Resumo
Introdução: a pandemia da COVID-19 desencadeou uma recessão global e o aumento da precarização do trabalho. Nesse cenário, o uso intensivo das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) contribuiu para o surgimento de novos fatores de riscos psicossociais no trabalho (FRPT) e para o aumento da ocorrência de transtornos mentais nos trabalhadores.
Objetivos: identificar instrumentos que avaliam os FRPT disponíveis na literatura e verificar se eles incorporaram as novas dimensões psicossociais do trabalho mediadas pelas TIC.
Métodos: revisão de escopo, com busca nas bases PubMed, Biblioteca Virtual em Saúde, Embase, Scopus e Web of Science, de artigos publicados no período de 1990 a 2023 seguindo as recomendações do Instituto Joanna Briggs e do PRISMA-ScR . Buscou-se agrupar estudos e instrumentos relevantes e identificar lacunas.
Resultados: foram selecionados 18 instrumentos, de 3.424 artigos. Dez deles incluíram escalas/dimensões previstas no PRIMA-EF, dois incluíram dimensões do uso das TIC e seis foram considerados específicos para a avaliação de FRPT por TIC.
Conclusão: destacam-se a importância do uso dos instrumentos de acordo com o contexto em que foram desenvolvidos, os fatores de estresse digital que ainda não foram considerados nesses questionários e a relevância do suporte da organização para a redução do tecnoestresse nos trabalhadores.
Palavras-chave: Inquéritos e questionários, impacto psicossocial, estresse ocupacional, local de trabalho, tecnologia da informação, saúde do trabalhador.
Abstract
Introduction: the COVID-19 pandemic triggered a global recession and increased work precarity. In this scenario, the intensive use of Information and Communication Technologies (ICT) contributed to the appearance of new occupational psychosocial hazards, and the increase of mental disorders among workers.
Objectives: to identify instruments that assess occupational psychosocial risks and stress available in literature and verify whether they include the new psychosocial work dimensions caused by ICTs.
Methods: a scope review was conducted by searching the PubMed, BvS, Embase, Scopus and Web of Science databases for articles published between 1990 and 2023, following the Joanna Briggs Institute and PRISMA-ScR recommendations. It sought to group the relevant studies and instruments and identify gaps that should be observed.
Results: bibliographic search identified 18 instruments, from 3424 articles. Ten included scales/dimensions foreseen by PRIMA-EF, two included dimensions on ICT use and six were considered specific for assessing ICT-related occupational psychosocial risks.
Conclusion: the study highlights the importance of using context-appropriate instruments, the digital stress factors yet to be included in these questionnaires and the relevance of organizational support to reduce technostress in workers.
Keywords: Surveys and questionnaires, psychosocial impact, occupational stress, workplace, information technology, occupational health.
Artigo de Revisão
Tecnologias de informação e comunicação: revisão de escopo dos instrumentos de avaliação dos fatores de risco psicossociais no trabalho contemporâneo
Information and communication technologies: a scoping review of instruments to evaluate psychosocial risk factors at contemporary work
Received: 03 February 2022
Revised document received: 24 July 2023
Accepted: 22 August 2023
A recessão global provocada pela pandemia da COVID-19 agravou o desemprego, intensificou o trabalho e aumentou o número de afastamentos por transtornos mentais e comportamentais 1 . A relevância dos fatores de risco psicossociais no trabalho (FRPT) associados à ocorrência dos transtornos mentais no trabalho é relativamente recente. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) 2 , o crescimento e progresso econômico não dependia apenas da produção, mas também das condições de vida e trabalho, saúde e bem-estar dos trabalhadores e seus familiares.
Em um cenário de precarização do trabalho, o uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) reconfigurou o mundo do trabalho na medida em que contribuiu para a segmentação do mercado de trabalho global e para a eliminação ou transformação dos postos de trabalho 2,3 . Quanto ao emprego e o futuro do trabalho, Sauter, Brightwell, Colligan, Katz e Lessi 4 , Leka e Jain 5 e a própria OIT 6 apontam incertezas em relação às novas formas de trabalho e gestão associadas às novas tecnologias, cuja agilidade em mudar tem impacto negativo, principalmente para a população economicamente ativa dos países do hemisfério sul.
