Resumo
Objetivo: analisar a prevalência do aumento da automedicação durante a pandemia de COVID-19 entre professores da educação básica pública e fatores associados.
Métodos: inquérito epidemiológico do tipo websurvey, realizado com professores da educação básica pública de Minas Gerais. A coleta de dados ocorreu de agosto a setembro de 2020 via formulário online. A variável dependente foi a automedicação durante a pandemia. Foi utilizada a Regressão de Poisson, com variância robusta.
Resultados: participaram do estudo 15.641 professores de 795 cidades mineiras, 81,9% eram do sexo feminino. Observou-se que 14,5% dos professores aumentaram a automedicação durante a pandemia, entre eles houve maior prevalência entre as mulheres (Razão de Prevalência [RP]=1,25; Intervalo de Confiança de 95% [IC95%]=1,12;1,40), professores com menos de 60 anos (RP=1,48; IC95%=1,12;1,95), residentes da área urbana (RP=1,15; IC95%=1,02;1,29), insatisfeitos com o trabalho docente (RP=1,60; IC95%=1,41;1,82), com pior padrão alimentar (RP=1,44; IC95%=1,33;1,56), parte do grupo de risco para a COVID-19 (RP=1,18; IC95%=1,10;1,27), com problemas de sono (RP=2,10; IC95%=1,85;2,38), tristes ou regularmente deprimidos (RP=6,29; IC95%=4,08;9,69) e aqueles que apresentaram muito medo da COVID-19 (RP=1,39; IC95%=1,23;1,57).
Conclusão: a automedicação esteve associada a características sociodemográficas, hábitos de vida, condições de saúde e indiferença ou insatisfação com o trabalho, configurando-se como um problema de saúde entre docentes.
Palavras-chave: Docente, medicamento, saúde do trabalhador, inquérito epidemiológico, coronavírus.
Abstract
Objective: to analyse the prevalence of self-medication during the COVID-19 pandemic among primary education teachers and the associated factors.
Methods: web-survey type of epidemiological survey performed with primary education teachers from public schools in Minas Gerais. Data collection occurred between August and September of 2020 via digital forms. The dependent variable was self-medication during the pandemic. It was analyzed by Poisson Regression, with robust variance estimation.
Results: a total of 15,641 teachers from 795 cities in Minas Gerais, 81.9% female, participated in the study. It was observed that 14.5% of teachers increased the self-medication during pandemic, among them, the highest prevalence was between women (Prevalence Ratio [PR]=1.25; 95% of Confidence Interval [95%CI]=1.12;1.40), under 60 years old (PR=1.48; 95%CI=1.12;1.95), living in the urban area (PR=1.15; 95%CI=1.02;1.29), dissatisfied with the teaching work (PR=1.60; 95%CI=1.41;1.82), with worse dietary pattern (PR=1.44; 95%CI=1.33;1.56), outside the risk group for COVID-19 (PR=1.18; 95%CI=1.10;1.27), with sleep problems (PR=2.10; 95%CI=1.85;2.38), sad or regularly depressed (PR=6.29; 95%CI=4.08;9.69), and very afraid of COVID-19 (PR=1.39; 95%CI=1.23;1.57).
Conclusion: self-medication was associated with sociodemographic characteristics, life habits, health conditions, and indifference or dissatisfaction with the work, characterized as a health problem among teachers.
Keywords: Faculty, pharmaceutical, occupational health, health surveys, coronavirus.
Artigo de Pesquisa
Automedicação na pandemia de COVID-19: associação com os hábitos de vida entre professores da educação básica
Self-medication in the COVID-19 pandemic: association with life habits among primary education teachers
Recepção: 07 Março 2022
Revised document received: 05 Julho 2022
Aprovação: 01 Agosto 2022
A automedicação, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), consiste na seleção e no uso de medicamentos sem prescrição ou supervisão do profissional de saúde qualificado para determinada função1. No entanto, também é entendida como um dos componentes do autocuidado1, devendo, assim, ser aplicada com responsabilidade.
Para descrever os medicamentos relacionados ao autocuidado, o termo “medicamentos de venda livre” é extensivamente aplicado. As embalagens, orientações de farmacêuticos, informações do produto - por exemplo a bula -, entre outros cuidados, são planejados para garantir sua eficiência e uso correto2. Além dos medicamentos encontrados em farmácias, o uso de plantas medicinais com finalidade terapêutica também corresponde a automedicação, cujo uso faz-se popular como uma prática mais frequente nos países de média e baixa renda3. A automedicação ocorre mundialmente e sua prevalência difere em função da população, do método e do período estudado4.
