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O mercado audiovisual brasileiro, o circuito alternativo de exibição, as mostras e festivais de cinema na Bahia contemporânea
The Brazilian audiovisual market, alternative circuit of exhibition, shows and movie festivals in contemporary Bahia
O mercado audiovisual brasileiro, o circuito alternativo de exibição, as mostras e festivais de cinema na Bahia contemporânea
Ciências Sociais Unisinos, vol. 53, núm. 1, pp. 36-45, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos Centro de Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Recepção: 04 Novembro 2016
Aprovação: 01 Março 2017
Resumo: O mercado audiovisual no Brasil vem ganhando uma substantiva dinamização na última década como resultado de políticas econômicas e culturais implantadas pelo Estado. Os números referentes ao crescimento da produção nacional de obras cinematográficas e de séries para TV e a ampliação de consumo de filmes nacionais apontam para a potencialidade de um mercado em formação, bem como para a importância do financiamento público como mola propulsora para o setor. Entretanto, apesar dos significativos resultados das políticas públicas de fomento à produção audiovisual, constata-se uma permanente fragilidade da inserção dos filmes nacionais no circuito comercial de exibição, fator que, entre outros, potencializa a ampliação das mostras e festivais em todo país. Tendo como pano de fundo tal debate, o objetivo do artigo é problematizar resultados de estudos e pesquisas acerca da expansão do circuito de mostras e festivais de cinema, no Brasil e na Bahia, que se realizam a partir das políticas de fomento como principal alternativa de difusão dos filmes brasileiros que não chegam ao circuito exibidor comercial.
Palavras-chave: mercado audiovisual, exibição, circuito alternativo, festivais, mostras.
Abstract: The audiovisual market in Brazil has boosted in the last decade as a result of economic and cultural policies implemented by the state. Figures about the growth of domestic production of films and TV series and the expansion of consumption of national films point to potential formation of a market as well as the importance of public funding as a propellant industry. However, despite the significant results of public policies to foment audiovisual production, there has been a permanent fragility of the integration of national films in the supply chain view, a factor that, among others, enhances the expansion of festivals and shows across the country. In this context, the objective of this article is to discuss the results of studies about the expansion circuit of film festivals in Brazil and in Bahia, which are made from promotion policies as the main alternative of dissemination of Brazilian films that do not reach the commercial exhibition circuit.
Keywords: audiovisual market, alternative circuit, festivals, movie shows.
Introdução
Tornou-se lugar comum entre especialistas que se dedicam a formular teses sobre as potencialidades econômicas da produção de bens simbólicos ilustrar tal pujança mediante as cifras milionárias que envolvem o mercado do audiovisual mundial. Se, por um lado, é factível reconhecer a potência econômica que envolve a referida indústria, por outro, assimetrias, concentração e desigualdade são atributos que marcam as relações de mercado dessa complexa cadeia produtiva cuja lógica ampara-se na hegemonia estadunidense e na predominância de mastodontes que concentram os mecanismos de distribuição e exibição audiovisual. No intuito de dirimir os efeitos assimétricos da configuração que se estabeleceu na dinâmica desse mercado, movimentos contra-hegemônicos foram surgindo mundialmente, objetivando garantir a pluralidade da produção e a diversificação dos mercados.
No Brasil, testemunha-se, especialmente na última década, o desenvolvimento do mercado audiovisual que vem ganhando uma substantiva dinamização resultante de políticas econômicas e culturais implantadas pelo Estado. Dados referentes à ampliação da produção nacional de obras cinematográficas, séries para TV e o crescimento do consumo de filmes nacionais apontam para a potencialidade de um mercado em formação bem como expressam a importância do financiamento público como mola propulsora para o setor. No entanto, constata-se que os significativos resultados das políticas públicas de fomento à produção audiovisual, não se traduzem numa melhoria das condições de inserção dos filmes produzidos no país no circuito comercial de exibição, fator que, entre outros, potencializa a ampliação das mostras e festivais em todo território nacional.
Tendo como pano de fundo tal debate, este artigo apresenta resultados da pesquisa intitulada “Circuitos alternativos de exibição: um mapeamento a partir das políticas públicas de incentivo para cineclubes, mostras e festivais na Bahia contemporânea” e refere-se às indagações formuladas e reflexões desenvolvidas em trabalhos do Grupo de Pesquisa Cinema e Audiovisual: memória e processos de formação cultural, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. O referido grupo toma como questão analítica a configuração contemporânea do cinema e as relações interdependentes dos processos sociais que o constituem, considerando tanto os fluxos entre os diferentes agentes e instituições no desenvolvimento das práticas quanto as condições de transmissividade, entre as gerações, dos saberes e fazeres relacionados à produção em seus processos criativos e ao consumo cinematográfico, especialmente aquele realizado em espaços alternativos de exibição.
A pesquisa identificou a realização, entre 2003 e 2014, de 48 festivais e mostras de cinema na Bahia, cujos perfis, estruturas e dimensões denotam a variedade desses eventos. Constatou-se que, mediante o incremento do financiamento público, alguns desses eventos consolidaram-se e passaram a figurar no calendário cultural do estado, produzindo experiências criativas que, além de viabilizar práticas de consumo cinematográfico em espaços alternativos aos do grande mercado exibidor, também possibilitam regimes de profissionalização e de formação cultural.
