Resumo
Objetivos: Investigar como a organização de catadores de materiais recicláveis em uma cooperativa pode contribuir para o desenvolvimento da economia sustentável, favorecendo o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) no Brasil e a concretização do Trabalho Decente.
Métodos: Trata-se de um estudo qualitativo, de caráter etnográfico, realizado com trabalhadores de uma cooperativa de materiais recicláveis. Inicialmente, foram examinados documentos para compreensão dos dados históricos que motivaram a organização da cooperativa. Em seguida, foram realizadas entrevistas com a gestão da cooperativa e com os trabalhadores cooperados.
Resultados: A história da cooperativa teve início nos anos 2000, a partir da análise das condições de trabalho dos catadores do lixão. A organização desses trabalhadores em uma cooperativa mostrou melhoria nas condições de trabalho. A análise entre as condições de trabalho no lixão e na cooperativa apresenta diferenças importantes.
Conclusão: A organização dos catadores de materiais recicláveis em cooperativa contribuiu para atingir os ODS 1, 3, 5 e 10, ao promover a inclusão social, a sustentabilidade e o trabalho digno, concretizando, assim, o conceito de Trabalho Decente.
Palavras-chave: Catadores, Condições de Trabalho, Cooperativas, Desenvolvimento Sustentável, Economia Solidária, Saúde do Trabalhador.
Abstract
Objective: To show how the organization of recyclable materials collectors in a cooperative can contribute to the development of a sustainable economy, favoring the achievement of the Sustainable Development Goals in Brazil and the realization of Decent Work.
Methods: This is a qualitative, ethnographic study carried out in a recyclable materials cooperative. Initially, documents were examined to understand the historical data that motivated the organization of the cooperative. Interviews were then conducted with the cooperative’s management and workers.
Results: The cooperative’s history began in the 2000s, based on an analysis of the working conditions of the dump’s waste pickers. The organization of these workers into a cooperative showed an improvement in working conditions.
Conclusion: The organization of waste pickers into a cooperative has contributed to achieving the Sustainable Development Goals 1, 3, 5 and 10, by promoting social inclusion, sustainability and decent work, thus making the concept of Decent Work a reality.
Keywords: Waste Pickers, Working Conditions, Cooperatives, Sustainable Development, Solidarity Economy, Occupational Health.
Artigo de pesquisa/Dossiê Desenvolvimento Sustentável e Trabalho
Trabalho decente e sustentável em cooperativa de materiais recicláveis
Decent and sustainable work in a recyclable materials cooperative
Received: 05 August 2024
Revised document received: 29 November 2024
Accepted: 03 December 2024
A economia solidária é um conceito que se refere a formas de produção, consumo e distribuição de riqueza baseadas na cooperação, solidariedade e autogestão1. É vista como uma manifestação contrária às condições impostas pelo sistema de produção capitalista e pelo meio social, uma vez que, diferente do modelo capitalista tradicional, a economia solidária valoriza a coletividade e a justiça social, promovendo práticas que visam o bem comum e a sustentabilidade1,2. Um de seus principais objetivos é encerrar o ciclo de produtos criados no sistema e reaproveitar os materiais que compõem a cadeia, a fim de que circulem em todo o processo produtivo3.
O contexto dos resíduos sólidos recicláveis enfrenta problemas ambientais, principalmente relacionados ao elevado consumo e geração de resíduos sem planejamento e destinação correta, além de enfrentar outros problemas sociais, como o desemprego3. Nesse sentido, a economia solidária visa transformar resíduos sólidos recicláveis em novas matérias-primas para o setor de produção e as cooperativas emergem como a saída para a classe trabalhadora se manter no mercado de trabalho3.
No contexto de cooperativas de materiais recicláveis, os atores que compõem a cadeia de reciclagem compreendem instituições e indivíduos com um objetivo comum3. Dessa forma, a economia solidária se manifesta através da organização democrática dos trabalhadores, onde as decisões são tomadas coletivamente e os lucros são distribuídos de maneira justa entre os membros1. Este fato está de acordo com o 8º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS), proposto como parte da Agenda 2030 pela ONU, que atende as esferas econômica, social e ambiental, promovendo o trabalho decente e o crescimento econômico sustentável4.