Normalmente, a prática da automedicação é acompanhada do desconhecimento sobre os malefícios que esta pode causar, tendo sido apontada como a principal responsável pelas intoxicações por fármacos registradas no Brasil Assim, o uso indiscriminado de medicamentos é um dos grandes problemas enfrentados pela saúde no país5.
A automedicação é induzida por diversos fatores, como a venda indiscriminada de medicamentos, o uso da internet como fonte de informação e, principalmente, as dificuldades de acesso ao sistema de saúde e os custos elevados de planos e consultas médicas6.
Com a pandemia de COVID-19, houve uma demanda adicional pelo sistema de saúde no Brasil, o que deflagrou uma situação crítica nesse sistema7, dificultando ainda mais o acesso aos serviços de saúde. Ademais, a busca cada vez maior por maneiras para evitar a infecção pelo coronavírus - como o uso de medicamentos sem eficácia comprovada e sem prescrição médica -, o medo, a ansiedade e outras manifestações psicológicas8 contribuíram para o fenômeno da automedicação durante a pandemia. Assim, houve um aumento na ocorrência de automedicação em relação a alguns fármacos, como a Hidroxicloroquina, Cloroquina, Ivermectina e a Azitromicina, o que mostra a influência e a alta adesão da automedicação nesse cenário9.
Ao que tange à classe docente, a pandemia exigiu mudanças em relação às formas de ensino, o que representou diversos desafios para esses trabalhadores, gerando impactos, como sentimento de insegurança, sobrecarga de trabalho e aumento das cobranças institucionais10. Fora do cenário pandêmico, estudo realizado em Santa Catarina, com professores do ensino médio de escolas públicas, demonstrou que 66,7% dos docentes declararam já ter praticado a automedicação em algum momento da vida11. O conhecimento sobre a prevalência desse fator entre os professores da educação básica durante a pandemia ainda se encontra insipiente na literatura. Diante disso, este estudo teve como objetivo analisar a prevalência do aumento da automedicação durante a pandemia de COVID-19 entre professores da educação básica pública e os fatores associados.
Foi realizado um inquérito epidemiológico do tipo websurvey, como parte do Projeto ProfSMoc - Etapa Minas Covid “Condições de saúde e trabalho entre professores da rede estadual de ensino do estado de Minas Gerais na pandemia de COVID-19”.
Este estudo seguiu as recomendações do Checklist for Reporting Results of Internet E-Surveys (CHERRIES) (12.
Foram incluídos no estudo os professores que estavam em exercício da função de docência no ano de 2020, trabalhavam na educação infantil, ensino fundamental ou médio, possuíam vínculo na rede pública estadual e aceitaram, de forma livre, participar da pesquisa. Não participaram do estudo os professores aposentados, aqueles que responderam “não” quando perguntados se aceitavam participar da pesquisa e aqueles estivessem atuando em cargo diferente da função docente, como diretores, coordenadores, entre outros. Não houve restrição à participação de afastados por licença médica.
O estado de Minas Gerais contava, à época do estudo, com aproximadamente 90 mil professores da educação básica (dado fornecido pela Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais - SEE-MG, mediante folha de pagamento do mês de julho de 2020) atuantes em 3.441 escolas públicas estaduais, em 853 municípios13.
O sistema educacional do estado de Minas Gerais é dividido em seis polos, cada um subdividido em Superintendências Regionais de Ensino (SREs), sendo, ao todo, 45 SREs. O acesso ao quantitativo e à qual ser o professor estava vinculado foi disponibilizado pela SEE-MG.
Estudo piloto prévio foi realizado nos dias 10 e 11 de agosto de 2020, com vinte professores de cinco diferentes cidades mineiras, para teste e acerto do instrumento de coleta de dados e do formulário online.
O convite para participação na pesquisa foi amplamente divulgado pela SEE-MG via redes sociais e e-mail institucional dos professores do estado. Foi informado o prazo no qual o link de acesso para o formulário estaria disponível.
