Resumo
Objetivo: descrever o papel e as ações conduzidas pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de São Bernardo do Campo (SP) para a implementação da política de saúde do trabalhador no município, entre 2010 e 2016.
Métodos: o relato de experiência foi baseado em reflexões coletivas associadas à análise de documentos - relatórios, memórias de reunião, planos de trabalho do Cerest, Planos Municipais de Saúde - sobre as ações do serviço e sua construção intra e intersetorial.
Resultados: coube ao Cerest o papel de fomentar o debate e problematizar as intervenções, introduzindo e disseminando na rede de saúde a atenção ao trabalhador. As ações do Cerest focalizaram o trabalho em rede buscando desenvolver o raciocínio clínico, epidemiológico e sociopolítico sobre a realidade sanitária da população. Foram construídas referências técnicas por meio do apoio matricial visando a implementação da notificação compulsória dos agravos relacionados à saúde do trabalhador na rede pública e privada, a articulação intersetorial, o fortalecimento da participação social e da articulação de ações regionais.
Conclusão: fundada no compromisso ético-político que se impõe às ações de saúde, a experiência tem buscado instituir uma cultura da saúde do trabalhador no âmbito da saúde e do município, respeitando os princípios da integralidade do cuidado e da centralidade do trabalho.
Palavras-chave: saúde pública, saúde do trabalhador, intersetorialidade, serviços de saúde, matriciamento.
Abstract
Objective: to describe the role and the actions carried out by the Worker’s Health Reference Center (Cerest) of São Bernardo do Campo, in the state of São Paulo, Brazil, in the implementation of the worker’s health policy in the municipality between 2010 and 2016.
Methods: this report on experience was based on collective reflections associated with the analysis of documents - reports, meeting minutes, Cerest’s work plans, municipal health plans - on the Cerest actions and their intra and intersectoral structuring.
Results: the Cerest’s role was to foment the debate and to problematize the interventions by introducing and disclosing, in the health network, the workers’ healthcare. Cerest’s actions focused on the networking to develop a clinical, epidemiological and sociopolitical reasoning about the population’s health reality. Technical references were built through matrix support aiming at implementing the compulsory notification of injuries related to occupational health in the public and private network, intersectoral articulation, strengthening of social participation and of regional actions’ articulation.
Conclusion: rooted in the ethic-political commitment imposed to health actions, the experience has been seeking to institute a culture of worker’s health in the scope of the health system and municipality, agreeing with the principles of care completeness and work centrality.
Keywords: public health, occupational health, intersectorality, health services, matrix support.
Dossiê/Relato de experiência. Intervenção em Saúde do Trabalhador
Estratégias de intra e intersetorialidade para transversalizar a saúde do trabalhador em todos os níveis de atenção à saúde
Strategies of intra and intersectorality to integrate the occupational health at all healthcare levels
Recepção: 23 Janeiro 2018
Revised document received: 28 Junho 2018
Aprovação: 25 Julho 2018
Este artigo relata a implementação da política de saúde do trabalhador em nível municipal. Apresenta os dispositivos implantados no decorrer de duas gestões municipais sustentadas na diretriz de “fazer o SUS acontecer”. A experiência esteve ancorada no pressuposto de que as ações de saúde do trabalhador se apresentam no cotidiano das unidades de saúde, isto é, em cada ponto da rede de saúde existem demandas relacionadas à saúde dos trabalhadores.
As intervenções apoiaram-se nas ferramentas para a gestão e para o trabalho cotidiano estabelecidas pela Portaria nº 4.279/10, que dispõe sobre a organização da Rede de Atenção à Saúde (RAS) no Sistema Único de Saúde (SUS)1. A portaria prevê que a rede ordenada pela atenção básica deve ter porta de entrada preferencial e aberta, adscrição de clientela, territorialização, trabalho em equipe, coordenação e longitudinalidade do cuidado, e suas ações visam atender os problemas e as necessidades de saúde dos indivíduos e grupos sociais de dado território2.
