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Restituir o sentido do trabalho: uma aspiração revolucionária
Ricardo Luiz Lorenzi
Ricardo Luiz Lorenzi
Restituir o sentido do trabalho: uma aspiração revolucionária
Making work meaningful again: A revolutionary aspiration
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, vol. 50, e2, 2025
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - Fundacentro
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Resenha

Restituir o sentido do trabalho: uma aspiração revolucionária

Making work meaningful again: A revolutionary aspiration

Ricardo Luiz Lorenzi
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, Brasil
Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, vol. 50, e2, 2025
Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho - Fundacentro
T Coutrot, C Perez. Redonner du sens au travail – une aspiration révolutionnaire.. 2022. Paris. Seuil. 160pp.. 978-2-02-150323-4

Received: 16 August 2024

Accepted: 14 October 2024

Refletir sobre o sentido do trabalho seria porventura algo revolucionário e subversivo em tempos atuais? Como tal reflexão se conectaria aos movimentos sindical e ambientalista contemporâneos? Ela viria a alentar uma perspectiva ecossocialista? Quais as origens reais do desalento do trabalhador em anos recentes – exacerbado após a crise sanitária da covid-19 – e quais desdobramentos ele terá sobre o trabalho, o emprego, a economia e a ecologia nos próximos tempos1? Para responder essas indagações, em Redonner du sens au travail: une aspiration révolutionnaire, Thomas Coutrot e Coralie Perez retomam e interpretam dados de seu estudo prévio Quand le travail perd son sens2- investigação econométrica pioneira sobre a relação entre o sentido do trabalho e a mobilidade profissional, na França.



Thomas Coutrot



Coralie Perez

Sem academicismo, transparece no livro o empenho dos autores em dialogar com a classe trabalhadora, tendo como pano de fundo suas aspirações históricas, algumas das quais irresolutas. Ele nos instiga à reflexão sobre os determinantes do significado atribuído ao trabalho pelos trabalhadores e ressignifica as suas experiências críticas sobre a finalidade e o impacto deste trabalho sobre si próprios e sobre o mundo que os rodeia.

Buscando sentido... com o tanque vazio

Em comentário à própria obra, os autores focalizam as questões atuais que envolvem o sentido do trabalho, por vezes inserindo-as em dimensão maior, a da saúde pública3. A pandemia da covid-19, que evidenciou no debate público a utilidade social das ocupações, também reforçou um questionamento quanto ao sentido do trabalho. Já na introdução, os autores nos dão pistas no calembur criado entre sens (sentido) e essence (essência, mas que coloquialmente também significa gasolina, na França) para exprimir concepções em choque no mundo do trabalho real. Contraste entre o poder de agir do trabalhador e o poder de compra de combustível – em meio à busca de uma nova ordem no caos pós-pandêmico: o ethos antigo e o emergente, concomitantes e conflitantes. Prospecta-se uma nova ordem ambiental (eco-nomia) globalizada e toda sorte de crises e reverberações globais que possam acrescentar (ou subtrair) sentido e razão à existência do trabalho contemporâneo – estes são alguns contornos ontogenéticos da obra. Revisando a literatura multidisciplinar especializada, compõem um amplo quadro de referência teórica para os leitores interessados na matéria do sentido.

No eixo empírico, os autores enfrentam sem sobressaltos as dificuldades que a prática estatística traz à objetivação de percepções por vezes demasiado fluidas. Sem ignorar a epidemiologia de Karasek na análise dos riscos psicossociais no trabalho e o seu valor de constructo para uma ciência voltada à promoção de saúde do trabalhador, propugnam algo inovador. Veem no esvaziamento do sentido um fator de risco psicossocial emergente em meio à crise sanitária deflagrada pela pandemia. Postulam que o trabalho ganha sentido – intrínseca e profundamente político – quando se coloca diante das questões do agir pela transformação: a do mundo natural, a do social, e a de si próprio, trabalhador. E fazem desta mirada política o fundamento epistêmico de sua métrica. Examinam fatores políticos que condicionam o adoecimento social na contemporaneidade, tendo a biopolítica no centro da determinação.

Para os autores, o debate sobre o sentido do trabalho tem sido objeto de uma omissão persistente nas ciências sociais e a própria ideia de que o trabalho poderia (ou deveria) ter um sentido continua a colidir com uma série de resistências teóricas e políticas, as quais eles examinam em vários momentos.

DARESb evocando Dejours: o trabalhador no divã?

