Resumo
Objetivo: Identificar a prevalência do risco de suicídio e os fatores associados em profissionais de enfermagem de hospitais universitários do extremo sul do Brasil.
Métodos: Estudo transversal, realizado com profissionais de enfermagem de dois hospitais universitários federais que responderam a um questionário on-line, contendo questões sociodemográficas, econômicas, de saúde e comportamento e ao Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI) para avaliação do risco de suicídio. Foi realizada análise multivariável por meio de regressão de Poisson.
Resultados: Participaram 581 profissionais (84,9%) do sexo feminino. A prevalência do risco de suicídio foi de 8,8%. A análise ajustada evidenciou associação do risco de suicídio com: tabagismo (RP:1,95; IC95%: 1,09;3,53), depressão autorreferida (RP:3,42; IC95%: 2,03;5,79), vivência de situação de abuso/agressão na infância (RP:2,30; IC95%: 1,37;3,85) e desejo de trocar de profissão (RP:2,23; IC95%: 1,22;4,04). E como fator de proteção: renda familiar, entre R$ 5.001 e R$ 13.000 (RP: 0,44; IC95%: 0,26;0,73).
Conclusão: Destacam-se os multifatores para o risco de suicídio, sejam situações da infância, menor renda, adoecimento mental, limitações e sofrimentos no processo de trabalho, e a necessidade de haver ações de suporte e de fortalecimento à saúde dos profissionais de enfermagem.
Palavras-chave: Equipe de Enfermagem, Hospitais, Suicídio, Saúde do Trabalhador, Estudos Transversais.
Abstract
Objective: To identify the prevalence of suicide risk and associated factors among nursing professionals in university hospitals in the far south of Brazil.
Methods: A cross-sectional study was conducted with nursing professionals from two federal university hospitals who responded to an online questionnaire containing sociodemographic, economic, health and behavioral questions, and the Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI) to assess suicide risk. Multivariable analysis was conducted using Poisson regression.
Results: A total of 581 professionals participated, with 84.9% being female. The prevalence of suicide risk was 8.8%. The adjusted analysis showed an association of suicide risk with: smoking (PR: 1.95; 95% CI: 1.09;3.53), self-reported depression (PR: 3.42; 95% CI: 2.03;5.79), history of childhood abuse/violence (PR: 2.30; 95% CI: 1.37;3.85), and the desire to change professions (PR: 2.23; 95% CI: 1.22;4.04). As a protective factor, family income between R$ 5,001 and R$ 13,000 (PR: 0.44; 95% CI: 0.26:0.73).
Conclusion: The multi-factors for suicide risk stand out, including childhood situations, lower income, mental illness, limitations and suffering in the work process, and the need for actions to support and strengthen the health of nursing professionals.
Keywords: Nursing Team, Hospitals, Suicide, Occupational Health, Cross-Sectional Studies.
Artigo de pesquisa
Risco de suicídio em profissionais de enfermagem: um estudo transversal em hospitais universitários no extremo sul do Brasil
Suicide risk among nursing professionals: A cross-sectional study in university hospitals in the far south of Brazil
Received: 01 April 2024
Revised document received: 10 January 2025
Accepted: 13 January 2025
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), os profissionais de enfermagem representam 59% da força de trabalho da saúde no mundo e estão na primeira linha de cuidado, atendendo as necessidades de indivíduos, famílias e comunidades e expostos a diferentes condições de trabalho1. Em ambientes hospitalares, permanecem em contato frequente com pacientes graves, com cargas de trabalho diversas e expostos a agentes infecciosos2.
As manifestações do acometimento a saúde física e psicossocial se manifestam em diferentes momentos na vida do trabalhador da saúde3e podem impactar no desempenho das funções laborais. Entre as manifestações que decorrem do adoecimento mental, estão o esgotamento profissional, a ansiedade4,5, a depressão4,6 e o risco de suicídio4.
