Resumo
Objetivo: sistematizar estudos que abordam o tema da saúde dos professores universitários da grande área da saúde e os fatores ocupacionais condicionantes e determinantes de saúde associados, e realizar uma reflexão sobre o tema.
Métodos: revisão integrativa descritiva e analítica realizada em bases bibliográficas eletrônicas brasileiras e internacionais, baseada em estudos publicados em português e inglês entre janeiro de 2005 e março de 2016.
Resultados: as buscas e as aplicações dos critérios de seleção resultaram na inclusão de vinte estudos (três teses, cinco dissertações e doze artigos). No geral, os estudos apontam que os docentes identificam como aspectos negativos à saúde as condições físicas e psicológicas de trabalho e, como aspectos promotores da saúde, a satisfação com a profissão, envolvendo a produção e o compartilhamento sistematizado de saberes, e o impacto social que suas atividades promovem dentro e fora do ambiente de trabalho.
Conclusão: evidências da percepção de docentes universitários da grande área da saúde sobre os seus próprios processos de saúde e adoecimento no trabalho apontam que as esferas pessoais, sociais e institucionais devem atuar conjuntamente para atender as complexas necessidades contemporâneas em saúde.
Palavras-chave: docente, universidade, promoção da saúde, satisfação no trabalho.
Abstract
Objective: to systematize studies that address the occupational determinants of health of university health professors.
Methods: descriptive and analytical integrative review conducted in Brazilian and international electronic databases, based on studies published in Portuguese and English between January 2005 and March 2016.
Results: application of the selection criteria resulted in the inclusion of twenty studies (three master dissertations, five doctoral theses and twelve articles). Predominantly, the studies pointed out that professors identify physical and psychological working conditions as negative aspects to health and, as health promoting aspects, the satisfaction with their profession - involving production and systematized sharing of knowledge - and the social impacts that their activities exert in and outside their workplace.
Conclusion: evidences of health professors’ perception on their own processes of health and illness at work indicate that personal, social and institutional spheres should work together to meet the contemporary complex health needs.
Keywords: professor, university, health promotion, work satisfaction.
Revisão
Fatores condicionantes de saúde relacionados ao trabalho de professores universitários da área da saúde: uma revisão integrativa
Health conditioning factors work-related to health professors: an integrative review
Recepção: 20 Maio 2016
Revised document received: 18 Setembro 2016
Aprovação: 06 Outubro 2016
Transformações contemporâneas apresentam novas dinâmicas e desafios a diversos fenômenos sociais1. A evolução tecnológica, a hiperconectividade, o avanço das ideologias neoliberais e da austeridade econômica no contexto produtivo, e os novos valores culturais, tais como imediatismo, individualismo, narcisismo, consumismo e hedonismo, dentre outros, afetam as relações e a saúde humanas2), (3.
No contexto do trabalho, as mudanças citadas tanto proporcionam quanto demandam dos profissionais imediatismos resolutivos e atualizações constantes, afetando o ritmo e a capacidade de assimilação das tarefas. A vida no trabalho passa a existir numa temporalidade de aceleração permanente em busca de produtividade e competência e com o aumento dos dispositivos de controle que enfatizam ligações funcionais e pragmáticas dos trabalhadores no seu cotidiano4.
Tais aspectos vêm afetando drasticamente a saúde e a qualidade de vida de diversas categorias profissionais, dentre elas os docentes que atuam em Instituições de Ensino Superior (IES)5. A intensificação das exigências por geração de conhecimentos, formação profissional de qualidade e produção de novas tecnologias para o país se consolidam como tarefas adicionais a esses profissionais4), (6), (7, em especial por se referirem ao processo intelectual, investigativo e criativo, que não se encaixa na lógica produtivista8. Alguns docentes, apesar de excelentes em sua área de atuação, passam a apresentar dificuldade em cumprir as atividades de ensino, pesquisa e extensão contempladas no “tripé universitário” e ainda se dedicar às atividades administrativas e financeiras que se acumulam na sua carga de responsabilidades9.
No entanto, o trabalho pode também representar fonte de prazer e realização pessoal10. Os obstáculos estimulam professores a criar estratégias para driblar as dificuldades cotidianas e as condições deficitárias de trabalho e a elaborar outras normas e regras que redefinem a técnica, encontrando modos de regulação que deem conta da variabilidade inerente à sua atividade. Assim emerge o trabalho real, que afirma a potência do vivo de reorganizar cotidianamente suas demandas11. O vínculo, um dos elementos básicos do processo de aproximação e interesse pela vida social, pode, ainda, ser um elemento importante para enfrentar as adversidades e suportar os níveis de estresse, angústia e de falta de sentido no trabalho8.