No primeiro capítulo, discorre-se sobre três dimensões do sentido do trabalho, seguindo a perspectiva dejouriana: i) a que se relaciona a uma finalidade a se atingir no mundo objetivo; ii) a que se relaciona à sua valoração social e iii) a da autorrealização, no mundo subjetivo. Nesta perspectiva, os autores desenvolveram métricas para utilidade social: (i), coerência ética (ii) e capacidade de desenvolvimento (iii), na busca de variáveis objetivas para captar o sentido do trabalho, “vivo” ou “morto”, em escala populacional. Estas métricas foram colocadas à prova nos Inquéritos condições de trabalho conduzidos, de 2013 a 2016c. Um comentário acerca da percepção de declínio da coerência ética pelos trabalhadores – resultante da análise dos dados da enquete telefônica TraCov durante a crise sanitária da covid-19 – arremata o primeiro capítulo. A robustez dos inquéritos nacionais franceses de condições de trabalho não deixa espaço para dúvidas sobre a relevância do estudo empírico de base, conduzido pelos autores.

O capítulo 2 começa por problematizar o sentido do trabalho segundo diversas correntes de pensamento. Em seguida, os autores desmistificam com dados empíricos a ideia de que o esvaziamento do sentido de trabalho é um problema exclusivo de “ricos”. Fechando o capítulo, desvelam a prestidigitação do sentido na doutrina do empowerment, promotora de intensificação do trabalho pela captura ardilosa da subjetividade do trabalhador. Na prática, induz-se um “pseudossentido” do trabalho que se pretende pleno de significado, mas que é manipulado como subterfúgio para legitimar a superexploração da mão de obra, mascarando-a.

Os capítulos seguintes são recheados de testemunhos vivos, que consubstanciam as diversas visadas estatísticas.

A gestão por números: de Peter Drucker ao desengajamento atual

Expressões recorrentes no vocabulário da perda do sentido do trabalho: processos desencarnados, objetivos cifrados, benchmarking contínuo, reporting permanente, mudanças organizacionais constantes. Na raiz dessas técnicas de gestão, encontra-se a financeirização da economia da qual os autores são críticos ferozes.

A “gestão despojada” que surge como um neo-taylorismo e a doutrina NPM (New Public Management) inspirada no setor privado e aplicada aos serviços públicos produzem efeitos análogos e de grande nocividade em setores como saúde e educação. Quando a gestão elege parâmetros de avaliação exclusivamente quantitativos e a planilha é tornada oráculo da otimização produtivista (em base frequentemente individual), tende-se a deformar o trabalho, empobrecer sua essência e esvaziá-lo de sentido humano. No setor hospitalar, o furor maníaco por avaliações imposto pela precificação constante em planilhas absorve tempo que antes se destinaria a melhorias nos cuidados. No capítulo 7, uma enfermeira descreve sua experiência traumática com a precarização da assistência à saúde. No ensino, as infindáveis avaliações e reformas recorrentes que conduzem à obsolescência precoce de indicadores – sintoma da ênfase performática na gestão disruptiva – resultam em cronofagia equivalente. Não por acaso, são dois setores que enfrentam crise de mão de obra, desengajamento e desalento de trabalhadores, na qual o burnout já se fez lugar-comum, bem como alguns agravos musculoesqueléticos e transtornos mentais relacionados ao trabalho.

O caso paradigmático da reconversão profissional da professora-pesquisadora de sociologia que abandona a universidade para se engajar em projeto de padaria ecológica nos fala de modo muito eloquente sobre o trabalho impedido dos professores (agir profissional cerceado por ilogismos) e a crise atual na atividade da educação. No fim das contas, as indagações “educar para quê?” e “para quem?” nos remetem a uma circularidade paradoxal: se o agir na educação é impedido, qual projeto societário se pode assestar em boa fé?

Qual o sentido do trabalho que destrói o ambiente?

No capítulo 4 – “Trabalhar contra a natureza” – são discutidos os limites éticos e os constrangimentos de um trabalho. É revisitado um artigo de Coutrot acerca do conflito ético-ambiental no trabalho4. O texto aborda desde questões amplas, relativas ao trabalho de reconhecida nocividade potencial ao ambiente (p.ex. as que envolvem riscos de biossegurançad na agricultura e dos riscos ampliados na indústria petrolífera) até alguns casos específicos, mais destacados ou impactantes, como os alertas vindos do mundo do trabalho.

