Resumo
Objetivo: Identificar a prevalência de Transtornos Mentais Comuns (TMC) e do uso de psicotrópicos, bem como as características associadas a esses desfechos entre trabalhadores da Atenção Básica (AB) de um município paulista de médio porte.
Métodos: Trata-se de estudo transversal, conduzido entre agosto e novembro de 2019. Para identificação dos TMC, utilizou-se o Self-Report Questionnaire (SRQ-20) adotando-se como ponto de corte 6/7. A utilização de psicotrópicos foi autorreferida e considerou tanto o uso atual como relato de utilização prévia. Empregou-se teste qui-quadrado.
Resultados: Participaram 158 trabalhadores, 86,7% do sexo feminino. A prevalência de TMC encontrada foi de 34,8%, enquanto a prevalência do uso atual de psicotrópicos de 20,2%. Adicionalmente, 17,1% dos participantes referiram uso prévio. As variáveis relacionadas com prevalência de TMC faziam alusão a diferentes dimensões da satisfação dos trabalhadores em relação ao serviço em que atuam, incluindo a satisfação geral com o serviço. Já o uso atual de psicotrópicos esteve relacionado à satisfação com a participação do trabalhador no serviço em que atua.
Conclusão: A forma com que os profissionais estudados se sentem em relação ao serviço em que atuam pode estar fortemente relacionada à ocorrência de TMC e à utilização de psicotrópicos.
Palavras-chave: Atenção Primária à Saúde, Saúde Mental, Saúde do Trabalhador, Psicotrópicos.
Abstract
Objective: To identify the prevalence of Common Mental Disorders (CMD) and the use of psychotropics, as well as the characteristics associated with these outcomes among primary care workers in a medium-sized municipality in São Paulo state, Brazil.
Methods: This is a cross-sectional study conducted with 158 primary care workers between August and November 2019. To identify CMD, the Self-Report Questionnaire (SRQ-20) was used, adopting a cutoff point of 6/7. The use of psychotropics was evaluated through a specific question and considered both current use and reported previous use.
Results: The prevalence of CMD found was 34.8%, while the prevalence of current psychotropic use was 20.2%. Additionally, 17.1% of participants reported previous use. Variables related to CMD prevalence referred to different dimensions of worker satisfaction with the service they work in, including overall satisfaction with the service. Current psychotropic use was related to satisfaction with the worker’s participation in the service they work in.
Conclusion: How the studied professionals feel about the service they work in may be strongly related to the occurrence of CMD and the use of psychotropics.
Keywords: Primary Health Care, Mental Health, Occupational Health, Psychotropic Drugs.
Artigo de pesquisa
Transtornos Mentais Comuns e o uso de psicotrópicos entre trabalhadores da Atenção Básica em saúde em um município paulista de médio porte
Common Mental Disorders and the use of psychotropic drugs among workers in Primary Care in a medium-sized city in São Paulo state, Brazil
Received: 12 September 2023
Revised document received: 28 May 2024
Accepted: 26 June 2024
A Atenção Básica (AB) constitui-se como pilar central na organização do sistema de saúde no Brasil e cumpre os papéis de coordenadora do cuidado e de ordenadora da rede assistencial1. Em um país com mais de 214 milhões de habitantes, onde 71,5% da população depende unicamente do Sistema Único de Saúde (SUS), a AB tem ocupado um lugar de destaque, sendo ponto de cuidado preferencial de 46,8% das pessoas2.
Apesar de sua relevância, a prática nesses serviços é frequentemente atravessada por uma série de desafios entendidos como fatores contribuidores para o adoecimento emocional de seus profissionais3. Aspectos como a elevada demanda de trabalho e a sobrecarga de responsabilidades, somadas à falta de recursos materiais e humanos adequados, contribuem para criar um ambiente desafiador para o exercício das funções, dificultando a prestação de um cuidado de qualidade aos usuários e gerando frustrações4.