As mudanças nas características do trabalho devem-se a uma multiplicidade de fatores, como demografia, mudanças sociais e econômicas, tecnologia e, mais recentemente, pandemias5. E entre os objetivos para os quais as Nações Unidas estão contribuindo, a fim de que atinjamos a Agenda 2030 no Brasil, destacam-se: (i) ODS 1: Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; (ii) ODS 3: Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todas e todos, em todas as idades; (iii) ODS 5: Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas; (iv) ODS 8: Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos; (v) ODS 10: Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles; e (vi) ODS 11: Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis6.
Nesse sentido, Schulte et al. (2022) buscam identificar, por meio de uma estrutura contendo quatros pilares e oito determinantes, os elementos de Saúde e Segurança no Trabalho (SST) para o trabalho digno7. A estrutura abrange fatores que influenciam a saúde e o bem-estar do trabalhador. Os objetivos vão além dos tradicionais traçados pela SST, como proteger os trabalhadores dos riscos ocupacionais, prevenir doenças e promover saúde, e considera os perfis demográficos específicos – por exemplo, mais mulheres, imigrantes e trabalhadores mais velhos, e mais doenças crônicas e problemas de saúde mental, acordos de emprego variados, entre outros pontos8. Além disso, valores fundamentais, como a confiança, a interligação, a participação, a justiça, a responsabilidade, o crescimento e a resiliência, são apontados como componentes necessários do trabalho digno para o campo da SST abordar o futuro do trabalho9.
Para avaliar o grau de disseminação de SST para o Trabalho Decente deve-se considerar os pilares do trabalho decente, que são objetivos estratégicos da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para promover o trabalho digno, e os determinantes do trabalho decente, que são fatores que influenciam positiva ou negativamente a realização de um trabalho digno10. Os pilares incluem: (i) a criação de emprego, que possui aspectos de SST, pois depende do nível de formação dos trabalhadores, grau de precariedade e efeitos adversos para a saúde que daí decorrem; (ii) a proteção social, que é a integração de práticas e investigação em matéria de SST para garantir condições de trabalho seguras e saudáveis, descanso adequado e acesso a benefícios; (iii) os direitos dos trabalhadores, que incluem a capacidade de negociar salários e condições seguras, recusar trabalho inseguro e a confiança nos empregadores para fornecer locais de trabalho seguros e saudáveis; e (iv) diálogo social, que é o direito de exercer a democracia no local de trabalho e de contribuir sobre questões que possam afetar a saúde e a segurança dos trabalhadores7. Os determinantes levantam questões que o domínio da SST terá de enfrentar, e incluem perigos e riscos novos e emergentes, demografia (envelhecimento e gênero), globalização, trabalho informal, migração, pandemias, alterações climáticas e políticas de SST11.
A comunidade de SST ainda necessita de uma abordagem ampla para englobar as profundas mudanças no mundo do trabalho e cumprir o ODS 8. A Agenda do Trabalho Decente foi lançada pela OIT em 1999 e, mais tarde, tornou-se parte da agenda da Organização das Nações Unidas (ONU) para o desenvolvimento sustentável10,12. O ODS 8 reconhece que o trabalho digno apoia o crescimento econômico inclusivo e sustentável e o emprego pleno e produtivo. O trabalho decente, uma meta da ONU, é um emprego que respeite os “...direitos fundamentais dos trabalhadores em termos de condições de segurança, saúde e remuneração...” (p. 2, tradução nossa)c, bem como respeite a integridade física e mental do trabalhador no exercício do seu emprego7,12. É útil identificar os aspectos de SST do Objetivo 8, uma vez que dizem respeito aos quatro pilares do trabalho decente: criação de emprego, proteção social, direitos dos trabalhadores e diálogo social7.
Os determinantes do trabalho decente variam significativamente entre países de diferentes níveis de rendimento. Em países de alto rendimento, os mercados de trabalho são frequentemente caracterizados por maior formalização, melhores condições de trabalho, maior proteção social e oportunidades de desenvolvimento profissional13. Em contraste, países de médio e baixo rendimento, como o Brasil, enfrentam desafios como alta informalidade, precariedade no trabalho, falta de proteção social e desigualdades significativas. Esses desafios são agravados por questões econômicas, sociais e políticas que influenciam a qualidade do emprego disponível e a capacidade dos trabalhadores de acessar trabalhos decentes. No Brasil, a economia solidária emerge como uma alternativa para enfrentar esses desafios, promovendo a inclusão social e a justiça econômica através de práticas cooperativas e autogeridas13.
