
Na construção do capitalismo, independentemente da forma jurídica do trabalho, o uso da mão de obra masculina foi uma tendência global, ainda mais quando era preciso abrir novas frentes econômicas — recordemos, por exemplo, o que ocorreu no tráfico de africanos escravizados.44 Precisamos tecer outra importante consideração que, talvez, indique a presença de alguns homens casados no cultivo do chá em terras brasileiras. Segundo os estudiosos, a priori, os trabalhadores que seguiram para o continente americano tinham a pretensão de voltar para suas origens ao término do contrato. Em tese, a ausência seria temporária. De uma forma geral, independentemente das circunstâncias que os obrigraram à contratação (quer a fuga por questões judiciais, quer a busca por sobrevivência, quer o sonho da riqueza), os súditos do Império Celestial pretendiam retornar porque eram vinculados à ancestralidade, deviam cuidados à família, achavam que todos os estrangeiros eram bárbaros e que era intolerável abandonar suas raízes. Tudo isso porque, entre outros fatores, o confucionismo renegava todo aquele que rompesse com suas obrigações religiosas e com seus ascendentes vivos ou mortos.45
Por todas as idiossincrasias que envolviam a vida cotidiana dos chineses que poderiam emigrar para terras brasileiras, alguns cuidados deveriam ser obervados. O ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, no mesmo documento que ofereceu operários para as obras da corte recém-transferida, escrito em 1809, apontou para a necessidade de cuidado com “alguns dos seus usos que não podem deixar de respeitar”.46 De certa forma, esse conselho encontrou eco na Real Fazenda de Santa Cruz. Em outubro de 1816, os administradores da propriedade rural relataram a ocorrência de uma festa com livros sagrados escritos em chinês, alimentos preparados à moda oriental, cantos devocionais, uma espécie de altar voltado para o nascente da lua e práticas litúrgicas.47 No início dos anos 1820, Maria Graham observou que as cabanas e os portões do estabelecimento onde estava plantado o chá eram todos feitos à moda chinesa. Ainda no início do ano de 1816, no litoral baiano, o príncipe Maximiliano notou que os imigrantes “conservaram os costumes do seu país natal”, como comer arroz com pauzinhos e celebrar festejos.48
Obviamente, junto da tentativa de relativo respeito às alteridades, percebemos estranhamentos de todos os lados. Como vimos mais acima, os chineses achavam que os estrangeiros eram bárbaros. A América do Sul era o lugar que continha o “Estado das Bestas”, habitado pelos povos mais desprezíveis.49 Os africanos eram descritos como “os ecravos pretos diabos dos países atlânticos”, e os vinculados aos holandeses eram os “diabos corvos”.50 Talvez isso possa nos ajudar a compreender, mesmo que parcialmente, a briga que ocorreu na Mata da Paciência, em 1816, entre os imigrantes contratados e os africanos escravizados da Real Fazenda de Santa Cruz. O entrevero exigiu reforço policial, mas a documentação disponível nada esclarece sobre o que aconteceu.51 Do outro lado da relação, por sua vez, as autoridades imperiais e os viajantes estrangeiros também tinham seus preconceitos e temores. Nas mais diversas fontes produzidas no período em quadro, os chineses tinham suas festas vigiadas, eram referidos como indolentes, ignorantes e pagãos.52 Até mesmo foram consideradas pessoas “sem nome”, talvez pelo simples fato de não possuirem nomes cristãos.53
Nos primeiros anos do século XIX, os julgamentos pejorativos que eram imputados aos chineses podem ser mais bem compreendidos quando observamos o menosprezo de John Luccock pelos que conheceu no Real Horto. Volto a ressaltar que tais críticas aos asiáticos não esgotam a leitura do problema, pois existiram alguns entusiastas de sua imigração. Para aquele comerciante inglês, “tais como os gregos modernos, a inteligência deles [dos chineses] se desviou e o caráter se envileceu por obra do domínio de bárbaros”. A solução para o Império Celestial seria reencontrar a liberdade perdida, pois assim “uma porção do mundo se abriria para a ciência e milhões de seres se exaltariam à dignidade de verdadeiros homens”.54 Tal perspectiva racializada e colonialista, segundo Edward Said, foi forjada pelo “orientalismo” enquanto ramo acadêmico do saber europeu. Comparativamente, no Description de l’Égypte, publicado a partir de 1809, esse país africano surge como um antigo centro de saber e de civilização que estava mergulhado na barbárie. Caberia aos homens de ciência, europeus brancos, “libertá-lo” para que retomasse o dito progresso.55