Adicionalmente, problemas na organização do trabalho, como a falta de autonomia na tomada de decisões e a precarização das condições de trabalho, somadas à pressão por resultados positivos e à necessidade de cumprir metas, também contribuem para o sofrimento mental dos trabalhadores da AB, levando a sentimentos de inadequação e à insegurança profissional5.
Há outros estudos6,7 tanto na literatura nacional quanto na internacional que versam sobre o adoecimento de trabalhadores da AB. No geral, essas pesquisas procuram se debruçar principalmente sobre o esgotamento profissional (burnout) e os indicadores de ansiedade. A predisposição para a apresentação de esgotamento profissional, caracterizada pela exaustão emocional, despersonalização no trabalho e falta de realização pessoal, é apontada como frequente entre trabalhadores da AB8.
Cabe ainda considerar que, nesse nível assistencial, a ação terapêutica não se esgota na realização do diagnóstico ou orientação do tratamento, pelo contrário, pressupõe atenção sobre uma gama de necessidades em saúde que nem sempre são fáceis de lidar. As demandas frequentemente incluem situações geradas pela pobreza e desigualdade social, que não raramente levam os profissionais a experimentarem sentimentos de incapacidade que colaboram para o stress laboral5,9.
Frente a esse cenário, estudos que apontam para os desgastes físicos e emocionais desses trabalhadores têm se multiplicado. Entre os aspectos estudados, destacam-se os Transtornos Mentais Comuns (TMC)4,5,9,10, quadros caracterizados por sintomas psicológicos e comportamentais que causam sofrimento e afetam o funcionamento diário das pessoas, mas geralmente sem configurar uma categoria nosológica subscrita sob a Classificação Internacional de Doenças (CID-10/11) ou nos Manuais de Diagnóstico e Estatística (DSM IV/V)11.
Estudos realizados entre os anos de 2010 e 2017 revelaram prevalência de TMC entre trabalhadores da AB de 16,0% a 42,6%4,5,9,10, sendo, em alguns, superior àquela encontrada para a população geral (28,0%)12. Entretanto, se por um lado, pesquisas sobre a ocorrência desses tipos de transtornos têm sido recorrentes na literatura, estudos acerca de fenômenos possivelmente relacionados, como o uso de psicotrópicos, ainda são escassos entre trabalhadores da AB, havendo uma concentração daqueles que avaliam esse desfecho em profissionais de saúde do âmbito hospitalar3.
Nesse sentido, este estudo teve como objetivo identificar a prevalência de TMC e do uso de psicotrópicos, bem como as características associadas a esses desfechos entre trabalhadores da AB de um município paulista de médio porte.
Trata-se de um estudo transversal, conduzido com trabalhadores da AB, entre os meses de agosto e novembro de 2019 em um município paulista de médio porte localizado a cerca de 80 km da capital do estado. Segundo estimativa do último censo para o ano de 2019, o município em questão contava com cerca de 120.858 habitantes. À época do estudo, o município contava com seis Unidades Básicas de Saúde tradicionais e 13 Unidades de Estratégia Saúde da Família, às quais estavam vinculadas 19 equipes.
Foram convidados a participar todos os profissionais de nível técnico e superior vinculados aos serviços de AB do município. Os critérios de inclusão para participação no estudo foram: possuir 18 anos ou mais e ser enfermeiro, técnico de enfermagem, médico ou Agente Comunitário de Saúde (ACS) vinculado ao quadro fixo de trabalhadores da AB do município estudado. Foram critérios de exclusão estar em afastamento das atividades em razão de férias ou licença médica. Considerando esses critérios, estiveram elegíveis a participar do estudo 178 profissionais.
Os dados foram coletados por meio de questionários autoadministrados, fornecidos aos trabalhadores depois da apresentação do estudo e de seus objetivos, princípios éticos adotados em sua condução e direito de não participação. Após eventuais esclarecimentos, os participantes foram convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi lido em voz alta e assinado em duas vias, ficando uma com o participante e uma com o pesquisador.