O Ministério da Saúde (MS) propôs a implantação das RAS como “estratégia para superar a fragmentação da atenção e da gestão nas Regiões de Saúde e aperfeiçoar o funcionamento político-institucional do Sistema Único de Saúde (SUS) com vistas a assegurar ao usuário o conjunto de ações e serviços que necessita com efetividade e eficiência”1. O MS3 estabeleceu cinco redes temáticas de Atenção à Saúde: Cegonha, Atenção à Urgência e Emergência, Atenção Psicossocial, Cuidados à Pessoa com Deficiência e Prevenção e Controle do Câncer4.
Todavia, a Rede de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), criada no início dos anos 2000 por meio da Portaria GM nº 1.679/20025, não figura entre as redes temáticas prioritárias do MS. Seu propósito foi unificar e disseminar ações de saúde do trabalhador, articuladas com outras redes do SUS. No município de São Bernardo do Campo, o Cerest passou a integrar a Renast em 2006, com a missão de apoiar a organização e a implementação de ações assistenciais, de vigilância, prevenção e de promoção da saúde na perspectiva da saúde do trabalhador6.
O município conta com uma população estimada em mais de 800 mil habitantes, dos quais cerca de 500 mil constituem a População Economicamente Ativa (PEA)7. Localizado na Região Metropolitana de São Paulo, integra a região do Grande ABC. Possui um território de 408,45 km², sendo 118,21 km² em zona urbana e 214,42 km² em zona rural.
A rede municipal de saúde, em 2016, contava com as seguintes unidades: um Cerest, 34 Unidades Básicas de Saúde (UBS) com diferentes arranjos organizativos, cerca de 100 equipes de Saúde da Família e 1.000 agentes comunitários de saúde, 9 Unidades de Pronto Atendimento (UPA), 8 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de diferentes modalidades, 8 residências terapêuticas e 4 hospitais públicos, dentre outros equipamentos8.
Na reorganização da rede municipal de atenção à saúde, coube ao Cerest o papel de fomentar o debate e problematizar as intervenções para introduzir e disseminar a atenção ao trabalhador:
As ações voltadas para a prevenção e proteção à saúde dos trabalhadores devem alinhar-se com o conjunto de políticas de saúde no âmbito do SUS, considerando a transversalidade das ações de saúde do trabalhador e o trabalho como um dos determinantes do processo saúde-doença, estabelecida na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora9 (p. 46).
Acrescentam-se a integralidade do cuidado10 e a centralidade do trabalho na vida das pessoas como pressupostos teóricos de sustentação às intervenções operadas.
A integralidade do cuidado pressupõe a inserção de ações de saúde do trabalhador em todas as instâncias e pontos da RAS do SUS, mediante articulação e construção conjunta de protocolos, linhas de cuidado e matriciamento da saúde do trabalhador na assistência e nas estratégias e dispositivos de organização e fluxos da rede10.
O princípio da integralidade evidenciou a perspectiva equivocada de que o Cerest seria a única unidade da rede de saúde com capacidade para atender os trabalhadores. As ações de saúde do trabalhador foram organizadas para detectar todas as queixas relacionadas ao trabalho registradas em todas as unidades da rede, mapear as áreas e as principais doenças/acidentes que atingem os trabalhadores nos ambientes de trabalho do município, conforme esclarecido por Arthur Chioro (Secretário de Saúde na gestão 2009-2013)1:
O conjunto de serviços previstos pelo SUS, como a Atenção Básica, as equipes de Saúde da Família, as Unidades Básicas de Saúde, as Unidades de Pronto Socorro e as Unidades de Serviços Especializados, além do próprio Cerest, estão habilitados para realizar esse tipo de serviço conjuntamente.
