Resumo: O artigo busca argumentar como a branquidade do Estado operou e opera na ocupação da cidade de São Paulo, a partir de experiências etnográficas com movimentos de luta por moradia. Por branquidade do Estado entendo os vínculos entre os diferentes tipos de racismo presentes em algumas práticas e concepções estatais, especialmente no que diz respeito à política urbana e à repressão policial. A branquidade do Estado, enquanto modo de funcionamento, vincula-se à heteroclassificação racial realizada pelo próprio Estado, atrelada à propagação do não reconhecimento das relações sociais como racializadas. Não obstante, a branquidade do Estado é constantemente desafiada e confrontada por pessoas e grupos não brancos e seus modos de ocupar as cidades, como o footing, as ocupações de prédios e os rolezinhos.
Palavras chave: BranquidadeBranquidade,RacismoRacismo,Relações raciaisRelações raciais,Antropologia urbanaAntropologia urbana,Antropologia da políticaAntropologia da política.
Abstract: Based on ethnographic experience with homeless movements, the article discusses how the whiteness of the State has functioned and functions in the occupation of the city of Sao Paulo. State whiteness, here, is understood as the links between the different kinds of racism that can be found in some State practices and concepts, especially in what comes to urban policies and the repression by the police. The State whiteness, as a way of functioning, is linked to the racial hetero-classification performed by the State, altogether with the spread of the non-recognition of the social relations as racialized. Nevertheless, the State whiteness is constantly defied and confronted by non-white people and groups and their ways of occupying the cities, such as the footing, the occupation of empty buildings, and the rolezinhos.
Keywords: Whiteness, Racism, Racial Relations, Urban Anthropology, Anthropology of Politics.
Resume: L’article tente de démontrer, à partir d’expériences ethnographiques avec les mouvements sociaux de lutte pour un logement, de quelle façon la blanchitude de l’État a opéré et opère dans l’occupation de la ville de São Paulo. Nous définissons la blanchitude d’État comme étant les liens entre les différents types de racisme présents dans certaines pratiques et conceptions d’État, notamment en matière de politique urbaine et de répression policière. La blanchitude d’État, comme mode de fonctionnement, est liée à l’hétéro-classification raciale réalisée par l’État lui-même, liée à la propagation de la non-reconnaissance des relations sociales comme racialisées. Néanmoins, la blanchitude de l’État est constamment mise à défi et confrontée par des personnes et des groupes non-blancs et leurs façons d’occuper les villes, comme par le footing, les squats et les rolezinhos (NTD: l’invasion des centres commerciaux par la jeunesse descendue des favelas ou venue des périphéries).v
Mots clés: Blanchitude, Racisme, Relations raciales, Anthropologie urbaine, Anthropologie de la politique.
Artigo
DA BRANQUIDADE DO ESTADO NA OCUPAÇÃO DA CIDADE *
STATE WHITENESS IN THE DEVELOPMENT OF THE CITY
BLANCHITUDE D’ÉTAT DANS L’OCCUPATION DE LA VILLE
Recepção: 09 Outubro 2014
Aprovação: 13 Janeiro 2016
DOI: 10.17666/319109/2016
A liberdade requer um mundo de outros.
Mas o que acontece quando os outros não nos oferecem reconhecimento?
(L. Gordon, prefácio a Pele negra, máscaras brancas, de F. Fanon)
Fragmento 1: início de 2012, uma de minhas primeiras idas a campo para a pesquisa de mestrado. 1 O local, o saguão de reuniões de um prédio ocupado por três movimentos de moradia, na região da Luz, centro da cidade de São Paulo. A ocasião, uma reunião de base de um dos movimentos. Os presentes, a maioria mulheres negras e de baixa renda. Muitas delas estavam lá pela primeira vez, era sua primeira reunião, e cabia à liderança – um homem negro de pele bastante escura – apresentar o movimento àquelas pessoas. Ao final da reunião, uma das mulheres vem em minha direção com uma pasta e começa a chorar copiosamente. Eu, pesquisadora branca de uma universidade pública, pergunto o que há, sem sucesso de resposta. Ela continua a chorar, retirando da pasta vários papéis e os colocando, à força, em minha mão. Fui observando os papéis e os lendo, quando conclui que precisava tentar esclarecer para aquela mulher que, não, eu não era uma funcionária da prefeitura nem da Secretaria da Habitação e não poderia resolver seu problema de falta de moradia digna. Quando consegui me fazer entender, o choro convulsivo cessou repentinamente.
