Editorial

Engajamento coletivo em prol da prevenção de agravos relacionados ao trabalho: 20 anos da história do Cerest de Piracicaba

Collective commitment towards occupational accidents prevention: 20 years of the history of the Cerest in Piracicaba

José Marçal Jackson *
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, Brasil

Engajamento coletivo em prol da prevenção de agravos relacionados ao trabalho: 20 anos da história do Cerest de Piracicaba

Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, vol. 48, pp. 1-4, 2023

Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - FUNDACENTRO

Domenico De Masi e colaboradores, em A emoção e a regra, analisaram o funcionamento e a constituição de grupos criativos na Europa, entre 1850 e 1950, como o Instituto Pasteur de Paris, o círculo filosófico de Viena, o Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, a Escola de Biologia de Cambridge e o projeto Manhattan de Los Alamos1, entre outros. Trata-se de instituições que promoveram grande desenvolvimento em seus campos de atuação.

No Brasil, desde suas origens no Programa de Saúde do Trabalhador2, o Centro de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) de Piracicaba se tornou uma das instituições mais emblemáticas do campo da Saúde do Trabalhador, em que os desenvolvimentos para a vigilância de acidentes de trabalho e sua prevenção foram levados ao extremo.

Compreender como um serviço dessa natureza permanece atuante e inovador por mais de 20 anos é um enigma para todos, sejam pesquisadores, profissionais, trabalhadores ou representantes sindicais3.

O alcance da contribuição do Cerest extrapola, todavia, seu aporte à Saúde do Trabalhador, à prevenção de acidentes, à reabilitação profissional e assistência. Como afirmaram Jackson Filho e Barreira3, trata-se de ação pública, cuja prática na implementação de política pública contribui para o desenvolvimento também do campo da Ciência Política.

Para compreender a natureza dessa ação inovadora, faz-se necessário analisá-la sob o prisma organizacional1. É preciso entender como um grupo de profissionais, respeitando os princípios norteadores da política de vigilância e saúde do trabalhador de 19884, desenharam um referencial de ação que se constituiu historicamente a fim de tratar das questões e dos problemas encontrados na prevenção de agravos relacionados ao trabalho3, objeto que Vilela qualifica como fugidio5.

Esse referencial não teve origem em um grupo qualquer, mas sim em um grupo que Domenico de Masi, se o tivesse conhecido, denominaria de grupo criativo1.

De Masi1 fornece elementos, a partir das análises dos diversos casos, para se compreender a fenomenologia dos processos criativos, tanto no nível dos indivíduos quanto no nível coletivo. Dedicação individual e engajamento coletivo estão presentes na ação movida por estilo de liderança “quase heroica para com o objetivo” (p. 20).

A semelhança com o que se encontra em Piracicaba é nítida. Jackson Filho e Barreira procuram explicar o enigma que representava o desenvolvimento do serviço até 20093. Os autores mostram como a equipe ao longo dos anos buscou recursos materiais, financeiros e técnicos para desenvolver tecnologias sociais, atrair atores externos, constituir rede de atores, implementar espaços de negociação para intervir em diversas situações de trabalho e setores da economia. O profissionalismo e a excelência técnica que caracterizavam as ações do serviço em prol da proteção dos trabalhadores e da intervenção nas condições de trabalho associam-se à dedicação, ao engajamento do grupo e ao estilo de liderança, semelhantes aos referidos por De Masi1.

Observou-se na época um modelo de gestão/coordenação das atividades inovador e democrático, que integrava as diversas modalidades de ação do serviço: vigilância, reabilitação, assistência, informação e capacitação3. Durante muito tempo, a equipe impediu coletivamente que cargo comissionado para a coordenação fosse instituído no serviçob. Esse posicionamento, resultado de deliberação coletiva, visava evitar a ingerência da política local.

A contribuição acadêmica para análise e prevenção de acidentes foi e continua sendo muito importante, se comparada com a de outras instituições (de pesquisa, inclusive federais), tanto sob o ponto de vista conceitual e metodológico quanto sob a perspectiva da aplicação em diversos setores da economia2. A qualidade da produção oriunda do serviço é evidenciada pelo grande número de artigos publicados em periódicos científicos - alguns deles publicados na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) (6)- (10.