Considerar e compreender as diferenças do trabalho decente e sustentável quando ocorrido em um lixão e, posteriormente, em uma cooperativa, é crucial para entender as melhorias proporcionadas pela organização dos catadores em cooperativas, tanto em termos de condições de trabalho quanto de impacto social e ambiental. No lixão, os catadores trabalham em condições extremamente precárias, sem qualquer tipo de proteção ou direitos trabalhistas. Eles estão expostos a riscos constantes à saúde, como doenças e acidentes, e frequentemente enfrentam discriminação e estigmatização social14. Em contraste, nas cooperativas de reciclagem, os catadores trabalham em um ambiente mais organizado e seguro. A cooperativa proporciona melhores condições de trabalho, com acesso a equipamentos de proteção individual, infraestrutura adequada e apoio social15,16. Além disso, a organização em cooperativas permite que os catadores tenham maior controle sobre seu trabalho e sua renda, promovendo a autogestão e a participação democrática nas decisões15,17.
As cooperativas também desempenham um papel fundamental na promoção dos ODS, contribuindo para a erradicação da pobreza, a promoção da saúde e bem-estar, a igualdade de gênero, a redução das desigualdades, e a criação de cidades e comunidades mais sustentáveis1,6. A organização em cooperativas não só melhora as condições de trabalho dos catadores, mas também gera benefícios econômicos e sociais mais amplos, fortalecendo a economia solidária e contribuindo para a construção de um futuro mais justo e sustentável1.
Nesse sentido, o presente artigo relata um estudo de caso realizado em uma cooperativa de materiais recicláveis, com o objetivo de investigar como a organização de catadores de materiais recicláveis em uma cooperativa pode contribuir para o desenvolvimento da economia sustentável, favorecendo o alcance dos ODS no Brasil e a concretização do Trabalho Decente.
Este foi um estudo qualitativo, de caráter etnográfico, realizado em uma cooperativa de materiais recicláveis localizada na região oeste do estado de São Paulo no município de Presidente Prudente. Inicialmente, foram examinados documentos para compreensão dos dados históricos que motivaram a organização da cooperativa. Em seguida, foram realizadas entrevistas individuais e coletivas em grupos focais, com trabalhadores no ano de 2023.
As entrevistas foram feitas com a gestão, para conhecimento das questões relacionadas à organização do trabalho e a aspectos relacionados à saúde e segurança. Foram inquiridos trabalhadores cooperados, para conhecimento, dentro de sua perspectiva, de sua saúde e das condições de segurança no trabalho. A cooperativa é composta por 90 trabalhadores cooperados, sendo todos aptos a responder as entrevistas. Ao todo, 47 trabalhadores concordaram em participar do estudo (56% dos trabalhadores) e preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
As entrevistas realizadas com a equipe de gestão e os trabalhadores cooperados foram de dois tipos: estruturadas e semiestruturadas. As entrevistas estruturadas, conduzidas com base em um roteiro previamente elaborado, tiveram como objetivo a coleta de dados demográficos dos participantes. Já as semiestruturadas foram orientadas por um guia de perguntas flexível, permitindo aprofundamento em temas específicos relacionados ao conhecimento da gestão sobre saúde, organização do trabalho e segurança dos cooperados, bem como à percepção dos trabalhadores sobre sua saúde e condições de segurança no ambiente laboral.
Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento dos participantes, assegurando a fidedignidade das respostas. Os dados provenientes das entrevistas estruturadas foram organizados em tabelas e submetidos à análise estatística descritiva, utilizando a ferramenta Excel. As entrevistas semiestruturadas foram integralmente transcritas e submetidas à análise qualitativa com base na análise de conteúdo18, possibilitando a identificação de categorias e padrões relevantes para os objetivos do estudo
O projeto do estudo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências e Tecnologia (FCT) da Unesp, campus de Presidente Prudente, com número CAAE 52463421.3.0000.5402, em 6 de janeiro de 2022.