Suicídio é um fenômeno real, complexo e multideterminado, visto e tratado como um tabu, tanto pelas instituições de saúde, quanto pela sociedade em geral por ainda ser um tema estigmatizado4,7. Considerado um problema grave de saúde pública, o número de casos é crescente. Agenda de desenvolvimento sustentável da Organização das Nações Unidas (ONU) contempla, entre seus objetivos, diminuir as taxas de mortalidade por suicídio em um terço, de 2015 até 20308.
Atualmente, investigações relacionadas à temática vêm ganhando destaque na literatura científica e nos ambientes de trabalho, sobretudo pelo seu caráter cada vez mais frequente, pelas sérias implicações e impactos ao trabalhador e ao meio social4. Estudo realizado no Brasil, em 2018, utilizando o instrumento Mini International Neuropsychiatric Interview para estratificar risco de suicídio, destaca prevalência mais elevada de tentativa de suicídio ao longo da vida entre profissionais enfermeiros, quando comparado a médicos, em um hospital universitário4.
Outros dois estudos realizados em 2017, na Nigéria e nos Estados Unidos, identificaram maior frequência de tentativas de suicídio entre enfermeiros, em comparação à população em geral9 e maior risco de ideação suicida em enfermeiros, em relação a outros trabalhadores10.
Exposição a um ambiente de trabalho psicologicamente ruim pode causar problemas de saúde mental diversos, bem como risco aumentado para o suicídio11. Durante a emergência da covid-19, os profissionais de saúde tornaram-se ainda mais expostos a sobrecarga, a estresse e a diversas cargas de trabalho, aumentando, consequentemente, os riscos ocupacionais e o adoecimento10,12.
Estudos realizados após o início da pandemia identificaram associação de ideação suicida com depressão, agitação, sobrecarga percebida, tentativa de suicídio anterior13 e sintomas de estresse pós-traumático14, adoecimento de familiares ou parentes por covid-19, situação conjugal ruim, autoavaliação de saúde ruim, necessidade atual de intervenção psicológica, elevado estresse e ansiedade15.
Destaque-se a importância de investigações sobre a saúde mental dos profissionais de saúde, em especial a enfermagem, em decorrência da alta carga de trabalho e traumas vividos durante a pandemia da covid-19, exacerbando assim a pressão sobre a força de trabalho de uma categoria profissional já sobrecarregada16 e submetida a impacto psicológico15.
Com base no exposto, a identificação de fatores associados ao risco de suicídio é uma estratégia assertiva de elucidação e abordagem sobre o tema com as instituições hospitalares para assim subsidiar a elaboração de ações que possam tornar o ambiente de trabalho mais saudável, acolher as necessidades do trabalhador e oferecer suporte adequado. Este estudo se destaca por incluir em sua amostra: enfermeiras, técnicas de enfermagem e auxiliares de enfermagem e objetiva identificar a prevalência do risco de suicídio e os fatores associados em profissionais de enfermagem de hospitais universitários do extremo sul do Brasil.
Conduziu-se um estudo transversal, vinculado ao consórcio de pesquisa intitulado “Processo de trabalho e condições de saúde dos trabalhadores de enfermagem dos hospitais públicos de ensino do extremo sul do Brasil”, coordenado pelo Grupo de Estudos sobre o Trabalho da Enfermagem no Sul no Brasil (GETEnf Sul), da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Pelotas.
Os dois Hospitais Universitários Federais (HUF) localizam-se em dois municípios do extremo sul do Brasil, representados neste estudo como HUF1 e HUF2, ambos são instituições públicas que atendem exclusivamente usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) e atualmente são vinculados à Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). O HUF1 conta com 175 leitos e realiza atendimentos de média e alta complexidade, ambulatorial e domiciliar. O HUF2 conta com 231 leitos e é referência em tratamento de gestação de alto risco e cirurgia ortopédica de alta complexidade.
A amostra foi constituída por conveniência, e não aleatória. O inquérito foi conduzido no período de 3 de setembro de 2021 a 10 de janeiro de 2022. Os dados foram coletados por meio de um questionário on-line, devido à pandemia da covid-19.