Circuito exibidor no Brasil: entre a concentração hollywoodiana e a fragilidade brasileira
A Agência Nacional do Cinema (ANCINE) publicou recentemente importante relatório de estudos sobre a atividade econômica do audiovisual no Brasil que sinaliza para a crescente dinamização do setor no país, cujos números tornam-se interessantes indicadores para problematizarmos algumas questões acerca do objeto deste artigo. O estudo apresenta o valor adicionado pelo Setor Audiovisual relativo ao ano-base de 2014, indicador macroeconômico que tem por finalidade medir a relevância econômica do setor para geração de renda no país. Os números obtidos são grandiloquentes sobretudo quando comparados historicamente. Apenas em 2014, o audiovisual gerou uma renda de R$ 24,5 bilhões para a economia do país, cifra muito superior às alcançados em anos anteriores. Conforme o estudo, esse indicador vem crescendo substancialmente. Se em 2007 obteve-se a renda de 8,7 bilhões, em 2014 atinge-se o maior índice da série apresentada no estudo. Segundo o relatório, o setor cresceu 66% entre 2007 e 2013 e manteve um crescimento contínuo de 8,8% ao ano, superando com folga a média de todos os setores da economia no período estudado. Um outro dado que vale a pena contextualizar aqui refere-se às participações das atividades econômicas audiovisuais por segmento3. É sintomática a mudança ocorrida na distribuição por atividades na dinâmica econômica do audiovisual no Brasil, apontando para transformações nas práticas de produção e, consequentemente, no consumo dos bens. As alterações mais significativas se deram nos setores da TV aberta e da TV fechada. Pela primeira vez, a TV fechada representou mais de 50% do valor adicionado pelo audiovisual, galgando um crescimento de 21,4 pontos percentuais, enquanto que a TV aberta registrou uma queda de 22,2 pontos percentuais no período. Uma outra mudança digna de nota refere-se ao crescimento da atividade de exibição cinematográfica: dobrou no período entre 2007 e 2014, passando de 1,3% em 2007 para 3,1% em 2014 (Brasil, 2016).
Tais mudanças na dinâmica do audiovisual não podem ser compreendidas sem levar em consideração o impacto do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) e o incremento de investimentos viabilizado por mecanismos de empréstimos de bancos públicos, a exemplo do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e políticas de isenção fiscal estimuladas pelo Estado. Regulamentado em 2007, o fundo é coordenado e executado pela ANCINE, mas foi a partir de 2011, com as mudanças ocorridas com a operacionalização da Lei 12.485, Lei de Comunicação Audiovisual de Acesso Condicionado4, que o FSA passou a operar uma substantiva transformação no modelo de financiamento para o audiovisual no país, tornando-se na sua principal fonte de recursos (Alves, 2012). Entre 2007 e 2012, o orçamento do fundo passou de cerca de R$ 38 milhões em 2007 para cerca de quase R$ 1 bilhão em 2012, montante esse investido em produções cinematográficas, produção independente para TV, aquisição de direitos para distribuição de filmes nacionais de longa-metragem e sua comercialização (Alves, 2012)5.
O resultado do crescimento do circuito de exibição, conforme demonstrado pelo estudo da ANCINE, não pode ser compreendido sem considerar o maciço volume de investimentos alocados nesse elo da cadeia do audiovisual. Contando com recursos do FSA, isenções fiscais e empréstimos, sobretudo mediante a operacionalização do Programa Cinema Perto de Você, o circuito de exibição entre 2009 e 2015 passou de 2.110 para 3.005 salas, obtendo um acréscimo de 895 salas de exibição num período de sete anos (Brasil, 2015a).
Os números acerca do parque exibidor do país demonstram um processo de recuperação, uma vez que, na década de 1970, quando alcançou a sua melhor marca, registrou, em 1975, 3.276 salas. Registrou menor quantitativo em 1995, quando, segundo o sistema de registro da ANCINE, contou apenas com 1.033 salas. Entretanto, embora esse crescimento contínuo tenha se potencializado a partir de 2000, constata-se que houve, recentemente, uma desaceleração do ritmo de ampliação das salas no mercado exibidor brasileiro. Sousa e Butcher (2014, p. 24) alertam para o fato de que, apesar dos 17 anos de crescimento contínuo do circuito de exibição brasileiro, o ano de 2014 registrou o menor número de inaugurações dos últimos tempos, com apenas 150 salas. Segundo os autores, esse dado sinaliza o início de um período de cautela e, possivelmente, uma diminuição no ritmo de investimentos no circuito exibidor, mas também diz respeito a um crescimento moderado no Brasil em relação ao de outros países da América Latina, a exemplo da Colômbia, do México e do Peru, que registraram taxas de crescimento anual superiores entre 2007 e 2013 em seus parques de exibição6. No Brasil, essa avaliação está diretamente vinculada ao desaquecimento do setor de shopping centers7, que vinha crescendo exponencialmente nos últimos anos e ao qual o circuito de cinema se articulou radicalmente.
Em que pese o crescimento da produção nacional de obras cinematográficas de longa-metragem nos últimos anos, registra-se ainda uma permanente fragilidade da inserção dos filmes nacionais no circuito comercial de exibição. Essa frágil participação da produção cinematográfica brasileira no mercado exibidor é histórica, diríamos mesmo constitutiva da dinâmica do cinema no país, e se agravou significativamente a partir dos últimos anos da década de 1980, com a reestruturação do modelo de distribuição e organização dos parques exibidores no mundo. E quando, nos anos 1990, passou a vigorar a concentração de salas nos shoppings centers, houve, em consequência, uma concentração das salas nas capitais e nas cidades com índice populacional igual ou superior a 500 mil habitantes. Os dados acima apresentados indicam que não houve mudança significativa nessa configuração até os dias atuais; ao contrário, constata-se uma continuidade no modelo operacional.