No início dos anos 2000, foram levantados dados junto aos trabalhadores do lixão de Presidente Prudente, objetivando verificar quantos trabalhadores obtinham renda para subsistência do trabalho realizado no lixão, quanto era sua renda, qual o número de dependentes e quais as causas que os levaram a trabalhar no local, entre outros pontos18. Essa foi uma iniciativa do Projeto de Políticas Públicas, vinculado à Unesp campus de Presidente Prudente/SP, e pelas análises dos dados coletados observou-se que a organização dos trabalhadores do lixão, em uma cooperativa que tivesse autonomia e pudesse oferecer melhores condições sociais e econômicas, seria uma melhor alternativa no escopo das condições de trabalho. Também foi observado que os trabalhadores do lixão se sentiam esquecidos pelo poder público municipal19.
A iniciativa de conhecer as condições de trabalho favoreceu a formação de um grupo que estava disposto a entender a proposta de implantação de coleta seletiva no município e, com isso, saírem do lixão e se organizarem em uma cooperativa20.
Apesar da melhora das condições de trabalho relatada pelos trabalhadores, agora cooperados, eles tiveram que se adaptar a outro tipo e ritmo de trabalho, pois cada um tinha uma tarefa específica na organização do trabalho19. Também, um processo de educação na coleta seletiva de lixo começou a ser realizada pelo poder público com a população. Além da divulgação, dúvidas foram esclarecidas junto aos moradores para que a coleta fosse implementada19. O trabalho na cooperativa dividia-se entre aqueles que iriam coletar os resíduos descartados seletivamente pelos moradores, acompanhando o caminhão coletor, e os trabalhadores que permaneceriam na sede da cooperativa para realizar outras tarefas como separar os resíduos coletados, prensá-los e os comercializar. Ficou decidido que o ganho seria dividido igualmente entre eles independente da atividade desenvolvida19.
Com o intuito de fomentar e prestar suporte à organização da cooperativa, foram estabelecidas colaborações estratégicas com diferentes instituições, que desempenharam um papel fundamental na viabilização e na legitimidade das ações planejadas19,20. A FCT-Unesp foi a instituição idealizadora do projeto de Políticas Públicas, sendo acompanhada pela Companhia Prudentina de Desenvolvimento (Prudenco), empresa encarregada pela limpeza pública municipal, dando apoio técnico, operacional e logístico. Também, a gestão municipal, por meio das secretarias de Assistência Social e Meio Ambiente, desempenha papel crucial na promoção de campanhas e assistência aos cooperados durante a fase inicial da cooperativa. Para reuniões iniciais e como ponto inicial da coleta seletiva, foram utilizados espaços na Escola Francisco Pessoa localizada no Conjunto Habitacional Ana Jacinta. Por fim, a Universidade do Oeste Paulista (Unoeste) associou-se aos projetos derivados da iniciativa principal, contribuindo para a formação e manutenção da cooperativa19,20.
Em 2002, a cooperativa deu início ao programa de coleta seletiva, enfrentando, contudo, significativos desafios iniciais. Entre eles, destacam-se: a redução na renda dos cooperados, em virtude da insuficiência de resíduos coletados, mesmo com o apoio dos moradores; a inexistência de uma infraestrutura adequada para a triagem dos materiais; e a falta de um veículo específico para o transporte dos recicláveis20. Como resposta a essas dificuldades, a Secretaria de Assistência Social ofereceu suporte direto aos trabalhadores, enquanto a Prudenco disponibilizou um caminhão para o armazenamento temporário dos resíduos, que eram posteriormente triados em um galpão cedido por um empresário local20. Essas ações conjuntas permitiram à cooperativa superar as adversidades iniciais e consolidar-se como a Cooperlix.
A sede da cooperativa foi inaugurada um ano após sua formação, em dezembro de 2003. Com um lugar específico para realizar seu trabalho, os cooperados ganharam também o prestígio da população, além do resgate de sua autoestima, vontade de crescer e de valorizar seu trabalho, conforme dados relatados no trabalho de Cantoia e Leal (2007)19.
De acordo com dados do Consórcio Intermunicipal de Resíduos Sólidos do Oeste Paulista (CIRSOP), em 2020, a coleta seletiva realizada pela cooperativa abrangia 71,48% do município21.