Fragmento 2: junho de 2014, manifestação em Brasília, vésperas do início da Copa do Mundo de futebol, sediada no Brasil. Mote da manifestação: “Se não tiver direito à moradia, não vai ter copa”, que integrava a série dos protestos organizados pela Frente Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa. 2 A esmagadora maioria de pessoas presentes no ato são famílias pertencentes ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). Na ocasião, indígenas também protestavam na Esplanada dos Ministérios, reivindicando demarcação de terra. Esses indígenas somam-se ao ato e passam a compor sua linha de frente, em direção ao Estádio Nacional Mané Garrincha, reformado por ocasião do megaevento, tornando-se o segundo maior estádio brasileiro. O ato é violentamente reprimido pela cavalaria, tropa de choque e por carros blindados da Polícia Militar, cujo contingente suplantava o número de manifestantes.
Fragmento 3: junho de 2014. Novamente o centro de São Paulo. Cumprimento de mandato de reintegração de posse em outro prédio ocupado por outro movimento de moradia, vinculado à Frente de Luta por Moradia (FLM). O advogado do movimento e militante, Benedito Barbosa, o Dito, um homem idoso e negro, é impedido de entrar no prédio para defender seus clientes, isto é, impedido de exercer suas prerrogativas de advogado. Não obstante, é brutalmente imobilizado pela recém-denominada “tropa do braço”, um efetivo de policiais militares treinados com técnicas de artes marciais para conter manifestantes. Dito é levado à delegacia.
Fragmento 4: trecho da Carta Aberta da ocupação São João, localizada no centro de São Paulo, por ocasião de uma liminar de reintegração de posse, em 2012:
Somos mais de 600 famílias trabalhadoras sem teto. Realizamos os principais serviços para o bom funcionamento desta cidade. Entretanto nossas famílias estão espremidas por um conjunto de necessidades. Lutamos e trabalhamos muito para sobreviver, mas a cidade, regida pelas leis do mercado, especialmente imobiliário, impede que nossa renda assegure nossos direitos. Sabemos que a situação de nossas famílias decorre de situação de injustiça histórica. Sabemos também que, nas circunstâncias atuais, nosso sofrimento não tem razão de continuar.
A despeito de os termos branquitude e branquidade figurarem em nossa linguagem cotidiana e, mais especialmente, em certos âmbitos dos estudos acadêmicos sobre racismo e da militância antirracista, é raro os vermos sendo atribuídos ao Estado. Os quatro fragmentos com que abro este artigo são, em minha análise, expressões do que pretendo chamar de branquidade do Estado, especificamente no que diz respeito à ocupação da cidade. Há, porém, diferentes compreensões acerca de branquidade e branquitude. Para Bento (2002, p. 29), a branquidade se define por “traços da identidade racial do branco brasileiro a partir das ideias sobre branqueamento”, que tem como aspectos importantes “o medo que alimenta a projeção do branco sobre o negro, os pactos narcísicos entre os brancos e as conexões possíveis entre ascensão negra e branqueamento. Edith Piza (2005, 2002) e Camila M. de Jesus (2012), por outro lado, entendem a branquitude – diferentemente da branquidade – como conceito que expressa a aceitação, por parte de pessoas brancas, da existência de privilégios e, a partir daí, uma atuação consequente dessas pessoas no combate ao racismo – uma espécie de “tomada de consciência”. A proposta que faço encontra mais eco e inspiração, no entanto, no modo como Vron Ware (2004) trabalha com branquidade, e proponho trabalhar com o conceito de branquidade do Estado. Para esta última autora, cuja obra insere-se na vertente dos estudos críticos da branquidade ( critical whiteness studies), a raça só apareceria sob a expressão do racista, e seria um conceito perpetrado por várias vias. A vertente dos estudos críticos da branquidade, nos Estados Unidos e no Reino Unido,
[...] abarca a tentativa de descobrir vínculos entre os diferentes tipos de racismo: a hipocrisia e a perversidade da Ku Klux Klan, a prática, pela polícia, de visar pessoas de outras raças que não a branca durante ações policiais com a sanção do governo, o fornecimento de livros didáticos ultrapassados aos professores primários dos bairros suburbanos segregados, e a ignorância, o solipsismo e a postura defensiva dos que imaginam que, de algum modo, ser classificados como brancos é a norma, e todas as outras pessoas é que são racializadas ( Ware, 2004, p. 9).
