Resumo
Objetivo: Investigar a exposição ocupacional de mulheres ao amianto e como as relações de gênero interferem no trabalho e no adoecimento.
Métodos: Estudo qualitativo, tomando por base o referencial da Saúde do Trabalhador e a análise de conteúdo de Bardin. Foram realizadas 12 entrevistas abertas, no período de outubro de 2021 a junho de 2022, com trabalhadoras expostas ao amianto em ambiente fabril na região de Pedro Leopoldo-MG, afiliadas à Associação Brasileira de Expostos ao Amianto-MG (Abrea-MG). Utilizou-se o software MAXQDA (Analytics Pro 2022 6.0) para auxiliar na categorização e análise algoritmica por meio de frequência de termos e construção de nuvens de palavras.
Resultados: Dois eixos principais foram revelados (Saúde e Trabalho), permeados de subcategorias que mostraram as atividades ocupacionais das mulheres com amianto, trabalho familiar, desigualdade, precarização, exploração e desvalorização do trabalho feminino, exposição múltipla, adoecimentos por doenças asbesto relacionadas, recorrência de abortos e incipiente investigação diagnóstica.
Conclusão: Restou clara a invisibilidade do trabalho feminino exposto ao amianto em ambiente fabril, acrescido do trabalho de lavagem de vestuário da família (inclusive expostos ao amianto), tomado como tarefa feminina. É preciso reconhecer e lidar de forma específica com as trabalhadoras expostas e adoecidas pelo amianto.
Palavras-chave: Saúde do Trabalhador, Trabalho Feminino, Amianto, Doenças Profissionais, Gênero.
Abstract
Objective: The study investigated the occupational exposure of women to asbestos and how gender relations interfere with work and illness.
Methods: Based on the framework of Worker Health and Bardin’s content analysis, twelve open interviews were conducted between October 2021 and June 2022 with female workers exposed to asbestos in a factory environment in the Pedro Leopoldo region, MG. These workers belong to the Brazilian Association of Asbestos Exposed Workers-MG (Abrea-MG). The MAXQDA software (Analytics Pro 2022 6.0) was used to assist in categorization through algorithmic analysis based on term frequency and the creation of word clouds.
Results: Two main axes were identified (Health and Work), encompassing subcategories that highlighted women’s occupational activities with asbestos, family work, inequality, precarization, exploitation, undervaluation of women’s labor, multiple exposure, illnesses related to asbestos-related diseases, recurrent miscarriages, and the limited diagnostic investigation.
Conclusion: The invisibility of female labor exposed to asbestos in a factory environment became clear, compounded by the task of washing family clothing (including those exposed to asbestos), taken as a female duty. It is necessary to specifically recognize and address the female workers exposed to and affected by asbestos.
Keywords: Occupational Health, Women’s Work, Asbestos, Occupational Diseases, Gender.
Artigo de pesquisa/Dossiê Desenvolvimento Sustentável e Trabalho
Invisíveis no trabalho e na saúde: exposição ocupacional de mulheres ao amianto na região de Pedro Leopoldo-MG, Brasil
Invisibles at work and in health: occupational exposure of women to asbestos in the region of Pedro Leopoldo-MG, Brazil
Received: 03 August 2024
Revised document received: 22 October 2024
Accepted: 28 November 2024
Amianto (latim) ou asbesto (grego) são nomes comerciais e genéricos que representam um grupo de minerais silicatos fibrosos, de ocorrência natural, da série das serpentinas e anfibólios. Incluem a crisotila (“amianto branco”), da família das serpentinas, e os cinco minerais da família dos anfibólios: actinolita e amosita (“asbesto marrom”), antofilita e crocidolita (“asbesto azul”) e tremolita1.
O mineral possui uma série de utilizações, é de baixo custo produtivo e tem ótima resistência térmica e mecânica, sendo utilizado há milênios. Seus usos vão da confecção de roupas e outros artefatos para proteção a chamas, até lonas e pastilhas, juntas, gaxetas, revestimentos de discos de embreagem, telhas, caixas d´água, painéis lisos, forros, pisos, revestimentos, divisórias, isolamento térmico e acústico, tintas, dentre outros2.