O controle de qualidade dos dados foi verificado durante a codificação dos instrumentos de coleta, assim como na revisão feita pelos supervisores quando receberam os questionários. Os dados foram inseridos no banco utilizando o software estatístico Stata 11.1 (Stata Corp., College Station, Estados Unidos). Qualquer inconsistência nos dados foi analisada e corrigida quando necessário.
Para avaliar a presença de TMC, utilizou-se o Self-Report Questionnaire (SRQ-20). Este instrumento foi proposto pela Organização Mundial de Saúde para a detecção de transtornos psiquiátricos menores, desenvolvido por Harding et al.13 e validado para o Brasil por Mari e Williams14. O instrumento é composto por 20 questões que abrangem distúrbios psicoemocionais, incluindo dentre eles sintomas psicossomáticos, admitindo resposta numa escala dicotômica (sim/não). Para determinação do ponto de corte, considerou-se o estudo de Santos et al.15, que encontrou sensibilidade de 68,0% e especificidade de 70,7%, quanto aplicado ponto de corte 6/7, tanto para homens, como para mulheres.
Já a prevalência do uso de psicotrópicos foi avaliada por meio de questão própria com o seguinte enunciado: “Você toma medicamentos psicotrópicos/remédios controlados para um problema de nervos/emocional/psíquico?”. As possibilidades de resposta incluíam as seguintes alternativas: “sim, tomo atualmente”, “não, mas já tomei” e “não, nunca tomei”.
As variáveis independentes incluídas no estudo incluíram: sexo (feminino e masculino); cor da pele (branca, preta e parda); idade (18 a 30 anos, 31 a 40 anos, 41 a 50 anos e 51 anos ou mais); escolaridade (ensino médio, ensino superior; especialização ou pós-graduação); renda per capita (≤ um salário-mínimo, > um a dois salários-mínimos, > dois a três salários-mínimos, > três a quatro salários-mínimos e > quatro salários mínimos ou mais); profissão (médico, enfermeiro, técnico de enfermagem, ACS); tempo de trabalho na instituição (≤ 12 meses; > 12 meses a três anos; > três anos a cinco anos; < cinco anos a 10 anos; > 10 anos ); recebimento de capacitação (sim, não); sentimento de que a formação anterior preparou para o trabalho (sim, não); realização de discussão de casos com a equipe (sim, não); participação em reuniões de matriciamento (sim, não); satisfação com os serviços oferecidos aos usuários (satisfeito, insatisfeito); satisfação com sua participação no serviço (satisfeito, insatisfeito); satisfação com as condições de trabalho (satisfeito, insatisfeito); satisfação com os relacionamentos no serviço (satisfeito, insatisfeito); satisfação geral com o serviço (satisfeito, insatisfeito).
O desfecho satisfação foi definido a partir da aplicação da Escala de Avaliação da Satisfação da Equipe em Serviços de Saúde Mental (SATIS-BR). A escala é composta por 32 itens divididos em quatro dimensões, que, somadas, compõem uma avaliação global. As suas respostas são dispostas em escala Likert de cinco pontos, utilizadas para calcular a média de cada dimensão estudada. Sua validação para o Brasil foi realizada por Bandeira et al.16, sendo observada elevada consistência interna (α = 0,89). Assim como em um estudo prévio17, médias superiores a 3,51 foram consideradas como satisfação.
A análise dos dados foi realizada com apoio do pacote estatístico Stata 11.1. Foram calculadas prevalências e respectivos intervalos de 95% de confiança.
Na etapa descritiva, foram calculadas as médias das variáveis numéricas e seus desvios-padrão correspondentes, além da prevalência para cada um dos estratos analisados em relação aos desfechos em questão. Os cálculos foram feitos utilizando apenas os dados válidos, enquanto os dados faltantes (missings) foram removidos da análise.