Para melhor compreender as relações assimétricas no âmbito do mercado de cinema e audiovisual no Brasil, continuamos a tomar como referência analítica os dados apresentados pelo Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), vinculado à ANCINE, publicados em abril de 2015, no Informe de Acompanhamento de Mercado, considerando o segmento salas de exibição.
No primeiro trimestre de 2015, a renda bruta acumulada pelos títulos distribuídos pelas empresas internacionais foi de R$ 431,1 milhões, um aumento de 42,9% em relação ao mesmo período de 2014. Já a renda dos filmes comercializados pelas distribuidoras brasileiras apresentou queda de 14,0% em relação ao ano passado. A participação das empresas nacionais na renda bruta do período passou de 34,7% no primeiro trimestre de 2014 para 24,2% no mesmo período de 2015. [...] A Fox foi a distribuidora com melhor desempenho de bilheteria nas 13 primeiras semanas de 2015 (26,2%), seguida pela Universal (20,4%), Warner (10,1%), Disney (8,8%) e Paramount (8,5%), todas empresas internacionais. A Fox distribuiu quatro das dez maiores bilheterias do primeiro trimestre de 2015, e a Universal foi responsável pelo lançamento de Cinquenta Tons de Cinza, maior arrecadação do período, com R$ 87,1 milhões (Brasil, 2015a).
Tal cenário de hegemonia não é típico apenas do mercado do audiovisual brasileiro, mas se replica na realidade de vários países, inclusive daqueles que têm uma indústria do audiovisual consolidada. A título de exemplificação, Néstor García Canclini (2005), em encontro ocorrido no Centro Cultural do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), traz os seguintes dados ao debate sobre a concentração da indústria cinematográfica no mundo no início dos anos 2000: a Itália possuía apenas 17,5% do seu mercado nacional de filmes, a Espanha apenas 10%, a Alemanha 12,5%, e a França, 28,2%. Como contraposição, o mercado interno americano de filmes era, naquele momento, composto por 92,5% da sua produção nacional, dado que corrobora uma velha novidade: os Estados Unidos consomem um número bem reduzido de filmes estrangeiros, enquanto dominam as salas de cinema nos quatro cantos do planeta.
Para Janet Wasko (2007, p. 20), o comércio global de Hollywood, que vem se fortalecendo desde os anos 1980, ganha mais vigor a partir dos anos 2000, quando “a desregulamentação e privatização das operações de mídia abriram novos canais comerciais e expandiram imensamente as programações de rádio e televisão, bem como os mercados publicitários”. Nessas ambiências de relações globais, a indústria hollywoodiana, que conta com um considerável mercado de consumo interno para sua produção cinematográfica e que até a década passada considerava sua bilheteria externa um faturamento adicional, atualmente tem como filão principal de suas receitas as bilheterias em outros países.
Nesse sentido, mais uma vez é exemplar o contexto brasileiro. O referido informe da ANCINE registrou que o público nas salas de cinema no Brasil alcançou 43,4 milhões de espectadores no primeiro trimestre de 2015, o que representa um patamar acima da média dos últimos anos e um crescimento de 18,1% em relação ao mesmo período do ano anterior. Esse crescimento foi predominantemente estabelecido pelo desempenho dos filmes estrangeiros, que apresentaram incremento de público de 28,5% em relação ao primeiro trimestre de 2014, alcançando a maior quantidade de bilhetes vendidos em um primeiro trimestre no intervalo entre os anos de 2009 e 2015. Três filmes estrangeiros obtiveram mais de três milhões de espectadores: Cinquenta Tons de Cinza, Bob Esponja: Um Herói Fora d’água e Os Pinguins de Madagascar. Destaca-se também o fato de haver, no primeiro trimestre de 2015, dois lançamentos estrangeiros em mais de mil salas: Cinquenta Tons de Cinza e A Série Divergente - Insurgente.
Os números sobre faturamento das distribuidoras internacionais e sobre o público das salas de cinema no Brasil (cujo consumo se concentra em filmes do circuito blockbuster), quando comparados ao indicador da ANCINE sobre o crescimento do circuito exibidor, provocam o questionamento acerca da eficiência da alocação de recursos públicos8. Isso porque uma expressiva monta de recursos vem sendo investida na implantação de equipamentos culturais (salas multiplex), desdobrando-se na efetivação de uma política que aprofunda a lógica de concentração de um setor historicamente marcado pela hegemonia das majors hollywodianas. Nesses espaços, a exibição da filmografia nacional ainda permanece exígua e desigual, se tomamos como parâmetro a quantidade de cópias distribuídas, números de semanas de exibição, os horários das sessões e a diversidade dos gêneros das obras cinematográficas - as maiores bilheterias dos filmes nacionais foram para o gênero comédia, que, por sua vez, possuem perfil comercial9.
Se para o filme brasileiro sempre foi um desafio colocar-se no circuito exibidor, desde os tempos em que os filmes eram lançados nas principais capitais para depois chegar às salas dos pequenos exibidores nas cidades de médio e pequeno porte do país, tendo assim possibilidade de alcançar públicos mais amplos pela permanência no circuito exibidor, com a reorganização da comercialização das produções para atender ao modelo de negócios implantado com as salas multiplex, em que a exibição se dá em um grande número de salas simultaneamente, com altos investimentos em publicidade, a inserção dos filmes produzidos no país ficou cada vez mais difícil.