A exposição ao amianto se relaciona a doenças como câncer de pulmão, mesotelioma, placas pleurais e asbestose3,4. A Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC), em abrangente avaliação de carcinogenicidade do amianto, acumulou evidências suficientes de que “todas as formas de amianto”, incluindo especificamente crisotila, crocidolita, amosita, tremolita, actinolita e antofilita, são cancerígenas. A evidência de uma relação causal foi considerada suficiente para mesotelioma e cânceres de pulmão, laringe e ovário e limitada para cânceres de faringe, estômago e colorretal1.
Ao longo de décadas, o Brasil ocupou a posição de terceiro maior produtor mundial de amianto, contribuindo com 15,1% da produção global em 20155. Contudo, apesar dessa significativa produção, o número de óbitos relacionados à exposição ao amianto entre 1980 e 2010 foi notavelmente baixo, com apenas 3.718 casos reportados ao Sistema de Informações sobre Mortalidade. Em contraste, nos Estados Unidos, onde a mineração de amianto foi proibida desde 2002, foram relatados 2.497 óbitos decorrentes da exposição ao amianto, apenas em 20136.
No Brasil, a Portaria nº 1.339, publicada em 18 de novembro de 1999, estabeleceu lista contendo a relação entre doenças relacionadas ao trabalho e agentes/fatores de risco de natureza ocupacional codificadas conforme o Código Internacional de Doença – CID-10, na qual constam as doenças relacionadas ao amianto: neoplasia maligna do estômago (C16.-), neoplasia maligna da laringe (C32.-), neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-), mesotelioma da pleura (C45.0), mesotelioma do peritônio (C45.1), mesotelioma do pericárdio (C45.2), placas epicárdicas ou pericárdicas (I34.8), asbestose (J60), derrame pleural (J90) e placas pleurais (J92)7.
Em recente atualização desta lista, algumas doenças foram incluídas, como a neoplasia maligna do cólon (C18), a neoplasia maligna do reto (C20) e a pneumoconiose devido a amianto e outras fibras minerais (J61). Destaca-se a neoplasia maligna de ovário (C56), que representa um importante avanço para as mulheres no reconhecimento da relação causal.
Algumas das características são a irreversibilidade e progressão de alguns processos fisiopatológicos, ainda que passada a exposição. Isto determina que, mesmo quando se consegue reduzir o número de expostos, os efeitos podem progredir.
Há um período de latência entre exposição e surgimento dos efeitos (que podem ser duradouros), com tempo médio de 10 anos8, podendo chegar a 10 a 15 anos para o desenvolvimento de asbestose, 20 a 30 anos para câncer de pulmão e de 40 a 50 anos para mesotelioma9. Estimou-se que o pico de mortes destas duas últimas condições, no Brasil, ocorrerá entre os anos de 2021 e 202610.
Há, ainda, lacunas que demandam esforço adicional de estudos. Chama a atenção no Relatório Saúde Brasil (2019)11 que os óbitos registrados relacionados ao amianto entre “donas de casa”, representaram 10,8% do total, considerados, em geral, como resultantes de lavagem de roupas e manuseio de objetos dos familiares que trabalhavam em contato com a fibra ou, até mesmo, pelo fato de as famílias dos trabalhadores residirem próximas às minas e às indústrias12-14.
Segundo o documento11, outra hipótese que pode explicar esse achado é o preenchimento, na declaração de óbito, da função exercida na fase da vida na qual ocorreu o óbito, sem a descrição de ocupações anteriores. Em 40,37% dos registros de óbitos por exposição ao amianto, a ocupação não foi classificada, informada ou foi ignorada, o que dificulta determinar se a exposição ocorreu no ambiente laboral11.