O impacto na saúde mental dos(as) trabalhadores(as), no cenário de pandemia e trabalho virtual na modalidade de home office , gerou novos desafios para a proteção social dos trabalhadores 1,7 . De acordo com a Federação Americana do Trabalho e Congresso de Organizações Industriais (AFL/CIO) 8 , a possibilidade de trabalhar a qualquer hora e lugar, com maior flexibilidade e autonomia, pode ser considerada uma vantagem. Entretanto, estudo conduzido por Cavazotte, Lemos e Brollo 9 , com usuários de smartphones , evidenciou aumento do tempo de conexão com o trabalho. De acordo com Mazmanian, Orlikowski e Yates 10 , a autonomia preconizada no trabalho virtual é paradoxal, já que o ritmo e as demandas de trabalho, mediados pelas TIC, ocorrem de forma instantânea.
Para a OIT 11 , no trabalho remoto, são recorrentes os relatos de prolongamento da jornada de trabalho, falta de separação entre vida profissional e privada, dificuldades no distanciamento mental dos trabalhadores e isolamento social 1 . Além disso, a comunicação assíncrona contribui para desentendimentos e interrupções constantes, aumento da carga cognitiva de trabalho, devido ao excesso de informações, realização de múltiplas tarefas concomitantes 12 e fadiga pelo uso dos aplicativos de videoconferência 13 . Em um cenário de precarização do trabalho, esses fatores podem comprometer a saúde mental e o bem-estar dos trabalhadores 5,14 .
Segundo Antunes 15 , a nova configuração do capitalismo se apropriou das novas tecnologias para intensificar e precarizar o labor. No trabalho mediado pelas TIC, o controle e a cobrança direta por resultados individuais de desempenho são mais efetivas, seja para monitorar chamadas e vigiar os operadores de telemarketing, ou manter o controle via algoritmos dos trabalhadores por aplicativos 16 e, ainda, contribuir para o aumento da precarização de vínculos contratuais e do desemprego tecnológico 17,18 . Estudo conduzido por Nayak 19 , que avaliou a saúde mental dos profissionais da Tecnologia da Informação (TI), evidenciou queixas de sobrecarga de trabalho, tempo insuficiente para a realização das tarefas, falhas na comunicação, sentimentos de solidão, ansiedade, depressão, inadequação, insatisfação e diminuição da autoestima, que podem originar problemas sociais, conjugais e sexuais.
Os impactos dessas mudanças na saúde mental dos(as) trabalhadores(as) preocupam as entidades internacionais. De acordo com a definição conjunta da Organização Mundial de Saúde (OMS) e da OIT (1984) 20 , os FRPT “se referem às interações entre o ambiente do trabalho, o conteúdo e as condições de trabalho e as capacidades, necessidades, cultura dos trabalhadores que podem influenciar na satisfação, desempenho e na saúde” (p. 3). A dinâmica negativa dessas interações pode desencadear estresse e prejudicar a saúde física e mental dos(as) trabalhadores(as). No aspecto organizacional, a falta de gestão sobre os FRPT pode desencadear estresse no trabalho, afetar a produtividade, elevar o absenteísmo, o presenteísmo e as doenças e acidentes de trabalho 20-22 .
Foram desenvolvidos diversos instrumentos de avaliação para serem respondidos pelos trabalhadores, com o objetivo de identificar os principais FPRT desencadeantes de estresse, desgaste e insatisfação no trabalho 19 .
Considerando-se a pesquisa empírica e densidade de publicações, destacam-se três instrumentos: o Job Content Questionnaire (JCQ), desenvolvido por Karasek 23 ; o Effort Reward Imbalance (ERI), idealizado por Siegrist 24 ; e o Copenhagen Psychosocial Questionnaire (COPSOQ), de Pejtersen, Kristensen, Borg e Bjorner 25 ; que têm versões transculturais no idioma português 26-29 . Entretanto, esses instrumentos foram desenvolvidos em um cenário de trabalho presencial, sobretudo na indústria, sem considerar a evolução das tecnologias e o impacto do atual contexto do trabalho no mundo contemporâneo, no qual predomina o trabalho no setor de serviços, para empresas como a Uber 30 e da quarta geração de tecnologia móvel 31 .