Aproveitando a referência feita ao crítico literário palestino, que desconstruiu a pretensa homogeneidade do termo “oriental” e solapou os preconceitos racistas que o mesmo naturalizou no imaginário coletivo e acadêmico, quero deixar algo bastante evidente ao leitor. Ao sublinhar alguns elementos constituintes da “economia moral” (no sentido thomponiano mais clássico) dos chineses que desembarcaram em terras brasileiras nos tempos da regência e do reinado de d. João, em nenhum momento pretendi tomá-los como um grupo homogêneo, ou, em outras palavras, como um coletivo engessado por “traços” étnicos ou culturais. Aqui faço especial referência aos debates que entendem as identidades culturais e étnicas como construções sociais. Do ponto de vista desses vieses científicos, ambas são sinais diacríticos instituídos na relação dialógica entre as peculiaridades conjunturais do espaço-tempo e as mais diferentes experiências quer de indivíduos, quer de sociedades. Em suma, nessa linha do pensamento crítico, propõe-se que ninguém nasce com uma natureza apriorística, mas que todos se constituem como sujeitos na percepção da alteridade.56
Nesse momento de minha investigação, apesar da efetiva existência de uma identidade mais geral que aproximava os chineses que desembarcaram no Rio de Janeiro joanino, entre eles também existiram conflitos internos e significativas diferenças. Uma prova disso pode ser revelada na forma como os chineses se organizavam na Real Fazenda de Santa Cruz. No primeiro semestre de 1818, o mestre do chá João China e seus companheiros do Cantão recorreram às autoridades do estabelecimento que os empregava na lavoura, denunciando que foram “por várias vezes atacados pelos chinas de Macau sem haver razão ou motivo algum”. No documento, os reclamantes ainda diziam que “desejavam viver quietos e pacíficos para com melhor gosto se empregarem no serviços”. E para reforçarem seus argumentos contra os agressores, os cantonenses sublinharam que aqueles primeiros eram “conhecidos por homens maus e amigos da desordem”.57 Independentemente do jogo retórico e da conveniência do relato, fica evidente que existiram cisões entre os plantadores de chá, talvez fundamentadas em suas linhagens.58
Sobre os dois coletivos acima referidos, Cantão e Macau, podemos também traçar paralelos com o que Mariza de Carvalho Soares chamou de “grupos de procedência”, quando estudou as etnias africanas desembarcadas no Brasil escravista. Assumir determinado etnônimo diaspórico, na visão da historiadora, não significava necessariamente que o cativo africano fosse mina, benguela, cabinda etc. Muitas vezes, esse tipo de identidade étnica era uma referência ao porto de embarque. De qualquer forma, essa peculiariade possibilitava a contrução de novas solidariedades frente ao futuro incerto que aguardava mulheres, homens e crianças africanos em terras estranhas.59 Nesse sentido, comparativamente, quando os chineses que trabalhavam na Real Fazenda de Santa Cruz se autointitulavam Cantão ou Macau, poderiam simplesmente fazer uma referência ao porto de embarque, independentemente de sua linhagem ou origem espacial. Corrobora essa ilação o fato de que muitos asiáticos, de várias origens, seguiram para Macau tentando conseguir trabalho precário no Sudeste Asiático, como demonstrei em outro momento do artigo.
Os contratos feitos com os chineses, seus termos e sua base legal
Os poucos contratos disponíveis indicam que o conde da Barca, Antonio de Araújo e Azevedo, foi um dos grandes interessados em colocar o Império Português no jogo geopolítico que envolvia o cultivo de plantas orientais. Esse homem de Estado era ilustrado, veio com a corte para o Rio de Janeiro e ocupou importantes cargos públicos.60 Pelo menos desde sua estada em terras brasileiras, podemos afirmar que o nobre lusitano tanto utilizou mão de obra chinesa em suas propriedades quanto articulou seu emprego nas reais. No ano de 1814, por exemplo, quatro chineses vindos de Caravelas, na Bahia, foram mandados para sua casa na nova metrópole.61 É próvável que tenham vindo de sua fazenda Ponte do Gentio, localizada na margem norte do rio Alcobaça. Em 1816, o príncipe Maximiliano visitou esse estabelecimento rural, quando se deparou com nove chineses. Um deles se tornou cristão e se casou com uma índia da região. Os outros mantiveram seus costumes. Antes de seguirem para a Bahia, contudo, esses chineses já haviam plantado chá na corte, o que reforça a prática da migração por terras brasileiras de acordo com múltiplos interesses.62
Junto dos mais variados projetos pessoais do conde da Barca, parece ser fácil entender a intensa circulação dos referidos chineses entre o sul da Bahia e a corte quando atentamos para alguns dados econômicos. O exercício que sugiro é lançarmos nosso olhar para o movimentado comércio entre as duas regiões via cabotagem, por exemplo. De uma forma geral, aquela primeira localidade brasileira era uma importante fornecedora de farinha de mandioca para a nova metrópole dos tempos joaninos.63 Em 19 de setembro de 1811, de forma mais específica, as fontes ainda revelam que Caravelas era uma destacada vendedora de farinha de milho e de feijão para o Rio de Janeiro.64 Sabemos que os três produtos agrícolas que foram arrolados compunham a principal dieta da população mais pobre, o que exigia forte demanda na produção e precisa agilidade na distribuição — algo absolutamente necessário com o crescimento demográfico da corte, registrado após 1808. Talvez os empregados asiáticos de Antonio de Araújo e Azevedo estivessem circulando entre as lavouras de subsistência e as de chá, de acordo com a sazonalidade agrícola e as conveniências de seu patrão.
