Nota
Aspectos toxicológicos do benzeno, biomarcadores de exposição e conflitos de interesses
Toxicological aspects of benzene, biomarkers of exposure and conflicts of interest
Recepção: 01 Setembro 2017
Aprovação: 28 Setembro 2017
A despeito do extenso conhecimento produzido sobre a exposição ao benzeno e seus efeitos à saúde, ainda persistem lacunas referentes à sua biotransformação e aos mecanismos que levam à toxicidade por sua ação mutagênica e carcinogênica no organismo.
A absorção do benzeno pelo corpo pode ocorrer através da inalação, do contato dérmico e da ingestão. Após a absorção, o benzeno é metabolizado principalmente no fígado (metabolismo primário), com subsequente metabolização na medula óssea (metabolismo secundário)1, conforme representado na Figura 1. Os metabólitos produzidos ao final desse processo são excretados pela urina.

Na primeira etapa do metabolismo do benzeno ocorre a formação de um intermediário eletrofílico reativo, o benzeno epóxido, sendo catalisada pela enzima citocromo P450 2E1 (CYP2E1), que coexiste em equilíbrio com o seu tautômeroc oxepina. Entre as vias que estão envolvidas no metabolismo do óxido de benzeno, a via predominante envolve rearranjo não enzimático para formar fenol. Este é oxidado na presença da enzima CYP2E1, formando catecol e hidroquinona, que, por sua vez, são oxidados na medula óssea, via ação da enzima mieloperoxidase aos metabólitos reativos o- e p-benzoquinona, respectivamente. A reação inversa (redução de o- e p-benzoquinona em catecol e hidroquinona) é catalisada pela enzima NAD(P)H quinona oxidorredutase-1 (NQO1). O catecol e a hidroquinona podem ser convertidos para o metabólito 1,2,4-trihidroxibenzeno, através de catálise pela enzima CYP2E1. Alternativamente, o benzeno epóxido pode ser convertido a diidrodiol benzeno e, em seguida, a catecol, sendo essas reações de conversão catalisadas pelas enzimas hidrolase e diidrodiol desidrogenase, respectivamente. Outras vias metabólicas incluem as reações do benzeno epóxido com a glutationa, formando o ácido S-fenilmercaptúrico2),(3; e com a CYP2E1, formando a oxepina, a qual sofre reação de abertura do anel, catalisada pelo ferro, produzindo o trans,trans-muconaldeído com subsequente metabolização a ácido trans,trans-mucônico3),(4. A produção de metabólitos de benzeno primários ocorre principalmente no fígado, via metabolização pela enzima CYP2E1, e também nos pulmões, via reações enzimáticas de CYP2E1, CYP2F1 e CYP2A13. No entanto, reações metabólicas importantes também ocorrem em tecidos-alvo formando compostos altamente reativos como o- e p-benzoquinona, os quais são os possíveis responsáveis pela hematotoxicidade e mielotoxicidade na medula óssea5.
A principal via de eliminação de benzeno não metabolizado, após a exposição por via inalatória, é a expiração3. O benzeno absorvido é excretado pela via metabólica do ácido mucônico e do fenol, seguida de excreção urinária dos conjugados (sulfatos ou glucuronatos). Exposições humanas de benzeno no ar, em concentrações entre 0,1 e 10 ppm, resultam em perfis de metabólitos urinários com 70-85% de fenol, 5-10% de hidroquinona, 5-10% de ácido trans,trans-mucônico e de catecol e menos de 1% de ácido S-fenilmercaptúrico6),(7.
Um fator relevante em relação à biotransformação do benzeno é que seres humanos o metabolizam de forma mais eficiente em exposições a baixas concentrações, sugerindo o envolvimento de duas vias metabólicas, sendo uma delas saturável em exposições a maiores concentrações. Rappaport et al.8, por meio da comparação de modelos cinéticos de duas vias metabólicas do benzeno, sugerem um maior risco de leucemia em exposições a baixas concentrações de benzeno. Esta hipótese é corroborada também por Vlaanderen et al.9 em estudo de metanálise por metarregressão realizado com o objetivo de avaliar a curva de dose-resposta do benzeno e risco de leucemia. Os resultados encontrados indicaram um modelo supralinear da curva dose-resposta na região de baixas doses de exposição ao benzeno. Provavelmente, esse resultado de maior risco de leucemia a baixas doses está relacionado à maior eficiência da metabolização do benzeno a baixas concentrações de exposição e, consequentemente, ao aumento da produção de seus metabólitos reativos, que são hematotóxicos. Sendo assim, a produção desses metabólitos com atividade tóxica poderia levar a efeitos tóxicos maiores do que o esperado em indivíduos expostos a baixas concentrações do benzeno no ar8.