Neste mesmo caminho, um estudo qualitativo acerca das mulheres expostas ao amianto nos ambientes de trabalho no estado de São Paulo encontrou, entre 1980 e 1997, 22 casos de adoecimento por mesotelioma, dos quais oito eram de mulheres e 14 de homens. As autoras alertaram acerca da incidência de casos em mulheres, pois as mulheres, até a Constituição de 198815, eram proibidas formalmente de trabalhar em atividades insalubres, nas quais se incluem aquelas em contato com o amianto16. Das oito mulheres, duas eram donas de casa e tinham menos de 40 anos, o que sugere exposição na infância (em virtude do longo período de latência da doença), e adquirida provavelmente não de forma ocupacional e indireta, isto é, por intermédio de pessoas da família em contato com o agente cancerígeno ou mesmo por exposição ambiental17. Mas e as demais mulheres? Havia exposição ocupacional não revelada?
Costa18, em pesquisa realizada também em São Paulo, identificou a mesma situação do perigo relacionado à exposição ao amianto enfrentada pelas famílias dos trabalhadores(as), devido à contaminação das roupas de trabalho levadas para casa17,18.
Além de dar visibilidade a este grave problema de saúde pública, é fundamental desvelar as relações de gênero que perpassam as vidas das mulheres expostas ao amianto, assim como sua luta, incluindo dificuldades e viabilidades e que grupos atingidos consigam proteção à saúde das expostas, em particular, no local estudado.
Presume-se que existam dinâmicas desiguais na condução, no cuidado e na assistência à saúde das mulheres e que parecem ser mais latentes em função da naturalização das imposições sociais e do cuidado à família exercido pelas mulheres. Ademais, é importante ressaltar que a situação enfrentada pelas mulheres expostas ao amianto tem sido ignorada e mantida em silêncio por décadas, sem ter sido abordada em pesquisas.
O objetivo deste estudo é investigar a exposição ocupacional de mulheres ao amianto e como as relações de gênero interferem no trabalho e no adoecimento. O artigo apresenta os percursos do trabalho e saúde de mulheres expostas ocupacionalmente ao amianto de associadas da Associação dos Expostos ao Amianto em Minas Gerais (Abrea-MG), sediada no município de Pedro Leopoldo, Minas Gerais, Brasil.
No plano epistemológico, adota-se o preceito teórico da Saúde do Trabalhador (ST), no qual o trabalhador é considerado sujeito do processo de conhecimento, pois sua experiência e saber, acerca das situações laborais concretas constituem-se como parte essencial do conhecimento científico19. Por conseguinte, defende-se, neste estudo, ser o processo saúde-doença fortemente determinado pela capacidade organizativa dos trabalhadores20. Para compreendermos as relações entre gênero e trabalho, utilizou-se o conceito de divisão sexual do trabalho, fundamental para compreensão crítica do trabalho feminino, produtivo e reprodutivo destacando-o também na esfera das relações privadas, dos estereótipos do instinto feminino ou do amor materno, explicitando a “dupla jornada de trabalho”, ressignificando-o enquanto trabalho (explorado e não pago)21,22.
A obra intitulada “A Classe Operária tem Dois Sexos” de Elizabeth Souza-Lobo23, é também fonte inspiradora ao refletir acerca dos estudos e respectivas análises que se localizavam na economia e produção, e que passam a ser identificados nas diferenças das relações de poder entre atores capazes de lutar e vivenciar seu pertencimento a um sexo. Esta autora nos instiga o debate do que está em jogo no discurso das relações assimétricas entre homens e mulheres.
Nesse contexto, a problemática estudada que se deriva dos itinerários na saúde e trabalho na perspectiva de gênero, perpassam o momento atual e emolduram retrospectiva dialógica entre o passado, presente e o futuro. Para compreensão da produção, da exposição, do uso e do consumo do amianto na região mineira, é fundamental estabelecer concretamente as relações entre as classes postas nesta arena de lutas: o movimento social, expostos e expostas, o capital-amianto e governos. Nas palavras de Hirata e Kergoat21:
A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, à apropriação pelos homens das funções com maior valor social adicionado (políticos, religiosos, militares etc.) (p. 599).