A coleta de dados ocorreu de 20 de agosto a 11 de setembro de 2020, por meio de formulário online disponibilizado aos professores via plataforma Google Forms®. O link foi enviado pela SEE-MG para o e-mail institucional de todos os professores da educação básica do estado, caracterizando uma coleta de dados “fechada”. Para evitar o preenchimento automático do formulário por sistemas robóticos, foi utilizado um reCAPTCHA, que apresentava testes em imagens. A participação dos professores ocorreu de forma voluntária, sem obrigação de participação pela SEE-MG, apenas incentivo, mobilização e sensibilização por parte dela.
O formulário continha 144 questões, dividido em quatro sessões: características sociodemográficas, condição de trabalho, saúde e estilo de vida. Em algumas opções de respostas, foi questionada a situação antes e durante a pandemia. O formulário foi adaptado do instrumento da pesquisa “ConVid - Pesquisa de Comportamentos”, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz e parceiros14, e incorporou demais instrumentos validados. O preenchimento do formulário teve uma duração aproximada de 25 minutos. Após envio do questionário, não poderia ser revisado ou enviado novamente pelo mesmo participante.
A automedicação durante a pandemia foi a variável dependente. As variáveis independentes utilizadas para este estudo foram: sexo (masculino, feminino), idade (60 ou mais, menos de 60 anos), renda familiar - considerando o salário mínimo vigente de R$1.045,00 à época da coleta de dados (1 a 2, 3 a 5, 6 a 9, 10 ou mais), área censitária (rural, urbana), situação conjugal (com cônjuge, sem cônjuge), filho(s) (sim, não), satisfação com o trabalho durante a pandemia (satisfeito(a), indiferente, insatisfeito(a)), carga de trabalho durante a pandemia (diminuiu, ficou igual, aumentou), adesão ao distanciamento social (“sim, totalmente”, “sim, parcialmente”, não), consumo de bebida alcóolica durante a pandemia (não, sim), alimentação durante a pandemia (melhor padrão alimentar, pior padrão alimentar), prática de atividade física durante a pandemia (sim, não), faz parte do grupo de risco para a COVID-19 (não, sim), infecção pela COVID-19 (não, sim), problemas de sono durante a pandemia (não, sim), triste ou deprimido durante a pandemia (nenhuma vez, poucas vezes, muitas vezes) e medo da COVID-19 (pouco medo, medo moderado, muito medo).
O aumento da automedicação foi aferido a partir da questão: “Durante o período de pandemia, o consumo de medicamentos sem prescrição médica (automedicação): a) não consumo; b) diminuiu; c) aumentou; d) permaneceu o mesmo”. Para analisar o aumento da automedicação durante a pandemia, as categorias “a, b e d” foram agrupadas, resultando em uma variável dicotômica em ‘não’ (não consumiu/diminuiu/permaneceu o mesmo) e ‘sim’ (aumentou).
O consumo de bebidas alcoólicas durante a pandemia foi estimado por meio da questão: “Durante a pandemia: a) não consumia bebida alcoólica antes da pandemia e não estou consumindo durante, b) não estou consumindo bebida alcoólica, c) estou bebendo menos do que costumava, d) continuo bebendo com a mesma frequência, e) estou bebendo mais do que costumava, f) tinha parado de beber, mas comecei a beber novamente.”. Para analisar o consumo durante a pandemia, as variáveis foram categorizadas em não (a, b) vs sim (c, d, e, f).
A alimentação foi construída através da consolidação de nove questões (consumo de verduras, frutas, feijão, alimentos integrais, presunto, comida congelada, salgadinhos de pacote, chocolate e refrigerante), por meio de análise de cluster.
A prática de atividade física foi mensurada por meio da questão: “Você está fazendo atividade física durante a pandemia?: a) sim, b) não”.
A infecção pela COVID-19 foi estimada através do agrupamento das seguintes perguntas: “Você fez o teste para saber se estava infectado pela COVID-19? (sim; não)”, “O resultado do teste foi positivo? (não, sim, não recebi o resultado, não fiz o teste)”. Assim, a prevalência foi considerada quando o participante respondeu “sim” para ambas as questões.
A variável problemas de sono durante a pandemia foi avaliada pela pergunta: “A pandemia afetou a qualidade do seu sono? (a) não afetou, continuei dormindo bem, b) comecei a ter problemas de sono, c) continuei com os mesmos problemas de sono, d) já tive problemas de sono e pioraram significativamente, e) já tive problemas de sono, mas melhoraram)”. As opções de resposta foram organizadas em: professores que não estavam com problemas de sono durante a pandemia (a); e professores que estavam com problemas de sono (b, c, d, e).