O CIRSOP faz parte de uma carteira de projetos estruturados pela Caixa Econômica Federal, financiado pelo Governo Federal, e abrange a concessão conjunta dos serviços de coleta, transbordo, transporte, tratamento e disposição final dos resíduos sólidos urbanos (RSU) de 10 dos 13 municípios consorciados, dentre eles, o município de Presidente Prudente21. O objetivo do CIRSOP é mudar a realidade de desperdício, invertendo a lógica de enviar material que tem valor comercial para aterros, adotando um modelo de redução da geração, recuperação de recicláveis, aproveitamento dos resíduos orgânicos, geração de energia, proteção ambiental e valorização de trabalhadores de materiais recicláveis como os catadores, além da implantação de tarifas economicamente sustentáveis e socialmente justas e o incentivo à educação ambiental da população21. O CIRSOP cumpre metas e colabora com o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Planares) e o Plano Intermunicipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PIGIRS). Ambos estabelecem reduções graduais e crescentes no volume de resíduos gerados, no aumento expressivo do aproveitamento de materiais recicláveis, na geração de emprego e renda para os catadores, entre outros objetivos21.
O PIGIRS é instrumento da Política Nacional de Resíduos Sólidos e sua elaboração é condição para os municípios terem acesso a recursos da União destinados a empreendimentos e serviços relacionados à limpeza urbana e ao manejo de resíduos sólidos21. Desta forma, tem a função de diagnosticar problemas existentes na gestão dos resíduos sólidos, apontando estratégias e ações para que os problemas sejam sanados de maneira eficiente21. As metas ambientais para uma empresa assumir os serviços de gestão consorciada dos resíduos pelo PIGIRS são elevadas, espera-se a recuperação total de 65% dos resíduos gerados, com aproveitamento de 35% dos resíduos recicláveis, 18% dos úmidos e a utilização de 15% do total de resíduos em geração de energia, abrindo assim a possibilidade de as cooperativas e associações de catadores realizarem a coleta seletiva, como no caso de Presidente Prudente21.
A coleta seletiva no município de Presidente Prudente é realizada, até o momento, exclusivamente pela Cooperlix, que diariamente coleta aproximadamente sete toneladas de resíduos recicláveis22.
A Figura 1 mostra uma linha do tempo com os principais eventos históricos críticos da formação da cooperativa.

Como dados do estudo, observamos que os catadores cooperados, apesar de conquistarem um espaço importante no circuito da reciclagem no município, com melhora da qualidade de vida e trabalho, sofrem intercorrências. Como exemplo, no mês de setembro de 2023 não ocorreu o repasse de auxílio da Prefeitura, fato que comprometeu o salário dos trabalhadores e o abastecimento e manutenção dos caminhões da cooperativa, ocorrendo somente sessenta dias depois, exigindo dos trabalhadores resistência no gerenciamento das dificuldades inesperadas23,24. Dos 47 cooperados entrevistados, quatro trabalhavam no lixão e, consequentemente, estão na cooperativa desde sua criação.
A média de idade dos cooperados entrevistados é de 41,54 anos, com amplitude entre 21 e 71 anos, ¼ dos participantes tenha entre 21 e 30 anos. Dos 47 cooperados que participaram do estudo, 30 se identificaram como sendo do sexo feminino/mulheres e 17 se identificaram como pertencentes ao sexo masculino/homens. Os quatro trabalhadores entrevistados que trabalhavam no lixão ocupam as maiores faixas etárias e possuíam, na época da entrevista, entre 58 e 78 anos.
A gestão da cooperativa, realizada pelos próprios cooperados, é dividida em administrativa e operacional. As atribuições administrativas, são realizadas pelos cooperados que ocupam os cargos de presidente, vice-presidente e secretário, que são eleitos democraticamente a cada dois anos. No entanto, estes cooperados exercem, simultaneamente, cargos/funções na cadeia produtiva.
Além disso, existe um acordo entre os cooperados que todos são aptos a assumir qualquer posto de trabalho ou função, independentemente da atividade a ser desenvolvida. No entanto, segundo os próprios cooperados, algumas funções e postos específicos como a coleta de resíduo sólido realizada nas ruas, são geralmente ocupadas pelos trabalhadores mais jovens devido às exigências físicas, como força e destreza motora. Por outro lado, a função de triagem dos materiais na esteira costuma ser desempenhadas por mulheres, consideradas entre os pares mais habilidosas para tarefas que demandam destreza fina, sendo consideradas mais capacitadas para essa atividade.