Em suma, a raça seria o atributo de quem não compartilhasse do corpo branco, transparente. O corpo branco seria a norma, o corpo transparente, desprovido de raça e produzido reiteradamente por meio do exercício classificatório e segregador do outro racializado.
Como branquidade do Estado entendo – e buscarei aqui expressar – os vínculos entre os diferentes tipos de racismo presentes em algumas práticas e concepções estatais, especialmente em duas dimensões que dizem respeito à ocupação da cidade: a política urbana (ou urbanística) e a repressão policial a ela vinculada, especificamente na cidade de São Paulo. Proponho utilizar o conceito de branquidade do Estado enquanto um modo de funcionamento, atualizado no Estado, a partir da criação de uma cisão eu/outro (ou nós/eles) – daí seu caráter relacional. Só há branquidade porque há a divisão da humanidade, sob o ponto de vista da própria branquidade, entre brancos e não brancos; o branco tomado enquanto referência padrão de humanidade e os não brancos a partir de sua negação (isto é, do que não são), sequer reconhecidos como dotados de positividade, destituídos de humanidade e de possibilidade de existência. Se o que é não branco não pode existir, o Estado, em sua branquidade, é um sujeito atuante nesse impedimento da existência, como pretendo demonstrar. Entendo que a atuação do Estado para esse impedimento da existência baseia-se na imputação de desigualdade à diferença. Reconhecer o outro (no caso, o não branco) enquanto diferente não justificaria políticas de impedimento da existência; revestir a diferença de desigualdade configura a força propulsora dessas políticas estatais. 3
Há duas abordagens possíveis para o problema. A primeira, se a branquidade seria característica intrínseca ao Estado, vinculada à sua formação, origem e funções predeterminadas. Dessa questão, poderíamos depreender outra, de cunho, talvez, mais político-filosófico: é possível um Estado não racista? Isto é, é possível um Estado despido de branquidade? A segunda abordagem é assumir a branquidade como característica histórica e presente do Estado. Por motivo de escopo e afinidade, me deterei, aqui, na segunda abordagem 4 – que, do meu ponto de vista, é uma questão sociológica por excelência. Pretendo, então, nas páginas que seguem, apresentar algumas demonstrações sobre como o Estado brasileiro é, sociológica e historicamente, dotado de branquidade. Para tanto, algumas considerações prévias serão necessárias, a respeito do que estou chamando de branquidade e de seu par homólogo, o racismo, no pensamento social brasileiro. Vamos a elas.
Sem a pretensão de esgotar a discussão, mencionarei neste tópico alguns aspectos que julgo cruciais para este artigo, acerca do modo como classe e raça apareceram em algumas obras fundamentais do pensamento social brasileiro. Tomo como referência uma das características distintivas da branquidade, segundo Frankenberg (2004, pp. 312-313, grifo meu), a saber: “a branquidade é comumente denominada ou deslocada dentro das denominações étnicas ou de classe”.