A população-alvo investigada foi composta por profissionais de enfermagem (enfermeiros, técnicos de enfermagem e auxiliares de enfermagem), vinculados aos dois hospitais. Estavam elegíveis a participar os profissionais de enfermagem que trabalhavam há pelo menos um mês na instituição, independentemente do tipo de vínculo empregatício. Foram excluídos da amostra os trabalhadores em licença de qualquer natureza no momento da coleta de dados.
O total de profissionais de enfermagem era 1.375, conforme listagens disponibilizadas em 2021 pelas instituições participantes. Entretanto, posteriormente, não foi viável o monitoramento de novas contratações e términos de contratos, assim como o número de afastamentos. Todos os profissionais foram convidados a participar do estudo.
A divulgação da pesquisa e a participação dos profissionais de enfermagem ocorreram em formato virtual. A divulgação foi realizada por meio das redes sociais, na página oficial do grupo de pesquisa no Instagram, com o apoio das chefias gerais dos setores das instituições, que compartilharam o convite via aplicativos para smartphone, por meio de grupos de trabalho. Além disso, o convite também foi veiculado em painéis digitais informativos localizados na entrada dos hospitais. Durante o período da coleta de dados, o convite para participação na pesquisa foi enviado semanalmente, por e-mail institucional, a todos os profissionais de enfermagem, contendo link ou QR code para acesso ao questionário. Os questionários identificados como incompletos na plataforma eram reencaminhados individualmente, por e-mail institucional, com o link correspondente, com o objetivo de incentivar a conclusão da participação e o preenchimento das questões em branco.
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário autoaplicável, on-line, com uso do software REDCap® - Research Eletronic Data Capture. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi virtualmente autorizado, quando o participante avançou no formulário on-line para responder a pesquisa. O questionário foi organizado em oito blocos, totalizando 217 perguntas. Para este estudo, foram utilizadas as variáveis relativas ao bloco seis, sobre risco de suicídio, configurando o desfecho de interesse, além de outras relacionadas a fatores socioeconômicos e demográficos (bloco um), processo de trabalho (bloco dois) e saúde e comportamento (bloco três).
O software REDCap possibilitou a criação de questões adaptáveis, com a opção de pular algumas etapas, além de salvamento automático a cada resposta e possibilidade de revisão antes de concluir o envio do questionário.
A variável dependente foi o risco de suicídio. Para sua mensuração, foi utilizado o módulo C da versão 5.0 da Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI), para classificar risco de suicídio17. Essa versão foi traduzida para uso no Brasil e apresentou bons indicadores psicométricos18. O instrumento utilizado de forma autoaplicável e virtual, em virtude do estado de pandemia por covid-19 quando ocorreu o estudo, possibilitou maior privacidade aos participantes para responderem a questionamentos sensíveis e particulares sobre sua vida.
O MINI apresenta seis questões que avaliam comportamento suicida nos últimos 30 dias e ao longo da vida e possibilitam resposta dicotômica (sim e não), com pontuação específica para cada resposta “sim” conforme a gravidade da situação questionada. A pontuação total máxima de 33 pontos, prevê estratificação em baixo risco (1–5 pontos), moderado risco (6–9 pontos) e alto risco (≥ 10 pontos). Para efeitos de análise, foi considerada o valor zero como ausência de risco de suicídio e os valores compreendidos entre 1 e 33 pontos como “risco de suicídio”18.
No bloco 1, constaram as seguintes variáveis sociodemográficas e econômicas: sexo (masculino; feminino), idade (22 a 40 anos; 41 a 68 anos), orientação sexual (heterossexual; LGBTQIA+), cor da pele autodeclarada (branca; preta/parda), situação conjugal (com companheiro; sem companheiro), escolaridade (ensino médio/técnico; ensino superior/pós-graduação), crença religiosa (não; sim), filhos (não; sim), renda líquida familiar no último mês (R$ 3.000,00 a R$ 5.000,00; R$ 5.001,00 a R$ 13.000,00), renda líquida individual no último mês (R$ 3.000,00 a R$ 5.000,00; R$ 5.001,00 a R$ 13.000,00) e casa de moradia (própria paga; própria pagando/alugada/emprestada).
