Resumo
Introdução: as políticas públicas e sociais em prol da atenção integral à saúde do trabalhador encontram-se enfraquecidas diante da nova configuração do mundo do trabalho e dos interesses econômicos prevalecentes.
Objetivo: refletir sobre temas do campo da Saúde do Trabalhador (ST) que contribuem para a falta de efetividade das suas ações e para o prejuízo da sua atenção integral.
Método: ensaio baseado em revisão documental e de literatura.
Resultados: foram discutidos os avanços e os desafios para o alcance da atenção integral em ST nos temas: instituições e serviços responsáveis pela ST; Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT); Sistemas de Informação em Saúde do Trabalhador (SIST) e sistema de proteção social; e formação de recursos humanos no campo da ST.
Conclusão: a formulação de novas diretrizes e a implementação de medidas de intervenção são necessárias para o alcance da integralidade em ST, a universalidade dos SIST, uma ação articulada e integral de VISAT e a qualificação de profissionais por meio de uma aproximação teórico-prática.
Palavras-chave: política de saúde do trabalhador, saúde do trabalhador, sistemas de informação, vigilância em saúde pública, vigilância em saúde do trabalhador.
Abstract
Introduction: public and social policies aimed at a comprehensive worker’s health care have been weakened in face of the recently changes in the world of work and the prevailing economic interests.
Objective: to reflect on themes that have contributed for worker’s health care actions becoming less effective and comprehensive.
Method: essay based on a documentary research and literature review.
Results: we discussed the following themes: institutions/services in charge of the occupational health care; Occupational Health Surveillance; social protection and occupational health information systems; human resources development for occupational health care.
Conclusion: in order to reach worker’s health comprehensive care, the formulation of new programmatic guidelines and the implementation of intervention measures are necessary.
Keywords: occupational health policy, occupational health, information systems, public health surveillance.
Ensaio
Atenção integral em Saúde do Trabalhador: limitações, avanços e desafios
Comprehensive worker’s health care: limitations, advances, and challenges
Recepção: 02 Setembro 2019
Revised document received: 14 Maio 2020
Aprovação: 02 Junho 2020
O campo da Saúde do Trabalhador (ST) no Brasil apresenta várias questões cruciais e de naturezas diversas, que acabam por dificultar o alcance de sua atenção integral. Em sua trajetória jurídico-institucional, muitos avanços e dificuldades podem ser evidenciados desde a sua institucionalização na Constituição Federal de 19881, até a criação, em 2012, da Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) (2.
Nessa trajetória, em que o trabalho passou a ser reconhecido como um dos determinantes sociais da saúde, a ST deixou de ser considerada um mero direito trabalhista para então ser concebida como um direito social e parte integrante da saúde coletiva. Em sua nova configuração, o campo da ST passa a constituir-se como espaço interdisciplinar e pluri-institucional que, considerando a complexidade de seu objeto, preconiza um modo de agir integrador que inclui a promoção, a prevenção e a assistência, tendo o trabalhador, individual e coletivo, como sujeito de um processo de mudanças3.
Entretanto, para a obtenção da atenção de forma integral da ST, com ações e programas sociais capazes de intervir de modo eficiente nas três dimensões do cuidado - a promoção da saúde, a prevenção das enfermidades e acidentes, e a atenção curativa -, é necessário considerar alguns elementos imprescindíveis apresentados pela literatura para essa consagração, a começar pela construção de políticas públicas sociais efetivas que suportem os serviços de ST4.
O sistema de saúde no Brasil, no que se refere a políticas públicas e sociais em prol da atenção integral à saúde do trabalhador, encontra-se enfraquecido perante a nova configuração do mundo do trabalho e os interesses das instâncias econômicas. Nesse sentido, o que se observam são políticas sociais calcadas em princípios neoliberais, que apoiam o desenvolvimento e a aceleração da economia em detrimento de elementos social-democratas4, com impactos negativos no movimento social no que tange a prevenção de agravos à ST por meio da ação sindical5.