A subsunção das relações raciais às relações de classe foi a tônica da produção acadêmica das ciências sociais brasileiras desde a década de 1930, quando Gilberto Freyre publica, em 1933, seu clássico Casa grande e senzala. O autor, nessa obra e em sua continuidade, Sobrados e mucambos (de 1936), pretende abarcar a totalidade da vida social e entender sua organização, estruturação ou funcionamento olhando para a ordem, estrutura e função da família no seio dessa vida social. Sua preocupação, portanto, é com a relação entre o particular e o geral, sob uma matriz classista. Entretanto, essa matriz classista de Freyre é conjugada com o culturalismo; tal conjugação adquire concretude por meio do conceito de “miscigenação”.
No entanto, antes de Freyre, vale mencionar, a análise e interpretação das relações sociais no Brasil e na formação da sociedade brasileira estava, sim, vinculada a uma matriz racialista – não obstante, a uma matriz racialista de cunho evolucionista e vinculada ao determinismo biológico; refiro-me ao que ficou conhecido como a escola de Nina Rodrigues. Essa escola de pensamento, do final do século XIX, apontava o que identificava como “miscigenação” de maneira depreciativa, como ameaça à civilidade e à perpetuação da sociedade brasileira, e associada à urgência de políticas de higienização ( Corrêa, 1998). É a mesma miscigenação que, em reação ao higienismo ostensivo presente na escola de Nina Rodrigues, é semanticamente ressignificada e exaltada na obra de Gilberto Freyre. Tal exaltação aparece especialmente no elogio da figura do mulato5, fruto original da mistura entre raças: filho do senhor de escravos com a escrava (liberta ou não). Essa exaltação do mulato, notável em Sobrados e mucambos6, é politicamente estratégica e visava, à época, amenizar simbolicamente a história de sofrimento e dominação de seus antepassados negros e escravos (então recém-libertos), ao elogiar a mulatice e o que dela provém da negritude para, supõe-se, aprofundar (ou iniciar a construção) o sentimento de identidade nacional e pertencimento dos mulatos à sociedade brasileira e, finalmente, reconhecê-los como cidadãos.
Mas a estratégia de exaltação da miscigenação e do mulato é, ela mesma, uma estratégia de branquidade. Ocorre que o mulato não é escravo 7 nem pode aspirar a tornar-se senhor. Some-se a este beco sem saída a situação instaurada pela intensa urbanização aliada à campanha abolicionista, que impossibilitava a certeza de ascensão social que tinham os senhores de escravos e de terras até aquele momento. Desse modo, os filhos bastardos dos senhores passaram a ser enviados à Europa para, lá, tornarem-se bacharéis, cujo título conferia prestígio social ao mulato. O reinado de Dom Pedro fora o “reinado dos bacharéis” (cf. Freyre, 1977). Grosso modo, Gilberto Freyre embranquece o bacharel mulato ao interpretar e explicar a transferência de poder da aristocracia rural branca para esse bacharel, o declínio do patriarcado rural e a ascensão da denominada aristocracia dos bacharéis. O mulato aparece, assim, como mais embranquecido porque mais europeizado. Ao ostentar seu diploma, ele se embranquece e passa a ser reconhecido no meio social e político locais. É ele quem traz as ideias iluministas da Europa e as aplica ao regime político brasileiro, bem como expressa o desejo de ‘liberdade, igualdade e fraternidade’ à brasileira, na vontade de Independência em relação à metrópole. É ele, também, quem traz e usufrui do teatro, da bengala e do chapéu à brasileira – aberto no topo da cabeça para poder enfrentar o calor dos trópicos.
A abordagem de Freyre sobre as relações raciais via exaltação da miscigenação aconteceu nos anos seguintes à abolição do regime escravocrata no Brasil. Trata-se, portanto, de uma leitura retrospectiva, devotada à consolidação da ideia de uma democracia racial em formação. Segundo Guimarães (1995, p. 26),
[...] desde os estudos pioneiros de Gilberto Freyre no início dos anos 30, seguidos por Donald Pierson nos anos 40, até pelo menos os anos 70, a pesquisa especializada de antropólogos e sociólogos, de um modo geral, reafirmou (e tranquilizou) tanto aos brasileiros quanto ao resto do mundo o caráter relativamente harmônico de nosso padrão de relações raciais.