Sobre estar triste ou deprimido durante a pandemia, os professores foram questionados por meio da seguinte pergunta: “No período da pandemia, com que frequência você se sentiu triste ou deprimido? (a) nenhuma vez, b) poucas vezes, c) muitas vezes)”.
O medo da COVID-19 é um instrumento validado, que investiga o medo das pessoas em relação à doença. O instrumento apresenta sete itens que são respondidos em uma escala tipo Likert. O escore total foi obtido a partir da somatória dos itens, sendo categorizada de sete a 19 pontos como “pouco medo”, de 20 a 26 pontos “medo moderado” e 27 a 35 pontos “muito medo” (15.
Análise dos dados
Os dados foram organizados e analisados com o auxílio do programa Statistical Package for Social Sciences (SPSS®) versão 22.0. Foram conduzidas análises descritivas (frequência simples e relativa). Diante das questões do instrumento serem de caráter obrigatório, não foi necessário realizar tratamento de respostas incompletas.
Para a análise dos fatores associados ao aumento da automedicação durante a pandemia, foram realizadas, previamente, análises brutas, utilizando o teste estatístico Qui-quadrado de Pearson e a Regressão de Poisson, para cálculo das Razões de Prevalência (RP) e Intervalos de Confiança de 95% (IC95%). Apenas as variáveis que apresentaram p ≤ 0,20, na análise bruta, foram selecionadas inicialmente para compor o modelo múltiplo da Regressão de Poisson, com variância robusta. Os modelos foram manualmente ajustados. As variáveis selecionadas (p ≤ 0,20) entraram todas juntas no modelo (método passo atrás) e foram removidas uma a uma de forma decrescente, considerando o p-valor e a qualidade do ajuste do modelo, de forma que, no modelo final, apenas as variáveis que apresentaram p < 0,05 permaneceram. A magnitude das associações do modelo múltiplo foi estimada pela RP ajustada, IC95% e nível de significância de 5% (α ≤ 0,05).
Para avaliar a qualidade do modelo, utilizou-se o teste Deviance, que avalia se os valores preditos pelo modelo desviam dos valores observados de uma maneira que a distribuição de Poisson não prediz. Rejeita-se a hipótese nula de que a distribuição de Poisson fornece um bom ajuste se o valor de p do teste de qualidade do ajuste for inferior que o nível de significância adotado (α ≤ 0,05).
O projeto foi submetido à apreciação do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Montes Claros, com parecer consubstanciado nº 4.200.389, emitido em agosto de 2022. Todos os professores participantes receberam, junto ao formulário de coleta de dados, o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido informando sobre a metodologia do estudo, seus objetivos e confiabilidade das informações. Os professores também assinalaram “sim” na questão relativa à concordância em participar da pesquisa.
O formulário foi acessado por 16.210 professores e, destes, 15.641 aceitaram participar da pesquisa, resultando em um percentual de recrutamento de 96,5% (visitantes únicos que concordaram em participar/ visitantes únicos da primeira página da pesquisa x 100) (12 e percentual de conclusão de 100% (usuários que concluíram a pesquisa/ usuários que concordaram em participar x 100) (12. Houve participação de professores de 795 cidades mineiras, com menor participação da região Vale do Aço (12,1%) e maior da região Metropolitana (22,8%).
Entre os participantes, 81,9% eram do sexo feminino, 96,6% tinham menos de 60 anos, 33,7% estavam insatisfeitos com o trabalho docente durante a pandemia, 79,8% aderiram totalmente ao distanciamento social, 35,8% faziam parte de pelo menos um grupo de risco para a COVID-19 e 43,7% apresentaram muito medo da COVID-19. Esses e outros resultados estão presentes na Tabela 1.

Dentre os docentes participantes, 14,5% relataram o aumento do consumo de medicamentos sem prescrição médica durante a pandemia. A Tabela 1 também apresenta a análise bruta da associação com este desfecho. As variáveis sexo, idade, renda, área censitária, filhos, satisfação com o trabalho, carga de trabalho, adesão ao distanciamento social, consumo de bebida alcóolica, alimentação, prática de atividade física, grupo de risco para a COVID-19, problemas no sono, tristeza ou depressão e medo da COVID-19 estiveram associadas ao aumento da automedicação com valor p ≤ 0,2 e compuseram, inicialmente, o modelo múltiplo.