É nesse cenário de crise de ações sociais efetivas, principalmente no que tange à saúde do trabalhador, que foram aprovadas duas políticas, a Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST) (6 e a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT) (2, na expectativa de dar suporte à melhoria e à efetivação dos serviços. No entanto, a avaliação dos decretos que originaram essas políticas evidencia fragilidades e dubiedades que confirmam o quadro de deficiências históricas na efetivação de políticas públicas e sociais no Brasil4.
A execução de uma Política de Saúde do Trabalhador eficiente deve considerar todos os seus aspectos de determinação estrutural e conjuntural para superar os desafios impostos da área e buscar a melhoria dos indicadores de morbi-mortalidade da classe trabalhadora brasileira7.
Para demonstrar a urgência e o cuidado com que esse assunto deve ser tratado, vale destacar que, segundo o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (8 divulgado em 2019, estimativas globais recentes apontam um aumento geral, a cada ano, no número de mortes atribuídas ao trabalho, com registro de 2,78 milhões de mortes em 2017, entre acidentes de trabalho e doenças relacionadas ao trabalho.
Diante desse quadro e na perspectiva de avanços, é necessário entender o contexto jurídico-institucional em que a ST vem se conformando e as contribuições que a literatura oferece para a compreensão e o enfrentamento das lacunas e dificuldades existentes no campo.
Com o propósito de oferecer subsídios para a discussão do avanço das práticas em ST, o objetivo deste estudo foi refletir sobre os avanços e limitações jurídico-institucionais relacionados ao campo da ST que contribuem para a falta de efetividade das ações referentes à ST e, consequentemente, para o prejuízo da sua atenção integral.
Este ensaio baseia-se em documentos institucionais e legislativos (leis, decretos e portarias) e em literatura técnica e científica (livros, teses, dissertações e artigos científicos), todos relacionados à área de ST e publicados entre 1988 e 2018. O recorte de 30 anos foi escolhido por representar o período entre a institucionalização da Saúde do Trabalhador pela Constituição Federal de 1988 e o momento atual.
A busca dos documentos oficiais se deu por meio do site do Ministério da Saúde (https://www.gov.br/saude/pt-br) e do Portal do Governo do Brasil (https://www.gov.br/pt-br).
A busca da literatura científica foi realizada na Scientific Electronic Library Online (SciELO) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), mantida e organizada pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Para a pesquisa, foram utilizados os descritores: “Política de Saúde do Trabalhador”, “Saúde do Trabalhador”, “Sistemas de Informação”, “Vigilância em Saúde Pública”, e “Vigilância em Saúde do Trabalhador”. A partir dos resultados da busca, foram selecionadas as produções que traziam contribuições aos objetivos deste ensaio, a critério do autor. Em seguida, o processo envolveu, inicialmente, a leitura de 57 resumos de documentos encontrados na base SciELO, para se identificar a pertinência com o objeto estudado e, posteriormente, a leitura de 32 artigos, analisados na íntegra. Seguindo a mesma lógica, na base BDTD, houve a leitura de 16 resumos, entre teses e dissertações, e a seleção de 5 estudos para análise na íntegra. Por fim, foi realizado o fichamento dos artigos, teses e dissertações selecionados, e organizados conforme os temas.
A fim de descrever o universo da ST na perspectiva de avanços e desafios, e discuti-lo sob o ponto de vista teórico, o desenvolvimento do ensaio foi organizado em duas categorias de análise: os avanços da ST dentro de um panorama histórico e jurídico-institucional do campo; e os desafios segundo a seleção de temas específicos do campo da ST.
A primeira categoria apresenta os avanços obtidos no campo a partir de um recorte da construção jurídico-institucional da ST no SUS até a publicação da PNSST6 e PNSTT2.
A segunda categoria dispõe sobre temas da ST que representam desafios à busca de sua atenção integral, sendo eles: instituições e serviços responsáveis pela Saúde do Trabalhador; Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT); Sistema de Informação em Saúde do Trabalhador (SIST) e sistema de proteção social; e formação de recursos humanos no campo da Saúde do Trabalhador.
A Saúde do Trabalhador no Brasil tem uma trajetória jurídico-institucional caracterizada por um amplo aparato legal e normativo responsável pela sua configuração. Para melhor compreensão do seu universo, serão descritos, em ordem cronológica, marcos importantes na construção do campo que refletem seus avanços e proporcionam maior entendimento sobre as dificuldades e os desafios impostos ao seu desenvolvimento.