Ao final desse período mencionado por Guimarães – e por ele caracterizado como tendo, em geral, reafirmado a harmonia das relações raciais –, deparamo-nos com a dissonante obra de Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes, publicada em 1964. Em contraposição à visão de Freyre, que exalta o que chama de miscigenação pelo viés do branqueamento (ou embranquecimento), Fernandes identifica a existência do racismo na sociedade brasileira e o vincula ao modo de organização da sociedade escravocrata. Embora sua obra tenha muitas descontinuidades em relação à de Gilberto Freyre, há um forte elemento sociológico que as subjaz: a subsunção das relações raciais às relações de classe. Para Fernandes, o racismo é um resquício da antiga ordem social – a escravocrata – que seria extinto tão logo fosse a nova ordem – de classes – consolidada.
Posteriormente à obra de Florestan Fernandes, Carlos Hasenbalg (1979) publica Discriminação e desigualdades raciais no Brasil – um ano depois da manifestação em frente ao Teatro Municipal de São Paulo, a qual é tida como o marco da fundação do Movimento Negro Unificado (MNU) (cf. Gonzalez, 1982). O MNU recebeu o livro com entusiasmo e dele se apropriou. Na obra, Hasenbalg converge com Fernandes ao negar a existência de uma democracia racial no Brasil e afirmar a existência do racismo. Diferencia-se, no entanto, da abordagem de A integração do negro na sociedade de classes, de Fernandes, ao afirmar que a segregação racial e a marginalização dos negros seriam não um resíduo da ordem escravocrata, mas sim o resultado de desigualdades entre brancos e não brancos, a começar por sua distribuição demográfico-geográfica no território brasileiro, com os não brancos ocupando – aí sim, como resquício da ordem escravocrata – as regiões economicamente menos desenvolvidas do país. Essas desigualdades raciais seriam, de acordo com Hasenbalg, refundadas e reafirmadas no modo de produção capitalista. Ao demonstrar – com números e uma argumentação quantitativa – que racismo e capitalismo se retroalimentam, Hasenbalg não entende o racismo como reminiscência do passado, e vincula classe e raça sem subsumir uma à outra. 8
Pois bem, se a escola Nina Rodrigues reconhecia as relações raciais como conformadoras das relações sociais na sociedade brasileira, porém, de uma maneira racista; se, para desvencilhar-se disso, a estratégia de Gilberto Freyre e de Florestan Fernandes foi, cada uma à sua maneira, subsumir as relações raciais às relações de classe; e se a hipótese de Fernandes foi refutada, pois o desenvolvimento da sociedade de classes não extinguiu o racismo da sociedade brasileira; não é por acaso que a abordagem de Hasenbalg, que reconhece as desigualdades raciais e as vincula às desigualdades sociais, tem grande aceitação e incorporação no movimento negro. Já era hora, por fim, de uma análise das relações sociais que retomasse a importância das relações raciais e reconhecesse a existência do racismo – contudo, e fundamentalmente, sob um viés não racista –, algo que os movimentos negros já reivindicavam e reconheciam.
Assim, embora Freyre, Fernandes e Hasenbalg sejam expoentes de visões distintas acerca do racismo e das relações raciais, nas obras dos dois primeiros observamos a subsunção das relações raciais às relações de classe; e, na obra do terceiro, uma tentativa de vincular as desigualdades sociais e de raça. À parte isso, ambas as abordagens reconhecem o Estado como reduto antirracialista, isto é, que não reconhece “um sistema de classificação social que supõe a existência de raça” ( Bernardino-Costa, Santos e Silvério, 2009, p. 215, nota 1). Esse antirracialismo do Estado brasileiro,
[...] que perdurou como discurso hegemônico pelo menos entre a década de 1930 até o início deste milênio, não significou um antirracismo conforme indicam as pesquisas e estudos de Florestan Fernandes (1994 e 1978), Carlos Hasenbalg (1995, 1992, 1987 e 1979), Nelson V. Silva e Carlos Hasenbalg (1992), Ricardo Henriques (2001), entre outros. Ao contrário, ao lado do antirracialismo estatal, o racismo não só ganhou fôlego como se cristalizou na sociedade brasileira, assim como foi um dos fatores que ajudou a construir e a reproduzir, principalmente entre cidadãos brancos e negros, visíveis e incontestáveis desigualdades de renda, de escolaridade, de acesso à saúde, de acesso à água e ao saneamento básico, de tipos de habitação, entre outras desigualdades, como têm demonstrado os dados e pesquisas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ( Bernardino-Costa, Santos e Silvério, 2009, p. 216).
