Resumo
Objetivos: avaliar a função pulmonar e a depuração mucociliar nasal de cortadores de cana-de-açúcar.
Métodos: foram avaliados dezesseis cortadores de cana-de-açúcar em dois períodos: durante o plantio da cana-de-açúcar, em abril/2011, e no final da safra, no período de queima e colheita manual da cana-de-açúcar, outubro/2011. A função pulmonar e a depuração mucociliar foram avaliadas por meio da espirometria e do teste de tempo de trânsito da sacarina (TTS), respectivamente.
Resultados: a função pulmonar apresentou diminuição no %FEF25-75 [99,31 (23,79) até 86,36 (27,41); p = 0,001]; %VEF1 [92,19 (13,24) até 90,44 (12,76); p = 0,022] e VEF1/CVF [88,62 (5.68) até 84,90 (6.47); p = 0,004] no período da colheita em comparação ao de plantio. Também houve uma diminuição significativa no resultado do teste do TTS na colheita [3 (1) min] em comparação ao plantio [8 (3) min] (p < 0,001).
Conclusão: os cortadores de cana-de-açúcar apresentaram diminuição do %FEF25-75, %VEF1, do índice VEF1/CVF, e aumento da velocidade do transporte mucociliar nasal no final do período de colheita.
Palavras-chave: trabalhador rural, saúde do trabalhador, depuração mucociliar, espirometria.
Comunicação breve
Função pulmonar e depuração mucociliar nasal de cortadores de cana-de-açúcar brasileiros expostos à queima de biomassa
Recepção: 06 Março 2017
Revised document received: 12 Julho 2017
Aprovação: 19 Julho 2017
O Brasil é o maior produtor de cana do mundo e o estado de São Paulo é responsável por cerca de 60% do açúcar e etanol produzido1),(2. A queima da cana é realizada para facilitar o processo de colheita manual, expondo os trabalhadores a altas concentrações de matéria particulada (MP) durante toda a estação3),(4.
A queima da cana é responsável por emissões de gases e pela liberação de partículas em concentrações muito mais elevadas do que os níveis recomendados pela Organização Mundial de Saúde (OMS)5. Essa poluição pode contribuir significativamente para efeitos adversos à saúde humana, tanto aguda quanto cronicamente4, especialmente a dos trabalhadores rurais que inalam gases nocivos e MP por cerca de quarenta e quatro horas por semana durante a estação de colheita6.
A inalação de poluentes produzidos pela queima da cana juntamente com o esforço físico intenso exigem uma maior taxa de ventilação, o que resulta em uma maior probabilidade de inflamação nasal, pulmonar e sistêmica, e depuração mucociliar (DM) prejudicada, sendo esta o principal mecanismo de defesa das vias aéreas superiores contra partículas e microorganismos inalados que afetam as vias respiratórias inferiores, podendo levar ao comprometimento da função pulmonar7),(8.
Um estudo demonstrou que a exposição aguda à queima da cana causa redução no tempo de transporte mucociliar em trabalhadores9. Entretanto, a expectativa é de que efeitos a longo prazo aumentem o tempo de transporte mucociliar10 e diminuam a função pulmonar11.
Assim, é muito importante conhecer os efeitos dos poluentes atmosféricos, que podem afetar a DM e a função pulmonar, levando a um aumento de doenças pulmonares e sintomas nasais7),(9)-(11. O objetivo desse estudo foi avaliar a função pulmonar e a depuração mucociliar nasal de cortadores de cana-de-açúcar.
O estudo utilizou um delineamento de coorte prospectivo, como abordagem exploratória e preliminar para o problema, tendo sido realizado com um pequeno grupo de cortadores de cana-de-açúcar de uma Empresa de Etanol e Açúcar localizada no oeste do estado de São Paulo, Brasil, que se voluntariaram para participar. Apenas não-fumantes foram incluídos, e as seguintes condições foram definidas como critérios de exclusão: histórico de cirurgia nasal ou trauma; qualquer doença de pulmão; desvio de septo nasal; ou episódios recentes de infecção das vias aéreas superiores. Cada sujeito deu seu consentimento escrito de acordo com a Declaração de Helsinque. Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (15/2010) da Universidade do Estado de São Paulo (UNESP).
O estudo foi realizado em um campo de cana-de-açúcar em dois períodos sequenciais: durante o cultivo da cana (não-colheita) em abril de 2011 e durante a colheita manual depois da queima da cana em outubro de 2011. Uma entrevista foi conduzida para registrar informações gerais sobre o processo de trabalho e histórico clínico de cada sujeito. Durante os períodos de não-colheita e colheita foram avaliados a função pulmonar por espirometria; a DM nasal através do tempo de trânsito da sacarina (TTS); e níveis de monóxido de carbono exalado (CO), que foram medidos para confirmar a abstinência de fumo.