Considera-se que o início da ST ocorreu entre os anos de 1970 a 1980 em reação ao processo de reorganização social e política ocorrido no país, conhecido como Reforma Sanitária Brasileira9. Uma das propostas dessa reforma era garantir práticas de atenção voltadas especificamente à saúde dos trabalhadores. Esse movimento vinha na esteira da ampliação do quadro interpretativo da Medicina Preventiva, da Medicina Social e da Saúde Pública, ocorrido nos anos de 1960 e 1970, em relação ao processo saúde-doença e da sua relação com o trabalho10.
A ST passou então a ser concebida como um campo de práticas e de conhecimentos estratégicos interdisciplinares, multiprofissionais e interinstitucionais, voltados para analisar e intervir nas relações de trabalho que provocam doenças e agravos10.
Dentre os principais acontecimentos jurídico-institucionais ocorridos no Brasil em busca de avanços para a ST, principalmente no que diz respeito ao seu reconhecimento social, sua organização institucional dentro da rede pública e sua ação na perspectiva de integralidade do cuidado, podemos citar:
a 8ª Conferência Nacional de Saúde e a 1ª Conferência Nacional de Saúde do Trabalhador, ocorridas em 1986, que discutiram a necessidade de criação de uma Política Nacional de Saúde dos Trabalhadores como uma questão legal, incorporando a proposta de que o SUS deveria englobar ações e órgãos de ST, na perspectiva da saúde como um direito10;
a institucionalização da ST na Constituição Federal de 1988, representando um de seus maiores avanços, pois, além de ser reconhecida no âmbito da saúde pública, foi situada na perspectiva de direito universal, superando o restrito direito previdenciário trabalhista1;
a regulamentação, em 1990, pela Lei Orgânica da Saúde, que tornou o SUS órgão responsável por executar as ações nos âmbitos de assistência, vigilância, informação, pesquisas e participação dos sindicatos10;
a criação da Vigilância em Saúde do Trabalhador (VISAT), em 1998, por meio da Portaria nº 3.120, significando a superação dos limites conceituais e institucionais dos serviços de saúde e dos setores responsáveis pela vigilância em saúde, através da incorporação, em suas práticas, de mecanismos de análise e intervenção nos processos e nos ambientes de trabalho11;
a publicação da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho, em 1999, ampliando o escopo de doenças, até então obsoleto e reduzido, para uma listagem detalhada e tida como referência por profissionais da área até hoje10;
a criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (Renast), em 2002, por meio da Portaria nº 1.679, a qual, em sua formação institucional atual, prevista na Portaria nº 2.728 de 2009, integra a rede de serviços do SUS através dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest), responsáveis pela incorporação da ST em sua atuação rotineira12;
o Pacto pela Saúde, em 2006, que, através do componente Pacto pela Vida, consolidou e qualificou a Atenção Primária à Saúde (APS), por meio da Estratégia de Saúde da Família (ESF), como centro ordenador das Redes de Atenção à Saúde (RAS) no SUS, com o intuito de reestruturar o sistema de saúde visando favorecer o acesso equânime ao conjunto de ações e serviços de saúde e a construção de vínculos de solidariedade e cooperação13), (14;
a publicação da Portaria nº 3.252/2009, revogada pela Portaria 1.378, de 9 de julho de 2013, que estabeleceu a integração entre a Vigilância em Saúde e a APS como diretriz obrigatória para a construção da integralidade do cuidado15;
a publicação da Política Nacional de Segurança e Saúde no Trabalho (PNSST), em 2011, através do Decreto nº 7.602, estabelecendo responsabilidades aos Ministérios do Trabalho e Emprego, da Saúde e da Previdência Social6), (16
e a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora (PNSTT), em 2012, através da Portaria nº 1.823, estabelecendo as diretrizes e estratégias a serem observadas nas três esferas de gestão do SUS, para o desenvolvimento da atenção integral à ST com ênfase na vigilância em saúde2.