Ser professor é uma atividade profissional que exige clareza do papel do conhecimento nos processos de ensino e aprendizagem para formar profissionais capazes de transformar os conhecimentos aprendidos em atuações necessárias ao ambiente social em que estão inseridos, inclusive para o próprio docente12. Assim, o processo de saúde e adoecimento dos professores universitários deve ser entendido como um intrincado fenômeno sistêmico: cada vez que um dos componentes sofre uma alteração, esta repercute e atinge os demais fatores, desencadeando um processo para buscar um novo equilíbrio do sistema8), (11), (12.
Nesse panorama complexo nos interessa discutir o fenômeno da saúde em sua relação com o trabalho de docência em nível superior em professores que atuam em cursos da grande área da saúde. Isso porque o trabalho desses docentes que devem cuidar enquanto ensinam, além de atender às questões científicas, educacionais e de formação profissional, deve fomentar posturas e ambientes promotores de saúde, voltando-se às necessidades de saúde da população13.
Não obstante, essa exigência pode produzir uma incoerência: mesmo sendo autoridade científica na área, o profissional pode não conseguir agir ou promover a saúde de forma satisfatória ou em conformidade com as recomendações que ensina14), (15. Tamanho desafio pode levar alguns docentes a vivenciarem a angústia de um paradoxo que Jung (1989)15 definiu como arquétipo “do curador adoecido”, quando a vivência desses profissionais não se alinha com os preceitos defendidos e ensinados.
Nessa perspectiva, o presente artigo visa sistematizar estudos que abordam o tema da saúde dos professores universitários da grande área da saúde e os fatores ocupacionais condicionantes ou determinantes associados, e realizar uma reflexão sobre o tema. Tal reflexão pode fornecer elementos para compreender os papeis desses profissionais como agentes promotores da saúde (sua própria e da comunidade, inclusive a universitária), onde as práticas (pessoais e profissionais) sejam percebidas como importante elemento de formação pessoal e profissional, considerando também as condições objetivas e subjetivas das vivências do trabalho.
Trata-se de uma revisão integrativa descritiva e analítica realizada a partir de artigos científicos, dissertações e teses que apresentaram como tema central a saúde de professores universitários brasileiros da área da saúde, publicados entre janeiro de 2005 e março de 2016. O método de revisão integrativa permite a combinação de estudos com diferentes abordagens metodológicas mantendo o rigor das revisões sistemáticas, e favorece a avaliação crítica e a síntese das evidências disponíveis do tema investigado16.
A busca dos estudos foi realizada nas bases de dados PubMed, Medline, LILACS (Biblioteca Virtual em Saúde), SciELO, Google Scholar, Periódicos Capes e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia. Os descritores utilizados foram: “saúde, bem-estar, promoção de saúde, percepção de saúde, professores universitários, professores, e universidade” em português e “health, wellness, health promotion, health perception, professor, teacher, e university” em inglês. Além disso, as referências bibliográficas dos estudos encontrados também foram pesquisadas a fim de localizar mais trabalhos sobre o tema.
Foram selecionados os estudos que atenderam aos critérios de inclusão: ser trabalho científico (artigo, dissertação ou tese) disponível na íntegra online; ter amostra com professores universitários brasileiros de cursos que formam profissionais da grande área da saúde acordo com a Resolução nº. 287/1998 do Conselho Nacional de Saúde (CNS)17; pesquisar sobre a situação de saúde no sentido amplo, contemplando mais de um indicador; e abordar os determinantes e condicionantes da saúde relacionados ao trabalho.
A Resolução CNS nº 287, de 08 de outubro de 1998, relaciona as seguintes categorias profissionais de saúde de nível superior para fins de atuação do Conselho: Assistentes Sociais; Biólogos; Biomédicos; Profissionais de Educação Física; Enfermeiros; Farmacêuticos; Fisioterapeutas; Fonoaudiólogos; Médicos; Médicos Veterinários; Nutricionistas; Odontólogos; Psicólogos; e Terapeutas Ocupacionais17.
Optamos por incluir teses e dissertações não publicadas na forma de artigos para ampliar o número de estudos científicos consultados e, consequentemente, a abrangência das discussões entabuladas na presente revisão. Estudos exclusivamente descritivos sobre prevalência de doenças ou distúrbios (tais como doenças crônicas, síndrome da exaustão ou Burnout, distúrbios da voz, problemas e/ou dores musculoesqueléticas) não foram incluídos, uma vez que a revisão busca esclarecimentos sobre os fatores condicionantes ou determinantes associados à saúde no trabalho, e não apenas descrever ou caracterizar a situação de saúde dos docentes. Em adição, foram excluídos estudos que contemplavam cursos superiores de outras áreas que não apresentaram os resultados estratificados para a área da saúde.
