Editorial Dossiê RBSO 50 Anos
Sociedade neoliberal, saúde e segurança no trabalho
Neoliberal society, safety and health at work
Evidências consistentes são contrapostas à ideia disseminada sobre a inexorabilidade do sofrimento, adoecimento ou morte em circunstâncias laborais. Contaminar-se por vírus respiratórios ou ferir-se com instrumentos perfurocortantes durante a assistência a um usuário do serviço de saúde; desenvolver nódulos nas pregas vocais quando a voz é ferramenta de trabalho nas escolas ou empresas de comunicação; andar com dificuldade diante da evolução de neuropatias relacionadas à exposição aos agrotóxicos aplicados na lavoura; abandonar a profissão de motorista por causa do pânico depois do episódio de assalto a mão armada; e, até, perder a vida enterrado nos escombros das rochas de uma mineração, entre tantas outras situações, são eventos evitáveis, porque previsíveis1.
Há provas substanciais de associação entre esses eventos e os ambientes laborais insalubres e inseguros. Sabe-se que indivíduos morrem mais jovens ou têm pior saúde de acordo com as condições sob as quais laboram2. Manejo de substâncias químicas, máquinas e equipamentos barulhentos, demandas excessivas, restrição da autonomia, para ser breve, aumentam a prevalência de sintomas físicos e psíquicos3.
Nos últimos anos, pessoas foram levadas a trabalhar mais horas por dia, ainda que inseridas em processos com elevado incremento tecnológico4. Ampliou-se o universo de trabalhadores por conta própria, por vezes vinculados a mais de uma empresa, outras vezes contratados para executar serviços por meio de aplicativos programados por algoritmos5. Inscrita no cenário da desregulamentação justrabalhista, nos termos do Direito do Trabalho6, esse tipo de produção digital não eliminou a insegurança ocupacional. Em vez de ampliação da renda e consumo e mais autonomia nos fazimentos laborais, para a maioria dos que dependem do trabalho para sobreviver, a realidade enfrentada é baixo rendimento, sobrecarga e humilhação social7.
Introdução de novas ferramentas, produtos e outras formas de trabalho geraram problemas sem que os antigos tenham sido resolvidos, tornando insustentável atribuir sofrimento, adoecimento e morte a deficiências de incorporação tecnológica. Ao contrário, os processos causais e correlatos desse problema são fruto da racionalidade econômica, ‘da nova razão do mundo’, nos termos de Dardot e Laval8.
Neo (novo), liberal (livre de intervenção governamental) - neoliberalismo - designa a doutrina macroeconômica que estende as premissas do liberalismo clássico do século XVII e XVIII, tal como foram elaboradas por Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Adam Smith. Em rápidas palavras, a preservação da liberdade individual em uma sociedade livre, sob o ângulo neoliberal, requer um mercado competitivo sem impedimentos governamentais. Nos anos 1940, o austríaco Friedrich von Hayek defendeu que os governos não deveriam interferir nos mercados, argumentando que a economia é uma estrutura muito complexa para ser controlada9. Esses princípios considerados pelos autores como fundamentais para alcançar o bem-estar e o progresso humano estão na base do “Consenso de Washington”, dos anos 1990, considerado com um dos marcos históricos da sociedade neoliberal (10.
Quase 40 anos das políticas baseadas no ideário neoliberal redundaram na crise econômica de 2008. Recessão e programas de austeridade aprofundaram as desigualdades sociais, incluindo as desigualdades em saúde, na maioria dos países11), (12.
A partir dos anos 1970, no bojo da concorrência e disputa por mercados, foram postas em prática reestruturação produtiva ampla e substituição progressiva do emprego típico por outros tipos de contratação da força de trabalho. Nas últimas décadas, a desindustrialização, que caracteriza a economia global sob a supremacia do capital financeiro, intensificou essa tendência. O número de empregos atípicos e as taxas de desemprego geraram uma percepção generalizada de insegurança, cuja relação com piores resultados de saúde tem sido evidenciada13)- (15.
Expressando uma espécie de ruptura com modelo fordista, a reestruturação produtiva foi a estratégia capitalista para diminuir os custos e garantir a dominação por meio da reconfiguração do modelo de gestão do trabalho10. Os princípios de iniciativa e responsabilidade da pessoa que trabalha embasam o formato de dominação coerente com o pensamento neoliberal, constituindo, de fato, os veículos para a intensificação laboral. As consequências, em vez de satisfação e ampliação do tempo livre prometidos pelos seguidores de Hayek, foi a exposição crescente a formas mais ou menos veladas de intimidação, violência no meio ambiente de trabalho16 e segregação de gênero na estrutura ocupacional17. Em rápidas palavras, diminuição das margens para ação política, uma vez enfraquecidas as ações sindicais, aliada à transferência para o trabalhador da responsabilidade em produzir mais em menor tempo e com mais qualidade acrescentaram camadas na nova etapa de acumulação capitalista11), (12.
No Brasil, vieram as reformas previdenciária, sindical e trabalhista. Quanto à essa, a denominada desregulamentação justrabalhista, nos termos da Lei nº 13.467, de 13 de julho de 201718, alterou ou revogou mais de cem artigos e parágrafos da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) de 1943, além de outros que foram criados. Os empregadores foram autorizados, por exemplo, a compor diferentes arranjos na organização do tempo dos empregados. Modificações de definições chave no campo das relações contratuais, banco de horas, expansão da duração da jornada considerada parcial foram introduzidas e regulamentadas6), (19.
Investigações calcadas nos conhecimentos sobre as mudanças processadas são desejáveis. A doutrina neoliberal não é uma entidade monolítica suficiente em si mesma, mas convém lembrar que nesse contexto já foram evidenciados resultados adversos à saúde, frutos da desigualdade e insegurança20. Constitui desafio pensar em quando, onde e de que maneira os vetores econômico, político e cultural se entrecruzam para produzir os resultados de saúde.
A Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, comemorando 50 anos de existência, continuará a fomentar o debate frente a rápidas e intensas mudanças no trabalho e emprego. Esforços serão ampliados para publicar resultados sobre impacto, intervenção, formulação e avaliação das políticas públicas interessadas na promoção da saúde dos trabalhadores e das trabalhadoras.
Contato: Ada Ávila Assunção E-mail:adavila@medicina.ufmg.br