Este ideário cria uma tradição de inferioridade, subordinação e desvalorização da mulher, que, consequentemente, perdura até hoje com a desvalorização do seu trabalho. Assim, a divisão sexual do trabalho é legitimada por meio dos baixos salários pagos as mulheres e justificados como pagamentos destinados apenas complementação de renda familiar; do trabalho doméstico, destinado “naturalmente” as mulheres como um atributo, que seria totalmente desconsiderado como efetivamente trabalho, por não estar no campo direto da produção; da concepção de que as mulheres seriam menos produtivas que os homens, por “não trabalharem tão arduamente” quanto eles, portanto, todo o trabalho realizado por mulheres teriam menor valor24.
Trata-se de pesquisa de caráter qualitativo, retrospectivo e descritivo realizado com mulheres expostas, ocupacionalmente, ao amianto na região mineira de Pedro Leopoldo. Foi utilizada a técnica de entrevistas abertas e individuais, com aproximação à história oral para a população estudada. Enquanto procedimento metodológico que busca, na construção de fontes e documentos, registrar através de narrativas, testemunhos, versões e interpretações sobre a história nas diversas dimensões factuais, temporais, espaciais e conflituosas, permitiu a construção das narrativas e itinerários25.
Foram realizadas 12 entrevistas com as trabalhadoras, no período de outubro de 2021 a junho de 2022, agendadas previamente e intercaladas com intervalo de aproximadamente uma hora. O agendamento contou com o apoio da Abrea-MG, movimento social legitimado pelo coletivo na luta e defesa pela saúde e direitos dos expostos ao amianto. Os critérios de seleção das participantes foram ter proximidade com o movimento, tendo realizado demanda recente para com a associação. O agendamento foi realizado conforme disponibilidade, tempo e medidas necessárias de proteção à saúde, em meio à pandemia de covid-19, todas respeitadas com rigor.
Um primeiro passo da organização dos dados foi tipificar o perfil socioeconômico-demográfico das mulheres estudadas. As entrevistas foram, então, sistematizadas e categorizadas de acordo com técnica de análise de conteúdo26, em que fontes de conteúdo verbais e não verbais foram submetidas a interpretações, construção de variáveis-chave, após análises adequadas e classificadas por critério de similaridade, frequência e relevância em relação ao objetivo do estudo, possibilitando a identificação das variáveis-chave.
A organização e sistematização dos dados e análises das categorias foram executadas com o auxílio de software de análises qualitativas MAXQDA Analytics Pro 2022 6.027. Este programa é utilizado para processar e analisar dados não numéricos e não estruturados provenientes de diversas fontes de informação qualitativa28.
As entrevistas receberam classificação aleatória e numeração cronológica seguida da letra: M (mulheres). Estes registros tiveram o intuito de preservação e anonimato das respondentes. Em seguida, as entrevistas foram depositadas no programa e seguiram para respectiva categorização.
Nuvens das palavras mais citadas foram criadas pelo software e permitiram auxiliar na construção categórica. Foram confirmados os eixos principais de análises, dentre os quais se destacaram “Trabalho” e “Saúde”.
Estes eixos principais/categorias foram desdobrados em subcategorias em função de sua relevância, pertinência e fala (parte apresentada no texto) das entrevistadas na apresentação e discussão dos itinerários traçados e entrelaçados na saúde e no trabalho de expostas ao amianto.
Este artigo é parte da pesquisa intitulada Itinerários (im)possíveis da saúde e trabalho de homens e mulheres expostos ao amianto na região de Pedro Leopoldo-MG, tese de doutorado, e recebeu aprovação sob número 5.004.836 do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, em 28 de setembro de 2021. Todas as respondentes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Pedro Leopoldo é uma cidade próxima de Belo Horizonte (40 km) e tem, desde a década de 1960, uma indústria produtora de fibrocimento, com portfólio de produtos que incluíam o amianto. A empresa é uma grande empregadora local29.