Villela apresenta linha do tempo contendo as produções mais importantes do serviço5. Entre elas, devem ser citadas a organização de negociações setoriais3, o Sistema de Investigação e Vigilância de Acidentes de Trabalho (Sivat) (11, a criação do Fórum de Acidentes de Trabalho12, em parceria com a Universidade Estadual Paulista (Unesp), e o Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes13.

Muito desse desenvolvimento se deve a sua relação estreita com o meio acadêmico, a sua abertura para, ao mesmo tempo, ser “estudado” pelos pesquisadores e propor ações de pesquisa na qual é um dos protagonistas e objetiva resolver problemas na sua atuação. Tal relação favorece a prática, forma de “arte”, engajada, inovadora e singular, que intervém em prol da proteção e saúde dos trabalhadores e estabelece vínculo com a produção de conhecimentos14.

Recentemente, o serviço contribuiu para a produção de conhecimentos no campo da prevenção15, servindo de objeto de análise e desenvolvimento em Laboratório de Mudança (LM) (16, isto é, pesquisa/intervenção formativa, baseada na Teoria da Atividade Histórico-Cultural, que visou, além de produzir conhecimentos e aplicar o método (o primeiro no âmbito da saúde do trabalhador no Brasil), expandir a ação do serviço e de seus técnicos.

Ademais, desde o início, o serviço assumiu o compromisso de favorecer a difusão de conhecimentos por seus membros em diversas formas e mídias: publicações científicas, cartilhas, organizações e participações em eventos, produção audiovisual e mídia social, o que reafirma seu compromisso com sua razão de ser. Os avanços podem, assim, influenciar outros serviços e fortalecer a Rede Nacional de Atenção à Saúde do Trabalhador (Renast): quanto mais forte for a rede, maior poder de agir terá o serviço para promover a saúde do trabalhador na sua região.

Ou seja, ao reconhecer por princípio seu papel limitado, tem estimulado e participado em redes de atores3, não exclusivas ao setor da saúde, que busca de forma incessante a prevenção dos acidentes. Os cursos de especialização em ergonomia ministrados em Piracicaba, e coordenados pelo Cerest, durante os anos 2000, visaram introduzir o referencial da ergonomia da atividade para diversos profissionais de instituições e empresas a fim de favorecer a prevenção e constituir rede de atores na região2. Outras ações, tais como a formação de agentes de vigilância em ST para serviços do estado de São Paulo, em 2019, projeto da ferramenta online ZERÓBITO17, a coletânea “engenharia do trabalho” (18, são exemplos recentes de ações em rede nas quais o serviço foi protagonista.

Pode-se afirmar, portanto, que o serviço ao longo dos seus 20 anos tem sido um espaço de experimentação, de inovação, de produção de tecnologias sociais para a prevenção19. Provocou ou participou de diversas ações e movimentos, além de ter propiciado e fomentado espaços de encontros que favoreceram não apenas o desenvolvimento de diversos atores, mas sobretudo do campo.

Assim, parece válido ainda hoje o que se sabia desde 2013, ou seja, que “o êxito da equipe parece associar-se à combinação de sua capacidade de inovar, buscando ferramentas (materiais, conceituais e metodológicas) para dar suporte à ação e sua capacidade para influenciar o meio social para agir” (3) (p. 388)

O futuro do serviço, enfim, depende, de sua capacidade de manter vivas essas capacidades, na lide desse objeto por natureza fugidia, que é a prevenção de agravos relacionados ao trabalho. No que tange ao reconhecimento da sociedade, e consequentemente à legitimidade para agir, o Cerest de Piracicaba já o tem20, após mais de 20 anos de engajamento histórico na prevenção de acidentes.

O Centro, que tem sido acompanhado ao longo dos anos pela RBSO, é patrimônio da cidade de Piracicaba, do campo da Saúde do Trabalhador e da Saúde Pública brasileira.

Referências

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Notas

b Apenas recentemente o cargo de direção do serviço foi instituído.
Texto baseado em apresentação feita no dia 16 de outubro de 2023 na XXV Semana Municipal de Prevenção de Acidentes de Trabalho, promovida pela Comissão Interinstitucional de Saúde do Trabalhador e organizada pelo Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Piracicaba

Autor notes

* Editor-chefe da RBSO

Contato: José Marçal Jackson Filho E-mail: jose.jackson@fundacentro.gov.br

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