Para que esse plano se efetivasse, os profissionais de saúde precisavam compreender a centralidade do trabalho na vida dos usuários e estabelecer conexões dos seus problemas de saúde com o tipo de trabalho de cada um. Santos e Lacaz11 pontuam que “a rede SUS ainda não incorporou, de forma efetiva, em suas concepções, paradigmas e ações o lugar que o Trabalho ocupa na vida dos indivíduos e suas relações com o espaço socio-ambiental” (p. 1.144).
No Art. 8º V da Portaria GM/MS nº 1.8239 a categoria trabalho foi incorporada como determinante do processo saúde-doença12 dos indivíduos e da coletividade, incluindo-a nas análises de situação de saúde e nas ações de promoção em saúde13.
Consoante às diretrizes apresentadas e às experiências referidas na literatura14),(15, os desafios assumidos para desenvolver as ações de saúde do trabalhador na rede municipal do SUS foram inseridos no plano de saúde e as estratégias/metodologias foram articuladas a partir das diretrizes do Núcleo de Apoio à Saúde da Família2, buscando produzir ou apoiar as equipes da rede de saúde na produção de um cuidado continuado e longitudinal, na perspectiva da integralidade2, conforme será relatado neste artigo.
Este relato de experiência tem como base reflexões coletivas associadas à análise de diversos documentos - relatórios, memórias de reunião, planos de trabalho do Cerest, Planos Municipais de Saúde - sobre as ações do serviço e sua construção intra e intersetorial. Todos os documentos consultados referem-se ao período de 2010 a 2016 e foram produzidos, principalmente, pelo Cerest de São Bernardo do Campo ou nos espaços colegiados de gestão. Foram utilizados atas, registros, boletins epidemiológicos, trabalhos apresentados em congressos e material informativo. Além disso, as autoras contaram com suas experiências cotidianas de trabalho, as vivências relativas às dificuldades e aos desafios da atuação na área da saúde.
A análise do material baseou-se no método hermenêutico-dialético considerando o momento histórico e o exercício crítico da realidade institucional apoiado em materiais bibliográficos.
A seguir são apresentados os resultados alcançados e o saber construído coletivamente pelo fazer cotidiano. O percurso trilhado contou com uma dose de persistência e ousadia por parte da gestão devido à clara marginalidade que vem enfrentando a área de saúde do trabalhador.
Antes de apresentar as intervenções promovidas pelo Cerest, iremos detalhar as estratégias utilizadas pela equipe. Em seguida, os resultados alcançados serão referidos a partir das estratégias: apoio matricial; Cerest como retaguarda especializada para ações de vigilância; educação permanente; e articulação intersetorial.
No âmbito da gestão municipal de saúde, optou-se por um processo participativo com o envolvimento de diversos atores da rede de saúde, que se desenvolveu sob os pilares da educação permanente e da territorialização. A educação permanente é entendida como “a introdução de mecanismos, espaços e temas que geram autoanálise, autogestão, implicação, mudança institucional”16. A territorialização é compreendida como “ferramenta de produção de conhecimento e de intervenção em saúde”17.
O Cerest utilizou estratégias metodológicas com foco no trabalho em rede buscando desenvolver o raciocínio clínico, epidemiológico e sociopolítico sobre a realidade sanitária da população18. Foram construídas referências técnicas por meio do apoio matricial visando à implementação da notificação compulsória dos agravos relacionados à saúde do trabalhador na rede pública e privada, a promoção da articulação intersetorial e o fortalecimento da participação do controle social.
O apoio matricial possibilitou o compartilhamento de problemas, a troca de saberes e práticas e a articulação pactuada de intervenções19. As equipes do Cerest percorreram todas as UBS de modo sistemático, e as conversas priorizaram as notificações das doenças e acidentes de trabalho, de acordo com as portarias de notificação compulsória do MS2 e o decreto municipal nº 18.645/1320, sobre a obrigatoriedade de notificação municipal da rede pública e privada dos atendimentos de acidentes e doenças do trabalho e as fichas de notificação compulsória.