A espirometria foi realizada de acordo com as orientações da American Thoracic Society e da European Respiratory Society12, usando um espirômetro portátil fluxo Spirobank-MIR (versão 3.6, MIR, Roma, Itália). Foram registrados os seguintes parâmetros: valores absolutos e percentuais dos valores previstos para a capacidade vital forçada (CVF e %CVF); volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1 e %FEV1), fluxo expiratório forçado entre 25% e 75% da CVF (FEF25-75 e %FEF25-75), razão VEF1/CVF e pico de fluxo expiratório (PFE e %PFE). Os valores de referência disponíveis para a população brasileira foram usados para comparação13.
A técnica de medição da DM nasal foi descrita em outros lugares9),(14),(15. Resumidamente, sacarina sódica granulada (250 μg) foi depositada sob controle visual cerca de 2 cm dentro da narina direita. Um timer foi usado para medir o tempo de trânsito da sacarina (TTS). O teste de TTS registra o tempo decorrido desde a colocação das partículas até que o sujeito relate sentir o sabor doce da sacarina. Os sujeitos foram autorizados a engolir livremente e lhes foi pedido que mantivessem ventilação normal, evitando respirações profundas, falar, cheirar, espirrar, comer ou tossir. Se nenhuma resposta fosse relatada após sessenta minutos, o teste era concluído após a confirmação de que o sujeito tinha uma percepção normal de sabor doce, colocando-se o pó de sacarina diretamente na língua do sujeito. Os participantes foram instruídos a não utilizar agentes farmacológicos, tais como anestésicos, analgésicos, barbitúricos, tranquilizantes e antidepressivos e para evitar a ingestão de álcool e substâncias à base de cafeína, durante as doze horas anteriores ao teste14.
Os níveis de CO exalado foram medidos utilizando um analisador de CO (Micro CO Meter, Cardinal Health, Basingstoke, UK)16. Para confirmar a abstinência de fumo, os cortadores de cana foram instruídos a prender a respiração por vinte segundos e então expirar lentamente a partir da capacidade vital funcional através de um bocal17. Realizaram-se dois registros sucessivos e utilizou-se o valor mais alto. Um valor de corte < 6 ppm foi utilizado para definir a abstinência de fumo18.
A análise estatística foi realizada utilizando o SPSS - Statistical Package for the Social Sciences (versão 16.0; SPSS Inc; Chicago, EUA) e o software estatístico R (versão 2.13.0; R Foundation for Statistical Computing). O teste de Shapiro-Wilk foi aplicado para verificar a normalidade de dados. Para analisar os resultados de função pulmonar e TTS entre as duas estações, usamos, respectivamente, teste t de Student pareado e o teste de Wilcoxon, considerando uma significância estatística de 0,05.
Dos 40 trabalhadores voluntários masculinos recrutados para participar do estudo, 30 se enquadraram nos critérios de inclusão e 10 fumantes foram excluídos. Onze dos 30 homens foram excluídos por não retornarem para reavaliação na época da colheita, e três trabalhadores foram excluídos devido a infecções das vias aéreas superiores durante a segunda avaliação. Os resultados são apresentados como média (desvio padrão). Um último grupo de dezesseis cortadores de cana com 25 (4) anos de idade, índice de massa corporal (IMC) 24 (3) kg/m2 e 2,1 (1,5) ppm de CO exalado foram então avaliados nas estações de não-colheita e colheita. O tempo médio de trabalho na colheita de cana-de-açúcar dos participantes foi 3 (2) anos.
A Tabela 1 mostra os valores de espirometria dos 16 sujeitos avaliados durante as estações de não-colheita e períodos subsequentes. Durante a época de colheita, em comparação com a de não-colheita, foi observada uma diminuição estatisticamente significativa no FEF25-75 e %FEF25-75 (p = 0,002; p = 0,001), respectivamente. Um decréscimo significativo também foi encontrado na relação VEF1/CVF e %VEF1 durante a colheita em comparação com a não-colheita (p = 0,004; p = 0,022), respectivamente.

Os resultados do teste de TTS mostraram uma significativa diminuição do tempo na temporada de colheita, 3 (1) minutos, em comparação com a não-colheita, 8 (3) minutos (p < 0,001).
Os resultados deste estudo mostraram que, apesar dos valores espirométricos permanecerem dentro dos limites normais durante os dois períodos de avaliação, uma diminuição significativa foi observada em %FEF25-75%, %VEF1 e VEF1/CVF durante a época de colheita.
Estudos recentes têm mostrado que a redução de %FEF25-75 representa o comprometimento funcional das vias aéreas periféricas, e mesmo quando os valores de VEF1 estão dentro dos limites normais, uma diminuição no %FEF25-75 é capaz de detectar alterações iniciais na função pulmonar11),(19.