Os estudos selecionados foram agrupados por tipo de pesquisa (quantitativa, qualitativa ou mista) e em ordem crescente do ano de publicação e, quando do mesmo ano, em ordem alfabética considerando o sobrenome do primeiro autor. As características metodológicas, os principais objetivos, resultados e conclusões de cada estudo foram tabulados. Diante das informações sistematizadas, empreendemos uma análise crítica sobre a situação de saúde dos docentes universitários a partir dos condicionantes e determinantes relacionados ao trabalho. Nessa apreciação, partimos do entendimento que a saúde é um fenômeno complexo determinado por ampla rede de relações18, no qual vários fatores em sinergia determinarão o estado de saúde do indivíduo e da coletividade, consoante os referenciais teóricos da promoção da saúde19. Esse referencial teórico representa uma possibilidade concreta de ruptura do paradigma dominante, centrado na doença e no indivíduo, ao propor uma forma mais abrangente de conceber e intervir no campo da saúde20.
Consultas às bases de dados retornaram 81 publicações sobre o tema. Após a aplicação dos critérios de inclusão, 24 estudos com professores de cursos superiores de outras áreas que não apresentaram resultados estratificados para a área da saúde; vinte estudos que abordaram um único critério de saúde e/ou não avaliaram fatores condicionantes ou determinantes da saúde associados ao trabalho, e dezessete relacionados exclusivamente à formação e desenvolvimento docente em saúde foram excluídos.
A presente revisão de literatura trabalhou com vinte estudos publicados nos últimos onze anos que contemplaram a saúde, seus determinantes e condicionantes, em professores universitários brasileiros que atuam na grande área da saúde. Foram utilizadas três teses, cinco dissertações e doze artigos científicos cujas características gerais podem ser vistas no Quadro 1.


As publicações foram agrupadas por tipo de pesquisa: oito estudos quantitativos1), (21), (22), (23), (24), (25), (26), (27, nove estudos qualitativos6), (8), (12), (28), (29), (30), (31), (32), (33, e três estudos quanti-qualitativos34), (35), (36. Há, ainda, informações sobre as características da amostra, tais como: número de participantes, cursos incluídos, tipo de vínculo com a instituição, prevalência por sexo, e o tipo (federal, estadual, municipal ou privada) e local (cidade e estado) da IES, além do desenho metodológico e os instrumentos utilizados.
Os objetivos dos trabalhos são variados, mas podem ser sintetizados como o estudo dos processos de saúde e adoecimento associados: às cargas psíquicas no trabalho; às condições físicas e organizacionais do trabalho; às relações interpessoais no trabalho; à satisfação no trabalho e capacidade para o trabalho; e aos sentidos de prazer e sofrimento no trabalho.
Todos os oito estudos quantitativos1), (21), (22), (23), (24), (25), (26), (27 foram transversais, descritivos e utilizaram questionários variados para obter informações sobre características sócio-demográficas e laborais dos docentes. Desses, dois estudos se denominaram epidemiológicos22), (23, mas a amostra investigada foi um pequeno grupo não representativo de professores. Dos nove estudos qualitativos todos aplicaram entrevistas6), (8), (12), (28), (29), (30), (31), (32), (33, oito de forma individual e um em grupo focal, e sete utilizaram análise de conteúdo para identificação de categorias. Os três estudos mistos, com abordagens qualitativa e quantitativa, usaram questionários e entrevistas34), (35), (36.
Dos vinte estudos, catorze1), (12), (21), (22), (24), (25), (26), (27), (30), (31), (32), (34), (35), (36) abordaram o tema sob a perspectiva dos sujeitos em estudo, e registraram, analisaram e relacionaram dados e informações de saúde procurando descobrir a frequência com que um fenômeno ocorre, sua natureza e características, e sua relação e conexão com outros fenômenos, em especial o exercício docente no ensino superior de graduação na área da saúde. Os demais seis6), (8), (23), (28), (29), (33 estudos que não utilizaram frequência descritiva relataram diferentes fatores e aspectos relacionados às instituições, interação com gestores e colegas de trabalho, bem como as condições de trabalho e os sentidos de prazer e sofrimento no trabalho.