No bloco 2, as variáveis comportamentais e de saúde foram: tabagismo (não/ex-fumante; sim), ingesta de bebida alcoólica (não; sim), qualidade do sono (boa/muito boa; ruim/muito ruim), ansiedade autorreferida (não; sim), depressão autorreferida (não; sim), uso de psicofármaco (não; sim), frequência de atividade física (não pratico; 1 a 2 vezes na semana; ≥ 3 vezes na semana), vivência de situação de abuso e/ou agressão na infância (não; sim), caso de transtorno mental familiar (não; sim), autopercepção da qualidade de vida (ruim/regular; boa) e autopercepção de saúde (ruim/regular; boa).
No último bloco, as variáveis relativas a processo de trabalho: função exercida (auxiliar de enfermagem; técnica (o) de enfermagem; enfermeira (o), carga horária semanal (30 h; ≥ 36 h), satisfação com o trabalho (não; sim), sobrecarga de trabalho (não; sim), avaliação acerca da supervisão no trabalho (ruim/regular; boa), qualidade da assistência prestada (ruim/regular; boa), avaliação do trabalho de equipe (ruim/regular; boa), estresse no trabalho (pouco, moderado; elevado), quanto acredita e tem projetos para o trabalho (pouco/moderadamente; bastante), exposição à carga biológica (pouco/moderadamente; bastante), sofreu violência no local de trabalho (não; sim), gostaria de trocar de local de trabalho (não; sim) e se gostaria de trocar de profissão (não; sim).
Realizou-se a etapa do estudo-piloto com outros profissionais que não faziam parte da amostra, a fim de testar a interface com preenchimento através do software utilizado, corrigir possíveis problemas e finalizar o instrumento. Ao finalizar o processo de coleta de dados, foi realizado o controle de qualidade em 10% da amostra por meio de contato telefônico com questões atemporais, a fim de verificar consistência nas respostas. Posteriormente, ocorreu a limpeza com checagem e correções de possíveis inconsistências.
Com o intuito de minimizar perdas e controlar vieses, o grupo de pesquisa realizou contatos semanais com os trabalhadores, utilizando diferentes meios e abordagens para sensibilizar e enfatizar a relevância da participação, seja por meio de e-mails ou pela elaboração de materiais informativos sobre a saúde do trabalhador.
Os dados coletados por meio do software REDCap® foram exportados para o Microsoft Excel®. Questionários que permaneceram incompletos no banco de dados ou que pertenciam a profissionais fora da amostra dos participantes da pesquisa foram excluídos. Para os questionários incompletos dos participantes da amostra, caso houvesse duplicatas, manteve-se no banco de dados aquele com preenchimento completo.
A análise foi realizada com auxílio do software Stata® (versão 11.1, Stata Corp., College Station, Estados Unidos). Foi conduzida análise bruta com o teste Qui-Quadrado de Person entre a variável dependente “risco de suicídio” e as variáveis independentes. Adotou-se nível de significância estatística de 5%.
Para análise multivariável, utilizou-se regressão de Poisson com variância robusta, seguindo um modelo hierárquico em três níveis. No primeiro nível foram incluídas as variáveis demográficas e socioeconômicas; no segundo, as comportamentais e de saúde, e no terceiro, as de processo de trabalho. Foram incluídas no modelo final as variáveis independentes que apresentaram valor p menor ou igual a 0,2 (p ≤ 0,20) na análise bruta e o mesmo ponto de corte foi utilizado para manter as variáveis no modelo, a fim de controlar fatores de confusão. Para construção do modelo final, foi utilizado o método backward, sendo o ajuste realizado nível a nível.