Para condução dos testes de hipóteses, foi utilizado teste de qui-quadrado a fim de identificar se havia associação entre as variáveis independentes e as variáveis de desfecho. A hipótese nula foi de que as variáveis não estavam associadas e a hipótese alternativa de que as variáveis estavam associadas. Foi adotado o nível de significância de 5%.
O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), CAAE 00827918.8.0000.5404, parecer de aprovação nº 3.065.312, emitido em 7 de dezembro de 2018, seguindo as normas brasileiras regulamentadoras e diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos (Resolução CNS no 466/2012), além do disposto na Declaração de Helsinque. Os princípios éticos foram assegurados pela garantia do direito de não participação na pesquisa desde o primeiro contato, pelo anonimato e pela adoção do TCLE.
Dos 178 trabalhadores elegíveis, 20 recusaram participar do estudo. Dessa forma, foram incluídos no estudo 158 (88,8% do total de elegíveis). Na Tabela 1, apresenta-se o perfil sociodemográfico dos participantes deste estudo. A maioria é do sexo feminino (86,7%, n = 137), predominantemente de cor da pele branca (66,4%, n = 105). A faixa etária mais comum situa-se entre 31 e 40 anos (41,8%, n = 66). Quanto às categorias profissionais, os ACS constituíram a maioria (44,3%, n = 70), seguidos pelos técnicos de enfermagem (25,3%, n = 40). Em relação ao tempo de serviço, quase um terço dos trabalhadores tinha entre cinco e 10 anos de experiência na instituição (28,5%, n = 45).

A prevalência de TMC encontrada para os trabalhadores estudados foi de 34,8% (IC95%: 27,8%–42,5%) (n = 55), enquanto a prevalência do uso atual de psicotrópicos foi de 20,2% (IC95%: 14,7%–27,1%) (n = 32). Na Tabela 2 é possível observar a prevalência de TMC e uso atual de psicotrópicos entre os trabalhadores de acordo com os estratos de cada variável incluída no estudo. Não foram observadas diferenças estatísticas significativas entre as características sociodemográficas ou categoria profissional dos participantes e a prevalência de TMC, entretanto, cabe pontuar que a prevalência variou de forma expressiva entre os grupos, sendo de 45,7% entre ACS em comparação a 22,5% entre os técnicos de enfermagem e 25,0% entre os médicos.

Entre as variáveis que apresentaram diferenças estatisticamente significativas na prevalência de TMC, destacam-se os aspectos relacionados à satisfação dos trabalhadores com o serviço em que estão inseridos. Dentre as diversas dimensões de satisfação que revelaram disparidades, incluem-se: a com os serviços prestados aos usuários (27,3% para os satisfeitos e 56,1% para os insatisfeitos, p = 0,001), a com a participação no serviço (26,1% para os satisfeitos e 47,0% para os insatisfeitos, p = 0,007), a com as condições de trabalho (29,4% para os satisfeitos e 44,6% para os insatisfeitos, p = 0,050), bem como a satisfação geral com o serviço (27,9% para os satisfeitos e 51,1% para os insatisfeitos, p = 0,005). Os resultados obtidos corroboraram a hipótese inicial de que a insatisfação no trabalho está correlacionada com a presença de TMC.
De forma similar ao que foi observado em relação aos TMC, não foram observadas diferenças estatisticamente significativas entre as características sociodemográficas ou categoria profissional dos participantes quanto à prevalência do uso atual de psicotrópicos. A única variável para qual se observaram diferenças significativas, do ponto de vista estatístico, foi satisfação com a participação no serviço (14,3% para satisfeitos e 28,8% para insatisfeitos p = 0,024). Entretanto, cabe destacar ainda a variação expressiva na prevalência do uso atual de psicotrópicos em relação com o sentimento de que a formação anterior preparou o profissional para o trabalho desenvolvido na AB. Entre aqueles que responderam positivamente, a prevalência foi de 16,7%, enquanto para os que responderam de forma negativa 29,5%.