A Tabela 2 apresenta os resultados da análise ajustada. Houve maior prevalência de aumento da automedicação durante a pandemia entre docentes do sexo feminino (RP=1,25; IC95% 1,12;1,40), com menos de 60 anos de idade (RP=1,48; IC95% 1,12;1,95), residentes de área urbana (RP=1,15; IC95% 1,02;1,29), indiferentes (RP=1,23; IC95% 1,08;1,39) ou insatisfeitos (RP=1,60; IC95% 1,41;1,82) com o trabalho docente, que aderiram parcialmente ao distanciamento social (RP=1,15; IC95% 1,04;1,26), que estavam consumindo bebida alcóolica durante a pandemia (RP=1,13; IC95% 1,05;1,21), com pior padrão alimentar (RP=1,44; IC95% 1,33;1,56), que não estavam praticando atividade física (RP=1,11; IC95% 1,03;1,20), que faziam parte do grupo de risco para a COVID-19 (RP=1,18; IC95% 1,10;1,27), que apresentavam problemas de sono (RP=2,10; IC95% 1,85;2,38), que estavam tristes ou deprimidas poucas vezes (RP=2,75; IC95% 1,79;4,22) e muitas vezes (RP=6,29; IC95% 4,08;9,69) e que apresentaram muito medo da COVID-19 (RP=1,39; IC95% 1,23;1,57).

Com base no teste Deviance, foi aceita a hipótese nula (valor p=0,820), indicando ajuste adequado do modelo múltiplo final (Tabela 2).
Os resultados deste estudo mostraram que 14,5% dos professores da educação básica do estado de Minas Gerais aumentaram a automedicação durante a pandemia de COVID-19. Este aumento foi mais prevalente entre as mulheres, aqueles com menos de 60 anos de idade, entre os professores que residiam na área urbana, indiferentes e insatisfeitos com o trabalho docente durante a pandemia, aqueles que aderiram parcialmente ao distanciamento social, os que estavam consumindo bebida alcóolica durante a pandemia, aqueles com pior padrão alimentar, quem não estavam praticando atividade física, os que faziam parte do grupo de risco para a COVID-19, os que apresentavam problemas de sono, os que estavam tristes ou deprimidos poucas ou muitas vezes e aqueles que apresentaram muito medo da COVID-19.
A automedicação é uma prática comum, de abrangência global, com prevalência que varia de 32,5% a 81,5%16. Em estudo de revisão sistemática, foi evidenciado que, durante a pandemia, a prática da automedicação cresceu entre a população geral como alternativa de prevenção do contágio do vírus ou como cura da patologia9.
No cenário pandêmico, a desinformação e a influência das redes sociais e de lideranças, políticas e religiosas que reivindicaram a eficácia de certos fármacos17 foram algumas das razões que fizeram com que a população comprasse, de forma descontrolada, alguns medicamentos, nomeados de “kit-covid” ou “tratamento precoce”, como a Hidroxicloroquina, Cloroquina, Ivermectina e a Azitromicina, associados também ao uso de suplementos de zinco e de vitaminas C e D, o que aumentou a prevalência e, consequentemente, os riscos relacionados a automedicação18)-(20.
Neste estudo, verificou-se que o aumento da automedicação entre os professores apresentou maior prevalência no sexo feminino. A associação entre a automedicação e o sexo feminino já havia sido verificada em alguns estudos no cenário nacional2 e internacional17, em contexto anterior à pandemia. Esse achado pode ser explicado pelo fato de que as mulheres, geralmente, são mais susceptíveis a dores de cabeça, dores musculares e condições de dor crônica, além da utilização de analgésicos desde cedo para alívio da dor durante a menstruação ou dismenorreia21.
Observou-se que o aumento da automedicação entre os professores apresentou maior prevalência naqueles com menos de 60 anos. Este resultado está em consonância com outro estudo realizado em Minas Gerais, o qual verificou que jovens adultos (18-44 anos) usuários da atenção primária do Sistema Único de Saúde (SUS) apresentaram maiores taxas de automedicação em período anterior ao cenário pandêmico22. Fatores como experiências anteriores satisfatórias com o uso do medicamento, indicações de profissionais das farmácias e a disponibilidade do produto em casa pode favorecer, de modo geral, a prática da automedicação em adultos23.