Quatro estudos foram desenvolvidos somente em instituições privadas26), (27), (35), (36; onze em instituições públicas (nove federais1), (24), (25), (28), (30), (31), (32), (33), (34, uma municipal12 e uma regional22); dois estudos comparam IES públicas e privadas6), (29, onde cabe destacar a maior instabilidade psicológica, de horários e do próprio emprego; e em três estudos não foi possível identificar o tipo e/ou o local da instituição8), (21), (23. Apenas seis estudos apresentam mais de 50% da amostra sendo dedicação exclusiva na IES1), (24), (25), (33), (34), (35 e dezessete estudos apresentaram predominância do sexo feminino no grupo estudado.
Oito estudos foram realizados na região Sul (cinco no Rio Grande do Sul1), (12), (22), (30), (36, dois em Santa Catarina28), (35 e um no Paraná26), três na região Sudeste (dois no Espírito Santo8), (29 e um em Minas Gerais27), dois na região Centro-Oeste (Goiás24 e Mato Grosso do Sul34), dois na região Nordeste (Pernambuco25 e Rio Grande do Norte33) e dois na região Norte (Manaus31 e Pará32); em três estudos não foi possível identificar a região ou o estado6), (21), (23. A maior parte dos autores dos trabalhos selecionados estava filiada à grande área da saúde, especificamente enfermagem, medicina, odontologia, farmácia, psicologia e educação física.
A despeito de todos os estudos abordarem a saúde e o adoecimento em relação aos processos de trabalho, houve ampla variação nas palavras-chave utilizadas. As que apresentaram maior repetição nos estudos foram: saúde, docente ou professor, ensino ou educação ou magistério, e nível superior ou universitário.
Os principais resultados e conclusões das publicações sobre a saúde dos professores universitários da área de saúde e aspectos relacionados ao trabalho foram descritos no Quadro 2. Os aspectos negativos à saúde apresentados pelos estudos permitem ampliar o grau de compreensão acerca dos riscos e evidências de processos de adoecimento, em especial nas dimensões físicas e psicológicas relacionados às condições de trabalho no ambiente universitário. Fatores positivos à saúde estão relacionados à satisfação profissional decorrentes da produção de conhecimento e do impacto social que suas atividades de trabalho promovem e podem contribuir com a criação, difusão e implementação de estratégias promotoras de saúde no ambiente de trabalho ou fora dele.



Ao empreender a revisão de literatura, nos deparamos com poucas publicações nos últimos onze anos que se dedicaram a compreender os determinantes e condicionantes da saúde relacionados ao trabalho de professores de IES que atuam em cursos da saúde. Em geral os estudos foram realizados em uma única instituição ou no máximo comparam duas instituições da mesma cidade/estado, não apresentando um panorama nacional sobre o tema. A revisão aqui exposta apresenta os principais resultados e conclusões de estudos produzidos nas cinco regiões brasileiras e promove uma síntese da temática ao discutir algumas convergências para fortalecimento de consenso e divergências entre os estudos, comparando também com outros dados nacionais.
Informações sobre as IES no país37), (38), (39), (40 indicam maior prevalência (66%) de IES estabelecidas nas regiões Sul e Sudeste, de forma similar à prevalência de 60% dos trabalhos contemplados nessa revisão publicados nessas regiões. Não obstante, quando analisados por categoria administrativa, os estudos produzidos sobre as IES não representam a realidade nacional, sendo majoritariamente desenvolvidos em IES públicas; principalmente federais (45%). Das 2.391 IES reconhecidas no território brasileiro em 2013, menos de 15% eram públicas (4% federais, 5% estaduais e 3% municipais)39), (41.
Quando analisamos dados quantitativos nacionais dos cursos da saúde e bem-estar social - que contemplam os cursos de terapia e reabilitação; enfermagem; farmácia; saúde (cursos gerais); odontologia; medicina; tecnologias de diagnósticos e tratamento médico; e serviços sociais e orientação42), (43, identificamos que há uma prevalência maior de cursos da área da saúde sendo oferecidos em IES públicas (22%); e que os cursos listados diferem das categorias de profissionais de saúde de nível superior da Resolução CNS nº 287/199817, faltando nos estudos os cursos de ciências biológicas; biomedicina; educação física; fisioterapia; fonoaudiologia; medicina veterinária; nutrição; psicologia; e terapia ocupacional.
Há a necessidade de mais estudos sobre o tema, principalmente devido ao crescimento no número de IES no país: 851 em 1994, 2.314 em 2011 e 2.391 em 2013. Outro aspecto é que apenas 20% dos estudos apresentaram dados de IES privadas, sendo que o crescimento no quantitativo dessas instituições foi maior nos últimos anos: de 74,4% em 1994 para 89,4% em 2011, com leve redução para 87,4% em 201339), (40), (44), (45.