Diante desse contexto, impõem-se as seguintes questões: quais as condições de possibilidades para exibição de uma crescente e diversificada produção nacional diante da preponderância de um circuito que está estruturado para escoar a produção das majors hollywodianas? Se as políticas de fomento implantadas pelo Estado brasileiro nos últimos anos resultaram positivamente no elo da produção, mas não surtiram o mesmo efeito no âmbito da exibição, quais são as possibilidades que encontram os filmes que não conseguem inserção no mercado exibidor? Supomos que uma possível resposta a essas indagações esteja na consideração do papel dos circuitos alternativos de exibição, mais especificamente nos festivais e mostras de cinema que se realizam no país. Como veremos a seguir, esses eventos de difusão e formação audiovisual tornam-se importantes janelas de exibição, contam, em sua maioria, com aporte de recursos públicos para sua realização e, embora as suas limitações, uma vez que são marcados por certa instantaneidade e também certa restrição pela característica de acontecimento local, nos últimos anos têm-se mostrado espaços de referência não apenas para exibição, mas também para mobilização política, no sentido de viabilizar caminhos mais solidários para difusão da chamada produção independente no país.
Festivais e mostras de cinema: caminhos alternativos para exibição
A partir dos anos 2000, com a ampliação do financiamento público para produção audiovisual no país, observa-se o desenvolvimento de caminhos alternativos para a exibição de filmes que não encontravam espaço no mercado exibidor convencional. O restrito espaço encontrado para a exibição da filmografia nacional nas salas comerciais de exibição, aliado à natureza autoral de boa parte da produção brasileira, especialmente a partir do início do período conhecido como Retomada do Cinema Brasileiro, viabilizou o interesse e, ao mesmo tempo, a necessidade de escoar essa produção crescente em espaços organizados pelas mostras, festivais, cineclubes e salas de arte, bem como em projetos com características de itinerância, promovendo exibições em praças públicas e espaços escolares.
Nessa ambiência, é importante considerar o papel do chamado circuito de salas de arte e dos espaços de exibição nos centros culturais, que, segundo Beraba (2014, p. 36), apesar de tratar-se de um mercado de nicho, tem relevância como setor dinâmico da economia audiovisual, responsável, em grande parte, pela diversidade fílmica no país. Informa a pesquisadora que, entre os 590 filmes de arte lançados entre 2011 e 2013, apenas 13% são americanos, 37% são brasileiros e os 50% restantes são de origem europeia, latino-americana e asiática.
Em se tratando do circuito de festivais audiovisuais, segundo informações publicadas no informe intitulado Painel Setorial dos Festivais Audiovisuais, baseado em indicadores dos anos de 2007, 2008 e 2009, o Brasil possui um dos mais importantes e diversificados circuitos de festivais audiovisuais do mundo. É composto por um conjunto de eventos de variado perfil econômico e histórico, com diferenciados matizes conceituais e abordagens temáticas. Cada um, com sua importância e especificidades, contribui para a difusão da produção audiovisual que não encontra lugar no limitado circuito de salas comerciais do país, presente em apenas 8% dos municípios do território nacional. O estudo, publicado em 2011, é a continuidade do pioneiro Diagnóstico Setorial 2007, realizado pelo Fórum dos Festivais, e levantou a existência de 243 festivais no país em 2009. Comentam Leal e Mattos (2011, p. 9):
Esta rede de difusão audiovisual foi (e continua sendo) construída graças ao esforço e empreendedorismo de inúmeros organizadores de festivais, que ano após ano lutam para concretizar seus projetos independentemente das condições disponíveis para o alcance deste objetivo. O princípio da atuação dos festivais é calcado na estrutura direta dos empreendedores, na iniciativa privada e no Estado, operando juntos para dar conta de toda ação cultural necessária ao país.
Entretanto, acerca desse circuito, ao qual comumente chamamos de alternativo, não há disponibilidade de indicadores ou informações organizadas como há no caso do mercado. Se estão acessíveis relatórios anuais, informes trimestrais, estudos e outras planilhas para consulta pública, no site da ANCINE, mediante publicações do OCA, sobre o parque exibidor no país, não se encontram facilmente dados atualizados sobre o circuito de festivais audiovisuais no país. Por isso, o Painel Setorial dos Festivais Audiovisuais referente aos anos de 2007, 2008 e 2009 se tornou a nossa principal referência. Suas fontes primárias de informações, segundo consta no próprio documento, foram o site do Fórum dos Festivais, o Guia Kinoforum de Festivais Audiovisuais - e o Diagnóstico Setorial dos Festivais Audiovisuais, realizado pelo Fórum dos Festivais e pelo Centro de Cultura, Informação e Meio ambiente (CIMA)10.
A rede constituída por mostras e festivais de cinema e audiovisual tornou-se, com o decorrer do tempo, um circuito estratégico, de ampla cobertura nacional, que atrai um público superior a 2,8 milhões de espectadores por ano e cumpre o indispensável papel de levar o cinema para significativas parcelas populacionais no país. Segundo Leal e Mattos (2008, p. 25-27), o circuito de festivais se ampliou em quase três vezes, saiu da marca dos 32 eventos em 1999 para 132 em 2006. Em 2011, segundo informações publicadas no Guia Kinoforum de Festivais Audiovisuais, foram 141 festivais em todo o país. Em 2014, o mesmo guia informou a existência de mais de 250 eventos audiovisuais. Já em outubro de 2015, o Fórum dos Festivais mapeou a realização de 318 mostras e festivais de cinema no Brasil, desde iniciativas independentes, regulares e consistentes de exibição até aquelas tradicionais plenamente consolidadas.
Políticas de fomento ao audiovisual na Bahia contemporânea
A partir de 2003, quando Gilberto Gil assume o posto de ministro da Cultura e Orlando Senna o de secretário do Audiovisual, novos ânimos movimentam as ambiências culturais na Bahia. No que diz respeito às questões do cinema e do audiovisual, houve uma maior mobilização quando, em 2004, foi lançado o projeto de lei para a criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (ANCINAV), encaminhado em forma de minuta pelo Ministério da Cultura ao Conselho Superior de Cinema. Esse episódio é exemplar dos desdobramentos locais de processos de articulação que transcenderam a atuação do Estado, bem como das disputas entre grupos de especialistas e intermediários culturais atuantes na organização da cultura. E isso certamente viabilizou ações tanto no âmbito da produção quanto da difusão audiovisual no país, entre as quais novas proposições para realização de festivais e mostras de cinema.