Cabe ressaltar que, além dos trabalhadores que faziam uso atual de psicotrópicos, 17,1% (IC95%: 12,0; 23,7%) (n = 27) dos participantes referiram já ter feito uso de psicotrópicos no passado, resultando numa proporção de 37,3% (IC95%: 30,2; 45,1%) (n = 59) trabalhadores com histórico de uso desse tipo de medicação. A caracterização do uso de psicotrópicos entre os trabalhadores que participaram do estudo, na qual são considerados os 59 trabalhadores que referiram estar utilizando ou já ter feito uso desse tipo de medicação no passado, pode ser observada na Tabela 3.

A classe de medicamentos mais utilizada pelos participantes foi a de antidepressivos (69,5%), seguidos pelos ansiolíticos (34,3%), que foram ou estão sendo utilizados majoritariamente por um período de seis meses (44,1%) ou de até um ano (27,1%). Quanto ao início da utilização, 66,1% referiram ter iniciado o uso de forma concomitante à sua atuação no serviço, sendo em maior parte por prescrição de um médico particular (35,6%) ou da Atenção Básica (35,6%). O local de obtenção do(s) medicamento(s), a maior parte referiu retirar a medicação em uma farmácia gratuita do SUS (52,5%).
Foi possível observar uma alta prevalência de TMC e uso atual de psicotrópicos entre os trabalhadores estudados, tanto quando comparados à população em geral, como quando comparados a populações semelhantes. Estudos populacionais que utilizaram o SRQ-20 para identificar TMC nas regiões Sudeste e Sul do Brasil têm apontado para prevalências de 19,7%18 e 30,2%19, respectivamente. Já quanto ao uso de psicotrópicos, dados da Pesquisa Nacional sobre o Acesso, Utilização e Promoção do Uso Racional de Medicamentos no Brasil (PNAUM/2013-2014) apontam para uma prevalência na população geral de 8,7%20.
No que se refere ao rastreio de TMC entre profissionais da AB, estudo realizado com 4.749 profissionais das regiões Sul e Nordeste do país, com a utilização do mesmo instrumento empregado no presente estudo, apontaram para uma prevalência de 16,0%4. Outro estudo conduzido com 762 trabalhadores da AB de Feira de Santana, na Bahia, encontrou uma prevalência de TMC de 22,9%21.
Quanto ao uso de psicotrópicos, é importante pontuar que estudos conduzidos com profissionais da AB são escassos, contudo, foi possível localizar um estudo realizado com 290 trabalhadores da AB de Diamantina-MG que identificou uma prevalência para esse desfecho de 10,7%3. Trata-se de uma prevalência próxima aquela estimada por estudos de revisão acerca do consumo de psicotrópicos entre profissionais da saúde. O estudo de Caixeta et al.22 aponta que essa prevalência varia entre 10,0% e 15,0%.
No Irã, o trabalho na AB é considerado estressante e o adoecimento dos trabalhadores é considerado um desafio para os sistemas de saúde, uma vez que 52,9% das equipes apresentavam indícios de elevado nível de esgotamento6. No Brasil, um estudo realizado em Aracaju indicou que 54,1% dos profissionais de nível superior da AB apresentaram um risco de elevado a moderado para o desenvolvimento da síndrome de burnout7.
Embora os resultados encontrados nesta pesquisa não corroborem com achados prévios acerca da relação de TMC entre trabalhadores da AB e características como gênero, tempo de serviço e categoria profissional4,5, cabe ressaltar que, quanto à última, também se observa uma prevalência mais expressiva de TMC entre os ACS. Entre os fatores atribuídos na literatura para esse achado estão aspectos como a baixa autonomia no trabalho, desvalorização profissional, modelo de gestão impróprio, múltiplas tarefas, alto grau de responsabilidade, formação insuficiente, maior stress laboral e baixa remuneração4,5.