Os autores mencionam aproximações entre sindicalistas e ambientalistas que, apesar de (lhes parecerem hoje) ainda pouco frequentes, mereceriam estudos mais sérios. Como foi o caso de operários da CGT da indústria vidreira de Chalon-sur-Saône, que se uniram a associações ambientalistas para denunciar a poluição por amianto provocada por sua fábrica. Ou, até mais emblemático, o caso de “ambientalismo trabalhista” que envolveu a indústria papeleira de La Chapelle d’Arblay, na Normandia – aliança inédita e exitosa entre sindicalistas da CGT e militantes ambientalistas (entre outros, os do Greenpeace e do EELVe).

A cenoura e a varinha não são panaceia...

ESG (Environment, Social & Governance), mercado de crédito de carbono, Triple P (People, Planet, Profit), empresa de interesse coletivo etc., nada escapa ao olhar crítico e ecossistêmico dos autores no capítulo 5 – “Em busca do sentido perdido”. Os autores fazem um recordatório de passos ensaiados no mundo corporativo para superar o desalento que o trabalhador experimenta no confronto com o taylorismo. Desalento que em boa medida se manteve com o advento de organizações “enxutas” da produção, cujo modelo recebeu alcunha de toyotismo ou a rubrica de lean production.

Os autores lançam um olhar panorâmico sobre as práticas da governança corporativa em direção à responsabilidade social, panorama que – “longe de ser um sonho!” – mostra como essas práticas não vêm sendo realmente capazes de prover aos assalariados um sentido perdido em seu trabalho. Desde os anos 1970, pouco se caminhou para motivar os trabalhadores a se implicarem mais no seu trabalho além de mero apelo em prol da maximização do valor acionário de suas empresas. Foi apenas nos anos 1990 que passaram a circular projetos e cartas de intenções empresariais que, propalando uma ideia de “liderança por valores”, buscaram suscitar um outro engajamento, que emularia a construção de um sentido “compartilhado” entre os diferentes atores produtivos, quadros técnicos ou blue collars assalariados. Algo que, desde então, a retórica da responsabilidade social absorveu e passou gradualmente a desenvolver, fazendo cintilar os valores de ética, compliance e diversidade para se contrapor ao arquétipo de gestão consagrado – o qual viria a ser taxado de “tóxico” por Isaac Getz e outros, como mencionado no livro. Protocolos de intenção socioambiental foram adotados e publicizados nas grandes corporações, adquirindo até status de metas para algumas delas, que passaram a receber auditorias externas; noutras, porém, não passaram de conveniência publicitária.

Os autores analisam alguns casos explícitos de “boas intenções” de ESG, mas que acabaram por atravessar o Rio Aqueronte. Casos inclusive de empresas tidas como reconhecidamente “éticas” em rankings do mundo corporativo, como a General Eletric, atingida por denúncias de evasão fiscal e alvo de polêmica por seus reatores nucleares defeituosos em Fukushima, e a Volkswagen, com seus testes de emissão veicular de Co2 viciados.

Novamente, dados empíricos reforçam os argumentos. É estarrecedor que praticamente a metade dos trabalhadores franceses reportem conflitos éticos no trabalho, independentemente de existir ou não política afirmativa ESG na empresa.

A “libertação” top-down

O capítulo 6 começa descrevendo como a história da gestão empresarial está repleta de tentativas de se “humanizar o trabalho”, o que per se já demonstra a resistência do taylorismo, que a teria impregnado.

Em seguida, tendo em vista a tendência hegemônica da gestão por números, discutem a proposta de “empresa libertada”, conceito cunhado por Getz, que supostamente apostaria em capacidades de auto-organização individual e coletiva dos assalariados. Algo que poderíamos chamar por aqui de um modelo gerencial do tipo “autogestionário”, mas top-down em sua concepção e essência. Coutrot e Perez recusam-se a reduzir esta visada corporativa a uma manipulação “cínica” pelo lado da gestão – como criticam alguns – e julgam tratar-se de uma forma de ação coletiva, concertada entre dirigentes humanistas. A partir daí, passam a analisar várias experiências de “libertação” em curso, conduzidas na França, seguindo este projeto político particular. Analisam a mecânica institucional da sociocracia e da holacracia – modelos para uma empresa idealmente autogovernada, onde a autoridade decisória é distribuída – e cotejam essas distintas concepções idealizadas com a da “empresa libertada”, para então discutir os limites e possibilidades desta.

Ecos de novas ecopraxias

O resultado que advém das aspirações por desenvolvimento pessoal e satisfação pela utilidade no trabalho em choque com o trabalho real na organização taylorista (aquele que impede o “trabalho vivo”) é o sofrimento no trabalho. Este, se continuado, pode gerar a busca do escape (fuga àquela organização) ou na pior das hipóteses, adoecimento e morte. Mas, para Coutrot e Perez, há uma chance de reversão quando ocorre mobilização coletiva dos trabalhadores.