No transcorrer de 1814, servindo diretamente aos interesses do príncipe regente d. João, e na condição de seu secretário da Marinha e Domínios Ultramarinos, o conde da Barca, Antônio de Araújo e Azevedo, organizou com o sempre interessado ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, a contratação e o traslado de chineses para o cultivo do chá na Real Fazenda de Santa Cruz.65 Aos 3 de setembro daquele ano, as fontes indicam que os trabalhadores asiáticos foram conduzidos pelas autoridades dos arredores da corte para escolher os espaços onde poderiam plantar as sementes e os arbustos do chá. Em ordem de preferência, eles entenderam que os lugares mais convenientes para a nova cultura eram o Morro do Ar e o Chaperó.66 Logo aos 11 de outubro, encontramos indícios de que o conde da Barca determinou o pagamento das despesas feitas com os chineses empregados no serviço oficial.67 Poucos meses depois, no início de janeiro de 1815, após um longo período de chuvas, o alojamento dos súditos do Império Celestial finalmente ficou pronto na casa à entrada da plantação de café do referido estabelecimento rural.68
Ainda sobre a corte, as fontes disponíveis não permitem saber mais detalhes sobre os contratos firmados e sobre os contratadores que estiveram envolvidos com o emprego de chineses no Real Horto e na Quinta da Boa Vista. Especialmente sobre este último espaço de recreio cortesão, John Luccock, em sua visita ao Rio de Janeiro, ocorrida em 1813, afirmou que por lá se plantava laranja, café, banana, mimosa e grande variedade de flores.69 Não é possível ainda saber em que culturas os chineses trabalhavam nas cercanias do Paço Real, mas, nos meses de julho, agosto e setembro daquele ano, dois chineses prestaram serviços nas terras da propriedade localizada no bairro de São Cristóvão e receberam as devidas comedorias por isso.70 O mesmo tipo de pagamento também havia sido feito para dois chineses, talvez os mesmos, em agosto de 1812.71 Somente um súdito do Império Celestial recebeu pagamento por comedorias em janeiro de 1818.72 Por ora, sobre os anos de 1810, a documentação compulsada não permite dizer se houve o fim do contrato, renovações, novas contratações, distratos, fugas ou piora nas condições de trabalho.
Os termos formais dos contratos que foram estabelecidos com os trabalhadores chineses, relativos às levas de 1811, 1813 e 1815, seguiram alguns importantes padrões. Eles indicam que deveria haver imediato adiantamento de salários no valor de 30 patacas para mestres de chá e para carpinteiros navais e de 20 patacas para colonos. Em um dos documentos, existe a indicação de que a pataca equivalia a 1$600rs. Tomando esse valor como referência, os adiantamentos teriam sido de 48$000rs e de 32$000rs. Tais valores deveriam ser destinados às famílias dos contratados, sendo pagos antes da partida. Para devolvê-los aos contratantes, os salários dos trabalhadores chineses deveriam ser descontados durante dez meses no valor de 10%. Sem descontos, artesãos perceberiam mensalmente 4$800rs, e os colonos 4$000rs. Durante o período de abatimento, os asiáticos não poderiam deixar o local de labuta. Em compensação, receberiam do patrão as devidas comedorias — o que explica, em parte, os pagamentos que foram feitos aos chineses que estiveram na Quinta da Boa Vista. Ao término dos dez meses, eles poderiam arrumar outro serviço ou repactuar com o contratante.73
Nos anos 1810, segundo a documentação, a tentativa de contratação de carpinteiros navais chineses pode ser explicada pela constante falta de mão de obra qualificada em estabelecimentos militares brasileiros. Em 1814, por exemplo, o Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro havia pedido alguns profissionais daquela arte mecânica ao Arsenal de Marinha da Bahia.74 Três anos depois, em 1817, as fontes permitem observar que já existiam carpinteiros navais chineses trabalhando nas instalações do depósito de armas da corte. É bastante provável que eles tenham chegado ao Rio de Janeiro, sob o regime de contrato, no ano de 1815 — considerando-se as levas que indiquei mais acima. Ainda em 1817, alguns dos artífices asiáticos do Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro haviam sido cedidos para realizar certas obras na Real Fazenda de Santa Cruz, que passava por importantes reformas estruturais. Além dos estrangeiros, eram tantos os operários envolvidos na empreitada, que as autoridades públicas solicitaram o aumento da guarda e a realização de rondas noturnas para a garantia do sossego público.75
Nos termos dos contratos disponíveis, encontramos também algumas curiosas peculiaridades. Elas foram constituídas a partir de negociações possíveis, nas quais cada parte envolvida tentava maximizar ganhos e minimizar perdas. Para tanto, era fundamental ter a mais afinada percepção das conjunturas e das demandas, assim como do capital simbólico que serviria como moeda de troca. Os dois mestres de chá que assinaram o documento de 1811, por exemplo, além de terem garantido os adiantamentos costumeiros, conquistaram patentes militares durante a viagem transoceânica. Com a graduação, veio junto o pagamento de cinco meses de soldada.76 Como vimos no transcorrer deste texto, as viagens pelo Sudeste Asiático eram feitas de forma precária, e o tratamento recebido pelos chineses era bastante similar ao que era imposto aos africanos escravizados. Ao tomarem para si patentes militares e suas prerrogativas, os peritos no plantio do chá desejavam garantir um tipo de tratamento diferenciado que achavam merecer, seja pela sua especialização, seja pelo entendimento de sua importância no negócio que seria iniciado na América do Sul.