Com população próxima a 66.000 habitantes30, possui um hospital e maternidade de pequeno porte (45 leitos para dar cobertura às necessidades regionais e que compreendem leitos do Sistema Único de Saúde – SUS e particulares, incluindo planos de saúde31, com resolutividade para atendimento ambulatorial e emergencial de média complexidade). Há 13 unidades básicas de saúde da família (UBSF), um Centro Integrado de Atenção à Saúde (para especialidades médicas), Clínica de Saúde da Mulher e da Criança, Serviço de Saúde Mental e Farmácia Central32. A região não possui serviços de diagnóstico e tratamento em média e alta complexidade e é permeada por agravos e adoecimentos com amplas necessidades.
A pesquisa revelou que a maioria das participantes do estudo estava casada. A faixa etária predominante era entre 60 e 70 anos. Quanto à escolaridade, a maioria das participantes concluiu o ensino fundamental e uma minoria apresentou formação em nível superior. A religião católica foi a mais comum, seguida das religiões evangélicas. A maioria das entrevistadas estava aposentada. Destaca-se a aposentadoria (tempo de serviço) como fonte principal de renda. A cor da pele predominante foi a preta e residiam nas cidades de: Pedro Leopoldo, Matozinhos, Confins e São José da Lapa. Essas mulheres desempenham papel fundamental na defesa da saúde, mesmo com discreta atuação política e ocupação de cargos de direção da Abrea-MG.
Dentre das categorias apuradas, destacaram-se as seguintes subcategorias, demonstradas pelo número de vezes em que foram mencionadas durante as entrevistas (pode haver mais de uma menção por entrevista): a) Trabalho e vida no amianto: trabalho doméstico e de cuidados (67), informação e uso do amianto (72), exposição no trabalho e doméstico (78), diferenças percebidas no trabalho na perspectiva de gênero (38), o que representou trabalhar com amianto (26), eventos relacionados ao amianto (65), equipamentos de proteção (64), outros produtos usados (19), como ingressou na empresa (22), familiares falecidos no amianto (18); b) Saúde: negação das doenças (14), acidente de trabalho (12), outras doenças (42), doenças típicas de mulheres (16), doenças asbesto relacionadas (65) e aborto(s) (10).
Observa-se que o eixo mais abordado foi o do trabalho, seguido pela saúde, ambiente e, por fim, projetos futuros. Destaca-se a exposição no trabalho e doméstica, informação e uso do amianto, seguido pelo trabalho doméstico e de cuidados. A saúde, em particular, foi retratada pelas doenças relacionadas ao asbesto (DRA), seguida por outras doenças e doenças típicas de mulheres. Chama atenção na perspectiva da saúde da mulher a menção recorrente do aborto nas entrevistas. Embora não tenha sido estabelecida uma relação entre exposição ao amianto e desfechos reprodutivos adversos em humanos, Hricko33 já alertava para problemas relacionados à saúde sexual e/ou reprodutiva de expostos ao amianto. Segundo este autor, os potenciais efeitos adversos sobre a reprodução, ou a capacidade de gerar crianças normais e saudáveis, originados pela exposição a riscos, como no caso do amianto no local de trabalho, geram preocupações. Ainda no estudo foram relatadas alterações menstruais em mulheres, interfaces com as funções sexuais em homens e lesões genéticas nas células germinativas tanto masculinas quanto femininas. Destarte, a recorrência de abortos entre mulheres expostas ao amianto, direta ou indiretamente, na região estudada, demanda a realização de estudos34, por não termos evidências dessa relação causal.
Tive 3 abortos... (M2).
Tive dois abortos... Eu nem fui ao hospital. O primeiro eu fui, porque já tava com 6 meses, mas o segundo eu nem fui (M8).
Eu tive que tirar o útero. Deve fazer 8 anos. Meu marido ainda trabalhava lá e eu já tinha saído de lá (M26).