Quando os cooperados assumem um novo posto de trabalho, eles são instruídos e treinados pelos colegas que já exercem a função. As coletas são realizadas pelos próprios cooperados e não por catadores. Eles têm orientações sobre os riscos e cuidados que devem adotar nessa atividade, assim como nas demais atividades existentes na cooperativa.
A cooperativa tem Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA) organizada em atendimento à Norma Regulamentadora no 5 (NR-5)25, sendo esta responsável pela orientação quanto ao uso pelos trabalhadores dos equipamentos de proteção individuais (EPI). De acordo com a gestão administrativa, não existem registros formais de acidentes de trabalho.
Nas observações, ficou evidente que os trabalhadores que têm contato direto com material reciclável fazem uso do EPI e, dependendo da atividade (quando não existe um contato direto), alguns trabalhadores não utilizam luvas e óculos protetores (mesmo sendo obrigatório e tendo orientação de como utilizar). Estes cooperados foram questionados sobre a razão de não utilizar o EPI e informaram que se sentiam experientes e seguros devido ao trabalho realizado há muitos anos na cooperativa. Nos relatos obtidos, o conhecimento tácito foi apontado como a causa da não ocorrência de acidentes de trabalho dentro da cooperativa.
Quando os cooperados foram questionados sobre quais medidas ou métodos utilizam para evitar riscos à saúde no ambiente de trabalho, 98% responderam que tinham atenção nas atividades de trabalho desenvolvidas e, principalmente, usavam EPI adequados à função. Relataram que, ao manusear objetos perigosos, como cacos de vidro e rejeitos hospitalares – que, embora devam ser coletados por uma empresa especializada responsável, muitas vezes são descartados incorretamente pela população junto aos resíduos recicláveis –, utilizam EPI.
Dos entrevistados, 93,2% reconhecem a CIPA como agente fiscalizadora na garantia da segurança e saúde no ambiente de trabalho. Também, ao serem questionados se já receberam alguma orientação quanto à prevenção da saúde no ambiente de trabalho além das oferecidas pela CIPA (por meio de treinamento ou palestras, por exemplo), foram citadas palestras do corpo de bombeiros, da equipe da Unesp, da gestão da cooperativa e dos técnicos de segurança do trabalho.
O estudo apresenta a forma de trabalho em cooperativa como alternativa que fortalece a ODS 1, que é a erradicação da pobreza26. A análise entre as condições de trabalho no lixão e na cooperativa apresenta diferenças importantes. No lixão, os catadores trabalham de maneira informal, sem qualquer garantia de renda fixa, sem proteção social e expostos a diversos riscos à saúde. Em contraste, na cooperativa, os trabalhadores têm acesso a um ambiente mais seguro, infraestrutura adequada e uma renda mais estável16.
As entrevistas e narrativas dos trabalhadores do lixão destacam a extrema precariedade e vulnerabilidade. A falta de EPI e a exposição a materiais perigosos aumentam o risco de acidentes e doenças. Além disso, a informalidade do trabalho impede o acesso a benefícios sociais, perpetuando o ciclo de pobreza.
Também, a saúde e o bem-estar dos trabalhadores (ODS 3) são drasticamente afetados pelas condições de trabalho no lixão27. Os riscos contínuos devido à exposição a resíduos perigosos, à falta de EPI, ao ambiente insalubre, entre outros, distanciam pela degradação no desenvolvimento de suas atividades de trabalho, os trabalhadores do lixão14. Na cooperativa, ações como a adoção de medidas de segurança, o uso de EPI e capacitações promovem melhores condições de trabalho. A multivocalidade é valorizada e o saber-fazer colocado em prática28,29.
Os trabalhadores da cooperativa, independentemente da idade, têm melhores condições de saúde e segurança. A presença de uma CIPA e a implementação de programas de prevenção de acidentes contribuem para a melhoria do bem-estar dos trabalhadores.
As condições insalubres e a falta de medidas de segurança no lixão resultam em alta ocorrência de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho, afetando negativamente a qualidade de vida dos catadores16.
Alguns princípios praticados socialmente, como a divisão entre trabalho “para homens” e “para mulheres” e a hierarquização destes trabalhos, organizam a divisão sexual do trabalho30. Nas cooperativas de materiais recicláveis, observa-se uma divisão entre o trabalho masculino, ligado predominantemente à operação de maquinário e à utilização de força física, e o trabalho feminino, que, majoritariamente, envolve habilidade, agilidade e atenção2, fato observado também na cooperativa estudada.