A equipe do Cerest realizou um trabalho de sensibilização sobre a centralidade do trabalho e suas determinantes no processo de saúde e doença, o papel do Cerest e como integrar ações nas reuniões gerais de equipes das UBS21. Nessa oportunidade foram colhidas as demandas locais de adoecimento relacionado ao trabalho. Posteriormente, retornou-se à UBS para reuniões com as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF).
Outra intervenção foi desenvolver o apoio matricial por categoria profissional/tema, inspiradas em experiências consolidadas14),(22: ginecologistas/saúde da mulher trabalhadora; oncologistas/câncer relacionado ao trabalho; dentistas/saúde bucal e trabalho; equipes de saúde mental/transtornos mentais relacionados ao trabalho nos CAPS adultos e no CAPS Álcool e Drogas (AD), neste incorporando o tema dependência química e trabalho. Os vinte e cinco psicólogos que atuavam nas UBS participaram de encontros temáticos sobre transtornos mentais relacionados ao trabalho, notificação compulsória e classificação das doenças segundo sua relação com o trabalho23. Os psicólogos também receberam devolutivas dos casos encaminhados pelas unidades e das intervenções do Cerest em cada território e foi distribuído o Caderno Saúde do Trabalhador no âmbito da saúde pública, referência para a atuação do(a) psicólogo(a)24.
A equipe do Cerest passou a ser procurada nos casos em que o trabalho era identificado como possível desencadeador de algum distúrbio/problema. Foram desenvolvidos Projetos Terapêuticos Singulares (PTS) integrando a atenção básica, a atenção especializada e o Cerest, como descrito no caso de violência sexual no trabalho, no qual uma jovem trabalhadora ingressou no seu primeiro emprego - uma lanchonete em um shopping center - e na primeira semana de trabalho sofreu uma tentativa de estupro por parte de colegas no ambiente de trabalho. Foi encontrada no estacionamento do shopping desorientada, com discurso desconexo. Chegando em casa, se isolou no quarto, passou a evitar os irmãos do sexo masculino com os quais dividia o quarto e prosseguiu com falas desconexas. Esse comportamento perdurou por três dias e a família procurou a UBS. A psicóloga, juntamente com a agente comunitária de saúde, fez uma visita domiciliar e a gravidade do quadro indicou que a usuária deveria ser encaminhada ao CAPS, onde foi medicada, e seguiu acompanhada. A psicóloga, ao saber que tudo ocorreu no ambiente de trabalho, acionou o Cerest, sendo agendado acolhimento. A jovem compareceu acompanhada do pai. A mesma encontrava-se muito abalada, sem conseguir estabelecer um diálogo com a profissional, mas o pai informou que a trabalhadora nem havia sido registrada no novo emprego. A equipe do Cerest estabeleceu contato com o empregador, o qual registrou a trabalhadora, demitiu o agressor, mas se negou a emitir a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT). A médica do trabalho do Cerest emitiu a CAT e o caso foi notificado pelo Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) duplamente: violência relacionada ao trabalho e transtorno mental relacionado ao trabalho. O Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) concedeu benefício acidentário e a jovem pôde se tratar sem prejuízo do salário.
A integração dos serviços permitiu um cuidado ampliado, a garantia de direitos, a proteção social e uma intervenção que resgata a dignidade e a justiça cabível. Do relato depreende-se a importância de um Cerest, que se faz conhecer pela rede e estabelece um vínculo baseado na confiança. No município, o apoio matricial e institucional foi desenvolvido como uma ferramenta estratégica para a construção do cuidado em rede e para a análise das práticas de saúde e contou com a criação de espaços coletivos e dispositivos de conexão dos pontos da rede de saúde2),(19),(25.
O Cerest, como área especializada e de retaguarda, integrou o cuidado com as equipes de atenção básica21, buscando aumentar a criação de espaços coletivos de cuidado, agregando novas ofertas de atenção e articulando os pontos da rede. O apoio, matricial e institucional25),(26 consolida-se como estratégia necessária nas intervenções em saúde do trabalhador.
