Editorial/Dossiê Epidemiologia, Saúde e Trabalho
Contribuições da Epidemiologia para o estudo das relações entre trabalho e saúde: reflexões sobre o dossiê temático e os desafios para o campo científico
Contributions of Epidemiology to the study of the relationships between work and health: reflections on the thematic dossier and the challenges for the scientific field
Em novembro de 2021, a Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) lançou chamada pública para a submissão de artigos para um dossiê temático intitulado Contribuições da Epidemiologia para o estudo das relações entre trabalho e saúde1. O objetivo da chamada foi estimular a divulgação de estudos e métodos epidemiológicos, no intuito de ampliar o conhecimento sobre os riscos ocupacionais e as condições de saúde de trabalhadores e trabalhadoras e de contribuir para o aprimoramento da vigilância e prevenção de doenças e agravos relacionados ao trabalho e para a promoção da saúde da população trabalhadora.
Em resposta à chamada, foram submetidos 95 artigos, dos quais 28 foram encaminhados para revisão por pares; destes, 16 foram aceitos para publicação. Parte dos artigos publicados relata estudos que tiveram como participantes trabalhadores(as) de ramos de atividades específicos, como saúde2), (3), (4), (5, educação6), (7, mineração8), (9, agricultura10. Além dos estudos de fonte primária, dados dos sistemas de informação de abrangência nacional também foram explorados, como a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) (11), (12, o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e o Sistema de Informação sobre Agravos de Notificação (Sinan) (13), (14. Um artigo apresentou resultados do estudo de Carga Global de Doença15. Dois derivam do Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA-Brasil) (16), (17. Entre os artigos publicados, estão contemplados diferentes desenhos de estudos epidemiológicos observacionais, tanto descritivos como analíticos. Entre os temas estudados, estão acidentes de trabalho, doenças crônicas não transmissíveis, saúde mental, saúde bucal e doenças transmissíveis.
Os artigos também abordam barreiras e dificuldades às análises mais robustas a respeito da situação da saúde do trabalhador e da trabalhadora no Brasil. Destacam, por exemplo, as limitações relativas ao uso de dados secundários em estudos epidemiológicos em razão de problemas de cobertura e qualidade dos registros nos sistemas de informação em saúde. Não obstante, os estudos foram capazes de trazer luz a importantes problemas, a exemplo daquele que descreveu o perfil de ocorrências e óbitos por acidentes de trabalho entre crianças e adolescentes6. Tendo em vista a relevância do tema e os resultados alarmantes apresentados no artigo, houve grande repercussão em veículos de comunicação de diversas regiões do Brasil18), (19), (20), (21), (22.
Este dossiê disponibiliza um conjunto de contribuições para a produção de conhecimento em saúde e trabalho no contexto brasileiro, ancorado no uso da Epidemiologia. O reconhecimento do papel do trabalho na determinação e evolução do processo saúde-doença dos trabalhadores tem implicações éticas, técnicas e legais, que se refletem na organização e no provimento de ações de saúde para esse amplo segmento populacional23. Evidenciar esse papel e destacar as questões críticas (estruturais ou circunstanciais) que fragilizam ou desfavorecem a saúde dos coletivos humanos em suas vivências laborais tem sido o mote da RBSO. É nesta missão que a Epidemiologia lhe ampara, como a ciência capaz de elaborar, validar ou refutar um amplo arco de análises quantitativas de saúde, mediante o uso de ferramentas metodológicas próprias.
Além do olhar essencialmente crítico que busca resguardar a integridade de seu estatuto científico, a Epidemiologia traz contributo importante às práticas sanitárias no Brasil, incluindo as da saúde do trabalhador e da trabalhadora. Ao agregar instrumentos e referenciais próprios da Saúde Coletiva e ao prover fundamentos técnico-legais prescritos na Constituição Federal de 1988 e regulamentados pela Lei Orgânica da Saúde (LOS), o referencial epidemiológico contribui para a práxis sanitária sob coordenação do Sistema Único de Saúde (SUS) (24. É por meio de seu racional - o dito “método epidemiológico” - que são produzidos indicadores de saúde e identificados fatores de risco e proteção à saúde, que podem orientar a formulação de políticas públicas bem estribadas e informadas por evidências científicas25.