A análise da participação das mulheres na cadeia de reciclagem também mostra diferenças marcantes entre o lixão e a cooperativa. No lixão, as mulheres enfrentam discriminação e têm menor acesso a oportunidades de trabalho digno16,20. Na cooperativa, há uma maior inclusão e valorização do trabalho feminino. Os dados sobre o número de mulheres e o papel na triagem dos materiais indicam que, na cooperativa, há uma maior participação de mulheres em funções de triagem e gerenciamento, promovendo a igualdade de gênero e empoderamento feminino.
É importante ressaltar que as mulheres são aptas a desenvolver qualquer tipo de atividade, não havendo maior predisposição da mulher para a atividade X ou Y2. Na cooperativa em questão, embora os homens assumam predominantemente funções que exijam mais força física (como a coleta) e as mulheres atividades relacionadas à atenção e destreza (como a triagem), esses papéis se invertem quando os cooperados julgam necessário – para cobrir um colega que teve que se ausentar do trabalho, por exemplo –, sem prejuízo na produção.
As cooperativas de materiais recicláveis oferecem uma oportunidade de acesso ao trabalho e à renda, garantindo sustento e inclusão social de milhares de mulheres31. A participação nesses espaços contribui para maior autonomia feminina. Também, as mulheres organizadas dentro de cooperativas, quando ocupam cargos de representatividade, assumem responsabilidades, articulam-se politicamente, lançam campanhas, entre outros pontos. Ou seja, ressignificam suas vidas e, portanto, seu papel social31. Através do trabalho, as cooperadas sentem-se mais fortes e capazes de lutar por seus direitos e, consequentemente, criam laços de afetividade e reciprocidade; sentem-se motivadas a voltar a estudar; recebem formação política; entendem a disputa de gênero nas organizações de que participam; percebem a violência doméstica, a discriminação racial e a exclusão social a que são submetidas, além de reconhecerem o machismo, a falta de oportunidades e a naturalização das diferenças entre os sexos30.
Dessa forma, a economia circular favorece não somente a igualdade de gênero, mas, também, a redução das desigualdades (ODS 10)32. A organização em cooperativas contribui para a redução das desigualdades ao proporcionar melhores condições de trabalho e uma distribuição mais equitativa da renda. No lixão, a desigualdade é acentuada pela informalidade e falta de proteção social. A falta de acesso a direitos trabalhistas e a ausência de uma rede de proteção social amplificam as desigualdades entre os catadores do lixão20.
A cooperativa de reciclagem desempenha um papel fundamental na promoção de cidades e comunidades mais sustentáveis. Ao formalizar o trabalho dos catadores, a cooperativa melhora a gestão de resíduos e contribui para a redução do impacto ambiental. A implementação da coleta seletiva em Presidente Prudente, facilitada pela cooperativa, mostra um impacto positivo na gestão de resíduos e na conscientização ambiental da comunidade.
A transição do trabalho informal no lixão para a organização em cooperativas representa uma mudança significativa na qualidade do emprego. A cooperativa oferece condições de trabalho decente, com remuneração justa, segurança no trabalho e acesso a direitos sociais. Dessa forma, observa-se que o Trabalho Decente está intimamente ligado a outros ODS além da oitava. Questões como a erradicação da pobreza, saúde e bem-estar, igualdade de gênero, redução das desigualdades e cidades e comunidades sustentáveis fortalecem a conexão pelas 12 metas do ODS 8, que promove crescimento econômico inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho digno para todos.
A economia solidária vista na cooperativa principalmente por meio da organização democrática dos trabalhadores e distribuição justa dos lucros entre os membros mostra-se uma forma de alcançar o trabalho decente e seguro, já que está pautada na criação de emprego e direitos dos trabalhadores, bem como na proteção e diálogo social.
No município de Presidente Prudente, a organização dos catadores de materiais recicláveis em cooperativa contribuiu para atingir os ODS, com destaque para os 1, 3, 5, 8 e 11, ao promover a inclusão social, a sustentabilidade e o trabalho digno, concretizando, assim, o conceito de Trabalho Decente.
Contato: Maria Luisa Alves Pereira. E-mail: mla.pereira@unesp.br