Vale ressaltar que em outros estudos foram encontrados dados preocupantes quanto ao adoecimento dessa categoria profissional. Em uma pesquisa feita no município de São Paulo, com 141 ACS, identificou-se que a prevalência para TMC era de 43,3% e que 24,1% dos participantes preenchiam critérios para a síndrome de burnout23. Já em um em estudo realizado em Uberlândia-MG com 116 ACS, verificou-se uma prevalência de 17,24% para apresentação de ansiedade grave e 75,0% para ansiedade moderada24. Destaca-se que a participação de pessoas do sexo feminino predominou nesta categoria profissional em ambos os estudos, com 92,2% e 88,79%, respectivamente. Isso leva à discussão do gênero como um fator de risco associado ao risco ocupacional, considerando a persistente desigualdade na distribuição do trabalho social e doméstico. As mulheres são as pessoas que continuam a assumir a responsabilidade pelas demandas da vida doméstica, o que resulta em sobrecarga, falta de tempo para lazer e descanso23.
Ressalta-se que o Brasil começou a abordar a temática da saúde dos trabalhadores da saúde de maneira tardia. Contudo, apesar de não haver estudos que aprofundem significativamente a relação entre saúde e doença dos trabalhadores que estão na linha de frente dos cuidados de saúde, os estudos existentes fornecem dados importantes. Esses dados denunciam como as condições de trabalho nos espaços de saúde causam adoecimento nessa classe de trabalhadores, oferecendo pistas sobre a magnitude do desenvolvimento dos TMC e os fatores que podem estar associados a essa incidência5.
No presente estudo, pode-se observar associação estatística significativa entre a insatisfação no trabalho e a presença de TMC. Esse achado corrobora com Dilélio et al.4 e Carvalho et al.5, que encontraram associação entre a insatisfação no trabalho e o rastreio positivo para TMC. Pesquisas realizadas no Irã6, na China25 e na África do Sul26 também apontam para a importante associação entre o adoecimento dos profissionais da AB e a insatisfação no trabalho.
Os participantes deste estudo apresentaram insatisfação, principalmente nas dimensões: serviços prestados aos usuários, participação nos serviços e condições de trabalho. É importante pontuar que, segundo Carvalho et al.5, a insatisfação tem sido marcante entre os profissionais de saúde, sinalizando as dificuldades que enfrentam ao tentar desempenhar um trabalho tão complexo, desafiador e de grande responsabilidade em meio a um cenário de precarização. Essa insatisfação fica evidente pela escassez de recursos para o trabalho, pelo tipo de vínculo trabalhista, pela desvalorização do trabalhador e pela falta de planejamento em relação às carreiras, resultando na perda de satisfação com o trabalho e na falta de perspectivas de desenvolvimento e ascensão profissional.
Segundo Oliveira e Araújo10, as condições inadequadas de trabalho associadas às grandes exigências, o não reconhecimento e a especificidade do cuidado no trabalho em saúde criam uma situação de desequilíbrio entre o esforço realizado e as recompensas recebidas. Esse descompasso, para os autores, repercute na motivação e satisfação do trabalhador, podendo provocar o seu adoecimento mental e físico.
Nesse continuum, não se pode desconsiderar que a precarização do trabalho também esteja relacionada ao investimento insuficiente nas políticas sociais e a questões como a privatização dos serviços públicos. Com a racionalização dos gastos, a AB não pode se desenvolver na sua qualidade máxima. A flexibilização das relações de trabalho, as perdas em relação à estabilidade nas formas de contratação e a multiplicidade de vínculos empregatícios dos trabalhadores, muitas vezes devida a baixas remunerações, somam-se na fragilização das condições de trabalho na AB27.