O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Pelotas sob o parecer nº 4.805.388/2021, CAAE nº 48022221.3.000.5316, em 25 de junho de 2021, e respeitou os direitos e deveres dos participantes19. Todos os participantes assinalaram concordância com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Embora os riscos ao responder fossem mínimos, foi disponibilizado contato por endereço eletrônico e telefônico para escuta terapêutica e orientação em decorrência de desconforto ao preencher a pesquisa.
Os dados correspondentes aos participantes da pesquisa permaneceram armazenados por um período de cinco anos, após o qual serão deletados. O acesso às informações e aos registros do período de coleta de dados é restrito aos pesquisadores vinculados ao GETEnf Sul, e ocorre por meio de senha específica.
A prevalência de risco de suicídio entre os profissionais de enfermagem foi de 8,8%, sendo 6,0% risco baixo, 0,5% moderado e 2,3% elevado (Figura 1). Com relação à distribuição da frequência relativa do desfecho entre as categorias estudadas, 6,6% ocorrem entre auxiliares de enfermagem, 10,0%, entre técnicas(os) de enfermagem e 7,8%, entre enfermeiras(os).

Dentre os 1.375 profissionais de enfermagem convidados a participar da pesquisa nos dois hospitais, 761 (55,4%) não responderam ao questionário, sendo que, destes, dois trabalhadores informaram o desejo de não participação após acesso ao TCLE. Trinta e três foram excluídos (2,4%) por preenchimento incompleto. Os participantes que responderam ao bloco com questões referentes ao desfecho deste estudo correspondem a 581 trabalhadores (42,3%).
A amostra foi composta por 61 auxiliares de enfermagem (10,5%), 290 técnicos de enfermagem (49,9%) e 230 enfermeiros (39,6%). A idade média dos participantes foi de 41,1 anos (desvio-padrão ± 8,2), variando de 22 a 68 anos. A maioria dos participantes era do sexo feminino (84,9%), heterossexual (92,8%), de pele branca (76,4%), tinha companheiro (38%), possuía nível de escolaridade superior ou pós-graduação (70,4%), com renda familiar superior a R$ 5 mil e até R$ 13 mil (57,6%) e com residência própria e paga (37,5%).
Observou-se maior prevalência de risco de suicídio entre os respondentes do sexo feminino (8,9%), com idade de 41 a 68 anos (10,3%), com orientação sexual LGBTQIA+ (gay, lésbica, bissexual, transexual, queer, intersexual, assexual, pansexual, +) (16,7%), pele branca (9,7%), sem companheiro (10,4%), com nível de escolaridade médio ou técnico (11%), sem filhos (11%), com renda familiar de R$ 3 mil a R$ 5 mil (13,4%) e com residência alugada ou emprestada (9,9%).
A descrição completa dos participantes em relação ao desfecho, segundo características sociodemográficas, de saúde, comportamentais e do processo de trabalho, pode ser visualizada nas tabelas.
As Tabelas 1, 2 e 3 apresentam análises brutas e ajustadas do desfecho risco de suicídio com as variáveis de exposição selecionadas e conforme os níveis do modelo de análise estabelecidos.



Na análise bruta, apresentaram associação estatisticamente significativa (p ≤ 0,05) com o desfecho risco de suicídio as variáveis do primeiro nível: renda familiar de R$ 5.001,00 a R$ 13.000,00. No segundo nível: tabagismo, ansiedade autorreferida, depressão autorreferida, uso de psicofármaco, vivência de situações de abuso e/ou agressão na infância, atividade física maior ou igual a três vezes na semana, autopercepção boa da qualidade de vida e boa autopercepção de saúde. No terceiro nível: sobrecarrega, elevado estresse no trabalho, elevada exposição à carga biológica, sofrer violência no local de trabalho, desejo de trocar de local de trabalho, desejo de trocar de profissão, satisfação com o trabalho e boa avaliação do trabalho de equipe.