No capítulo 7 (“As iniciativas vindas ‘de baixo’”), os autores nos explicam que a ausência de capacidade de desenvolvimento e de utilidade social do trabalho se mostraram determinantes robustos da mobilização do trabalhador em busca de um sentido maior para sua ocupação. O elo entre a perda de sentido e a mobilização sindical nos anos 2013 e 2016 foi analisada no estudo econométrico. A seguir, faz-se um salto inferencial para a inteira década e não há como deixar de se intuir um zeitgeist pairando ali. Os autores teorizam como a demissão em massa ocorrida após a crise sanitária – revestida de fato político capaz de alterar relações de forças sociais – pode traduzir o peso de uma ação massiva, inspirada na recusa coletiva à indignidade. Ponto nevrálgico: o consentimento aos “trabalhos-porcaria” (bullshit jobs) – rejeitado em favor de uma aspiração coletiva ao trabalho-vivo, eticamente defensável. O desencanto do trabalhador com a prestidigitação do sentido, seja a midiática ou a intracorporativa, desencanto agora elevado ao paroxismo, tornado epidêmico. Para se restituir ao agir humano uma “ecologia humana salutar” [expressão nossa], i.e., aquela do bom trabalho-vivo, há que se trazer à perspectiva do trabalhador uma outra feição de organização do trabalho, já não mais aquela velha fórmula, surrada e abonada por sindicatos passivos frente ao mal-estar ético, pois estes também já estão rendidos ao cientificismo e ao produtivismo.

Em que pese as diferenças substanciais de arcabouço normativo trabalhista, lá e cá, norte e sul – e da realidade que distancia nossa economia da pujante economia francesa e a nossa cultura da deles –, a leitura nos traz reflexões que estão na ordem do dia, quer nos pareçam utópicas ou nãof. Oxalá algum leitor desta resenha se anime a traduzir a obra, pois carecemos de reflexões desta envergadura, no Brasil.

Supplementary material
Referências
Coutrot T, Perez C. Redonner du sens au travail: une aspiration révolutionnaire. Paris: Seuil, 2022. (Seuil. La République des Idées)
Coutrot T, Perez C. Quand le travail perd son sens. L'influence du sens du travail sur la mobilité professionnelle, la prise de parole et l'absentéisme pour maladie: une analyse longitudinale avec l'enquête Conditions travail 2013-2016. HAL SHS: Sciences humaines et sociales. 2021 [citado 12 ago 2024]. Disponível em: https://shs.hal.science/halshs-03324454
Perez C, Coutrot T. Le sens du travail, enjeu majeur de santé publique. Portal Sciences Po: Laboratoire interdisciplinaire d'évaluation des politiques publiques. Paris: Sciences Po; 2021 [citado 12 ago 2024. Disponível em: https://www.sciencespo.fr/liepp/fr/content/coralie-perez-thomas-coutrot-le-sens-du-travail-enjeu-majeur-de-sante-publique.html
Coutrot T. Le conflit éthique environnemental au travail: une première analyse empirique à partir de l'enquête Conditions de travail 2019. Revue Travail et Emploi 2021[citado 12 ago 2024]:166-167,183-206. Disponível em: https://dares.travail-emploi.gouv.fr/publication/le-conflit-ethique-environnemental-au-travail-une-premiere-analyse-empirique-partir-de
Notes
Notes
b Acrônimo para “Direction de l’Animation de la Recherche des Études et des Statistiques”, órgão integrante do Ministério do Trabalho da França.
c Tais Inquéritos são conduzidos pelo DARES desde 1978 na França, em colaboração com o INSEE (acrônimo para “Institut National de la Statistique et des Études Économiques”, órgão governamental análogo ao nosso IBGE).
d OGM é acrônimo para Organismos Geneticamente Modificados.
e EELV é acrônimo para “Europe Écologie Les Verts”, agrupamento político eurofederalista e ecologista francês (“Os Verdes”), tornado partido político em 2023.
f Para quem interessar uma leitura mais aprofundada da construção dos indicadores e sua modelização estatística, recomenda-se a leitura do artigo análogo dos autores, disponível gratuitamente na plataforma HAL – Open Science, bem como a sinopse interpretativa dos achados – por eles próprios (opus citatum ).
Author notes
Editora-Chefe: Leila Posenato Garcia

Contato: Ricardo Luiz Lorenzi; E-mail: ricardo.lorenzi@fundacentro.gov.br



Thomas Coutrot


Coralie Perez
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