Nossas hipóteses são: as influências negativas dessas novas formas de trabalho na saúde dos trabalhadores ainda são um campo pouco explorado e os instrumentos existentes de avaliação dos FRPT não conseguem capturar as metamorfoses do trabalho contemporâneo, cada vez mais precarizado, intensificado e potencializado pelas TIC disponíveis para sua realização.
Os objetivos deste estudo são, então, identificar e avaliar os principais instrumentos de avaliação dos FRPT disponíveis na literatura e verificar se atendem às novas exigências do trabalho, permeado pelo uso intensivo das TIC.
Realizou-se uma revisão de escopo para identificar os instrumentos sobre FRPT mais utilizados disponíveis na literatura internacional e analisar o conteúdo das dimensões/escalas utilizadas e as novas dimensões do trabalho mediado pelo uso de TIC.
A revisão de escopo visa viabilizar o aprofundamento do tema ao agrupar as produções em análise e identificação de lacunas na literatura no planejamento de pesquisas futuras. Na prática, as informações obtidas podem auxiliar na aplicabilidade mais adequada desses instrumentos 32,33 . O método possibilita identificar conteúdos relevantes na literatura empírica e teórica, tendo em vista uma compreensão mais completa do fenômeno em análise 34 .
A pergunta de pesquisa foi construída utilizando o guia Population, Concept, Context (PCC): População – instrumentos para a avaliação dos FRPT e estresse do trabalhador; Conceito – capacidade para capturar os desafios do trabalho moderno; e Contexto – mediado pelas TIC.
Foi realizada busca nas plataformas de registros internacionais de estudos científicos: Prospective Register of Systematic Reviews (PROSPERO), Open Science Framework ( OSF) e Cochrane Library, com o objetivo de identificar revisões sistemáticas semelhantes, para evitar estudos duplicados. Não foram identificados projetos ou estudos com objetivos semelhantes ao desta pesquisa.
Essa revisão seguiu as recomendações do Instituto Joanna Briggs (JBI) 35 e do guia para relato de revisões sistemáticas com extensão para revisão de escopo (PRISMA-ScR) 33 . Para haver transparência no processo e limitar a ocorrência de vieses, essa revisão foi registrada na plataforma OSF (disponível no link: https://osf.io/bxn9g/?view_only=3f626ec7117b40eb927f80322d3eafc7 ).
Foram incorporados instrumentos de avaliação em inglês, espanhol e português. Realizado recorte temporal, com filtro de busca a partir de 1990, década na qual tecnologias como notebook 36 e e-mail 37 passaram a ser acessíveis. Foram excluídos estudos de instrumentos para a avaliação de Burnout, bem-estar do trabalhador, síndrome de estresse pós-traumático, suicídio e categorias profissionais específicas, bem como estudos relacionados com validação de intervenções, tecnologias e programas para redução do estresse, adaptação e validação transcultural, além de estudos que não apresentassem conceito compatível ao objetivo deste estudo.
Na fase de elaboração da estratégia de busca, observou-se uma divisão entre os instrumentos e trabalhos que abordam os FRPT tradicionais e os emergentes e aqueles que consideram as TIC como instrumentos específicos. Por esse motivo, foi necessária utilização de duas estratégias de busca, já que trabalhos sentinelas para as duas categorias não retornavam em mecanismo de busca única.
As buscas foram realizadas entre maio e junho de 2021, em cinco bases de dados escolhidas pela abrangência nacional e internacional na área da saúde (PubMed, BVS, Embase e Scopus), e pela multidisciplinaridade (Scopus, Web of Science). A estratégia de busca ( Quadro S1 no material suplementar) seguiu três etapas recomendadas pelo JBI: 1) no banco de dados da PubMed e BVS (Biblioteca Virtual em Saúde), após a análise das palavras do título, resumo e descritores indexados dos estudos, definiram-se duas novas estratégias de busca para alcançar a abrangência desejada para este estudo; 2) as estratégias utilizaram palavras-chaves em inglês e Medical Subject Heading (MeSH) combinados por operadores booleanos AND ou OR e foram aplicadas no PubMed e replicadas para as demais bases de dados, com exceção da BVS, formada pela combinação de Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), em inglês, português e espanhol; e 3) realizou-se uma busca nas listas de referências bibliográficas dos estudos que foram selecionados para a leitura integral.