Outro aspecto que merece destaque é a prevalência de docentes por sexo nas amostras observadas pelos estudos e nas IES nacionais. Quase a totalidade das pesquisas apresentou maioria de participantes mulheres, sendo que, na realidade brasileira, os homens representam aproximadamente 55% dos docentes que atuam nas IES41. Nesse sentido, há que se investigar se a maior participação feminina nos estudos decorre do aumento no número significativo de mulheres integradas ao mercado de trabalho nos últimos anos e/ou porque alguns cursos da saúde, tais como nutrição e enfermagem, são hegemonicamente femininos29), (46), (47. Há que se considerar também que homens e mulheres desempenham diferentes papéis sociais e tendem a ter diferentes necessidades e comportamentos, sendo as mulheres mais propensas à adaptação a multifunções ou tarefas profissionais e familiares29), (48, o que pode contribuir para sua maior adesão e participação nas pesquisas.
Quanto ao regime de trabalho docente, enquanto nas IES públicas predominam os docentes que atuam em regime de tempo integral com dedicação exclusiva (81,6%), nas IES privadas predominam os docentes com funções horistas (39,9%) e o regime parcial (35,2%); havendo apenas 24,9% de professores em regime integral41. Na presente revisão, embora a maioria dos estudos tenha sido realizado em IES Públicas, apenas 30% apresentaram amostra composta majoritariamente por docentes em dedicação exclusiva.
Os docentes que atuam em regime de tempo integral e dedicação exclusiva expõem-se à sobrecarga pela necessidade de se envolver em pesquisa, ensino e extensão, além de atividades como participação de comissões, organização de eventos, ações administrativas, entre outras, exigidas destes professores22. Já os docentes horistas e os de regime parcial participam mais do ensino, pois o regime de trabalho dificulta seu envolvimento em atividades para além do exercício da docência47 e/ou podem sentir-se compelidos a se mostrarem participativos e “úteis” em suas IES; aspectos que merecem ser aprofundados em outros estudos.
O conjunto de estudos analisados nesta revisão não representa “uma amostra” que possa ser considerada representativa da realidade nacional, mas a análise conjunta das referências compiladas apresenta aspectos relevantes que contribuem para a compreensão dos aspectos envolvidos nos processos de saúde e doença de professores universitários da área da saúde.
As informações convergentes entre eles indicam que as condições objetivas e subjetivas de trabalho envolvidas nos processos de saúde e adoecimento podem ser categorizadas em três esferas: pessoal, social e institucional. Embora os professores de IES em geral estejam satisfeitos com a atividade realizada e com o ambiente de trabalho em que estão inseridos8), (21), (22), (24), (26), (32), (36; há também uma grande parte dos docentes que sofre alguma espécie de exposição a riscos ou morbidades decorrentes do trabalho1), (22), (23), (29), (35.
Em geral, as vivências de prazer no trabalho foram associadas à identidade de ser professor, especialmente o reconhecimento do trabalho, a produção sistematizada de conhecimento e o impacto social que suas atividades promovem21), (24), (35, além da ampla possibilidade de interações e de fortalecimento dos laços afetivos do convívio social6), (8), (28), (32. Não obstante, houve relatos, ainda que em menor frequência, referentes às relações, interações e vivências conflituosas entre alunos, professores e outros funcionários como aspectos negativos à saúde12), (31), (34. Nesse sentido, o sentimento de pertencimento, o respeito e a valorização profissional por parte de gestores, alunos e comunidade podem contribuir para a promoção da saúde docente22), (36.
Em sua ampla maioria, os relatos de sofrimento por docentes de IES se referem à exaustão física e mental associadas à precarização das condições trabalho (tais como perda de direitos previdenciários, instabilidade contratual, aposentadorias precoces sem o devido provimento das vagas, competitividade acirrada por recursos e desvalorização do trabalho) e, consequente, aumento da carga laboral6), (8. A precarização do trabalho1), (6 e da infraestrutura22), (24), (30), (32), (34 gera insatisfação e apresenta repercussões na saúde dos professores e na qualidade do ensino superior.
Destacamos ainda que, embora a maioria dos estudos apontem que a satisfação dos professores nas relações interpessoais facilitam a prática docente6), (28), (31), (36, podem existir mais aspectos desagradáveis do que agradáveis nas situações especificas de relação pessoal no trabalho12; e o ambiente físico de trabalho pode ser considerado aspecto de satisfação21), (26, mas também de insatisfação, sendo deficitários de conforto e praticidade1), (8), (22), (24), (32), (49.