As concentrações de benzeno e/ou seus metabólitos oriundos do processo de detoxificação no organismo humano são utilizados como biomarcadores na avaliação/monitoramento de exposições ambiental e ocupacional. Os biomarcadores comumente utilizados na exposição ao benzeno são o próprio xenobiótico ou seus metabólitos, como o ácido trans,trans-mucônico e o ácido S-fenilmercaptúrico10.
O benzeno não metabolizado como biomarcador pode ser determinado em três matrizes diferentes: no ar exalado, no sangue e na urina. O benzeno no ar exalado é um biomarcador específico e sensível a baixas concentrações ambientais, mas apresenta, como desvantagem, o fato de o ar expirado não ser uma amostra homogênea. O benzeno urinário é um biomarcador sensível e específico, mas ele é encontrado na urina em uma pequena fração inalterada (entre 0,1 e 0,2% do que foi absorvido) e com tempo de meia-vida variando de 2-3 horas11, o que leva à necessidade de se utilizar metodologias dispendiosas para sua análise. O benzeno no sangue, assim como os outros dois, também é um biomarcador específico e sensível, mas devido às suas baixas concentrações nessa matriz, é necessário o emprego de técnicas mais caras para sua determinação, além de ser uma amostra muito heterogênea e apresentar um processo invasivo para sua coleta10),(12.
O fenol é, quantitativamente, o principal metabólito do benzeno e, durante algum tempo, foi considerado um biomarcador de exposição. No entanto, ele se limita a exposições superiores a 5 ppm num período de 8 horas, pois fatores alimentares pregressos podem levar a resultados iguais em pessoas não expostas ocupacionalmente13.
Com a intenção de substituir o fenol urinário como biomarcador, Inoue et al.14 avaliaram, em 1988, a utilização do catecol e da hidroquinona urinários como biomarcador do benzeno, cujos resultados encontrados foram melhores que o fenol urinário. No entanto, não são mais utilizados, pois a coexposição ao tolueno interfere nas concentrações desses metabólitos10.
À medida que os valores de referência para exposição ocupacional ao benzeno são de 1 ppm ou menos, os biomarcadores ácido trans,trans-mucônico e ácido S-fenilmercaptúrico em urina são mais indicados (com tempos de meia-vida de aproximadamente 5 a 9 horas, respectivamente)10),(11. Contudo, uma das grandes limitações da utilização do ácido trans,trans-mucônico como biomarcador do benzeno é sua especificidade, já que o consumo de ácido sórbico (presente em alimentos como derivados de queijo e enlatados) e sua metabolização também produz o ácido trans,trans-mucônico. Assim, mesmo que apenas de 0,12 a 0,18% do ácido sórbico seja absorvido pelo organismo humano e excretado na urina como ácido trans,trans-mucônico, isso produz um fator de confundimento na avaliação do ácido trans,trans-mucônico em indivíduos não fumantes expostos a baixas concentrações de benzeno e com uma dieta de aproximadamente 500 mg dia-1 de ácido sórbico12),(15. Uma alternativa para contornar essa limitação pode ser a avaliação/monitoramento desse biomarcador antes e no final da jornada de trabalho. Estudos recentes têm investigado a associação entre concentrações urinárias de ácido trans,trans-mucônico e a exposição ocupacional/ambiental ao benzeno, sugerindo que o ácido trans,trans-mucônico pode não ser um biomarcador sensível para monitorar exposições a concentrações muito baixas de benzeno16. O ácido S-fenilmercaptúrico mostra alta especificidade, mas apresenta uma baixa concentração na urina da maioria das amostras de trabalhadores expostos ao benzeno, além do tabagismo ser um confundidor para esse biomarcador10. Dessa forma, faz-se necessário o uso de técnicas analíticas mais sensíveis e de alto custo para a detecção desse metabólito17),(18.