Os marcos levantados representam os avanços na conformação da ST no Brasil. Porém, no campo da ST, ainda existem desafios a superar para alcançar os objetivos propostos em suas políticas sociais e, consequentemente, obter uma melhoria dos indicadores nacionais de saúde.
Atualmente o trabalhador conta com as seguintes representações institucionais: Ministério da Saúde; Ministério do Trabalho e Previdência; Ministério Público da União, através do Ministério Público do Trabalho; Ministério Público do Estado; sindicatos dos trabalhadores; e sindicatos patronais.
Analisando as ações e a forma de organização oriundas do Ministério da Saúde, podemos ressaltar o complexo cenário da APS, que, mediante o desafio de atuar como centro ordenador das RAS, apresenta dificuldades estruturais que perpassam a efetivação desse papel. Dentre os diversos fatores impactantes, pode se ressaltar: a alta rotatividade de profissionais como consequência da ausência de um plano de carreira; a deficiência na infraestrutura; a inadequação das condições de trabalho; o baixo índice de conectividade e informatização; a ausência de fluxos bem definidos e eficientes de regulação; a hegemonia das ações assistenciais; as deficiências na formação de profissionais e de suporte técnico para o enfrentamento de situações; e, principalmente, a sobrecarga de trabalho das equipes17.
A adoção da metodologia de apoio matricial no trabalho das equipes de APS, vinculada aos processos de educação permanente, é considerada uma estratégia que potencializa o desenvolvimento de conhecimento e habilidades de gestão do cuidado para os usuários-trabalhadores pela APS17.
A adoção dessa metodologia já demonstrou ser efetiva, como foi comprovado em um estudo realizado no estado de Minas Gerais, no qual o apoio matricial do Cerest junto à Atenção Básica de Saúde (ABS) possibilitou a ampliação de práticas que reconhecem o usuário enquanto trabalhador e o trabalho como determinante do processo saúde-doença18.
Sobre os serviços de ST no SUS, ainda existem dificuldades para o alcance de uma organização institucional eficiente dentro do sistema de saúde pública. Dentre os fatores responsáveis por essa situação estão: a falta de padronização na representação; suas semelhanças e justaposições; a fragmentação de responsabilidades; a multiplicidade de ações que não geram resultados satisfatórios; e a falta de integração e articulação das ações executadas19), (20. Além de fatores organizacionais, a dicotomia existente entre assistência e vigilância contribui negativamente para o alcance da integralidade do cuidado21.
Sob uma ótica pluri-institucional, a falta de integração e articulação de ações também está presente entre as instituições públicas responsáveis pela ST14, principalmente entre o Ministério da Saúde e o Ministério do Trabalho e Previdência, que pode ser expressa pela falta de compartilhamento de dados úteis, como os oriundos de notificações de inspeções de ambientes de trabalho e dados do próprio sistema de benefícios da Previdência Social22.
A iniciativa da integração das ações, a partir do estabelecimento de colegiados interinstitucionais, é apontada como alternativa para efetivar as determinações da PNSTT e caminhar rumo ao alcance da atenção integral à ST7.
Além dos desafios comentados até aqui, existe a questão da fragilidade do movimento sindical23, que se encontra incapaz de responder à precarização do trabalho formal e informal, ao desemprego aberto e à perda de vínculos21; bem como o enfraquecimento das políticas públicas, traduzido em um cenário de retrocesso programático das ações de Saúde Pública no âmbito das políticas sociais23.
As políticas sociais em ST sofrem os reflexos desse contexto. Especificamente sobre a PNSST de 2011, a falta de propostas de ações para a integração e articulação entre os ministérios é apontada em uma avaliação feita do decreto, que se restringiu a reafirmar as atribuições das instituições4.
A vigilância em saúde é, na atualidade, um dos grandes desafios para o SUS e para a APS, em particular, e sua importância e necessidade de fortalecimento são destaques na vigente PNSTT de 20122.