Ainda no que se refere à precariedade, Linhart afirma que essa pode ter uma dupla natureza: subjetiva, quando os trabalhadores vivem grandes exigências em seu trabalho e sentem-se incapazes de responder a elas; e objetiva, em termos de recursos físico e escassez de profissionais28. Um arranjo gerencial que busca garantir a máxima produtividade com o mínimo de investimento, promove um cenário onde a precariedade objetiva se soma à subjetiva, favorecendo a exaustão dos trabalhadores e podendo gerar consequências importantes para o trabalhador e para a atenção ofertada29.
Destaca-se que, no presente estudo, a insatisfação com a participação no serviço também esteve relacionada à utilização atual de psicotrópicos, somando-se assim a outros fatores previamente documentados em estudos conduzidos com profissionais da AB, a saber: maior faixa etária e realização de horas extras3. Entre outros profissionais de saúde, os estudos apontam ainda como fatores associados a esse desfecho altos níveis de stress laboral e alta carga de trabalho30.
Encontram-se na literatura estudos31,32 que buscam melhor compreender os fatores de risco associados ao adoecimento dos trabalhadores da AB. Embora considerem a relevância dos riscos biológicos a que estão expostos esses profissionais, apontam que o principal risco a que estão submetidos é o psicossocial.
Dentre os fatores de risco psicossocial encontram-se: sobrecarga mental, sobrecarga de atividades, rígido controle do tempo, forma de organização do setor, demandas sociais, violência e pressão dos próprios usuários. Esta última estaria relacionada à busca por modelos curativos e a não compreensão dos novos modelos da AB, com enfoque preventivo31.
Estudos apontam que a boa relação entre os profissionais que compõem a equipe de trabalho é um importante fator protetivo ao adoecimento do trabalhador da AB33. Interessante notar que, no presente estudo, a satisfação com os relacionamentos no serviço foi a única dimensão da categoria de questões sobre a satisfação que não esteve associada ao adoecimento dos trabalhadores.
O trabalho em equipe é um dos pilares da atuação na AB. Ele favorece tanto o cuidado, sob a perspectiva da integralidade, quanto à organização do processo de trabalho, promovendo a cooperação nas atividades e a divisão de tarefas34. Estudos indicam que, quando há elevado suporte social nas relações de trabalho, a proporção de casos de TMC é menor em comparação com situações de baixo suporte social9.
Outro fator apontado como protetivo à saúde mental dos trabalhadores é a formação adequada, uma vez que a qualificação profissional pode fornecer importantes recursos para lidar com a complexidade do trabalho35. Em nosso estudo, houve associação da prevalência do uso atual de psicotrópicos e o sentimento de que a formação anterior não preparou o profissional para o trabalho desenvolvido na AB. Também foi observado, em um estudo realizado na China, que trabalhadores com níveis educacionais mais baixos apresentaram maior risco de adoecimento mental25.
As formações em saúde, muitas vezes, desconsideram as especificidades do trabalho em saúde, sendo os modelos formativos frequentemente embasados no atendimento clínico liberal privatista, não contemplando a prática e a complexidade do trabalho na AB e não preparando para seus desafios36. Desse modo, a formação dos trabalhadores não tem acompanhado as exigências do atual modelo de atenção à saúde da atuação interdisciplinar, produzindo situações de sofrimento nos profissionais de saúde, especialmente nos ACS5.
Em um estudo qualitativo, ao tratar especificamente da saúde mental na AB, os profissionais consideraram a formação inadequada para compreender e lidar com a subjetividade e o sofrimento psíquico e, segundo as autoras, demonstraram vulnerabilidade pela falta de recursos teóricos e técnicos para o cotidiano do trabalho37.