Os aspectos apontados expressam as contradições e ambiguidades do meio acadêmico onde o clima organizacional, as relações e os indivíduos compõem, conjuntamente, as fontes de satisfação, realização e sofrimento no trabalho, afetando diretamente o bem-estar, a saúde e a qualidade de vida dos docentes. Fontes de sofrimento, quando não resignificadas pelos sujeitos, podem gerar angústia, insatisfação e tensão, e aumentar o absenteísmo21), (34, principalmente desencadeado por distúrbios psíquicos50.
Frente a essa realidade, refletir sobre a situação e os processos de saúde e adoecimento em professores universitários implica analisar os modelos de gestão implementados nas IES do país, que buscam maximizar a produtividade por meio da ampliação da razão do numero de alunos por professor e da quantidade de atividades desempenhadas por cada um no ensino, na pesquisa, na extensão e na administração51.
Políticas federais recentes como o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI) e o Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), a despeito de contribuir valorosamente para a expansão e ampliação do acesso à educação superior e à pesquisa no Brasil, também agravaram a lógica de produção empresarial e a precarização do trabalho docente42), (43.
Embora as relações de poder expressas por meio de hierarquias diretas sejam em geral mais sutis no ambiente universitário, as políticas vigentes que definem e cobram a produtividade mínima aceitável dos professores que atuam nas IES se embasam nos modelos econômico-político-culturais vigentes, geralmente quantificadas conforme o número de artigos, livros, dissertações e teses publicadas42, e parecem desconhecer o fato de que, a despeito de todo o esforço que empregam para serem “produtivos”, professores (em especial os universitários) não são máquinas em competição para reduzir custos na confecção de produtos renováveis a intervalos de tempo cada vez menores5.
Em adição, a conjuntura de crise econômica, política e cultural vivida no país coloca em espera a continuidade dos planos de reestruturação e fortalecimento da educação e da ciência, intensificando a disputa pelos recursos escasseados52. A exacerbação da competitividade adiciona tensão à já extensa lista de demandas (no ensino, pesquisa, extensão e administração, somadas às atividades de planejamento e produção de conteúdo, além da negociação e estabelecimento de vínculos) desempenhadas pelos docentes de IES29.
A tentativa de adequação do docente a essas características objetivas do trabalho tem promovido a fragmentação e o isolamento profissional que diminuem a qualidade da educação e agravam a frustração, o sofrimento e o adoecimento docente4), (6. Tamanhas exigências laborais modificam também as relações e atividades desenvolvidas fora do trabalho, com consequentes impactos nas atividades de lazer, na convivência com familiares e amigos, e na qualidade de vida de todos os envolvidos8), (53.
É importante destacar alguns estudos que apontam os docentes universitários como capazes de, ao enfrentar alguns dos obstáculos apontados, mobilizar os recursos disponíveis na busca de soluções criativas e colaborativas para tornar o trabalho possível e, ainda, obter resultados positivos no exercício da profissão6), (12), (28), (54. O docente é capaz de desenvolver estratégias para lidar com as adversidades do ambiente e os ditames institucionais resgatando a função social de prazer e solidariedade nas relações de trabalho, por meio das transformações externas e internas que vá buscar8. Uma estratégia relevante é a busca de projetos profissionais alternativos que confiram valor, prazer e realização à atividade laboral6.
Nesse sentido, as horas adicionais de trabalho com a população parecem ser um aspecto característico do trabalho docente na área da saúde. É no decorrer desse processo que esses professores acabam por desenvolver relações com a comunidade local para analisar as necessidades sociais e constituírem as bases do que precisa ser ensinado, dando sentido e significado à sua prática9.
As interações sociais construídas nos diversos contextos do processo de ensino-aprendizagem e nas demais relações do cotidiano universitário favorecem de forma significativa a qualidade de vida e a saúde docente28. No entanto, em geral esse trabalho é computado como extensão, sendo pouco valorizado na econometria do trabalho acadêmico5, podendo resultar em frustração, exaustão, sofrimento e adoecimento6), (29), (32), (34), (35), (42.
O docente envolvido na realidade social dos alunos e da comunidade, além de ator chave no processo de produção de saberes e práticas e na formação profissional, passa a representar um importante canal de comunicação e informação ao apresentar similaridade comunicativa e ainda servir de referência nos conhecimentos, comportamentos e atitudes em saúde55), (56), (57.
Como profissional da saúde, deve reconhecer a relevância da produção do cuidado para com a defesa e a afirmação da vida, por meio da qual é possível promover a saúde. Nesse processo, seu trabalho é peça fundamental para favorecer o empoderamento, a autonomia e a participação social (sua própria e da comunidade acadêmica) de forma a contribuir com a promoção da saúde individual e coletiva na IES9.