Como posto, as possibilidades do uso da Epidemiologia no campo da saúde do trabalhador no Brasil são múltiplas e têm desempenhado, ao longo das muitas lutas na defesa da saúde no trabalho, papel destacado. O dossiê em tela registra uma parte do desenvolvimento atual desse uso com seus aportes teóricos, conceituais, metodológicos e suas aplicações e práticas, evidenciando tanto suas forças quanto suas lacunas e seus desafios. Contudo, para que essas possibilidades, de fato, se viabilizem, cabe promover um vigoroso processo de discussão e reflexão sobre barreiras e limitações enfrentadas e alternativas para sua superação. Esse é um debate necessário e salutar.
Aspectos relativos às características dos estudos epidemiológicos predominantes devem ser mais bem identificados e compreendidos. Cabe mencionar o fato de que a maior parte dos estudos desenvolvidos no país ainda se restringem ao uso de dados pontuais no tempo (estudos seccionais) ou descrição de dados dos sistemas de informação. Estudos de desenho longitudinal e de intervenção são raros. Ainda, predominam pesquisas de abrangência local, que avaliam categorias específicas de trabalhadores em áreas geográficas bem delimitadas, enquanto estudos multicêntricos ou de base nacional praticamente inexistem.
Nesse contexto, identificam-se, pelos menos, três problemas. O primeiro é a escassez no financiamento da pesquisa em saúde do trabalhador, sendo raros os editais específicos. Sabe-se que os pesquisadores enfrentam dificuldades para levar a cabo investigações demandantes de maior aporte financeiro, como estudos de coorte. O segundo são impedimentos de acesso aos ambientes de trabalho, o que é quase uma regra nos cenários corporativos, sejam privados ou públicos. Superar esse tipo de barreira é crucial para avançarmos na produção de evidências mais robustas com implicações práticas mais evidentes. O terceiro, deficiências na incorporação de resultados de pesquisas em programas e ações institucionais, em que pese a disposição de atores sociais em situações específicas.
Na agenda de atividades para enfrentar os desafios citados, com vistas a fortalecer a Epidemiologia na saúde do trabalhador e da trabalhadora no Brasil, o dossiê apresenta elementos que justificariam: a) ampliar a interface de interesse e colaboração com outras áreas de conhecimento e práticas (Ciências Sociais, Biologia, Economia, Serviço Social, Direito e Controle Social, entre outras); b) aprimorar a cobertura e a qualidade dos sistemas de informação no campo da saúde do trabalhador; c) ampliar as perspectivas de uso dos dados existentes, com o emprego de ferramentas de tecnologia da informação e inteligência artificial; d) fomentar parcerias interinstitucionais, com foco nas ações de vigilância e na realização de estudos multicêntricos; e) desenvolvimento e adaptação dos métodos de estudo que possam apresentar resultados oportunos, acompanhando as rápidas mudanças no mundo do trabalho26), (27.
Um último aspecto digno de nota é a afirmação do papel do trabalho nos processos de saúde-doença das populações e na estruturação de desigualdades sociais na saúde. Nesse sentido, cabe posicionar o trabalho como fator estruturante de produção e reprodução das desigualdades sociais, provendo tanto proteção quanto vulnerabilização da saúde de grandes contingentes de pessoas28. A Epidemiologia, com sua capacidade de produzir evidências empíricas com base na quantificação dos eventos que investiga, tem muito a contribuir. Esperamos que este dossiê possa incentivar movimentos no uso dos métodos epidemiológicos e despertar iniciativas para novos e inovadores passos na construção de uma vida no trabalho promotora de saúde e plena de significado para todos os grupos de trabalhadores e trabalhadoras.
Contato: Leila Posenato Garcia E-mail: leila.garcia@fundacentro.gov.br