A proposta de criação da ANCINAV tinha por objetivo principal a criação de uma agência para organização (regulação e fiscalização) da exploração de atividades cinematográficas e audiovisuais no país. O projeto de lei justificava a necessidade de regular adequadamente a produção e difusão audiovisual no país, em função da essencialidade de garantir o desenvolvimento e a preservação do patrimônio cultural, assegurando aos brasileiros o direito de ver e de produzir suas imagens, visando, assim, ao fortalecimento da diversidade cultural do país. Ao defender que o poder público tem o dever de promover as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver, inclusive as criações científicas, artísticas e tecnológicas dos brasileiros, a proposta deixava clara a preocupação em preservar a soberania, a língua, a cultura do país. Entre outros princípios fundamentais, a minuta do projeto de lei propunha diretrizes que assegurassem ações para o desenvolvimento e a proteção da indústria do cinema e do audiovisual, universalizando o acesso a obras cinematográficas e a outros conteúdos audiovisuais brasileiros voltados à obtenção, pela população, de informação, educação, cultura e lazer. E, embora o projeto de lei não tenha alcançado aprovação, alcançou o êxito de agendar a pauta dos mais diversos meios de comunicação acerca das questões do audiovisual, além de viabilizar um amplo debate nos meios acadêmicos e artísticos, gerou inúmeras demandas de financiamento ao Ministério da Cultura, que, por sua vez, instituiu políticas de fomento amplamente ancoradas em editais públicos para projetos culturais.
Na esfera estadual, o Partido dos Trabalhadores assumiu o governo do estado da Bahia em 2007, tendo à frente das linhas de comando o governador Jaques Wagner, inaugurando um novo ciclo de governo sob a liderança do PT que se prolonga até o momento (o ano de 2017), completando assim 12 anos de hegemonia de um mesmo grupo político na Bahia. Tal configuração potencializou o alinhamento de princípios que passaram a orientar a formulação das políticas culturais inauguradas pelo governo do PT em 2003, tendo então o ministro da Cultura Gilberto Gil à frente da pasta. Esse alinhamento materializou-se, sobretudo, na forma de financiamento priorizada pelo Estado para fomentar a produção cultural, qual seja: a política de editais. O referido mecanismo de financiamento tem-se configurado como o principal instrumento para o fomento à produção cultural no país desde 2003 e vem se multiplicando como prática não apenas no âmbito do Ministério da Cultura, mas também entre os estados e municípios. Não se pode negar a importância desse expediente como instrumento de democratização de acesso aos recursos públicos para a cultura; contudo, a prevalência dos editais como fonte de financiamento tem gerado algumas distorções (pulverização de recursos, excesso de burocracia), manifestas pela crescente insatisfação de parte da classe artística.
Elder Maia Alves (2015), ao discutir a configuração dos mercados culturais no Brasil, ressalta importante fenômeno, cuja expressividade tem passado ao largo das análises de pesquisadores dedicados ao tema das políticas culturais no Brasil, a saber: a inegável atuação do Estado brasileiro e suas diferentes instituições (secretarias, bancos públicos, agências reguladoras, agências de amparo à pesquisa) entre os principais agentes que organizam e dinamizam os mercados culturais nacionais. Amparado em literatura de ramos das Ciências Sociais (economistas e sociólogos), segue seu argumento sustentando ainda que, entre as várias funções do Estado, cabe-lhe também a proposição da formação de mercados, mediante a implantação de políticas de financiamento e marcos reguladores que afetam diretamente os principais agentes do mercado: as empresas. Toma como ilustração do fenômeno a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA); a aprovação da Lei nº 12.485 (nova lei da TV por assinatura); e a implementação do Programa Cultura do Trabalhador, o Vale Cultura. Nessa direção, o autor vaticina que estamos a presenciar no país a conformação de uma espécie de capitalismo cultural de Estado.
Na Bahia, seguindo uma tendência nacional, o Estado comparece como um dos principais agentes dinamizadores do campo da produção cultural, materializado, sobretudo, através das políticas de financiamento. Segundo informe veiculado pela Secretaria de Cultura, entre os anos de 2007 e 2013 foram investidos R$ 154,41 milhões, somadas as duas principais fontes de recursos (o Fazcultura e o Fundo de Cultura), montante este distribuído em 1.921 projetos de diversos segmentos e linguagens artístico-culturais (Bahia, 2014). No que se refere ao segmento do audiovisual, os editais têm sido os principais mecanismos de financiamento utilizados pelo Estado para fomentar os diversos elos da cadeia produtiva do setor (produção, distribuição, divulgação, exibição e preservação). Ainda que a lei de incentivo à cultura do Estado, o Fazcultura, tenha sido também um mecanismo acionado para financiamento do audiovisual baiano (sobretudo no segmento da produção de obras cinematográficas), os distintos modelos de editais lançados pelo governo desde 2007, via Fundo de Cultura, constituíram-se numa das principais fontes de financiamento que impulsionaram o mercado do audiovisual baiano.