Destaca-se que o adoecimento tão enfatizado pelas respondentes reflete expectativas acerca do conhecimento e tratamento das DRA e/ou outras doenças. Nota-se um discreto número de diagnósticos levantados pelo estudo: um para placas pleurais e um para asbestose. Em investigação oncológica, tem-se dois casos. Foi levantado um número elevado de mulheres sem diagnóstico e sem investigação, totalizando sete. No universo desta população estudada, apenas uma não apresentava queixas e nem sintomas de doenças. Entretanto, a saúde foi categoria principal destacada pela recorrente preocupação e menções ao longo da pesquisa.
As nuvens de palavras relacionadas apresentam os termos mais utilizados pelas mulheres expostas ocupacionalmente. O tamanho de cada palavra se relaciona ao número de vezes em que foi mencionado. Os destaques são claros e suas relações com o sofrimento das mulheres é devidamente discutido.
A análise das entrevistas permitiu avaliar e dar alinhamento aos termos em destaque. As entrevistadas são mulheres doentes.
Observa-se a predominância e centralidade do amianto e possivelmente a implicação e responsabilização por parte das trabalhadoras da empresa e dos médicos na problemática abordada. No entanto, essa abordagem visual enfatiza principalmente a identidade da mulher, a dor associada ao câncer e às doenças, bem como o tratamento (e a dificuldade de obtê-lo) e o acompanhamento dessas condições.
Notavelmente, a menção à saúde está descrita nas falas com foco na doença, o falecer e o morrer representados pelos respectivos verbos que aparecem em destaque, além do aposentar, que nos remetem aos ciclos da vida de trabalho no amianto.
O médico e a verdade também se apresentam na pretensa crença da verdade advinda do médico. A água, também, em destaque, é termo usado para falar da retirada da água nos pulmões. Ambas são palavras de conotação assistencial, destacando preocupação, importância do tratamento e a própria doença.
Apesar de menos destaque às categorias da saúde quando comparados com o do trabalho, na Figura 2 incluíram-se subcategorias como doenças típicas das mulheres, assim como as relacionadas ao amianto e outras mencionadas, trazendo percepções do adoecimento mais geral e menos específico no campo feminino.

Também aparecem verbos como cuidar e cozinhar como funções femininas importantes no trabalho doméstico e de cuidados. As palavras família, igual e direito parecem representar ciclo de atenção e de cuidado e de reivindicações, da desigualdade no lidar com as doenças e a fibra cancerígena.
Além da palavra “família”, outros termos chamam a atenção para a atividade doméstica que, além de atuar na sobrecarga de trabalho diário, também é fonte de mais contaminação, configurando multiplicidade de contaminação que é a ação de lavar as roupas contaminadas do trabalho com o amianto. Estas mulheres lavavam suas roupas e dos maridos, também trabalhadores do amianto. Outros verbos alinhados ao trabalho doméstico são o cozinhar e cuidar. Também foi fortemente mencionado “empresa contaminante”. Destarte, os agravos por DRA em mulheres apresentam quantitativos discretos diante da grave situação geral apurada pela Abrea-MG no Quadro 1.

Entretanto, esses dados evidenciam lacunas no acesso e na atenção à saúde das trabalhadoras do amianto naquela região, ao mesmo tempo em que nos alertam para possíveis novas patologias relacionadas à exposição à fibra cancerígena, como o câncer de tireoide. Embora a relação causal direta com o amianto não possa ser estabelecida, a elevada frequência dessa neoplasia nas associadas(os) e expostas(os) da Abrea-MG destaca necessidade premente de estudos adicionais que aprofundem a compreensão da temática.
Neste contexto e em consonância com o estudo de Gregório et al.35, foi observado um intervalo médio de 6,5 meses entre o surgimento dos sintomas do mesotelioma pleural maligno (MPM) e a primeira consulta especializada. Essa demora destaca as deficiências ainda presentes nos sistemas de saúde no atendimento a DRA, falta de conhecimento dos pacientes sobre a exposição ao amianto e dos profissionais de saúde que comprometem o encaminhamento para tratamento adequado. A população estudada corrobora os achados sobre o desconhecimento da DRA tanto entre as mulheres expostas quanto entre os profissionais de saúde. Além disso, essa situação pode ser agravada e sem precedentes, diante do tempo necessário para o diagnóstico de DRA ao contingente de trabalhadoras expostas ainda não localizadas pela Abrea-MG naquela região.