Em 12 de julho de 2023, para atualizar o estudo, foi realizada uma nova busca, compreendendo o período de 2021 a 2023, seguindo os critérios já mencionados.
Os resultados obtidos foram transferidos para o sistema EndNote. Na primeira fase de seleção, etapa 1, o aplicativo foi utilizado para identificação dos estudos duplicados. Na etapa 2, por leitura de título e resumo, foram excluídos os trabalhos que não atendiam aos critérios de inclusão e exclusão, e as referências foram separadas em dois grupos: 1) artigos sobre fatores psicossociais e estresse do trabalho associados ao uso de TIC; e 2) instrumentos/questionários de avaliação de FRPT tradicionais. Na fase de elegibilidade, a etapa 3, uma nova leitura de título e resumo mais criteriosa foi realizada, sendo excluídos os artigos de revisão de literatura, os que tratavam de validação e adaptação transcultural de instrumentos originais e os que não eram compatíveis com o tema de estudo. Na fase de inclusão, os artigos foram identificados por meio da leitura completa e análise por dois revisores independentes, de maneira não cega, etapa 4.
Conforme metodologia da revisão de escopo, não foram avaliados a qualidade metodológica ou o risco de viés dos artigos incluídos. Foram extraídas as informações sobre o nome de cada instrumento, autores, ano de publicação, país de origem e escalas/dimensões que avaliam.
A revisão bibliográfica resultou em 5.137 artigos. Foram excluídos 1.713 (33%) duplicados. Na etapa 2, mediante leitura de título e resumo, foram excluídos mais 3.210 (63%) artigos que não atendiam aos critérios de inclusão e exclusão. Na etapa 3, dos 214 artigos restantes, foram excluídos 105, também por leitura de título e resumo, por serem artigos de revisão bibliográfica, adaptação transcultural e validação de instrumentos originais já contemplados no estudo. Na etapa 4, foram lidos integralmente os 109 artigos restantes e mais sete artigos extraídos das listas de referências bibliográficas. Foram excluídos outros 98 artigos, resultando em 18 artigos incluídos para análise. A Figura 1 descreve o fluxograma do processo de busca e seleção dos estudos.
Dos 18 artigos incluídos 38-55 na Tabela 1 , 10 são instrumentos tradicionais de avaliação de FRPT; dois são instrumentos com uma dimensão sobre uso de TIC; e seis são instrumentos específicos para a avaliação dos FRPT associados ao uso das TIC.


A maioria dos 18 instrumentos selecionados foi desenvolvida em países europeus. Todos os artigos foram publicados no idioma inglês, com exceção dos instrumentos RED 45 e RED-TIC 55 , incluídos na versão original em espanhol. Foram publicados no período entre 2004 e 2021, sendo 44% (n = 8) publicados nos últimos cinco anos.
Dos instrumentos tradicionais incluídos na análise, os que têm tradução e validação transcultural para o português do Brasil são: o ERI 24,28 , o HSE 44,56 e o COPSOQ III 38,57 . O RED-TIC 55,58é o único específico para TIC.
O número de escalas ou dimensões de cada instrumento é variável. O Quadro 1 descreve as dimensões dos instrumentos tradicionais identificados, dos quais os mais recentes foram o COPSOQ III 38 , de 2019, e o WRSQ 48 , de 2020. As cinco dimensões mais utilizadas foram controle/autonomia; apoio da chefia e dos colegas; demandas; relacionamentos e função/cargo. Os instrumentos que incluíram dimensões de TIC em suas avaliações foram: o WHC 49 , com três itens que avaliam a sobrecarga de informações, invasão da vida privada e economia de tempo; e o WRSQ 48 , com dois itens sobre a satisfação de uso dos equipamentos.