Os editais e chamadas públicas implantados pela Secretaria de Cultura durante as duas últimas gestões do governo do PT no estado (2007-2010 e 2011-2014) ganharam uma diversificação de modelos ao longo das gestões. O primeiro ciclo de governo foi marcado por uma espécie de irregularidade nos formatos e pela dispersão dos órgãos responsáveis pelas chamadas públicas. Ou seja, além da administração central, representada pela Superintendência de Promoção Cultural (SUPROCULT), coube também aos órgãos que compunham a secretaria (com especial ênfase para a FUNCEB - Fundação Cultural do Estado da Bahia) a organização e seleção de editais. Dessa forma, foram sendo implementados editais específicos por linguagem, chegando à sofisticação de focar em determinados elos da cadeia produtiva, tendo em vista a singularidade e complexidade de alguns segmentos. Caso exemplar foi o setor de audiovisual. No primeiro ciclo de governo, foram lançados editais, na sua maioria coordenados pelo IRDEB (Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia), visando a atender as especificidades do segmento, estratégia essa materializada através de editais tais como: desenvolvimento de roteiros; realização de mostras e festivais audiovisuais; produção de obras audiovisuais de curta-metragem; e produção de longa-metragem. A partir do segundo ciclo de governo, entre 2012 e 2013 mais especificamente, os editais foram lançados com o intuito de atender aos setores culturais como um todo, ao invés de eleger modalidades específicas de projetos. Desse modo, a lógica foi setorizar o campo cultural em grandes áreas nas quais era contemplado um variado leque de projetos11.
Com a mudança na dinâmica dos editais, um determinado segmento (por exemplo, setorial do audiovisual, setorial de teatro, setorial de artes visuais etc.) poderia contemplar os mais diversos tipos de projetos, abarcando distintos objetos, tais como criação, difusão e formação. Em relatório produzido pela Secretaria de Cultura, dedicado à análise dos dados dos editais do ano de 2012, o setor de audiovisual foi aquele que angariou um maior volume de recursos. Dos R$ 18.310.157,90 concedidos para o conjunto de editais de 2012, coube ao setor do audiovisual 24,6% dos recursos, ou seja, cerca de R$ 4,5 milhões (Bahia, 2013). Em 2013, a mesma política de editais setoriais foi mantida12, tendo sido descontinuada a partir de 2014, por questões de contingenciamento financeiro. Há de se destacar também o lançamento do edital de eventos calendarizados em 2013. Com um formato inovador, o edital garantiu o apoio financeiro plurianual (durante três anos) a eventos artístico-culturais considerados consolidados (com, no mínimo, três edições de realização). A intenção de tal política foi a de criar uma espécie de calendário artístico para o estado, garantindo-lhe continuidade, mediante o apoio regular aos eventos. Esse edital teve impacto significativo para a realização e a consolidação de importantes festivais e mostras de audiovisual que hoje compõem o calendário cultural da Bahia. No levantamento realizado pela pesquisa “Circuitos alternativos de exibição: um mapeamento a partir das políticas públicas de incentivo para cineclubes, mostras e festivais na Bahia contemporânea”, cinco importantes eventos obtiveram o apoio do referido edital, condição que possibilitou a realização de edições regulares: Panorama Internacional Coisa de Cinema, Cachoeira Doc, Mostra Cinema Conquista, Seminário Internacional de Cinema - Cine Futuro e Vale Curtas, totalizando um investimento de cerca R$ 2.940.000,00, contribuindo, assim, para a garantia de três edições (2013, 2014, 2015) desses importantes festivais.
Em 2011, a Secretaria de Cultura produziu um informativo sobre a economia do audiovisual na Bahia e no Brasil, com o objetivo de consolidar dados e indicadores do setor. O que o estudo deixa transparecer é que a terra de Glauber Rocha padece de uma fragilidade institucional quando o assunto é o segmento do audiovisual. Os dados apresentados no relatório não são muito alvissareiros: as empresas de produção de conteúdo são, na maioria, de pequeno porte, com estruturas enxutas, orçamentos modestos e baixo nível de profissionalização, materializado, por exemplo, numa conduta empresarial de coprodução pouco expressiva. No elo da distribuição, a Bahia não possui nenhuma empresa, e aquelas existentes são multinacionais sediadas no Rio de Janeiro ou em São Paulo. No elo da exibição, ainda que haja uma relativa diversificação dos canais de distribuição (festivais, cineclubes, salas de exibição privada e públicas, TVs universitárias), tal condição não implica necessariamente uma expressiva participação dos atores locais. Ao contrário, o conteúdo audiovisual produzido no estado não encontra espaços de exibição que possibilitem aos próprios baianos ver o que produzem. Delineando um quadro pouco animador, o relatório sentencia:
É abissal a falta de integração entre os elos da cadeia do audiovisual na Bahia, que se mostra fragmentada, com pequena escala, baixo nível de profissionalização, enfim com óbices competitivos de monta, que requerem a formatação de políticas públicas seletivas, convergentes e de longo prazo se o objetivo é dotá-la de condições sustentáveis de competitividade (Bahia, 2011, p. 100-101).
Como se sabe, o audiovisual tem se conformado como um dos mais promissores domínios da chamada economia criativa justamente por sua capacidade formidável de movimentar, em sua engrenagem, cifras vultosas de recursos, no que se refere aos investimentos realizados, empregos gerados e lucros obtidos. Tendo em vista a baixa estruturação desse importante segmento econômico na Bahia, parece recair sobre o Estado a responsabilidade de implantar políticas capazes de dinamizar o setor, garantindo-lhe condições mínimas para que se viabilize a conformação de um mercado potencialmente próspero.