Ressalta-se que o caso relatado aponta para a necessidade de integrar a assistência às ações de vigilância nos ambientes de trabalho11),(27. Nesse sentido, verifica-se que as ações compartilhadas no território podem ser potencializadas pelo desenvolvimento de ações de vigilância em saúde em conjunto com a equipe de Saúde da Família21.
Outro resultado que decorre da estratégia do apoio matricial foi verificado pelo aumento das notificações compulsórias relacionadas à perda auditiva induzida por ruído (2009: 10; 2015: 99). Além disso, ocorrências de câncer relacionado ao trabalho começaram a ser notificadas, e os transtornos mentais relacionados ao trabalho colocaram o munícipio como o 2º maior notificador do Estado, e o 4º maior quando analisados todos os agravos de notificação compulsória, no período de 2007 a 201428.
As notificações representam uma dimensão do cuidado integral ao trabalhador29, pois podem desencadear o acolhimento, o atendimento, os cuidados profiláticos, o tratamento, o seguimento na rede de cuidado e as ações de vigilância30),(31. Vislumbra-se, portanto, a notificação como uma ação de cuidado.
O Cerest assumiu uma atuação como um centro articulador e organizador das ações de retaguarda técnica especializada para o conjunto de serviços da rede, tornando-se um polo irradiador de ações e experiências de vigilância em saúde de caráter sanitário e de base epidemiológica14),(18),(32. A atenção básica foi o espaço privilegiado para o desenvolvimento das ações em saúde do trabalhador de forma integrada21. Nessa seara, foram instituídos grandes desafios intrasetoriais, dirigidos à população de territórios delimitados, nos quais as equipes assumiram responsabilidades sanitárias, ampliando as possibilidades de acesso dos trabalhadores ao sistema de saúde. Em números, essa estratégia representou, em 2015, a seguinte distribuição: 47% dos encaminhamentos ao Cerest foram da rede de saúde; 34,3% dos sindicatos; 16% de outros usuários que passaram pelo serviço; 1,9% diversos (agência do INSS; Centro de Trabalho e Renda; advogados) e 1,3% de empresas33. A ampliação das notificações, ao longo dos anos, corroboram os achados de outros estudos34),(35.
Os relatos a seguir elucidam prioridades da rede de saúde para as quais o Cerest foi demandado pela atenção básica e pela área hospitalar. Os casos dispararam ações coletivas de promoção e prevenção e contaram com as devolutivas às unidades.
Os profissionais de todas as UBS e do pronto atendimento de psiquiatria sinalizaram que recebiam casos de uma empresa de telemarketing da cidade. Os agravos mais recorrentes eram distúrbio osteomolecular relacionado ao trabalho (DORT), transtornos mentais e otite. O Cerest realizou uma ação de vigilância na qual foram aplicados 614 questionários (elaborado com base nas queixas dos pacientes atendidos na rede de saúde e no próprio Cerest e revisado por sindicalista que havia trabalhado na empresa) para identificar os riscos da organização do trabalho. Foram solicitadas adequações. A rede de saúde recebeu devolutiva nas atividades de apoio matricial e foi solicitada a ajudar no monitoramento das mudanças que ocorreriam na empresa. A empresa foi informada que a rede de saúde seria balizadora para que a equipe do Cerest soubesse se as mudanças estavam sendo processadas de fato.
Profissionais de uma UBS próxima ao Rodoanel informaram que as operadoras do pedágio sofriam de infecção urinária recorrente por não poderem deixar o posto de trabalho para usar o banheiro. A equipe do Cerest realizou inspeção no setor de pedágio e estabeleceu que cada operadora deveria interromper o trabalho para ir ao banheiro. Feita a devolutiva à UBS, verificou-se, pelo relato das enfermeiras, que o problema havia sido resolvido.