É, enfim, a partir da análise de Hasenbalg que Antônio Sérgio Guimarães (1999) e Bernardino-Costa, Santos e Silvério (2009), entre outros, propõem o reconhecimento de que as relações sociais são racializadas – isto é, de que a raça é um operador de diferença, classificação e desigualdade – e, daí, propõem o engajamento num racialismo antirracista. Assim, a luta antirracista só poderia ocorrer mediante o reconhecimento do racialismo enquanto modo de organizar as relações sociais – diferentemente do que propõe uma visão antirracialista, que nega a existência do racismo ao negar a existência das raças, como ainda fazem os partidários da ideia de que vivemos uma “democracia racial” e de que as relações sociais não são racializadas (cf., por exemplo, Maggie, 2008; Maggie e Fry, 2004). No Fragmento 1 que abre este artigo, é possível observar na ação da mulher que me entrega os documentos, o reconhecimento de que as relações sociais são racializadas; e mais: ao reconhecer-me enquanto branca, equiparar-me ao Estado e me entregar os documentos, há aí também o reconhecimento de que o Estado opera, também, racialmente.
Reconhecer as relações sociais como racializadas não se baseia, no entanto, em uma ideia biológica de raça – até porque a ciência tem, sistematicamente, negado a existência de raças da espécie humana –, mas sim na raça enquanto construto social. Em 1977, Clóvis Moura observou que
[...] ao falarmos de negro não objetivamos […] o negro puro mas, definir uma etnia que, vinda de matrizes negras, conserva a sua cor próxima a essas matrizes e, por elementos de cultura, posição social e econômica, formam uma unidade que é tida como representativa do negro, pela sociedade branca ( Moura, 1977, p. 20, nota 4, grifos meus, grifos no original omitidos).
Atualizemos sua formulação com a ponderação de Guimarães (1999, p. 11):
“Raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se, ao contrário, de um conceito que denota tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo social.
Assim, o autor conclui (p. 31), “não é necessário reivindicar nenhuma realidade biológica das ‘raças’ para fundamentar a utilização do conceito em estudos sociológicos”, ao que acrescento: nem para reconhecê-las enquanto socialmente construídas e enquanto operando socialmente, nessa forma específica de naturalizar a vida social que é o racismo.
Fernandes (2008, p. 29) caracteriza a abolição da escravidão no Brasil como “espoliação extrema e cruel”, ao desenvolver o argumento de que os escravos teriam sido libertados sem que os senhores ou as instituições (Estado e Igreja) os preparassem para o novo regime “da vida e do trabalho” ( Idem). Muitos sociólogos e historiadores fazem coro a essa análise histórica da abolição da escravidão no Brasil (cf., por exemplo, Moura, 1977; Nascimento e Larkin Nascimento, 2000), segundo a qual o liberto vira senhor de si sem dispor de “meios materiais e morais” ( Fernandes, 2008, p. 29) para se tornar responsável por si e por seus dependentes. “Criou-se uma grande massa marginalizada que, ao sair das senzalas, não tinha condições para ingressar no processo de produção” ( Moura, 1977, p. 30). Rui Barbosa ( apudMoura, 1977, p. 23, nota 7-A) define a abolição da escravatura como “uma ironia atroz”; ao negro liberto, todos os direitos de cidadãos são negados ( Moura, 1977, p. 24).