Ademais, o Instituto Nacional do Câncer (INCA)36 relata elevada mortalidade por MPM em homens na região estudada, especialmente em Confins (4,0%), comparativamente ao contexto nacional e global (0,6%). Preocupante, também, é a falta de informações sobre a mortalidade de mulheres por MPM na região, sugerindo subnotificações, e apontando a necessidade de estudos e da inclusão da dimensão de gênero.
Houve destaque de subcategorias como trabalho doméstico e de cuidados no eixo trabalho, já que as mulheres cuidavam da família com outros entes também expostos. “Diferenças percebidas na perspectiva de gênero” é outra categoria destacada em conjunto com equipamentos de proteção, exposição doméstica e no trabalho, representando as múltiplas formas de contaminação. Coube destaque à falta ou pouca informação acerca dos riscos do amianto na fábrica.
Quem cuidava a casa e dos meninos era eu. Nesse tempo eu era jovem. Eu era esperta demais, eu dava conta. E ele ajudava muito, meu marido. E tinha uma vizinha que me ajudava, com a menina que eu tinha, que é a Michele, a mais velha, ajudava. Ela ia me ajudar na madrugada, a hora que eu saía. Quando ele não tava. Às vezes, ele tava pra chegar e eu tava pra sai. Os horários dele também era difícil. Quando eu chegava ele tava saindo (M28).
Para além dos termos em destaque, as entrevistas e sua categorização permitiram destacar aspectos relevantes da invisibilidade e das percepções da igualdade num contexto reconhecidamente desigual para as mulheres deste estudo, representada pela palavra igual (Figura 1).

Identificou-se no estudo que as mulheres expostas ocupacionalmente estavam, de fato, triplamente expostas, já que lavavam suas roupas contaminadas e de seus cônjuges, também trabalhadores da mesma indústria. Essas mulheres foram, ainda, triplamente sobrecarregadas, tendo que lidar com a exploração no trabalho, tarefas domésticas e os cuidados com a saúde de suas famílias.
E estas mulheres doentes foram expostas há mais de duas décadas, mesmo durante o período em que o trabalho feminino em atividades insalubres na indústria do amianto foi proibido, as mulheres trabalhadoras continuaram o trabalho na indústria de fibroamianto mineiro. Mas eram invisíveis. Tão invisíveis que continuaram sem ser vistas mesmo quando foram contratadas para substituírem homens em greve37 na indústria do amianto. A “ocultação” e o pioneirismo dessa história trazidos pelas trabalhadoras da indústria do amianto na região exemplificam como as desigualdades de gênero e as políticas restritivas impactaram as mulheres de forma desproporcional.
A greve foi por conta de condições junto com o sindicato. Essa greve foi por melhores condições de salário. Financeira. Foi salário. Nem condições de trabalho, não. Acho que foi uns 6 meses de greve. Mas a maioria dos homens também não voltou, não. Eu entrei a primeira das mulheres... Também ajudava a lixar as caixas d’águas... (M12).
Ouvi no carro do anúncio, juntei um grupo de mulheres. Ué, falei, - gente, nós não vamos perder essa... Mulher não gosta de tá trabalhando? Lavando roupa pros outro? Passando, esfregando o chão, fazendo qualquer coisa? Lá eles ia ficha a carteira, ou então a gente ia pra roça. Ah, nós corremos pra lá... (M28).
Há condições descortinadas pela fala das trabalhadoras que reforçam o desleixo com o trabalho feminino. Como exemplo, citam-se a carência de equipamentos de proteção individual adequados a mulheres, os banheiros femininos no ambiente produtivo, a desigualdade salarial e a exposição.