Um caso de câncer de pulmão em trabalhador de uma marmoraria, diagnosticado e notificado pelo Hospital de Clínicas Municipal, foi apresentado ao Cerest. Os representantes de todas as marmorarias da cidade foram convidados para um evento educativo e preventivo desenvolvido pelo Cerest sobre os agravos à saúde que atingem aqueles que se expõem a esse tipo de ambiente de trabalho. Os participantes receberam informações importantes sobre o processo de trabalho seguro, como o controle de exposição à poeira, o uso dos equipamentos de segurança, os cuidados ao utilizar certas máquinas e ferramentas e, também, sobre o seu direito como trabalhador. As marmorarias que não participaram do encontro receberam uma visita não agendada do Cerest para uma inspeção técnica em suas dependências.
É possível reconhecer a existência das redes vivas em produção36, por meio dos casos, e as demandas da saúde do trabalhador que surgiram nas ações intra e intersetoriais. Esses casos não retratam os caminhos percorridos pelos usuários, mas se relacionaram às condições de saúde referidas e refletiram o exercício da horizontalidade, da interconexão e de comunicação3.
Assim sendo, verifica-se a premência das intervenções sobre os determinantes dos agravos27 e ratifica-se a necessidade de integração entre as vigilâncias37, que serão tratadas a seguir sob o dispositivo da educação permanente.
Os encontros de educação permanente, configurados de diversas formas, aceleraram e potencializaram as articulações intrasetoriais. As intervenções foram concebidas por modelos de gestão horizontalizados sustentando os processos de educação permanente38, como estratégia para qualificação da gestão e da assistência, pois partiu do cotidiano, da prática real de profissionais em ação na rede de serviços39.
Serão apresentadas a seguir algumas dessas ações e alguns casos para ilustrar os resultados obtidos.
A articulação com a SVO3 teve como objetivo a busca ativa dos casos de óbitos relacionados ao trabalho e isso colocou o Cerest de São Bernardo do Campo em primeiro lugar no Estado de São Paulo em número de notificações de acidentes fatais28. Veja este caso envolvendo o suicídio de um motorista.
O motorista de uma transportadora, de 35 anos, com transtorno de estresse pós-traumático após ter sofrido sequestro numa rota para o Rio de Janeiro, ao retornar ao trabalho após afastamento se recusou a fazer o mesmo trecho por medo e foi demitido. O suicídio se deu logo depois. O irmão denunciou práticas racistas, assédio moral, além de ritmo intenso de trabalho e pressão psicológica. Na vigilância, o Cerest constatou vários afastamentos por doença na empresa, que foi notificada para desenvolver um programa de gestão com os funcionários afastados. O suicídio foi investigado como relacionado à organização de trabalho daquela empresa.
Essa integração permitiu o planejamento de ações conjuntas e o aprendizado mútuo.
O Cerest autuou um hospital da rede privada por não notificar os casos de acidentados do trabalho atendidos. O hospital já havia sido informado sobre as portarias de notificação compulsória dos agravos relacionados ao trabalho em várias oportunidades. Após análises das CAT o hospital foi autuado por subnotificação, com prazo de 30 dias para enviar as notificações faltantes. O resultado dessa intervenção representou cerca de 500 notificações de acidentes de trabalho e DORT que o hospital registrou e, também, o estabelecimento do fluxo mensal de envio das notificações ao Cerest.
Os casos de mordeduras, principalmente por cães, que acometem os trabalhadores foram discutidos pelas equipes do Cerest e do CCZ com o intuito de alertar para o adoecimento dos trabalhadores e ações de segurança a serem implementadas, como no caso ilustrado a seguir:
A partir do relatório de acidente de trabalho de uma unidade de pronto atendimento, os técnicos do Cerest constataram tratar-se de uma lesão grave e contataram o trabalhador, que relatou trauma psicológico após ser mordido por um cachorro ao realizar uma entrega de correspondência em uma empresa. Foi acionado o CCZ para avaliar a saúde do animal, que poderia ou não estar contaminado com o vírus da raiva. A UBS do território acompanhou o caso e o Cerest realizou inspeção na empresa.