Para não-fumantes, a exposição prolongada a MP resulta na retenção pulmonar de partículas finas e remodelagem das pequenas vias aéreas19. Nossos resultados mostram que, mesmo após um curto período de exposição, algum comprometimento de função pulmonar pode ser detectado.
O estudo realizado por Prado et al.11 observou uma diminuição nos valores médios de VEF1, VEF1/CVF e FEF25-75 dos cortadores de cana após a época de colheita, apesar de todos os valores permanecerem dentro dos valores de referência. A variável mais afetada foi %FEF25-75, com reduções de cerca de 31,1%. Esta diminuição indica o desenvolvimento de uma perturbação obstrutiva inicial em indivíduos saudáveis expostos à poluição, como observado em outros estudos20)-(22.
Um estudo que avaliou a exposição agrícola como fator de risco para o desenvolvimento de doença pulmonar obstrutiva crônica encontrou uma tendência decrescente para VEF1 paralelamente ao aumento da exposição23. O fato de que este projeto de estudo envolveu apenas um pequeno número de indivíduos com avaliações sobre apenas dois períodos de tempo não permite qualquer inferência de que os efeitos respiratórios são progressivos e irreversíveis. Esta hipótese deve ser verificada em um estudo de coorte, com uma população maior e por um período de tempo mais longo.
Agarwal et al.24 também demonstraram uma diminuição no VEF1 em um estudo que investigou os efeitos pulmonares da exposição à poluição do ar por resíduos da queima de trigo em habitantes saudáveis de Punjab, na Índia. Estes resultados, juntamente com aqueles obtidos por Montaño et al.25 e Po et al.26, que mostraram uma relação entre a exposição à poluição causada por queima de biomassa e doença das vias aéreas, fornecem a base para a hipótese de que a exposição crônica a este tipo de poluição do ar pode ser um fator de risco significativo para o desenvolvimento de doenças respiratórias crônicas.
Um estudo anterior relatou também que os bombeiros que não usavam equipamento de proteção respiratória apresentaram um declínio progressivo de % VEF1 e VEF1/CVF27. É importante ressaltar que os sujeitos neste estudo não usavam equipamento de proteção respiratória.
Em nosso estudo, o TTS foi menor durante a época de colheita. A DM nasal é reconhecida como a primeira linha de defesa do sistema respiratório, responsável pela remoção de partículas suspensas no ar inaladas e microorganismos. A eficiência da DM depende de três componentes principais, entre eles a frequência de batimento ciliar (FBC)28. O epitélio respiratório remove muco das vias aéreas, atuando como uma barreira, e regula a imunidade inata e adaptativa29.
Inalação de poluentes e esforço físico resultam em uma maior probabilidade de inflamação nasal, pulmonária9),(30 e sistêmica31),(32, bem como DM prejudicada9),(10.
O estudo realizado por Ferreira-Ceccato et al.9 avaliou os efeitos agudos da exposição a partículas de queima de biomassa na DM nasal dos cortadores de cana. Os autores observaram uma diminuição significativa no TTS, supondo que a exposição aguda a partículas em suspensão pode ser associada com aumento de estresse oxidativo e a produção de óxido nítrico pelas células inflamatórias, o que estimularia a frequência de batimento ciliar. Este raciocínio também pode explicar nossas conclusões.
Riechelmann et al.33 relatou dois possíveis mecanismos subjacentes ao efeito de aceleração observado no transporte mucociliar: um aumento auto-regulado na frequência de batimento ciliar em resposta à carga aumentada de muco e viscosidade fluida do revestimento epitelial, e o ativação do transporte mucociliar em consequência da irritação da mucosa.
Ao contrário de nossos resultados, o estudo de Goto et al.10 avaliou 27 cortadores de cana e observou que o período de colheita foi associado com uma redução de 80% da DM, ou seja, um intervalo prolongado de trânsito de sacarina médio de 7,83 min (1,88 - 13,78; intervalo de confiança de 95%). No entanto, essas avaliações não foram realizadas no campo e a coleta de dados para ambos os períodos de tempo foi feita após cinco dias úteis.
Em suma, o presente estudo mostrou que os cortadores de cana-de-açúcar apresentaram diminuição do %FEF25-75, %VEF1, do índice VEF1/CVF, e aumento da velocidade do transporte mucociliar nasal no final do período de colheita. Tais resultados podem ser investigados mais a fundo por um estudo de coorte prospectivo de um grupo maior de trabalhadores durante um tempo de acompanhamento mais longo.
Ao Instituto Nacional de Análise Integrada do Risco Ambiental (INAIRA) pelo apoio intelectual ao desenvolvimento deste estudo.
Contato: Aline Duarte Ferreira E-mail:alineduarteferreira@hotmail.com