Como apontado pelo informativo acima referido, mesmo diante de tal cenário, a Bahia tem acompanhado a tendência de fortalecimento de políticas para o audiovisual que vem sendo implementadas pelo Ministério da Cultura. Entre 2001 e 2014, foram produzidos 116 filmes na Bahia, segundo informações publicadas no Caderno de Cinema sobre o cinema baiano no século XXI: são 46 filmes de longa-metragem, sendo 18 ficções e 28 documentários, e 70 filmes de curta-metragem. Entre os dias 21 e 28 de setembro de 2014, houve uma mobilização de duas secretarias de Estado, a de Cultura e a de Comunicação, por meio da Diretoria de Audiovisual da Fundação Cultural do Estado da Bahia e do Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia, respectivamente, para realização da Semana do Audiovisual Baiano Contemporâneo, período em que foram exibidos, em cinco salas de cinema de Salvador, 35 longas-metragens e 70 curtas.
Parte-se aqui da hipótese de que a dinamização do setor do audiovisual na Bahia deve-se, em grande medida, à injeção de recursos que o Estado vem aportando mediante seus programas de financiamento, condição que favoreceu os diversos elos da cadeia de produção, com especial ênfase ao circuito alternativo de exibição - indicador que pode ser demonstrado pelo significativo número de mostras e festivais que vêm sendo realizados no estado nos últimos anos.
O incremento no número de festivais realizados na Bahia, na participação do público e na movimentação de recursos são indicadores evidenciados no estudo Painel Setorial dos Festivais Audiovisuais - Indicadores 2007, 2008 e 2009. Segundo a referida pesquisa, entre 2006 e 2009 o número de festivais realizados na Bahia cresceu 100%, passando de cinco festivais realizados em 2006 para dez em 2009. Como consequência, o público que circula nos referidos eventos também subiu, passando de 46 mil pessoas em 2006 para 58.900 em 2009, representando um crescimento de 30%. De acordo ainda com o estudo, os festivais de audiovisual movimentaram cerca de R$ 50 milhões em 2009, englobando captação em recursos financeiros, parcerias, apoios, bens e serviços. Desse montante gerado, a Bahia comparece no circuito com cerca de R$ 2,5 milhões, representando 4,55% do volume global de recursos movimentados em 2009. Cabe destacar ainda o crescimento do volume de recursos mobilizados pela realização de festivais na Bahia entre os anos de 2006 e 2009. No referido intervalo, o estado experimentou um crescimento de mais de 200% na sua movimentação de recursos, saltando de R$ 812.500,00 para R$ 2.455.700,00, figurando, assim, em terceiro lugar no quadro da movimentação global de recursos por estado no período entre 2006 e 2009. Aposta-se aqui que um dos fatores que contribuíram para o dinamismo do segmento passa pelo incremento e consolidação das políticas públicas (federais e estaduais) direcionadas para o audiovisual, através das distintas vias de financiamento público, seja mediante editais, leis de incentivo à cultura ou investimentos diretos mediante agências financeiras estatais como o BNDES.
O circuito alternativo de exibição na Bahia contemporânea
Desde 2013, está em curso o projeto de pesquisa “Circuitos alternativos de exibição: um mapeamento a partir das políticas públicas de incentivo para cineclubes, mostras e festivais na Bahia contemporânea” (Gusmão, 2013), cujo propósito é compreender os modos como se configuram os espaços não comerciais de exibição, a partir do fomento das políticas públicas para o audiovisual, considerando o alinhamento entre cultura e desenvolvimento que comparece na formulação das proposições das políticas de incentivo delineadas pelo Ministério da Cultura e pela Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, especialmente para os festivais e mostras de cinema, na última década. Um dos objetivos principais da pesquisa é mapear as mostras e festivais de cinema realizadas na Bahia no período de 2003 a 2014, a fim de obter um panorama sobre esse circuito de exibição e os impactos das políticas públicas de cultura estatais para o setor.
A pesquisa empírica foi realizada por meio de entrevistas em vídeo e aplicação de questionários com os organizadores e/ ou produtores. Além do mapeamento das informações sobre os editais de financiamento, contou com um levantamento minucioso dos registros de divulgação das atividades nas redes sociais, especialmente das mostras e festivais em atividade. O banco de dados inclui informações acerca do perfil dos entrevistados, sobre as atividades de formação realizadas por cada evento em suas trajetórias e sobre os perfis de exibição de cada evento, incluindo as curadorias das programações fílmicas. Também há registros dos perfis de públicos e das vinculações institucionais de tais empreendimentos, uma vez que a maioria deles conta com outros apoios e patrocínios.
Ao finalizar o mapeamento dos festivais e mostras, a referida pesquisa apresentou os seguintes resultados: entre 2003 e 2014, foram realizados 48 eventos sediados tanto na capital quanto no interior do estado, dentre os quais a maioria contou com o financiamento do Estado para sua efetivação. Desse total, 12 fazem parte do circuito atual e alcançaram regularidade de realização, 14 tiveram menos de três edições contabilizadas ou um hiato longo após a retomada para outra edição, e outros 22 aconteceram pontualmente em uma única edição. Até 2009, Salvador e região metropolitana abrigavam a maioria dos eventos. No entanto, a partir de 2010, registra-se um crescimento no número de eventos que ocorrem em cidades do interior do estado. Constatou-se que essa ocorrência está diretamente ligada à política de territorialização desenvolvida pela Secretaria de Cultura do Estado na gestão do Partido dos Trabalhadores. Dos 12 festivais e mostras que alcançaram continuidade, destacam-se quatro eventos com mais de dez anos de percurso; no entanto, apenas três deles continuam no circuito: Panorama Internacional Coisa de Cinema, Mostra Cinema Conquista e Festival 5 Minutos. A Jornada Internacional de Cinema da Bahia realizou sua última edição, a de número 39, em 2012. Quanto ao financiamento, dos 12 principais eventos em atividade, sete contam com apoio estadual da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, em três principais linhas: Fundo Setorial do Audiovisual, Editais de Demanda Espontânea e Edital para Eventos Calendarizados. Nessa última categoria, há cinco eventos beneficiados: Panorama Internacional Coisa de Cinema, Mostra Cinema Conquista, Seminário Internacional de Cinema - Cine Futuro, Cachoeira Doc e Vale Curtas. Destes, apenas o Cachoeira Doc e o Vale Curtas, com cinco e sete edições consecutivas, respectivamente, ocorreram sem nenhuma interrupção.