A estreita relação entre as áreas de saúde do trabalhador e ambiental ficou evidente quando as demandas dos núcleos territoriais de saúde do município explicitavam casos e situações singulares36, como o de um acidente ampliado e fatal envolvendo uma carreta portando matéria-prima para fabricação de ração animal que que trafegava pela Rodovia Anchieta e caiu na represa Billings, levando o motorista a óbito.
O acidente ocorreu durante a madrugada e a carga tóxica caiu a 100 metros do sistema de captação de água que abastece o município, com grave risco de contaminação da água. Durante a investigação constatou-se a ocorrência de eventos anteriores naquela área. O caso foi apresentado na Comissão de Produtos Perigosos do Estado de São Paulo com o objetivo de proteger o meio ambiente e os motoristas. As intervenções no local incluíram a redução da velocidade permitida no trecho, a adequação das muretas de contenção e a reinstalação de um sistema de escoamento de produtos químicos.
Além das articulações com outros serviços, o Cerest integrou os espaços de produção de trocas e conexões36, entre eles o Comitê Municipal de Investigação de Óbitos Materno-infantis4 e a Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência (Reviver)5, que focam temas prevalentes da gestão municipal de saúde, respectivamente a mortalidade materno-infantil (prioridade absoluta), as violências interpessoais e as autoprovocadas. Os casos a seguir ilustram os resultados da participação do Cerest nos dois espaços:
O Cerest apresentou ao Comitê Municipal de Investigação de Óbitos Materno-infantis o relato recorrente de médicos sobre as infecções urinárias em mulheres, por motivos de proibição e controle de ida ao banheiro de várias empresas dos ramos de telemarketing, supermercados, rede de comércio de alimentos, identificado nas atividades de apoio matricial desenvolvidas nas UBS. A informação revelou que, apesar de larga investigação sobre possíveis determinantes da prematuridade e/ou complicações no parto, nunca se considerou a relação da infecção urinária com as condições de trabalho. Foram agendadas atividades de apoio matricial com os ginecologistas da rede e a entrega do Caderno Saúde da mulher trabalhadora - apoio matricial (Figura 1) com dados sobre a infertilidade, risco de aborto e produtos químicos; violência de gênero, direitos da mulher trabalhadora e das gestantes.

O Cerest integrou a rede de notificação e investigação das violências relacionadas ao trabalho e reconheceu a diversidade das situações ocorridas no trabalho, notificadas pela rede de atenção, tais como: adolescente atendente de balcão que apanhou do dono da farmácia; pedreiro que sofreu assédio sexual por parte do engenheiro; empregada doméstica que apanhou da patroa ao retirar carteira de trabalho; agente comunitária de saúde que fez tentativa de suicídio; gestante trabalhando com febre impedida de sentar e ir ao médico; empresário agredido por funcionário ao discutir jornada de trabalho etc. E, em relação às violências interpessoais e autoprovocadas, de 9 casos notificados em 2009, o número saltou para 165 em 2015, sendo a maioria casos de violência física. O Cerest revelou, também, tentativas de suicídio relacionadas às condições de trabalho.
As estratégias implementadas dialogam com a dupla leitura sobre “rede” enquanto estrutura organizacional40, voltada para a produção de serviços, e como uma dinâmica de atores em permanente renegociação de seus papéis, favorecendo novas soluções para velhos problemas num contexto de mudanças e compromissos mútuos. As inúmeras possibilidades de diálogo e conexões em ato potencializam o cuidado e ratificam o caráter de promoção e proteção à saúde que as ações de vigilâncias e atenção à população adquirem.
Esses relatos sustentam a tese27),(36 de que os profissionais não reconhecem a multiplicidade de existências que atendem e os diferentes territórios que as pessoas (trabalhadores) habitam. Nesse sentido, pretendeu-se exercitar, no âmbito da saúde do trabalhador, práticas de proteção sanitária, com base no conhecimento da saúde e da doença em sua dimensão coletiva, visando intervir nas condições insalubres ou nos determinantes sociais produzindo intervenções como práticas políticas41.