Verificou-se que o aumento da automedicação entre os professores apresentou maior prevalência entre os residentes de área urbana. Uma possível justificativa para este resultado pode ser associada ao fato de que diversas comunidades rurais utilizam, de forma predominante, plantas medicinais para o tratamento de enfermidades, uma vez que há, nessa população, o hábito de tratar as doenças que os acometem com os recursos existentes em seu ambiente24. Além disso, comparado à área rural, na urbana encontra-se maior número de farmácias e melhor acesso aos medicamentos, podendo, assim, contribuir para o aumento da prevalência do uso de medicamentos sem prescrição médica na área urbana. Em adição, os moradores das regiões urbanas foram mais impactados pelo distanciamento social, devido a limitação de espaço de convivência e lazer, comparado aos moradores de áreas rurais, e também pelo maior acesso à internet, contribuindo para maior exposição a notícias falsas (fake news) e recomendações para o uso de medicamentos sem eficácia científica para combater, principalmente, a COVID-19, possibilitando assim o aumento da automedicação.
Os professores deste estudo que estavam indiferentes ou insatisfeitos com o trabalho apresentaram um aumento da prevalência de automedicação durante a pandemia. Com o distanciamento social decorrente da pandemia de COVID-19, as mudanças no trabalho docente afetaram-nos diretamente, fazendo com que apresentassem maiores preocupações com a saúde mental, ansiedade, sobrecargas e frustrações25, o que pode ter contribuído para o aumento da automedicação.
Além disso, aderiram parcialmente ao distanciamento social estiveram associados ao aumento da automedicação durante a pandemia. Pesquisa realizada em Camarões verificou que a automedicação contribuiu para a disseminação e a gravidade da infecção pelo coronavírus26. Uma possível explicação para o achado deste estudo encontra-se no fato de que a adoção de comportamentos de risco, como a não adesão ao distanciamento social, tenha sido precipitada pela falsa ideia de que o uso da automedicação fosse proteção o bastante para a não contaminação do vírus27.
O consumo de álcool durante a pandemia esteve associado ao aumento da automedicação no período. Um estudo brasileiro evidenciou aumento do consumo de bebida alcoólica durante a pandemia e o associou a problemas de saúde mental, como estresse, tristeza e ansiedade28. Acredita-se que, durante a pandemia, os professores aumentaram o uso da automedicação, possivelmente tentando minimizar estes sintomas.
A piora no padrão alimentar e a não realização de atividades físicas tiveram associação com a maior prevalência de automedicação neste estudo. Um estudo polonês mostrou que, durante a quarentena, 43,5% dos participantes relataram comer mais e que quase 30% relataram ganho de peso durante este período29. No Brasil, padrão semelhante foi visto em estudo que mostrou a redução do consumo de alimentos saudáveis e da prática de atividade física durante a pandemia, comparando-o com o período anterior28. A associação deste fator com a automedicação pode ser explicada por um extenso período com pouco movimento corporal, devido ao maior tempo de permanência dentro de casa, quadro este que pode ser agravado em professores devido ao maior tempo na posição sentado, que pode levar a dores osteomusculares30, resolvidas pela automedicação.
Este estudo mostrou associação entre o aumento da prevalência de automedicação entre indivíduos, problemas de sono durante a pandemia e aqueles que se sentiram tristes e deprimidos. Um estudo que avaliou brasileiros durante o período de pandemia revelou que 43,5% dos participantes desenvolveram problemas de sono, enquanto 48% tiveram piora em um quadro de insônia que já existia previamente. Além disso, foi identificado que 40,4% se sentiram tristes ou deprimidos muitas vezes ou sempre31. Em um outro estudo que avaliou participantes em risco de desenvolver problemas psicológicos devido ao isolamento social, na China e no Reino Unido, foi mostrado que 19,1% e 16,6% dos chineses e britânicos, respectivamente, apresentaram risco de desenvolver problemas psicológicos. O estudo mostrou, ainda, que esses participantes reportaram maior nível automedicação, comparado aos com menores riscos32.
O uso da automedicação em casos de problemas de sono também foi visto em um estudo italiano, realizado durante a pandemia, em que a maioria dos participantes relataram o uso de medicamentos sem prescrição quando apresentavam problemas de sono33. Além disso, a pesquisa também encontrou associação entre problemas com o sono e aumento do uso de horas de internet por dia33, o que pode se relacionar com a população do estudo, já que professores da rede estadual têm trabalhado via aulas online.