De certa forma e com algumas limitações, a viagem dos dois mestres do chá pode ser acompanhada por meio da documentação. Em 25 de julho de 1811, ambos os estrangeiros chegaram à Bahia, vindos de Macau, junto com uma carga de chá e suas sementes. A longa e extenuante jornada pelos mares durou 114 dias e, como sugeri, deve ter sido amenizada pelas vantagens que eles conseguiram negociar antes da assinatura do contrato. Segundo as fontes disponíveis, o Aviso de 14 de julho de 1810 permitiu que a aventura transoceânica ocorresse. Pouco mais de um mês após o desembarque no porto baiano, aos 26 de agosto, os especialistas chineses conseguiram uma autorização para seguir ao seu destino final, a cidade do Rio de Janeiro — Aviso de 21 de agosto de 1811.77 Caso recordemos o que foi referido no transcorrer deste artigo, podemos inferir que as primeiras plantas de chá que brotaram no litoral sul da Bahia foram semeadas pelos dois peritos recém-chegados. Inclusive, tendo em vista a localização da experiência agrícola, é possível arriscar que tenha sido realizada em terras do conde da Barca, Antonio de Araújo e Azevedo.
No contrato de 1815, os trabalhadores chineses demonstraram preocupação com sua segurança alimentar, cujas bases eram as comedorias obrigatórias que deveriam ser fornecidas pelos contratantes. Segundo as fontes, estas últimas seriam servidas duas vezes ao dia. O que fosse consumido para além dessas porções ficaria sob a responsabilidade dos carpinteiros navais. Entretanto, os contratados impuseram uma cláusula bastante interessante. Caso os mantimentos fossem ou ficassem caros em terras brasileiras, exigindo que os chineses gastassem mais do que venciam, eles desejavam que o consumo extraordinário fosse assumido pelos patrões. No jogo de forças quase sempre assimétricas, os contratantes tiveram potência suficiente para impor uma importante condição aos artesãos. Independentemente da vontade dos trabahadores chineses, caso o príncipe regente desejasse dispor de sua mão de obra nos arsenais, poderia fazê-lo. Feita a requisição, os especialistas da arte mecânica teriam de ficar por lá sem data prevista para o fim dos trabalhos.78 Obviamente, as cláusulas contratuais até aqui analisadas poderiam ou não ser respeitadas na realidade concreta da vida cotidiana.
Não tenho por objetivo, neste texto, aprofundar as questões teóricas sobre a natureza jurídica dos contratos que foram firmados com os trabalhadores chineses que imigraram para terras brasileiras nos tempos joaninos. Entretanto, no caso dos acordos que foram firmados entre o Império Português (ou seus súditos) e a mão de obra asiática (ou seus agenciadores), parece evidente que precisamos construir pontes entre eles e as determinações legais que estavam prescristas nas Ordenações Filipinas e na legislação inglesa que regulou o chamado indentured labor no Sudeste Asiático — por serem seus criadores os principais agentes do negócio. No caso do referido conjunto de regras lusitano, o prestador de serviços ficava compulsoriamente atrelado ao patrão durante a vigência do contrato, sem a possibilidade de distratá-lo de forma unilateral e sujeito a penas, caso o fizesse, especialmente quando não reembolsava os adiantamentos recebidos.79 Isso não era muito diferente do que ocorria no Império Britânico, onde havia a criminalização do trabalhador que quebrava o acordo. Ele era taxado como “vadio” e sofria fortes e sumárias sanções criminais.80
Nas últimas décadas, em razão de novas abordagens teóricas e consistentes pesquisas empíricas, algo parece bastante consensual entre os historiadores do trabalho: o entendimento sobre as formas de contratação de pessoas juridicamente livres, no tempo em que vigia o escravismo, está cada vez menos engessado por idealizações sociologizantes. Em outras palavras, perde força a perspectiva de que existiu uma “transição” teleológica do trabalho escravo para o dito trabalho livre, como se este último substituísse progressiva e evolutivamente aquele primeiro. Nesse sentido, cada vez mais relativizamos a noção de que os sujeitos ditos livres, ou seja, sem coerção máxima no campo legal, tivessem plena liberdade para vender sua mão de obra e escolher as melhores relações laborais. Poder pactuar um contrato formal de trabalho não livrava o contratado da precariedade e da compulsoriedade, contudo, isso nunca significou passividade no acerto do acordo ou submissão absoluta à vontade do contratante.81 E isso não poderia ser diferente com os chineses que imigraram para terras brasileiras nas primeiras décadas do século XIX.