O Quadro 2 apresenta 24 diferentes escalas de avaliação dos instrumentos específicos para trabalhadores que utilizam TIC para o trabalho. Destacam-se o Digital Stressors Scale (DSS) 50 e o Digital Work Scale (DWS) 51 , publicados em 2021. Verificou-se que o DSS e o Technostress creators and inhibitors (TSCI )54 são instrumentos com maior número de dimensões para a avaliação da influência das TIC nas atividades de trabalho.


A busca por atualização do estudo resultou em 608 artigos, porém nenhum atendeu aos critérios de inclusão, portanto não foi acrescido qualquer novo instrumento.
A pandemia aumentou o desemprego; entretanto, as novas tecnologias contribuíram para viabilizar e intensificar o trabalho remoto e o trabalho por plataformas digitais, na forma de crowdwork , por aplicativos de transporte de passageiros e entregas 59 .
O resultado de uma recente revisão bibliográfica aponta para o evidente aumento dos fatores de riscos psicossociais associados às demandas emocionais e à interface casa-trabalho, na realização de teletrabalho total durante a pandemia de COVID-19. Já o teletrabalho em tempo parcial, uma a duas vezes por semana, pode favorecer o equilíbrio trabalho-casa, comunicação e relações sociais 60 .
Diante da ambivalência dos riscos psicossociais emergentes 61,62 , associados ao conteúdo e contexto do trabalho contemporâneo mediado pelo uso de TIC 59 , buscou-se problematizar se as escalas ou dimensões psicossociais contidas nos instrumentos de avaliação dos FRPT incluíam as novas demandas de trabalho.
Em um mercado cada vez mais competitivo com o aumento da produtividade, as organizações utilizam estratégias que estimulam a competição entre os trabalhadores, incluindo violência psicológica e práticas de gestão assediadoras de avaliação e desempenho, como metas cada vez mais desafiadoras 21 . Nesse cenário, a União Europeia (UE) tornou obrigatória a elaboração de programas de gestão sobre os principais FPRT para a redução do estresse e transtornos mentais no trabalho 21 . Por isso, observou-se a predominância europeia (89%) dos instrumentos identificados nesta revisão.
Um instrumento de avaliação precisa ser validado em seu conteúdo e forma, e se os itens que compõem as escalas ou dimensões apresentam propriedades psicométricas adequadas em medir o que se propõe; além disso, precisam estar adequados ao contexto que se pretende avaliar. Consideram-se o tamanho do instrumento, a ordem e a redação das perguntas ou itens e se podem influenciar na interpretação dos respondentes 63 .
A maioria dos instrumentos tradicionais de avaliação dos fatores psicossociais contém as dimensões ou escalas propostas no Psychosocial Risk Management – European Framework (PRIMA-EF) 21 , com destaque para o conteúdo do trabalho, carga e ritmo de trabalho, horário de trabalho, controle, função, relações interpessoais no trabalho e interface trabalho-casa.
A análise das escalas dos instrumentos tradicionais (JCQ 41 , ERI 47 , Health Safety Executive – HSE 44 e COPSOQ 38 ) mostrou a relevância do modelo teórico demanda-controle e apoio social na dinâmica de adoecimento 64 . O suporte da liderança e dos colegas são dimensões de apoio social e estão contempladas nos instrumentos HSE e COPSOQ; entretanto, esses instrumentos não incluem escalas que considerem o impacto das tecnologias de informação nas atividades de trabalho. O conteúdo teórico do ERI ou balanço esforço-recompensa 47 e demanda-recurso JD-R 65,66 tiveram influência nas pesquisas e estudos para desenvolvimento de questionários específicos de TIC 54,61,67 .
Somente os instrumentos WHC 49 e WRSQ 48 consideraram, ainda que limitadamente, a interação das TIC na organização do trabalho-trabalhador, presencial ou virtual. Outras escalas associadas à dependência das tecnologias e ao isolamento social foram incluídas nos questionários mais recentes, como o SPQR, publicado em 2018 39 ; e as escalas de estresse multinível e estabilidade em vias de mudança incluídas no JCQ2 de 2017 68 . Embora este estudo tenha considerado apenas a versão média do COPSOQ III 38 , destaca-se que a versão longa introduziu o cyberbullying como uma nova dimensão psicossocial.