Sobre o uso de psicotrópicos, verificou-se que, assim como em outros estudos conduzidos com profissionais de saúde30,38, as classes de medicamentos mais utilizados foram a dos antidepressivos seguidos dos ansiolíticos. No entanto, cabe ressaltar que, no presente estudo, foi observado um descompasso entre a prevalência de TMC e de utilização de psicotrópicos no que se refere à renda e à categoria profissional. Os ACS apresentaram prevalência significativa de TMC, 45,7%, mas apenas 22,9% faziam uso de psicotrópicos, em contrapartida, os médicos participantes apresentaram percentual de 25% para TMC e 30% para utilização de psicotrópicos.
Lima et al.39, ao conduzirem um estudo de base populacional no município de Botucatu-SP, observaram um fenômeno semelhante no que se refere à renda: a utilização de benzodiazepínicos e antidepressivos foi maior nos segmentos sociais de maior renda, enquanto aqueles com renda inferior a um salário mínimo, embora apresentassem maior prevalência de TMC, apresentaram menor prevalência do uso de psicotrópicos.
Ao considerar que os ACS são a categoria profissional estudada com menor renda, é possível traçar um paralelo sobre essa situação, na qual, para os autores supracitados, esse achado revelaria a existência de iniquidades no acesso à assistência. Alternativamente, é preciso considerar que, em alguns casos, os desfechos analisados podem competir entre si e acabar por enviesar os resultados encontrados, uma vez que os sintomas que levariam a uma pontuação indicativa de presença de TMC podem ser suprimidos pelo uso de psicotrópicos.
Em nosso estudo, devido à carência de escalas de avaliação de satisfação no trabalho validadas para o contexto da AB, optamos por empregar a SATIS-BR. Essa opção se deu pelo fato de apenas duas das 32 questões de a escala fazerem alusão direta ao trabalho em saúde mental, de forma que os resultados gerados podem oferecer indicativos relevantes sobre a realidade laboral entre trabalhadores da AB. Contudo, é importante ressaltar a limitação inerente à falta de validação dessa escala para esta população.
Além disso, outra limitação do estudo esteve na não diferenciação dos reflexos do trabalho na AB para os participantes que apresentavam vínculo de trabalho CLT e a parte dos participantes que eram servidores, uma vez que essa variável poderia apontar uma distinção para os TMC ou uso de psicotrópicos impactados pela precariedade dos vínculos de trabalho.
Por fim, é importante ressaltar que o presente estudo adota um delineamento de corte transversal, em que a exposição e o desfecho são avaliados simultaneamente. Por esse motivo, ao interpretar os resultados, é necessário considerar a possibilidade de causalidade reversa como uma limitação do estudo. Adicionalmente, cabe pontuar que se optou por excluir da amostra os profissionais que estivessem de licença do trabalho no período da coleta de dados. Esse critério de exclusão também deve ser considerado uma limitação, pois esses indivíduos podem ter se afastado do trabalho por problemas de saúde mental, o que introduziria viés de seleção. Ainda, a ausência de análises que permitissem avaliar as estimativas do efeito das variáveis independentes nos desfechos investigados, devidamente controladas por possíveis fatores de confusão. Recomenda-se que estudos futuros considerem essa abordagem para uma análise mais robusta dos resultados.
O estudo revelou uma alta prevalência de TMC e uso de psicotrópicos entre os trabalhadores avaliados. As variáveis relacionadas à prevalência de TMC estavam associadas a diferentes dimensões da satisfação dos trabalhadores com o serviço em que atuam, incluindo a satisfação geral com o serviço. Adicionalmente, o uso atual de psicotrópicos estava relacionado à satisfação com a participação do trabalhador no serviço em que atua. Nesse sentido, o estudo evidenciou que a forma como o profissional se sente em relação aos serviços e aos atravessamentos que estes produzem em sua vida desempenham um papel fundamental na saúde mental dos profissionais de saúde, tendo impactos significativos em sua qualidade de vida e bem-estar.
Contato: Lívia Penteado Pinheiro. E-mail:l264009@dac.unicamp.br