Mundo do trabalho, vida cotidiana, contratos desrespeitados e lutas
Nas relações cotidianas, nas quais alguns termos dos contratos eram desrespeitados pelas partes envolvidas, muitos conflitos e abusos ocorreram. Em 1816, na Bahia, na mesma medida em que os trabalhadores chineses foram considerados “indolentes” e “preguiçosos”, eles diziam que sua vida era muito melhor em sua terra natal. Ao mesmo tempo, se os contratantes pretendiam que os imigrantes somente trabalhassem nos locais determinados pelos acordos, os imigrantes reivindicavam o direito de mascatear e acumular algum dinheiro extra, pois haviam trazido porcelanas e leques para vender.82 Em data indeterminada, no Real Horto, quando pareciam fugir de tarefas que achavam injustas, há indícios de que alguns chineses foram perseguidos por d. Miguel e seus cães de caça.83 Na Real Fazenda de Santa Cruz, entre setembro de 1815 e abril de 1817, os súditos do Império Celestial receberam comedorias e salários de 3$200rs mensais.84 Considerando-se como parâmetro os termos dos contratos apresentados, esse valor era inferior ao combinado, mesmo quando computamos os descontos previstos nos dez primeiros meses de trabalho.
Provavelmente insatisfeito com o engodo salarial e vítima de outras arbitrariedades, ou até mesmo porque simplesmente não pretendia renovar seu contrato, um grupo de trabalhadores chineses da Real Fazenda de Santa Cruz pediu autorização para voltar a Macau. Ele embarcaria em uma nau holandesa atracada no porto da corte. Em 28 de junho de 1816, o comandante da Brigada Real da Marinha do Rio de Janeiro, Joaquim José da Silva, questionou uma susposta autorização de viagem que teria sido expedida por uma autoridade daquele estabelecimento agrícola.85 Ainda não encontrei fontes que permitam destrinchar os reais motivos do desejo de retorno à Ásia, mas o acontecido pode estar apoiado em uma série de colocações que foram feitas neste texto. Entre elas, para além das que apontei logo acima, o desejo de voltar para a terra da ancestralidade e das convicções religiosas, a intolerância aos “bárbaros” da América do Sul, a ojeriza aos “escravos pretos diabos dos países atlânticos” (recordemos da briga com os africanos escravizados na Mata da Paciência, que ocorreu em fevereiro) e o desrepeito aos seus costumes (in)comuns.
Independentemente de o referido grupo ter embarcado ou não de volta ao porto de Macau, por causa das contrariedades experimentadas em terras brasileiras nos tempos joaninos, os trabalhadores chineses continuaram a lutar por arranjos de vida e de trabalho mais satisfatórios — exigindo direitos e/ou burlando obrigações contratuais. Sobre este último aspecto, por exemplo, eles fizeram de tudo para mascatear. No segundo semestre de 1817, Spix e Martius relataram que a maioria dos asiáticos que lavrava a Real Fazenda de Santa Cruz também seguia para “a cidade, a fim de andar pelas ruas como vendedores ambulantes, oferecendo pequenas bugigangas chinesas”.86 No ano seguinte, Johann Emanuel Pohl fez semelhante consideração quando passou pela propriedade rural, mas destacou que os imigrantes asiáticos também comerciavam seus produtos pelo interior e estavam muito mais preocupados em plantar café do que chá.87 Ambos os naturalistas bávaros também perceberam que os chineses do Real Horto sempre seguiam para as cercanias da Real Fazenda de Santa Cruz, pois desejavam participar de redes de comércio e de convivência mais livres e amplas.88
O trânsito entre o Real Horto e a Real Fazenda de Santa Cruz para os chineses, no final dos anos de 1810, foi relativamente facilitado com a implantação de um serviço de coches que ligava este último estabelecimento agrícola com a Quinta da Boa Vista, outra residência joanina que estava instalada no importante bairro de São Cristóvão. Além de proporcionar mais conforto aos deslocamentos do rei e sua família às duas propriedades, a oferta de transporte mais regular também foi demandada pelo crescimento da região mais periférica da cidade do Rio de Janeiro.89 Em 1820, ratificando tal afirmativa, havia a solicitação do emprego de um médico na Real Fazenda de Santa Cruz em vista do aumento populacional de seus arredores.90 No ano seguinte, inclusive, existiu uma denúncia pública que revelava um grande número de tabernas por lá instaladas, mas que, desordenadas, não pagavam os impostos que eram devidos aos cofres públicos.91 Mais uma vez, isso confirma a presença de um contingente populacional mais denso na localidade de caráter rural, que, em razão dessa peculiaridade, precisava de hospedagens, casas de pasto, casas de secos e molhados etc.