A VISAT, cuja criação como instrução normativa ocorreu em 1998, configura-se como uma estratégia do SUS para o enfrentamento das situações de risco para a saúde do trabalhador, sendo composta pela intervenção, articulada com os demais componentes da Vigilância em Saúde e com a APS, em três dimensões: a promoção da saúde, a prevenção de doenças e acidentes e a atenção curativa24)- (26. Sendo assim, busca-se o agir integral, tendo o conceito de vigilância em saúde como eixo orientador dessa prática, abrangendo três níveis de atuação: as causas ou os determinantes; os riscos ou a exposição; os danos ou as consequências11), (27), (28.
A criação da VISAT representou um avanço nas ações em ST, com casos de sucesso no país, como a ação coordenada para controle da exposição ao benzeno nos postos de combustíveis e a ação articulada para coibir o uso do amianto no estado de São Paulo4. Todas as iniciativas em vigilância guardam a premissa da intersetorialidade, interdisciplinaridade e da participação dos trabalhadores em seu desenvolvimento, porém existem aspectos a melhorar, principalmente quanto à articulação de ações entre a vigilância epidemiológica e sanitária29.
Para que as ações de VISAT sejam efetivadas na APS, é essencial que os setores de Vigilância Epidemiológica, Sanitária e Ambiental e os Cerest estejam em consonância com suas premissas e apoiem as equipes, desenvolvendo ações compartilhadas e garantindo o fluxo e a resolutividade das ações10. Na perspectiva de instrumento legal, esta necessidade de integração entre a APS e a vigilância em saúde já é prevista na Portaria n° 1.378, de 9 de julho de 201330, e tida como diretriz obrigatória para a construção da integralidade do cuidado.
A dificuldade de articulação e realização de ações conjuntas em VISAT pode ser atribuída à carência de recursos humanos; à rotatividade de profissionais; à mudança frequente de gestão; aos recursos escassos, apesar da existência de verba específica da Renast; à sobrecarga de trabalho das equipes municipais; à qualificação profissional e à formação das equipes dos Cerest, pautada no formato tradicional de aulas expositivas31)- (33.
Nesse contexto, a superação da falta de integração entre os serviços públicos de saúde responsáveis pela VISAT depende da revisão dos modos de gestão, organização e mudança de modelo24.
Outra dificuldade enfrentada pelo SUS é que muitos municípios, principalmente os de menor porte, possuem apenas os setores de Vigilância Epidemiológica e Vigilância Sanitária. Nesses casos, uma recomendação encontrada na literatura é a ampliação do objeto de intervenção dessas vigilâncias, incluindo as condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores17.
Em contrapartida, para alguns autores, além da Vigilância Sanitária não ser reconhecida pela população como pertencente ao campo de intervenção de política de saúde29), (34, essa transferência de ações de ST para a Vigilância Sanitária é criticada, uma vez que a prática sanitária tradicional, que já se encontra afogada em demandas de toda ordem ou em rituais burocráticos cartoriais, não é capaz de abarcar e enfrentar as questões de ST4.
Os sistemas de informação em saúde (SIS), compreendidos pelo SUS, incorporam seus princípios doutrinários, como a universalidade, a equidade e a integralidade, permitindo-os alcançar uma abrangência nacional considerável e, com ela, boa parte da população de trabalhadores no Brasil19. Apesar disso, ainda são muitas as deficiências encontradas, como:
a falta de padronização dos procedimentos para obtenção e tratamento dos dados em saúde; o elevado número de sistemas de informação em saúde e sua heterogeneidade; a dificuldade de conectividade dos serviços de saúde à internet banda larga; a insuficiência de estratégias de financiamento no campo da informação e informática em saúde35. (p. 51)
Essas deficiências acabam por justificar a necessidade de se avançar, tanto no sentido da integração entre os sistemas de informação quanto no uso da informática para a melhoria da produtividade e qualidade dos processos de trabalho em saúde36.
Especificamente sobre os SIST, de uma forma geral são precários, de caráter apenas burocrático e distantes dos reais problemas de saúde dos trabalhadores, inviabilizando a compreensão do processo saúde-doença do trabalhador, além de levar às dificuldades de harmonização e articulação entre os diversos sistemas19.