Em 2013, a partir de uma proposta da Comissão Intersetorial de Saúde do Trabalhador/a, foram articuladas reuniões intersetoriais sobre a temática de violência e trabalho com representantes de vários sindicatos da cidade, da Secretaria de Desenvolvimento, Emprego e Trabalho, da Secretaria de Segurança Urbana, e da Pastoral Operária, que culminou no lançamento da Frente Municipal de Prevenção e Enfrentamento da Violência no Trabalho (Figura 2). Essa iniciativa representa parte de um conjunto de estratégias mobilizadoras e articuladoras42 de práticas em prol do reconhecimento da saúde do trabalhador no município.

As diretrizes e objetivos da Frente, construídos coletivamente, visaram integrar as ações entre setores afins, dar visibilidade ao tema, aprimorar a epidemiologia e conscientizar os cidadãos para, paulatinamente, reduzir a incidência de todo tipo de violência relacionada ao trabalho.
A Frente atuou de modo a disseminar uma cultura de paz e mobilizar a sociedade para a prevenção e o enfrentamento de todas as formas de violência no trabalho. Realizou campanha sobre o assédio moral no trabalho com elaboração e distribuição de folder em todas as categorias integrantes; a Pastoral Operária levou o tema para programa de rádio comunitária, bem como para a Missa do Trabalhador no 1º de Maio; a Frente realizou três seminários para cipeiros e cipeiras como momento de homenagem e formação atingindo o total de mais de 1.100 cipeiros(as). Desenvolveu em parceria com o Ministério Público do Trabalho a campanha de busdoor em 8 linhas de ônibus da cidade, cujos trajetos atendiam ao critério de maior concentração de empresas ou maior adensamento populacional, conforme ilustrado na Figura 3.

Há exemplos de ações intersetoriais em saúde do trabalhador42 que buscam criar ou ampliar espaços interinstitucionais de negociação e implementação de políticas públicas que convirjam para uma nova prática sanitária43. Nesse caso, essa articulação teve a intenção de favorecer a participação das diferentes forças sociais com liberdade e oportunidade na ação.
Na implementação da política de saúde do trabalhador no município de São Bernardo do Campo (SP), de 2010 a 2016, coube ao Cerest o papel de fomentar o debate e problematizar as intervenções, introduzindo e disseminando, na rede de saúde, a atenção ao trabalhador. Tendo como pressupostos teóricos a integralidade do cuidado e a centralidade do trabalho, e alicerçados nos pilares da educação permanente e da territorialização, as ações do Cerest focalizaram o trabalho em rede buscando desenvolver o raciocínio clínico, epidemiológico e sociopolítico sobre a realidade sanitária da população, contribuindo com resultados importantes para a saúde do trabalhador.
As situações apresentadas neste relato de experiência podem servir de referência para outras intervenções em prol da saúde dos trabalhadores na perspectiva de ampliação e qualificação do cuidado. Os relatos demonstram as possibilidades factíveis da atenção em saúde do trabalhador na rede de saúde. Não foi objetivo deste relato realizar análises críticas conjunturais, muitas já estão presentes na literatura44.
A experiência exprime, de um lado, intervenções planejadas a partir das redes de gestão e, de outro, redes vivas, em produção, construídas nas singularidades dos casos36. Sua construção se funda em um compromisso ético-político que se impõe às ações em saúde.
Trata-se, enfim, de experiência que dialoga com possibilidades múltiplas e que, portanto, sugere um movimento de articular e aglutinar forças convergentes relativas à saúde do trabalhador, capilarizando ações pelas redes de saúde e movimentos sociais.
Contato: Andréia De Conto Garbin E-mail: andreiagarbin@yahoo.com.br