Esses aspectos nos aproximam dos conceitos de promoção da saúde58 e de ambientes de trabalho saudável, que destacam o papel dos indivíduos e das organizações na criação de oportunidades, escolhas e ambientes saudáveis59. O conceito moderno de promoção da saúde representa um modelo promissor para superar a perspectiva puramente preventiva e curativa, e para aprofundar a compreensão sobre a complexidade de se preservar os potenciais de saúde de indivíduos e grupos sociais de forma articulada às demais políticas e tecnologias de intervenção social que contribuem para a construção de ações que possibilitam responder às novas necessidades sociais em saúde60), (61. A saúde deve ser compreendida em seus múltiplos aspectos sem estar reduzida a qualquer de suas dimensões, seja ela biológica, psicológica, individual ou coletiva, objetiva ou subjetiva20.
As condições objetivas e subjetivas de trabalho que podem estar envolvidas nos processos de saúde e adoecimento docentes dialogam com os referenciais teóricos dos determinantes e condicionantes da saúde18. Não obstante, destacamos que as vivências pessoais e sociais são entendidas como produtos e produtoras do ambiente, das normas, da gestão e da organização do trabalho (aspectos institucionais)62; podendo ou não ser ressignificadas pelos sujeitos6. Nesse sentido apontamos o marco conceitual das Universidades Promotoras de Saúde (UPS), onde as IES, enquanto espaço de interação social, devem aliar a vontade política à suficiência de recursos humanos, financeiros e estruturais de forma a melhorar a saúde e a qualidade de vida da comunidade universitária9), (63.
Aqui abrimos um parêntese para discutir o conceito de saúde empregado nos diversos estudos. Isso porque algumas publicações se destacam das demais ao investigar a saúde em sua concepção ampliada, na perspectiva da promoção da saúde, do bem-estar e da qualidade de vida, discutindo aspectos como: a integralidade, a singularidade, a humanização, a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a importância do diálogo e da escuta1), (8), (12), (25), (36.
Quando definem promoção da saúde como estratégia de produção social de saúde que apresenta um modo de pensar e de operar relativo à potencialização das capacidades individuais, coletivas e das comunidades em relação aos inúmeros condicionantes envolvidos nos processos saúde-doença-cuidado, reconhecem o sujeito empoderado como agente transformador da realidade64. Alguns estudos apontam, ainda, a necessidade da IES desenvolver uma gestão que priorize a promoção da saúde22) e a valorização dos docentes, a diminuição da carga de trabalho e a concretização digna do ensino, pesquisa e extensão, favorecendo sua missão de produção de conhecimento, valores e desenvolvimento humano23.
Outros estudos são mais sucintos ao apresentar algumas informações sobre saúde na perspectiva ampliada e favorável à qualidade de vida23), (28), (29), (30, e outras publicações não fazem menção direta à saúde na perspectiva ampliada, mas apresentam visões de saúde atreladas à capacidade para o trabalho e o sentido de prazer e sofrimento no trabalho, bem como de condições estressoras e do aumento do risco de transtornos mentais6), (27), (32.
Não obstante, em alguns casos ainda persistem visões reducionistas e lineares centradas no binômio saúde-doença individual expressas tanto no desenho metodológico das pesquisas22), (34, quanto no discurso de profissionais e/ou nas ações realizadas para intervir de forma pontual, assistencialista e curativista31), (33. Esses estudos não apresentam o processo saúde-doença como uma expressão populacional, cultural e espacial20, nem buscam identificar, em cada situação específica, as relações entre as condições de saúde e seus determinantes culturais, sociais e ambientais, dentro de ecossistemas modificados pelo trabalho e pela intervenção humana65. Mas, sim, tendem a colocar a responsabilidade pelo adoecimento e pelas ações de prevenção e controle sobre os indivíduos, reduzindo ou excluindo a dimensão social dos processos20.
Ressaltamos que a adoção de visões mais restritas de promoção da saúde não se relacionam diretamente a uma abordagem metodológica específica. Estudos com metodologias quanti-qualitativas, a despeito de serem indicadas de forma complementar para ampliar a compreensão do fenômeno66, muitas vezes ficaram restritos a informar prevalências e a discutir representatividades sem aprofundar em discussões epistemológicas34.