Biomarcadores de efeito também podem ser utilizados, como a N-7-fenilguanina, um biomarcador de carcinogenicidade do benzeno. Contudo, apesar de ser específico, não apresenta uma boa sensibilidade, já que em concentrações inferiores a 5 ppm de benzeno no ar, há dificuldade para detectá-lo10.
De modo geral, há vantagens e desvantagens na escolha entre os diferentes biomarcadores de exposição ao benzeno, conforme mostra uma compilação dessas informações apresentada no Quadro 1. Dessa forma, é importante destacar que a ausência ou a baixa detecção de um biomarcador na amostra de um trabalhador sujeito à exposição ao benzeno em seu processo de trabalho não significa que não exista exposição.

Além de monitorar a exposição através de biomarcadores e de avaliação ambiental, é importante a definição de um ou mais biomarcadores de efeito precoce e reversível, como alterações moleculares que podem levar a danos celulares, (formação de adutos de proteína, aberrações cromossômicas, formação de micronúcleos, dentre outros), que indiquem o início do desenvolvimento de uma doença, principalmente, num ponto que possibilite o reestabelecimento da saúde do trabalhador pelo afastamento da exposição no processo de trabalho. Deriva dessa premissa a proposição de avaliar biomarcadores de genotoxicidade (Quadro 1) como biomonitoramento de populações expostas ao benzeno19, permitindo monitorar precocemente o desenvolvimento de doenças associadas ao benzeno. A alteração de hemograma dos trabalhadores resultante da exposição ao benzeno, regulamentada em 21 setembro de 2016 no Anexo 2 da Norma Regulamentadora 9 (NR 9)20 como monitoramento para vigilância em saúde para “Exposição ocupacional ao benzeno em instalações de abastecimento de combustíveis”, já mostra um dano não precoce21.
O monitoramento da exposição ocupacional ao benzeno, bem como de outros compostos orgânicos voláteis, através de biomarcadores (como o ácido trans, trans mucônico e o ácido fenil S-fenilmercaptúrico, no caso, biomarcadores de exposição ao benzeno) no âmbito dos postos de revenda de combustíveis deve ser empregado como instrumento em prol da defesa dos trabalhadores. Como não há concentração limite segura de exposição ao benzeno, por se tratar de um composto comprovadamente genotóxico e cancerígeno22, também não há limite seguro para seus metabólitos, que devem se apresentar zerados nos exames de biomarcadores de efeito avaliados nos trabalhadores23. Entretanto, como muitos desses biomarcadores não são específicos para uma única exposição (Quadro 1), a interpretação deles não é isenta de conflitos de interesses. Por exemplo, no caso do ácido trans,trans-mucônico urinário, biomarcador de exposição adotado no Brasil pela Portaria do Ministério do Trabalho20, a prática de sua avaliação pelas empresas começou a considerar como “referência” o valor de 0,2 mg/g creatinina (limite de detecção do método), justificando a alteração pela influência da alimentação24 e tendendo a desresponsabilizar os empregadores das alterações que podem estar associadas à exposição e/ou culpabilizar os próprios trabalhadores por seus “hábitos de vida”25.
De forma similar, um resultado clínico de ausência ou baixa concentração de determinado biomarcador apresentado pelo trabalhador pode ser usado pelo empregador para contestar a existência da exposição. Pelo próprio processo de trabalho envolvendo atividades de risco em postos de combustíveis, no qual os trabalhadores entram em contato direto com os vapores dos combustíveis26),(27, a não alteração de determinado biomarcador na amostra de um trabalhador não quer dizer que não há exposição e não há risco de adoecimento do trabalhador. A exposição em postos de combustíveis sempre está presente nos procedimentos mais comuns, como abastecimento de veículos e descarregamento do caminhão-tanque e não há concentrações seguras dessa exposição, uma vez que benzeno é comprovadamente cancerígeno. O estabelecimento de baixos limites de benzeno pode reduzir o risco de exposição, mas não assegura a proteção absoluta, e para não ocorrer incidência de câncer, a concentração de benzeno deve ser igual a zero10.
Contato: Marcus Vinicius Corrêa dos Santos. E-mail: m.vinicius_csantos@yahoo.com.br