Com o aumento do trabalho remoto, existe uma tendência de que o cyberbullying69 se torne cada vez mais frequente. Duas características que definem o bullying assumem dimensões diferentes quando praticado virtualmente: 1) a repetitividade, pois um ato praticado uma vez pode tomar proporções globais com a facilidade de replicação que o compartilhamento virtual oferece, podendo atingir profundamente o alvo do assediador; e 2) o desequilíbrio de poder, virtualmente, pode ocorrer pelo acesso à vítima fora do seu ambiente de trabalho, a qualquer hora e lugar, inclusive em seu lar. Além disso , o fato de um comportamento assediador atingir ambientes além da empresa reduz a percepção de responsabilidade do empregador no controle da situação, perpetrando o desequilíbrio do poder 69 .
As tecnologias contidas nos dispositivos móveis (smartphones) estão associadas à característica de “pervasividade”, ou seja, de se infiltrar na rotina de trabalho e na vida privada e diluir as fronteiras organizacionais 70 , tornando o trabalho onipresente na vida dos trabalhadores 9,11 , tendo sido caracterizadas como “coleiras eletrônicas” 71 . Nesse sentido, o instrumento de avaliação tradicional pode não captar os constrangimentos virtuais específicos do trabalho e fora dele com uso das TIC.
É importante ressaltar que a aplicação de questionários pode e deve ser complementada com perspectiva mais ampla das causas de tecnoestresse 72 . O termo, introduzido por Craig Brod 73 , o definiu como o impacto negativo sobre as atitudes, pensamentos, comportamentos ou fisiologia causado pela utilização de tecnologia e problemas de síndrome de adaptação dentro e fora do ambiente de trabalho.
Uma definição mais atual foi proposta pelos autores do instrumento Technostress Creators and Inhibitors (TSCI) 54 (2008), o “estresse digital” 50 como sendo um “fenômeno de estresse resultante do uso de TIC vivenciado pelo usuário final nas organizações” (p. 417).
O TSCI foi desenvolvido a partir da teoria Transaction-Based Approach. Contém cinco escalas associadas a fatores criadores de tecnoestresse (sobrecarga, invasão, complexidade, insegurança e incerteza) 74 , desenvolvidas em pesquisa de 2007. O TSCI ainda é acrescido de cinco escalas de fatores inibidores (facilitação de treinamento, provisão de suporte técnico, facilitação de envolvimento do usuário no projeto de criação de um novo dispositivo ou sistema e satisfação no trabalho), na versão desenvolvida em 2008 54 .
Entre os instrumentos mais recentes identificados, o DSS 50 e o DWS 51 são mais específicos. O DWS tem quatro escalas, três delas muito atuais devido à pandemia: trabalho em grupo virtual, trabalho móvel, disponibilidade constante e suporte técnico. O DSS propõe a atualização do modelo Technostress creators (TSC) 74 e TSCI 54 , amplamente utilizados na literatura 75,76 .
O DSS é um questionário para avaliar a percepção de estresse digital no trabalho, constituído por 50 itens distribuídos em 10 escalas que podem ser avaliadas separadamente: 1) complexidade – dificuldade no entendimento da TIC; 2) conflitos – fronteiras de organização mental borradas; 3) insegurança – medo de desemprego decorrente das TIC; 4) invasão de privacidade – monitoramento por meio de TIC; 5) sobrecarga – de trabalho ou informação; 6) segurança – ameaças externas que podem causar danos pessoais, para a TIC ou para a organização; 7) envolvimento social – normas e expectativas indesejadas por uso de tecnologias de comunicação; 8) utilidade – falta de; 9) ineficácia – comportamento inesperado ou falho da TIC; e 10) suporte técnico – ausência de recursos e suporte adequado 50 .
Os critérios de confiabilidade e validade desse instrumento mostraram-se adequados. Em um teste inicial de validade de constructo, o DSS 50 mostrou forte correlação com o amplamente utilizado TSC 74 (rs = 0,923, p < 0,001); além disso, apresenta benefícios adicionais: 1) oferece fatores estressores mais atuais que não estão presentes no modelo anterior e captura melhor a abrangência do fenômeno em estudo; 2) tem capacidade de explicar uma maior variância para os critérios de exaustão emocional, clima de inovação, satisfação no trabalho e satisfação do usuários; 3) os itens foram formulados com base no conceito psicológico de estresse desenvolvido por Lazarus, que define estresse como uma discrepância entre o desejo e o real 77 .