Nos arredores da Real Fazenda de Santa Cruz, no final da década de 1810, encontramos um núcleo de mascates chineses que vendia tecidos. Eles estavam instalados na vila de Guaratiba e, algumas vezes, entraram em conflito com os comerciantes locais, insatisfeitos com a concorrência. Ainda eram constantemente vigiados pelas autoridades policiais.92 Por sua vez, pelos interiores da Capitania do Rio de Janeiro, localidades como Rezende e São João Marcos tiveram grande poder de atração sobre os súditos do Império Celestial. Até o ano de 1811, esta última localidade foi um arraial, freguesia daquela primeira, que era uma vila. No referido marco temporal, logo após um ato do príncipe regente, elas foram desmembradas. Com o acontecimento, São João Marcos foi também elevada à condição de vila, por causa de seu potencial econômico.93 No transcorrer da primeira metade dos Oitocentos, além dos citados espaços fluminenses, ainda observamos os trabalhadores chineses seguindo algumas vezes para lugares como Macaé, Paraty e Ilha Grande, onde procuraram vender seus mais diversos produtos.94
Na década de 1810, os relatos sobre a possível debandada de trabalhadores chineses do Real Horto também permitem afirmar que eles atravessaram os limites da capitania do Rio de Janeiro. Com contratos vencidos ou burlados, os imigrantes asiáticos estavam em busca de oportunidades menos precárias possíveis. Na bibliografia especializada, há indícios de que, em 1818, alguns deles foram plantar chá em São Paulo.95 A informação faz sentido. Na documentação produzida pelas autoridades da corte, observamos que quatro chineses seguiram para lá no dia 5 de setembro daquele ano. Cipriano Rangel conduziu Manuel Antônio, João Antônio e Domingos para seu novo destino. Pouco mais de dois anos depois, em 20 de setembro de 1820, “Cipriano Rangel de Nação China” retornou sem seus companheiros para a vila de São João Marcos, mas levava consigo um escravo chamado Francisco.96 As fontes disponíveis não tecem mais nenhum cometário, mas podemos imaginar que, depois de acumular algum cabedal e compreender os meandros da sociedade escravista brasileira, o recém-retornado converteu parte de sua liquidez em propriedade cativa.
Compulsadas algumas fontes produzidas pelas autoridades policiais, especialmente uma que foi registrada em 13 de novembro de 1818, somos capazes de perceber que a maior parte dos chineses que circulavam para além dos limites da corte, quer nas cidades mais próximas, quer nas mais distantes, fazia isso de forma absolutamente ilegal. Aqueles homens públicos reclamavam constantemente dos asiáticos que mascateavam sem apresentar as devidas licenças para as atividades comerciais e os necessários passaportes para seu deslocamento espacial.97 Tendo em vista o que discutimos até aqui, creio que o dado não cause surpresa ao leitor, pois os súditos do Império Celestial queriam fazer algum cabedal no exterior e voltar ao seu mundo. Ao mesmo tempo, os documentos disponíveis não indicam que tenha havido alguma repressão sistemática aos chineses que vendiam seus produtos sem autorização. No período joanino, o governo estava mais preocupado com outros tipos de estrangeiros, como franceses e espanhóis (vindos de Buenos Aires e Montevideo) repletos de ideais revolucionários e republicanos.98
As atividades econômicas exercidas pelos imigrantes chineses permite afirmar que a maioria deles saiu da Ásia com a ideia fixa de mascatear. A prática poderia gerar mais rendimentos tanto para sua sobreviência cotidiana quanto para criar alguma reserva financeira. Para além das “bugigangas” que trouxeram em suas bagagens (como atestamos no caso baiano), acredito que os moradores da Real Fazenda de Santa Cruz e de seus arredores conseguiram mais produtos nas freguesias centrais da corte. Talvez esse seja o caso do “china Manoel da Assumpção”, que, em 1818, teve um tecido roubado pelo escravo Paulo Angola, que foi preso pela polícia.99 Nos tempos joaninos, o fluxo comercial entre Macau e Rio de Janeiro também pode ter fornecido mercadorias aos imigrantes asiáticos que mascateavam, tendo por intermediários os comerciantes que vendiam diversos produtos orientais.100 Essas mercadorias chegavam em navios como o Ulisses, que também conduziu parte dos trabalhadores chineses para terras brasileiras.101 Provavelmente, as relações criadas nas freguesias centrais da cidade fomentaram o surgimento do núcleo chinês do Beco dos Ferreiros, em São José.102
A flexibilização tácita dos contratos originais e/ou sua possível renovação verbal em novos termos geraram reações nos contratantes. Como indicamos, pelo menos do ponto de vista jurídico, as legislações portuguesa e inglesa que regulavam o trabalho compulsório eram abolutamente favoráveis aos interesses dos patrões. E eles buscaram fazer valer suas prerrogativas repressivas sobre os trabalhadores chineses. Na Real Fazenda de Santa Cruz, em 1816, 13 chineses saíram sem licença do estabelecimento rural junto com o “china Quinpan”. O administrador do estabelecimento rural pedia providências.103 Dois anos depois, pressionado por esse mesmo funcionário, “o china denominado Bexiga” recebeu ordens para impedir que seus subordinados mascateassem, fossem à cidade e dormissem fora de seu cercado. Ao mesmo tempo, caberia àquele encarregado impedir que chineses vindos de fora dormissem nas casas que supervisionava. De forma radical, ainda foi determinado que a Estalagem dos Mascates fosse desativada e que a polícia fizesse rondas e prendesse os que insistissem em descumprir as regras.104