Aí eles deram a luva, ela não tava competente na minha mão. O tamanho não... tamanho. Aí ficava sobrando. Aí a gente tem que passar a mão assim pra ver se já tá no ponto de tira. Aí a calandra engoliu a minha mão. Puxou a luva. Engoliu com mão e tudo. Aí eu quebrei inclusive, você vê, tá até torto... (M21).
Só tinha banheiro só pros homens. Quem trabalhava na profissão não tinha, não. Só na medicina do trabalho e no escritório... (M12).
... salário, mulher sempre ganha menos... (M22).
A marginalização das trabalhadoras na indústria do amianto é um exemplo de como as desigualdades de gênero e as políticas restritivas afetam as mulheres de maneira desproporcional diante da histórica divisão sexual do trabalho, caracterizada pela atribuição prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, e neste sentido pela apropriação pelos homens de funções com maior valor social agregado20.
Dessa forma, é possível observar que há uma tendência de direcionar as mulheres para ocupações relacionadas ao cuidado doméstico, criação dos filhos e apoio familiar. Ao ingressarem nas empresas, essas mulheres frequentemente são contratadas em condições precárias. Essa precarização do trabalho é fundamentada na divisão sexual do trabalho, que mantém as tarefas destinadas às mulheres em posições inferiores tanto no âmbito produtivo quanto no reprodutivo20,38,39.
... era doméstica. Eu ganhava tão “pouquim”... Ai, lá pagava o salário, né? E “trabaiava” de sete às quatro. Ai, depois “trabaiei” lá de vários “horário, horário pesado, horário muito ruim, mas eu ‘guentei’ firme” (M22).
No contexto deste estudo, as mulheres analisadas resistiram à sua maneira às barreiras impostas pela divisão sexual no setor industrial, além das sobrecargas tanto do trabalho produtivo quanto no reprodutivo. No entanto, permaneceram invisibilizadas, sejam pelo próprio trabalho realizado ou pelos impactos na saúde, ambos agravados pela exposição à fibra cancerígena.
No contexto de exposição ao amianto há mais de meio século, é evidente a falta de vontade e compromisso político para implementar soluções aos problemas deixados por esse mineral. Soluções que já existem, e são amplamente discutidas e aplicadas em outros paísesb, como o descarte do amianto, instituído na Itália desde 1992. Neste sentido, no Brasil, a capital do estado de Santa Catarina, Florianópolis, aprovou uma pioneira Lei Municipal n° 10.607/2019⁴⁰ que prevê a desamiantagemc. No entanto, os cuidados com a saúde dos expostos e os direitos trabalhistas, civis e ambientais são intencionalmente e constantemente distorcidos.
A questão central quando se trata da histórica relação entre gênero e saúde é encontrar uma política de saúde que não descarte essa história, ao mesmo tempo em que busca incluir os homens. É inegável o aproveitamento do conhecimento, cuidado e poder relacionados a essa dinâmica para efetivar políticas sociais na área da saúde. No entanto, é necessário introduzir políticas de gênero mais incisivas nos programas de saúde de atenção à saúde integral da mulher em geral e em categorias altamente masculinizadas, como no caso desta pesquisa.
Esta pesquisa reafirma o quanto a dimensão da divisão sexual do trabalho se impõe tanto dentro das famílias quanto na sociedade em geral, o que, conforme aponta Kergoat39, desempenha um papel fundamental nas relações sociais de gênero. Essa divisão não apenas é moldada pelas relações sociais de gênero, mas também as reforça. Uma vez que a manutenção da saúde está intrinsecamente associada ao âmbito doméstico e privado, ela se estende para o espaço público por meio das atividades de cuidado, que são predominantemente realizadas por mulheres41. Esses cuidados permeiam todas as esferas sociais – tanto privadas quanto públicas – e são frequentemente assumidos por mulheres. No entanto, quem cuidará da saúde dessas mulheres?
Contato: Eliana Guimarães Felix; E-mail:eliana.felix@fiocruz.br