No Brasil, o único instrumento para avaliação de TIC identificado foi o RED-TIC (2004) 55 , com adaptação transcultural para o português brasileiro publicada em 2010 58 . Baseado no modelo demanda-recurso 65 , considera que o estado psicológico negativo relacionado ao uso das TIC e sua ameaça no futuro é capaz de provocar descrença, ansiedade, fadiga e ineficácia. Inclui, em um mesmo instrumento, as dimensões emocional, atitudinal e cognitiva. Apresenta as escalas de sobrecarga de trabalho, conflito de funções, conflito trabalho-família e rotina de trabalho (monotonia, baixo esforço mental). É um instrumento referenciado na literatura, mas que, por ter sido desenvolvido há mais de 15 anos, não aborda aspectos mais atuais de sobrecarga de trabalho associada ao uso das TIC 12 .
A rapidez das mudanças tecnológicas é um desafio e pode tornar obsoletos instrumentos de avaliação consagrados 4,6,51 . Alguns fatores de risco, apontados na literatura, que podem prejudicar a saúde mental dos trabalhadores ainda não fazem parte dos instrumentos apresentados: a existência de uma autonomia paradoxal 10 ; a imprevisibilidade, que pode levar ao acúmulo de tarefas e necessidade de reorganização mental constante; a conectividade paradoxal que diminui a percepção de distância entre os colegas, mas acentua a expectativa de conectividade constante 12,61 ; as organizações altamente centralizadoras e inovativas 78 ; a sobrecarga de informações, interna e externa, e mensagens sociais por social-local-mobile (SoLoMo) 79 ; e a utilização excessiva de celulares para o trabalho 80 .
Outro ponto que merece destaque, quando se trata de organização do trabalho, é o perfil da empresa quanto à prática de segmentação/integração e autonomia do trabalhador para controlar a fronteira entre trabalho e vida privada. Essa fronteira, psicológica e comportamental, é importante para a organização mental do trabalhador, e seu controle depende das oportunidades e dos desafios que a organização oferece. Em algumas empresas, existem normas percebidas de conectividade constante, gerando pressão por rápidas respostas às demandas que chegam pelas TIC, mesmo fora do horário de trabalho – fenômeno conhecido como telepressão 53,81 .
Em 2018, um estudo diário realizado de forma online, na Holanda, com 116 participantes, mostrou que trabalhadores que percebem baixa norma de segmentação das empresas, ou seja, baixa separação dos domínios, experimentam um menor distanciamento mental do trabalho nos dias em que usam o smartphone com mais intensidade e pior qualidade no sono devido à telepressão 82 . Resultados de uma pesquisa, realizada em 2014 com trabalhadores de uma grande empresa Sueca de telecomunicações, apontaram que existe grande preferência dos trabalhadores pela segmentação, e que a maioria dos trabalhadores percebem baixa possibilidade de controle da fronteira. Portanto, a organização do trabalho tem papel fundamental na facilitação e no respeito à autonomia do trabalhador na gestão da fronteira, fator importante para um bom equilíbrio entre trabalho e vida privada 83 .
O tipo de liderança também é um fator da organização do trabalho que pode elevar o tecnoestresse. Estudo de 2019, realizado com 379 profissionais de diversos segmentos de mercado em São Paulo, analisou os efeitos da influência da liderança sobre o tecnoestresse e mostrou que os estilos de liderança impactam no estresse tecnológico, principalmente do tipo laissez-faire , caracterizado por baixa atuação do líder, e aumentam a sensação de tecnocomplexidade e tecnoincerteza 84 .