Em meados de 1819, a confusão eclodiu de vez na vila de Guaratiba, que estava localizada nos arredores da Real Fazenda de Santa Cruz. Naquele lugar mais afastado da corte, um grupo de chineses foi preso pelas autoridades policiais, tendo sido apreendidos com eles uma quantia em dinheiro e diversos tecidos de sua propriedade. Segundo a documentação, quem solicitou as providências repressivas foi o comerciante Francisco Nepomuceno, insatisfeito com a concorrência. É provável que também estivessem envolvidos com o fato os próprios administradores daquela propriedade rural, na medida em que tinham grande interesse em fazer valer sua autoridade patronal. A querela gerou um processo que ainda não tive a oportunidade de encontrar nos arquivos. Em 16 de janeiro de 1822, no palácio do governo, José Bonifácio de Andrada e Silva despachou uma ordem no sentido de que fosse informado pelas autoridades competentes sobre o andamento do embrólio judicial. O mote do depacho foi um requerimento que tinha em mãos, que havia sido encaminhado por José Luiz e outros chineses que reclamavam do tratamento injusto que vinham recebendo.105
Na luta por direitos que achavam justos em terras “bárbaras”, um grupo de chineses se organizou pouco tempo depois das confusões que ocorreram na vila de Guaratiba. Parece que essa foi a gota d’água que fez transbordar sua indignação com tantos acontecimentos que julgavam arbitrários. No dia 6 de setembro de 1819, 51 indivíduos assinaram um documento que foi enviado ao rei d. João VI. Os interessados pediam a abertura de um consulado na cidade do Rio de Janeiro e indicavam o nome de um compatriota, Domingos Manoel Antonio, conhecedor da língua portuguesa, para assumi-lo. Por não compreenderem bem o idioma, os imigrantes asiáticos diziam que sempre sofriam prejuízos físicos e morais — demonstrei alguns deles neste texto. Seriam protegidos pelo consulado os súditos do Império Celestial que moravam na corte e em seus distritos, para que pudessem contar com um órgão que oferecesse intérprete e possibilidade de defesa nos tribunais. O pretendido cônsul também os representaria em outros tipos de requerimentos e de negócios, para que os chineses pudessem fazer valer suas reivindicações e aspirações.106
É bastante provável que os peticionários, liderados por Domingos Manoel Antonio, estivessem relativamente otimistas com a possibilidade da criação de um consulado chinês na cidade do Rio de Janeiro, que era, então, a sede do Império Português. Isso porque, no ano anterior ao pedido, 1818, o imperador da China havia oferecido a d. João VI um serviço de porcelana com as armas do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves em “vibrante decoração a ouro e verde”.107 Com o luxuoso presente vindo do lado de lá do mundo, parecia que as relações entre as duas coroas poderiam se estreitar e prosperar. Contudo, tradicionalmente, a dinastia Qing (1644-1912) compreendia as relações diplomáticas de forma absolutamente assimétrica, na medida em que os outros Estados seriam tributários do Império Celestial. Para este último, a isonomia entre as nações era algo estranho ao seu ethos.108 Sem dúvida, tal perspectiva vai ao encontro do que discutimos anteriormente neste artigo: o sinocentrismo foi uma forte tendência na relação com os demais povos e suas culturas, sempre colocados em situação de inferioridade.
Ao consultarmos os almanaques publicados no Rio de Janeiro, percebemos que o consulado dos chineses residentes na cidade e em suas cercanias foi apenas um desejo irrealizado. Em meados da década de 1820, comparativamente, a corte somente contava com os consulados da Áustria, França, Inglaterra, Rússia, Espanha, Estados Unidos, Prússia, Suécia, Dinamarca, Países Baixos e Hamburgo.109 Parece evidente que a política exterior do Império do Brasil, há pouco tempo criado, buscava apoio nas partes mais ricas e “civilizadas” do mundo, assim como nos tempos joaninos. Nada muito incomum, diga-se de passagem. No transcorrer do século XIX, no continente americano, Cuba foi o lugar que mais recebeu chineses. Algo em torno de 125.000. E apesar desse expressivo contingente, a criação do consulado em Havana somente ocorreu em 1878.110 Mesmo com o desinteresse das autoridades reais em deferir a solicitação que havia sido feita pelos 51 chineses, ao menos a reivindicação por justiça, encabeçada por José Luiz, sensibilizou homens de Estado como José Bonifácio. Tal fato demonstrou algum interesse das mais altas esferas governamentais por certas demandas dos imigrantes asiáticos.