Ainda Fernandes chama a atenção a como o processo pós-abolição e o lugar do negro na cidade de São Paulo são bastante peculiares em relação a outros lugares do país, especialmente devido à rápida urbanização da cidade. De fato, poucos anos após a abolição, em 1892, é construído, em São Paulo, o Viaduto do Chá, seguido da Praça da República, em 1905; o Vale do Anhangabaú, em 1910; e o viaduto Santa Ifigênia, em 1913, todos na região central. É também nessa época que são construídos edifícios inspirados na arquitetura europeia e que até hoje são referências arquitetônicas na cidade: a Estação da Luz, em 1901; o Teatro Municipal, em 1911; o Mercado Central, em 1932 (cf. Sevcenko, 1992; Maquiaveli, 2012). Até os anos de 1920, a indústria nacional vai gradativamente substituindo a importação de bens de consumo e a cidade vai se tornando autossuficiente em termos de produção. É também nessa época que os fazendeiros fixam residência em São Paulo e passam a desempenhar, além de tarefas relativas à produção, atividades referentes à circulação da mercadoria café (cf. Libâneo, 1989, p. 22). Para trabalhar nas fazendas de café, imigravam europeus, em grande parte italianos. Os “carcamanos”, como eram aqui chamados, “foram escolhidos a dedo para branquear o país” ( Ianni, 1987, pp. 139-140).
Toda essa conjuntura segregou os negros socialmente e os conduziu à marginalidade do mundo do trabalho. Hofbauer (2006, p. 344) lembra Domingues, que recupera as manifestações de racismo no dia a dia da cidade no pós-abolição:
Muitos empregadores não escondiam que não admitiam “pessoas de cor”; alguns setores industriais, sobretudo a área têxtil, eram conhecidos por recusar-se a contratar “trabalhadores negros” nas suas fábricas. Vários estabelecimentos comerciais contratavam negros somente para serviços de limpeza. E também quando um negro queria alugar uma casa, ouvia com frequência o já conhecido “prefere-se branco” ou “prefere-se estrangeiro”. Houve clubes recreativos e esportivos, restaurantes, pistas de patinação, cinemas e inclusive hospitais e escolas de elite […] que barravam ou dificultavam a entrada de pessoas de cor. Domingues (2004: 135) cita ainda a proibição de os negros entrarem na Guarda Civil, tornarem-se fiscais ou guardas penitenciários, que seria cancelada apenas em 1928, por Júlio Prestes.
No entanto, é importante identificar e ressaltar os modos historicamente invisibilizados de organização, sociabilidade e resistência, enfim, os modos de vida da população negra. Segundo Abdias do Nascimento e Elisa Larkin Nascimento (2000, p. 204), no início do século XX, a atividade afro-brasileira se exprimia principalmente na forma de “organização de clubes, irmandades religiosas e associações recreativas”. Desde antes dos anos de 1920 e, portanto, imediatamente após a abolição, já estava em surgimento uma imprensa negra em São Paulo, com jornais como O Menelike, O Kosmos, A Liberdade, Auriverde e O Patrocínio ( Idem, ibidem). Em 1931, é fundada a Frente Negra Brasileira, na luta contra a segregação do negro “nos cinemas, teatros, barbearias, hotéis, restaurantes, enfim, em todo o elenco de espaços brasileiros em que o negro não entrava” ( Idem, p. 205).