Além disso, foi mostrado que o aumento da automedicação foi associado aos participantes que pertenciam ao grupo de risco e entre aqueles que relataram sentir muito medo do COVID-19. Esse dado corrobora os resultados encontrados em um estudo realizado na Polônia, revelando que os participantes que declararam temer pela sua saúde, vida e saúde dos seus entes, pior bem-estar mental e adquiriram abordagens para evitar a contaminação do vírus estiveram mais relacionados ao uso da automedicação, comparado aos que não fizeram tais declarações34. Tal resultado também foi visto em outro estudo realizado no Peru, em que a maioria dos participantes realizavam a automedicação mesmo sem apresentar nenhum sintoma relacionado à COVID-19, usando desse método como forma de prevenir a infecção pelo vírus35.
Informações preliminares de pesquisas sobre possíveis medicamentos que poderiam ser usados como forma de tratar a COVID-19 foram noticiadas, fazendo com que muitas pessoas fossem em busca dessas medicações por conta própria, aumentando a prevalência da automedicação na população. Alguns desses medicamentos costumavam ser vendidos sem necessidade de prescrição médica, passando a ser usados como forma de prevenção da doença, apesar da falta de evidências científicas para tal afirmação18. O aumento do interesse pela automedicação foi confirmado por um estudo que avaliou as tendências de buscas do Google, encontrando um aumento relativo no número de pesquisas na web, em todo o mundo, sobre “automedicação”, “autocuidado” e “autoadministração” desde o início da pandemia. Isso indica um interesse aumentado da população sobre a automedicação, não só em relação ao COVID-19, mas também para outras diferentes doenças36.
Este estudo apresenta algumas limitações, como o uso de apenas uma pergunta (Durante o período de pandemia, o consumo de medicamentos sem prescrição médica ‘automedicação’: a) não consumo; b) diminuiu; c) aumentou; d) permaneceu o mesmo) para mensurar o desfecho do estudo, não avaliando outras informações, como quais os medicamentos mais utilizados e por quais razões foram consumidos, o que não permite afirmar que a automedicação, nesses casos, fosse associada ao uso irracional de medicamentos.
Além disso, foi realizado com uma amostra não-probabilística de voluntários. Assim, não houve possibilidade de atribuir ponderações diferenciadas aos elementos amostrados37. Neste caso, resultados baseados em técnicas estatísticas inferenciais clássicas tornam-se questionáveis, podendo gerar resultados que não permitiriam inferências estatisticamente válidas para a população pesquisada38. Contudo, na investigação dos fatores associados ao desfecho de interesse, foi empregada a Regressão de Poisson com variância robusta, visando gerar estimativas adequadas das razões de prevalência e intervalos de confiança.
Outra importante limitação se dá pela coleta de dados se tratar de uma websurvey, com possibilidade de viés de seleção, pois a participação dependia do acesso à internet para preenchimento do instrumento da coleta de dados, algo mais restrito nas localidades rurais. No entanto, websurveys apresentam vantagens, como a possibilidade de realização de coletas de dados a distância - principalmente durante um momento de pandemia, em que é extremamente importante manter o distanciamento social -, a abrangência geográfica, rapidez no planejamento e na publicação dos resultados40. Este estudo também apresenta como pontos fortes o apoio da SEE-MG - permitindo que atingisse professores de todo estado, gerando uma amostra bem distribuída -, a participação de professores de 795 cidades mineira e 13,3% de professores atuantes na zona rural.
Observou-se que 14,5% dos professores aumentaram o uso da automedicação durante a pandemia. Entre eles, apresentaram maior prevalência do aumento: profissionais do sexo feminino, com menos de 60 anos, que residiam na área urbana, aqueles que estão indiferentes ou insatisfeitos com o trabalho docente, os que aderiram parcialmente ao isolamento social, aqueles que estavam consumindo bebida alcoólica durante a pandemia, com pior padrão alimentar, que não estavam praticando atividade física, os que faziam parte do grupo de risco para a COVID-19, com problemas de sono, tristes ou deprimidos poucas e muitas vezes e aqueles que apresentaram muito medo da COVID-19. Evidenciou-se a necessidade de ações de educação em saúde, com vista ao uso racional de medicamentos para os professores.
Contato: Nayra Suze Souza e Silva E-mail: nayra.silva@unimontes.br