Considerações finais
Neste texto, analisamos alguns interesses e conflitos que envolveram a imigração de trabalhadores chineses para terras brasileiras nos tempos joaninos. Pudemos destrinchar os termos de alguns contratos que foram acertados com os asiáticos que atravessaram oceanos. Junto do que lhes foi prometido, vimos também o que receberam, o que não quiseram oferecer apesar do combinado, o que pretendiam fazer à revelia dos contratantes e os estranhamentos advindos de seus costumes (in)comuns. Tudo o que ocorreu nos anos 1810 reverberou nas décadas seguintes, o que praticamente inviabilizou o cultivo do chá em larga escala no Rio de Janeiro, na Bahia e em São Paulo. Em 1823, por exemplo, Maria Graham afirmou que as plantações do Jardim Botânico (forma com a qual foi rebatizado o Real Horto) e da Fazenda de Santa Cruz eram pouco rentáveis e “que até agora não há a mais leve promessa de pagar a despesa com a cultura”.111 Na década seguinte, quando esteve no Império do Brasil, Rugendas reforçou essa análise ao comentar que os resultados do cultivo da planta na corte eram absolutamente insignificantes.112
Apesar da pequena escala da produção do chá na década de 1820, os chineses que trabalhavam nas plantações da corte continuaram pressionando seus acordos. Carl Seidler, que desembarcou no Império do Brasil poucos anos após a coroação de d. Pedro I, relatou que a falta de fiscalização nas áreas produtoras permitia que os imigrantes asiáticos conservassem “para si a melhor parte da colheita, que em seguida [vendiam] a resto de barato nas ruas da cidade”.113 Oportunamente, analisei os significados desse tipo de acontecimento, que pode ser interpretado tanto como forma de os trabalhadores chineses combaterem o desrespeito contratual imposto por patrões, quanto como forma de eles mesmos burlarem as regras e conquistarem melhores condições de existência. O extrato também permite que confirmemos a manutenção das redes comerciais que foram construídas pelos chineses nas freguesias centrais do Rio de Janeiro. Para aquele viajante europeu, o episódio descrito ainda permitia afirmar que os “chineses nunca desmentem sua natureza de ladrões”.114 Tal julgamento, como vimos, estava contaminado por preconceitos racializados e “orientalistas”.
No final dos anos 1830, Taunay publicou o Manual do agricultor brasileiro, onde encontramos mais pistas que permitem compreender os motivos do insucesso da cultura em larga escala do chá no país — conjuntamente com as tensões e os conflitos que estudamos neste texto. Segundo aquele escritor e proprietário rural, o plantio do arbusto vindo da China teria fracassado, por causa do “desleixo, [d]a inveja do partido português e [d]a indiferença dos ministérios que sucederam àquele que fez o ensaio”.115 Ao retomarmos os escritos de Carl Seidler e de Maria Graham, conseguimos desvendar os sentidos da assertiva de Taunay, que permite associar cultivo em larga escala do chá e políticas econômicas menos submissas às imposições europeias. Nesse sentido, o viajante afirmou que os ingleses fizeram de tudo para estorvar a iniciativa, certamente motivados por seus mais diversos interesses na Ásia e na América do Sul.116 Por sua vez, corroborando essa leitura sobre as conjunturas das primeiras décadas do século XIX, a outra viajante entendeu que d. Pedro I foi compelido a acreditar que era mais conveniente plantar café para exportação e continuar importando o chá asiático.117
De qualquer forma, apesar das pressões imperialistas inglesas, no transcorrer dos anos 1830 ainda encontramos no “Jardim Botânico da Lagoa Rodrigo de Freitas”, antigo Real Horto, uma plantação sob a responbilidade de apenas um “mestre china fabricante de chá”. Ainda não é possível estabelecer a produtividade dos arbustos remanescentes, seu quantitativo e os possíveis lucros/prejuízos auferidos com a cobiçada indústria oriental, mas talvez o alcance de sua comercialização fosse realmente ínfimo — como indicaram os viajantes e os escritores acima referidos. Entre 1831 e 1837, segundo as fontes, aquele perito estrangeiro deveria receber 1$200rs diários para executar seu serviço qualificado, valor que lhe garantiria, ao menos no papel, um salário anual de 438$000rs. No grupo de trabalhadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, que se dividia nas mais variadas tarefas do estabelecimento criado para a aclimatação de plantas exóticas, sempre poderiam estar disponíveis, para auxiliar o mestre do chá, um ou dois jardineiros, um feitor, um agente e um contingente de escravos variando entre 43 e 72 indivíduos.118
Em meio a tudo isso, ainda na década de 1830, o Império do Brasil aprovou suas primeiras leis de locação de serviços (objetivando atrair trabalhadores europeus) e sua importante lei antitráfico — absolutamente desrespeitada. Esta última regra criou a figura do “africano livre”, que foi lançada diretamente nas malhas do trabalho compulsório. Nos anos 1840, é bastante provável que a maior parte dos chineses que saíram de sua terra natal na década de 1810 tenha morrido ou estivesse muito velha. Pouco se falou da experiência com o chá nos anos imediatamente posteriores ao Golpe da Maioridade. Na década de 1850, a Lei Eusébio de Queiroz acabou de vez com o tráfico atlântico de africanos escravizados para o nosso país. Toda a legislação citada neste parágrafo pretendia viabilizar a “transição” do trabalho escravo para o trabalho dito livre. No início da segunda metade do século XIX, em meio a tantas novidades que surgiam ou se consolidavam no mundo do trabalho brasileiro, ainda dominado hegemonicamente pelo negro escravizado, o país voltou a discutir os usos (e abusos) do trabalhador chinês. Entretanto, caro leitor, esta é uma discussão que deixarei para outra oportunidade.
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