Dentre os SIST utilizados no Brasil, o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (SINAN) representa a ferramenta fundamental no sistema de vigilância epidemiológica, uma vez que possui cobertura universal. Contudo, no ano de 2007, apesar do SUS, com o objetivo de melhorar a qualidade e ampliar a cobertura do registro, ter incorporado nesse sistema 11 doenças e agravos relacionados ao trabalho, dentre elas os acidentes considerados graves e os que ocorreram pela exposição a material biológico37, o problema do sub-registro de acidentes de trabalho ainda representa um de seus grandes desafios22.
Além dos SIST, dados sobre acidentes de trabalho também são utilizados no sistema de informação da Previdência Social que, ao contrário do SINAN, capta dados somente de trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o que corresponde a somente um terço da população exposta a acidentes, mas não captando dados de trabalhadores rurais, do setor informal e os que não contribuem para a Previdência19. Esse fator, somado ao problema da falta de diagnósticos, configura um cenário de acidentes de trabalho com proporções bem mais graves do que o apontado pelas estatísticas existentes7.
O sub-registro também acontece em: casos de acidentes de trajeto, que muitas vezes são atendidos nos serviços de urgência da rede pública e não são notificados7; casos de óbitos por acidentes que não passam pela rede de serviços e são diretamente encaminhados aos institutos médico-legais (IML), onde também não são notificados7; e, por fim, casos omitidos pelo trabalhador, quando oprimido pela ameaça de demissão38.
Apesar das evidências que reafirmam a fragilidade do sistema, cabe destacar êxitos conseguidos pelos Cerest, em determinados territórios, por atuarem em estreita articulação interinstitucional. Um exemplo de captação eficiente de acidentes de trabalho e de diminuição dos sub-registros pode ser evidenciado no município de Piracicaba, com a implantação do Sistema de Vigilância de Acidentes do Trabalho (SIVAT - Piracicaba), que garante a abrangência universal dos casos39.
Por sua importância, a falta de sistemas de informações eficazes e confiáveis é reconhecida pela OIT como uma fragilidade global, o que dificulta a comparação de tendências e dados sobre a ST mundial8. No Brasil, esta deficiência representa um dos principais desafios da saúde pública, sendo uma das responsabilidades do Ministério da Saúde previstas na PNSST6. Apesar disso, as informações epidemiológicas dos bancos de benefícios da Previdência Social ainda não são disponibilizadas e compartilhadas, permanecendo como segredo fiscal da instituição4.
A formação de profissionais pelas universidades, direcionada à saúde pública, juntamente com a formação tradicional que visa suprir um mercado de trabalho voltado para os interesses patronais, tem como consequência o direcionamento da maioria dos profissionais para níveis centrais da administração pública, gerando uma carência nos níveis assistenciais, levando, por exemplo, à falta de recursos humanos na atenção aos trabalhadores doentes e acidentados7.
Existe também o despreparo dos profissionais de saúde em lidar com os riscos e agravos à saúde dos trabalhadores, e fazer um encaminhamento médico e administrativo adequado nesses casos9. Esses fatores podem estar relacionados com a dissociação entre teoria e prática que se observa na educação em ST, mesmo com os avanços nos cursos de formação10. Diante desse problema, a educação permanente deve possibilitar a qualificação das práticas de cuidado, gestão e participação popular17.
Para a qualificação dessas práticas de cuidado em ST, é necessária a inclusão da vivência das equipes de saúde e dos problemas relacionados ao processo trabalho-saúde-doença na estruturação de métodos de educação permanente17. Além disso, os cursos precisariam ser avaliados dentro de uma proposta de implementação da PNSST, analisandoe em que medida seus conteúdos e suas abordagens pedagógicas estão em sintonia com as necessidades operacionais das diretrizes da política10.
Além da educação permanente, a formação de recursos humanos preparados para tratarem das reais questões da ST também depende da multiplicidade dos cursos oferecidos pelas universidades, como as especializações multidisciplinares em ST38. Após o advento da Renast, pode-se dizer que a área avançou neste sentido, uma vez que é possível observar uma procura constante de cursos de pós-graduação, assim como de cursos básicos junto aos Cerest, de formação para a VISAT10.