Essa discussão epistemológica se faz pertinente, uma vez que o desafio dos “docentes que cuidam enquanto ensinam” é continuar a ser um agente de transformação - onde a prática docente se torna um vetor importante nos processos de subjetivação dos sujeitos em formação e na potencialização de IES que invistam na promoção da saúde, tanto em sua perspectiva individual quanto coletiva8), (28. Nesse sentido, as pesquisas científicas sobre saúde no trabalho devem compreender o ser humano como um ser singular e multidimensional que está inserido em um contexto real e concreto de trabalho62), (67.
Embora a maior responsabilidade pela qualidade do ensino superior recaia sobre os professores e alunos, é mister lembrar que essa responsabilidade deve ser compartilhada com a IES, seus líderes, o governo, as associações e, enfim, toda a comunidade universitária deve se sentir compromissada e contribuir para o desenvolvimento de um ambiente favorável e de boas práticas no ensino superior68. São necessárias políticas que ajudem a reduzir a sobrecarga, mediante uma gestão que priorize melhorias nas condições de trabalho, incluindo recursos e fomentos para a concretização digna e a valorização do docente no ensino, na pesquisa e na extensão9.
Essa visão ampliada de Universidade Promotora de Saúde - onde os processos de promoção da saúde sejam contínuos e abranjam todas as áreas da instituição, incluindo docentes, pesquisadores, gestores e demais funcionários, estudantes e comunidade local, bem como instalações e estrutura organizacional - devem permear as discussões e intervenções sobre o tema68. No entanto, nenhum dos estudos selecionados nesta revisão utiliza esse marco teórico para discutir ou recomendar iniciativas de superação dos problemas encontrados.
Diante dos aspectos apontados nesta revisão, percebemos a necessidade de compreender as relações mais amplas entre os determinantes ambientais da instituição, que influenciam as relações dentro e fora do ambiente de trabalho, e outros determinantes sociais do processo, tanto mais amplos (como política, economia e cultura), quanto mais individuais (como a família, o indivíduo e suas subjetividades) nos processos de saúde e adoecimento31.
Nessa direção, é preciso repensar o ser e fazer na área da docência em saúde, a fim de atender os princípios vigentes de promoção da saúde, bem como instigar novos referenciais capazes de repensar a saúde para além da dimensão biológica, objetiva e individual. As IES precisam superar a ideia assistencialista de saúde no trabalho, o que implica abarcar a integralidade do cuidado e do autocuidado além da perspectiva do docente como um ser integral e complexo inserido em um contexto de trabalho contraditório67. Promover e cuidar da saúde de docentes implica reconhecer que diversos elementos, tais como a trajetória individual, os aspectos organizacionais, o ambiente e as relações sociais presentes nas instituições em que esses trabalhadores estão inseridos são fundamentais para a qualidade de vida e a saúde6), (30.
Nessa perspectiva, pensar a saúde dos docentes da área da saúde é repensar o modelo de trabalho, de formação e de produção de conhecimentos nas IES de forma a ampliar as possibilidades interativas, além da articulação teoria, prática e ciência, por meio de debates e discussões que fortaleçam e divulguem o conceito de saúde segundo uma perspectiva ampliada67. Os docentes universitários da área da saúde precisam superar o modelo cartesiano de pensar ajudando a fortalecer os olhares complexos sobre as relações entre condições, ambientes e sujeitos, onde a compreensão dos processos de saúde e adoecimento é obtida a partir da dinâmica social que constitui o trabalho.
Docentes de IES desempenham diversas atividades profissionais que, sobrepostas e alinhadas ao modelo produtivista, acabam por representar fonte de sofrimento e angústia. Não obstante, a possibilidade de promover a saúde e ressignificar as relações humanas com o trabalho é fonte de prazer para o docente. Estratégias inovadoras, dinâmicas, ativas e participativas que atendam melhor às necessidades contemporâneas e complexas em educação e promoção da saúde devem ser maximizadas no ambiente universitário.
Para tal, as instituições devem ser capazes de fornecer estruturas, ambientes e políticas condizentes com a promoção da saúde, e o docente da área da saúde, como agente de saúde, não pode se portar como simples transmissor de conhecimento, e sim como um agente de transformação que deve estar engajado nesses processos por meio das suas atividades de ensino, pesquisa, extensão e administração. A interação entre condições objetivas e subjetivas de trabalho nas esferas pessoal, social e institucional é fundamental para minimizar as chances desse profissional de saúde se tornar um “curador adoecido”.
São necessários estudos adicionais sobre o tema que favoreçam um olhar ampliado sobre fenômenos, e que possam suscitar a implantação e o monitoramento de políticas e programas efetivamente comprometidos com a promoção da saúde nas universidades.
Contato: Andrea Ferreira Leite E-mail: afleite78@gmail.com