Aumento do estresse, piora da qualidade do sono, redução do bem-estar, da motivação, do comprometimento e da satisfação do trabalho são impactos do tecnoestresse e da telepressão para os indivíduos e para as empresas já discutidos na literatura 53,54, 74,76,85,86 . Para reduzir esses efeitos, a organização do trabalho precisa disponibilizar recursos adequados, chamados de fatores inibidores do tecnoestresse, que aumentam a satisfação do usuário e reduzem os níveis de estresse. Os mais abordados na literatura são: 1) fornecimento de orientação, treinamento e tempo adequados para adaptação à nova tecnologia; 2) provisão de suporte técnico e organizacional eficiente para a resolução dos problemas dos usuários; 3) envolvimento dos usuários nas fases iniciais de criação de um novo dispositivo/sistema, reduzindo o impacto que situações estressoras poderiam causar; e 4) satisfação no trabalho 54 .
Além dos fatores inibidores citados, a literatura reforça a necessidade de promoção do distanciamento mental fora dos horários de trabalho, ou seja, não trabalhar e não pensar nas questões relacionadas ao trabalho. O distanciamento mental está associado a bem-estar, redução do burnout, redução de queixas psicossomáticas, melhor qualidade do sono e satisfação de vida. Quanto menor o distanciamento mental, maior o estresse no trabalho e exaustão 76,82,86-89 .
Pesquisa recente, conduzida por Goetz e Boehm 89 , mostrou a importância do suporte organizacional para a redução do estresse causado por incerteza em tempos de mudanças tecnológicas, por meio do fortalecimento dos potenciais de cada um por treinamentos que ressaltem os pontos fortes individuais no trabalho de líderes e trabalhadores, ao invés da compensação dos déficits. Outro fator seria o favorecimento das oportunidades de amizades, por formação de eventos organizacionais em equipes, aumento da flexibilidade de intervalos e áreas comuns para a socialização.
A revisão de escopo tem limitações inerentes à metodologia, que se propõe a mapear evidências e ampliar o conhecimento sobre o assunto e, por isso, o foco é mais na abrangência do que na profundidade do tema, visto que a qualidade dos trabalhos não é o objeto principal de aprofundamento.
Na leitura integral dos artigos, foi identificado que os estudos analisam separadamente os FRPT para profissionais de TI e usuários finais. Como esse não era um fator de restrição desta pesquisa, não foi abordado separadamente.
Os instrumentos de avaliação dos FPRT foram desenvolvidos para avaliar o contexto microssocial das organizações, sem considerar as inter-relações com os aspectos macrossociais e econômicos que impactam direta ou indiretamente na saúde dos trabalhadores. Nesse sentido, os instrumentos utilizados no interior das empresas e respondidos pelos envolvidos podem não captar toda a dinâmica e o impacto na saúde mental dos trabalhadores.
Os instrumentos de avaliação dos FRPT mais utilizados nas organizações e traduzidos em vários países foram desenvolvidos em um contexto de trabalho presencial, sem considerar os novos aspectos psicossociais do trabalho contemporâneo mediado pelo uso das TIC; no entanto, observa-se uma tendência de revisão e inclusão. Os instrumentos específicos com ênfase no tecnoestresse e TIC ainda são escassos. Este estudo identificou os dois instrumentos mais recentes (DWS e DSS) para essa finalidade, dando um direcionamento para trabalhos de adaptação transcultural para o Brasil.
A rapidez das mudanças, que instituiu novas formas de trabalho, exploração e precarização dos trabalhadores, decorrentes da pandemia de COVID-19 e do uso das TIC, é um desafio para os pesquisadores e profissionais de saúde. Essa velocidade justifica o desenvolvimento e a atualização dos instrumentos de avaliação coletiva dos ambientes de trabalho e as ações de vigilância e prevenção da saúde dos trabalhadores.
No contexto brasileiro, os FPRT são pouco estudados e não existe nenhuma legislação que os identifique para a adoção de ações nos ambientes de trabalho. Espera-se que esta revisão reacenda o debate sobre a investigação dos FPRT nas organizações, considerando-se a contribuição das novas tecnologias para a intensificação e o aumento da precarização no trabalho contemporâneo.
Setta AVA, de Lucca SR. Tecnologias de informação e comunicação: revisão de escopo dos instrumentos de avaliação dos fatores de risco psicossociais no trabalho contemporâneo. Rev Bras Saúde Ocup [Internet]. 2024;49:e6. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2317-6369/02722pt2024v49e6
Alexandra Vasconcelos Antunes Setta
Ada Ávila Assunção
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