O modelo ajustado evidenciou risco de suicídio associado com: tabagismo (RP:1,95; IC95%: 1,09;3,53), depressão autorreferida (RP:3,42; IC95%: 2,03;5,79), vivência de situação de abuso/agressão na infância (RP:2,30; IC95%: 1,37;3,85) e desejo de trocar de profissão (RP:2,23; IC95%: 1,22;4,04). E como fator de proteção: renda familiar, entre R$ 5.001,00 e R$ 13.000,00 (RP: 0.44; IC95%: 0,26;0,73).
A prevalência de risco de suicídio entre os participantes do estudo foi 8,8%. Uma investigação com uso do mesmo instrumento e ponto de corte encontrou uma prevalência de 21,18% em enfermeiros e 12,21% em médicos de um hospital federal público em momento anterior ao período pandêmico4. É importante considerar que a diferença do resultado encontrado pode estar relacionada a um possível viés de seleção, bem como de características específicas locais dos participantes do estudo.
A associação encontrada entre risco de suicídio e menor renda familiar não foi encontrada em outros estudos com profissionais de enfermagem. Investigação realizada na rede de atenção em saúde com 890 profissionais de enfermagem de serviços municipais e federais no sul do Brasil identificou correlação inversa entre renda individual menor ou igual a três salários mínimos com ideação suicida20.
A renda individual não apresentou associação com o risco de suicídio neste estudo, fator que pode estar relacionado ao recebimento de melhores salários quando comparado à remuneração de outros locais de trabalho e provavelmente no cenário investigado a menor discrepância entre cargos e funções não permita que a variável seja muito sensível a essa medida. Entretanto, a variável renda familiar foi capaz de traduzir diferenças relacionadas a classes sociais, possibilitando aos seus integrantes um estilo de vida melhor, com mais acesso a recursos e oportunidades de bem-estar.
Fazer uso de tabaco permaneceu associado como um marcador para o risco de suicídio. Estudo conduzido com estudantes universitários da área da saúde no Brasil encontrou associação de ideação suicida com o uso de tabaco e outras drogas21. Investigação no Brasil identificou prevalência de 10,2% de tabagismo entre profissionais de enfermagem hospitalar, estando associado à história pessoal de depressão e etilismo22. Em estudo realizado no México, o aumento da dependência da nicotina esteve associado a níveis de estresse elevado no trabalho entre profissionais de saúde23.
A depressão autorreferida foi fortemente associada ao risco de suicídio. Associação com magnitude elevada e semelhante foi encontrada no estudo de Freire, sendo também a variável com maior razão de prevalência associada ao desfecho4.
Investigações conduzidas com enfermeiros na China e na Alemanha encontraram associação de ideação suicida com a variável depressão24,13. Estudo sobre ideação suicida e automutilação entre trabalhadores de um hospital na China durante a pandemia da covid-19 encontrou maior prevalência em enfermeiros, seguida pelos técnicos de enfermagem quando comparado aos demais participantes, permanecendo associado com sintomas depressivos na análise de regressão15.
Estudo americano identificou que os enfermeiros tinham prevalência maior em 38% de ideação suicida comparado aos demais trabalhadores da população em geral e entre os participantes com sintomas depressivos, as chances de ocorrer o desfecho aumentava em 11 vezes10. No Irã, enfermeiros com estresse traumático secundário durante o surto da covid-19 foram associados com maiores escores de depressão, ansiedade e ideação suicida14.
Outro elemento exponencialmente associado ao risco de suicídio é a vivência de situações de abusos/agressão na infância. No entanto, há uma lacuna científica que impossibilita comparar esse achado especificamente com a população investigada. Foi possível identificar estudos que versam sobre transtornos ocorridos na infância em diferentes populações no mundo, evidenciando associação com o aumento de risco de suicídio, além de outros problemas de saúde mental em adultos25-28.