No que se refere ao mapeamento das políticas de financiamento para o setor, o dado mais contundente é que a maioria dos festivais e mostras realizadas na Bahia, na capital e no interior, lançou mão de recursos públicos para sua efetivação. Dos 48 eventos levantados pela pesquisa, apenas dez não obtiveram financiamento público com recursos do Estado. Vale destacar ainda que os eventos não apoiados, em geral, possuem perfil de pequeno porte e foram realizados, na sua maioria, no interior do estado. Desse modo, no que se refere ao circuito alternativo de exibição configurado na Bahia, o Estado tem comparecido como agente público fundamental para dinamização desse elo. Como já mencionado, o mecanismo acionado para concessão de apoio financeiro privilegiado no estado foram os editais ou as chamadas públicas. No caso específico do audiovisual, entre 2007 e 2014, período eleito pela pesquisa, foram lançados pela Secretaria de Cultura e seus órgãos correlatos (FUNCEB e IRDEB, por exemplo) diversificados editais que cobriram direta ou indiretamente o segmento.
Considerações finais
Como apontam o estudo realizado pelo Fórum de Festivais (Painel Setorial dos Festivais Audiovisuais) e a pesquisa por nós realizada, os festivais e mostras de cinema vem se configurando como importante elo da cadeia produtiva do audiovisual, uma vez que proporcionam a ampliação do circuito exibidor - historicamente marcado por uma significativa concentração - mediante a diversificação de janelas alternativas de exibição de filmes que dificilmente acederiam ao circuito mainstream. Como consequência, podem vir a ser germinados novos hábitos de consumo cultural, como a formação de público para aqueles filmes que dificilmente se enquadrariam nos requisitos do circuito comercial de exibição e ainda ressignificações das relações entre realizadores para difusão dos filmes. Abre-se, assim, uma vereda para a democratização de bens culturais num segmento populacional que possui pouco ou quase nenhum acesso às salas tradicionais de cinema ou mesmo espaços alternativos de exibição. No conjunto dos festivais e mostras de cinema levantados pela nossa pesquisa, verificou-se que, entre 2003 e 2014, foram realizados 37 eventos no interior da Bahia, um indicador que aponta para a ampliação do arco territorial de realização desses eventos, historicamente concentrados na capital. Como revelado pela recente pesquisa realizada pelo IBGE intitulada Perfil dos estados e dos municípios brasileiros: cultura/ESTADIC (2015), apenas 10,4% dos municípios brasileiros possuem salas de cinema - dado aferido em 2014. Dessa forma, as mostras e festivais acabam cumprindo importante papel enquanto espaços alternativos para consumo de cinema em localidades cuja oferta de equipamentos culturais é escassa.
Finalmente, ressalta-se o destaque das oportunidades de formação cultural e de qualificação profissional que as programações da maioria dos eventos do circuito alternativo propiciam a seus públicos na Bahia. Registram-se significativas pautas, incluindo desde a participação de profissionais renomados na realização de cursos, oficinas, conferências, passando pelos debates em mesas-redondas, seminários e lançamentos de livros, até os espaços de diálogo entre realizadores (diretores, produtores e atores) com os públicos das diversas cidades nas quais as atividades acontecem. A dinâmica de organização dos eventos mobiliza em suas programações, exibições fílmicas, experiências reflexivas e práticas nos âmbitos do cinema e do audiovisual, possibilitando certa continuidade na ampliação da formação cultural e profissional, especialmente nas atividades que conseguem delinear parcerias com escolas e universidades. E, não por acaso, essa articulação entre cultura e educação, destacando, no rol das ações, as características criativas dos processos de realização fílmica e dos aprendizados culturais e artísticos, se revela preponderante na avaliação dos resultados positivos em relação ao público e às certificações viabilizadas pelas mostras e festivais audiovisuais na Bahia contemporânea.
A partir da análise proposta neste artigo, foi ainda possível constatar que o mercado do audiovisual no Brasil, seja na sua dimensão mais comercial, seja na dimensão da chamada produção “alternativa” ou “independente”, tem no Estado o seu agente político e econômico com maior gradiente de estruturação. Sabe-se que, mesmo em países que possuem um mercado audiovisual aparentemente autônomo, porque fincado numa indústria bilionária, como o americano por exemplo, o Estado comparece mediante políticas de isenção fiscal, lobbies políticos e econômicos e políticas decisivas de exportação. No Brasil, o poder estruturante do Estado para o setor audiovisual é ainda mais acentuado, gerando uma espécie de dependência desse agente para sua sobrevivência. Contudo, pelas vicissitudes sócio-históricas, aqui as políticas públicas raramente extrapolam a temporalidade da duração de governos e ganham a estabilidade necessária para se tornarem políticas de Estado. Nesse compasso, a sombra da descontinuidade política faz o Estado ganhar feições de um agente duplo que ora viabiliza projetos e ora se torna a principal ameaça para sua continuidade. Em tempos de insegurança política e institucional, essa idiossincrasia do caráter bifronte do Estado brasileiro parece expressar a sua inexorabilidade.
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Notas
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