Este trabalho buscou realizar um resgate histórico da ST no SUS, assim como apresentar elementos do campo da ST que se apresentam como dificultadores para a integralidade da atenção e a melhoria dos seus indicadores de saúde.
No que diz respeito às instituições e aos serviços responsáveis pela ST, apesar da existência de casos de sucesso e de avanços nacionalmente reconhecidos, sobretudo com o advento da Renast e da VISAT, fica evidente a deficiência na organização institucional da ST na rede pública de serviços. Conclui-se que é necessário chegar a um consenso urgentemente, de forma a redefinir as responsabilidades e combater as justaposições e dicotomias, de maneira que as diferentes instâncias e instituições possam funcionar de forma articulada, efetiva e integrada. Os ministérios e seus serviços, em conjunto com os movimentos de trabalhadores, fortalecidos e funcionando de maneira integrada, podem representar uma esperança para o alcance tanto de um sistema de seguridade social efetivo, como de um sistema de serviços de assistência e vigilância adequados, visando à efetivação das políticas de saúde do trabalhador vigentes e à melhoria das ações através de aplicações de novas diretrizes formuladas em conjunto.
No tocante à VISAT, a proposta do agir de forma integral tem obtido muitas ações de sucesso no Brasil, porém se observa que a sua implantação e a efetividade das suas ações dependem de avanços fundamentais, como: a integração dos olhares e dos cuidados de todos os componentes da vigilância em saúde e das demais instituições da ST, destacando-se o Cerest; a articulação destes com toda a rede de atenção à ST, principalmente a APS; a qualificação dos profissionais da rede sobre o complexo campo da ST, tornando-os capazes de reconhecer os riscos e agravos relacionados ao trabalho e de agir de forma corretiva e preventiva; e o fornecimento dos subsídios necessários para o atendimento adequado de toda a demanda de trabalho que compete aos componentes da vigilância em saúde. Faz-se necessário ainda o estímulo ao desenvolvimento de novas produções científicas e formas de compreensão, que apresentem diferentes possibilidades para a superação das dificuldades que limitam as ações efetivas de VISAT.
Sobre os Sistemas de Informação em Saúde do Trabalhador (SIST), apesar do seu reconhecimento pelo Ministério da Saúde, por meio da PNSTT2, como tema fundamental para a melhoria da atenção à ST e da divulgação da Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS), não foi possível constatar avanços nacionais consideráveis, mas, sim, exemplos pontuais de sucesso no país. O grande desafio dos SIST é o alcance da universalidade, uma vez que, baseados nos princípios do SUS, devem seguir rigorosamente esta proposta, de maneira a alcançar, por direito, de forma integral e igualitária, todos os trabalhadores, independentemente da existência e da natureza do vínculo empregatício.
Por fim, com relação à formação de recursos humanos no campo da ST, apesar dos avanços obtidos com a criação da Renast, ainda se observa um cenário desprovido de profissionais de formações diversas, especializados em ST, para a composição de equipes multiprofissionais de forma a possibilitar a prestação da atenção integral. O incentivo à formação de cursos interdisciplinares de especialização na área e a inserção de disciplinas que contemplem as reais questões da ST nos currículos dos cursos de graduação são práticas sugestivas para uma modificação positiva desta carência de profissionais.
É importante destacar que este estudo não abrangeu a totalidade dos fatores que contribuem para a conformação da situação em que se encontra o campo da ST no Brasil. É necessário que haja incentivo para pesquisas aprofundadas, com ampliação dos objetos de estudos, para que novas alternativas e formas de compreensão se apresentem a fim de se alcançar uma efetiva mudança no quadro atual. Medidas de intervenção e novas diretrizes devem ser estudadas e aplicadas de maneira urgente, visando a configuração e efetivação de uma política de ST que provoque mudanças positivas no atual quadro de fragilidade do campo da Saúde do Trabalhador.
Agradeço ao Prof. Ildeberto Muniz de Almeida pelo desprendimento em ajudar, contribuindo intelectualmente na conformação geral do trabalho, com dicas importantes sobre conceitos e escrita.
Contato: Fernanda França Velo da Silva E-mail:fernanda.velo@unesp.br