Outrossim, destaca-se que o resultado encontrado nesse estudo, embora transversal, tem impacto em apontar uma situação atemporal e retrospectiva à vida do profissional de enfermagem ao se referir às situações vivenciadas na infância como um potencial fator de risco para o adoecimento mental. É salutar destacar a necessidade de cuidado e proteção tanto no cenário familiar quanto na efetiva execução das políticas públicas de cerne educacional, como também combater e punir rigorosamente os crimes contra crianças e adolescentes a fim de suprimir atos lesivos que tendem a elevar esses fatores de risco.
A associação do risco de suicídio com o desejo de trocar de profissão pode se justificar pelo estresse crônico estabelecido na rotina de trabalho da enfermagem, que pode tornar as atividades desempenhadas uma experiência deletéria e negativa, afetando a saúde física, mental e a qualidade de vida do trabalhador4.
É preciso considerar que o presente estudo foi realizado durante a pandemia da covid-19, um período em que a situação sanitária requeria elevada carga de trabalho e havia inadequação da quantidade e preparo dos profissionais de enfermagem. Esse contexto contribuiu para acentuar a situação de sofrimento moral, estresse, distúrbios psíquicos e esgotamento29, além das alterações fisiológicas, psicoafetivas e sociofamiliares30, que, somatizadas ao longo do tempo, podem impactar o desejo de mudança profissional.
Esse estudo apresenta informações e discussões de grande relevância, trazendo dados inovadores envolvendo as três categorias da enfermagem, profissionais de saúde que trabalham diretamente com a dor e o adoecimento de pessoas e sofrem com as limitações decorrentes do processo de trabalho, e ainda mais por discutir o risco de suicídio, tema tabu socialmente e carente de investigações científicas.
Os achados contribuem ao apontar aspectos que podem ser atenuados ou mesmo modificados dentro dos espaços de trabalho, seja através da valorização profissional, em ações de prevenção em saúde, programas de acompanhamento e terapias complementares. Estudos futuros devem aprofundar os fatores de risco e proteção encontrados associados ao desfecho e, assim, melhor direcionar as discussões, planejamento de ações e programas de assistência à saúde dos trabalhadores.
Dentre as limitações do estudo, sublinha-se a baixa adesão dos participantes, que pode ser decorrente da extenuante jornada de trabalho, o excesso de informação e a existência de outros estudos concomitantes. A amostra de voluntários pode ter introduzido viés de seleção ao estudo. Ainda é importante destacar a impossibilidade de se estabelecer relações de temporalidade entre o desfecho e as variáveis estudadas, devido ao desenho metodológico utilizado. O estudo pode estar sujeito, ainda, a viés de informação, dado que todas as respostas foram autorreferidas pelos participantes, em um formulário on-line. Em pesquisas pela internet, os participantes não têm a oportunidade para esclarecerem dúvidas sobre as perguntas. Por outro lado, o formato virtual possibilita maior privacidade ao respondente. Também cumpre informar que existem restrições ao comparar os resultados do presente estudo com estudos prévios, devido ao uso de diferentes escalas nas investigações sobre o tema.
O presente estudo encontrou prevalência de 8,8% de risco de suicídio em profissionais de enfermagem no extremo sul do Brasil. Manteve-se associado ao desfecho, como marcador de risco, tabagismo; como fatores de risco, a depressão autorreferida, a vivência de situações de abuso/agressão na infância e o desejo de trocar de profissão; e, como fator de proteção, a renda familiar na faixa mais elevada.
Destaca-se a relevância dos resultados encontrados, pela robustez ao investigar diferentes aspectos individuais, de saúde e do trabalho dos profissionais de enfermagem, essenciais no cuidado e tratamento de pacientes e que estão expostos a todo momento às adversidades do ambiente de trabalho e às consequências dos riscos ocupacionais. Em suma, as associações encontradas têm potencial de aprofundar discussões e planejar ações de proteção à saúde mental do trabalhador e busca por espaços de trabalho mais saudáveis, além de reafirmar a necessidade de mais investigações sobre a temática nas três categorias da enfermagem brasileira.
Contato: Laíne Bertinetti Aldrighi; E-mail: laine.aldrighi@ufpel.edu.br