A partir dos anos de 1930, são os migrantes nacionais que chegam à cidade, especialmente os nordestinos. Muitos farão de sua área de moradia a periferia: casas próprias, autoconstruídas, em locais com “mínimas condições, com a classe trabalhadora arcando com a compra do terreno, do material necessário, [e] a construção propriamente dita” ( Frúgoli Jr., 1995, p. 29). A meio caminho entre a periferia e o centro estavam os cortiços, outra alternativa para a população de baixa renda. O maior cortiço, segundo Libâneo (1989, p. 33), era chamado de Vaticano, “e se localizava entre a Rua Bela Cintra e o centro da cidade, num pequeno vale formado pelas ruas da Abolição e Santo Amaro. Verdadeira área segregada no centro da cidade, constituía-se de vários conjuntos de sobrados geminados”. Como escreve Jorge Americano (1962, p. 30):
O que predominou para moradia de gente pobre foi sempre o cortiço. Algum terreno de centro de quarteirão, com pequenas habitações contíguas, com saída para a via pública por um corredor de céu aberto, entre muros. Ou então, os porões habitados. As lavadeiras estendiam roupas no terreiro comum, onde brincavam crianças seminuas e cigarras cantavam ao sol. À tarde, vinham chegando os homens, carroceiros e operários e um ou outro vagabundo ou mendigo, cuja renda dava bem para pagar o aluguel. E gente sem profissão definida.
Simultaneamente, ocorre uma publicização de espaços privados: chácaras de barões transformam-se em regiões centrais públicas e compartilhadas da cidade – para um público ainda restrito, pois permanecem “local de consumo, comércio e negócio das elites” (Bonduki apud Frúgoli Jr., 1995, p. 21). O centro abrangia a Praça (então Largo) da Sé, “Pátio do Colégio, Largo de São Francisco, Praça João Mendes, Largo da Memória, Largo de São Bento, Ruas XV de Novembro, Direita, Florêncio de Abreu, São Bento etc.” ( Frúgoli Jr., 1995, p. 21). O footing na Rua Direita já ia se consolidando enquanto atividade de domingo, na qual os negros “passeavam pelas calçadas e ruas adjacentes” ( Nascimento e Larkin Nascimento, 2000, p. 205). Havia o local de footing dos brancos e o dos negros. No entanto, em 1938, um ano após ser instaurada a ditadura do Estado Novo, o chefe da polícia paulista proibiu a tradição do footing na Rua Direita. “Negociantes brancos, donos das lojas dessa importante artéria comercial, reclamaram contra aquela ‘negrada’ que ocultava as vitrines, e o delegado Alfredo Issa baixou uma portaria banindo esse entretenimento semanal dos negros” ( Nascimento e Larkin Nascimento, 2000, p. 205). Teresa Caldeira (2014, p. 13), por sua vez, é taxativa:
A circulação no espaço público sempre foi regulada. Desde os tempos de Baudelaire, vagar pela cidade foi mais para uns – homens, ricos, dândis – do que para outros – mulheres, pobres, negros, jovens. O controle dos movimentos em público nunca deixou de estar no cerne da preocupação dos governantes e das suas tecnologias de segurança. Desde os primórdios das cidades modernas, circular por circular, andar em grupos (sobretudo de homens jovens), dar uma volta, ou dar um rolê, são atividades que acabam sendo escrutinadas e, no limite, criminalizadas, a não ser que os protagonistas (em geral homens) pertençam a grupos privilegiados.
No final dos anos de 1930 e início dos anos de 1940, na gestão Prestes Maia (1938-1945), foi feita uma primeira proposta que engendrava uma concepção de cidade para tentar organizar a metrópole desvairada: uma cidade modernista, monumental, cujo planejamento urbano visava evitar confrontos e colisões ( Libâneo, 1989, p. 36; Harvey, 1993, p. 69). Inspirado nos bulevares parisienses do Barão de Haussmann, o Plano de Avenidas de Prestes Maia reforçava, entre outras coisas, a ideia de centralidade de uma região da cidade, à qual deveria ser possível, contudo, chegar rapidamente – pelas grandes avenidas perimetrais principais ou pelas vias radiais secundárias.
O rápido acesso valorizou o centro da cidade. Local de empresas e empregos, serviços, atividades comerciais, infraestrutura urbana, instituições político-administrativas e religiosas e patrimônio arquitetônico e cultural, o centro é também local de encontro, sociabilidade, mediação de conflitos, manifestações políticas, protestos. Já historicamente marcado por uma “conflitualidade” (cf. Frúgoli Jr., 2000), o centro intensifica-se como região para a elite, intensificando, também, o processo de segregação e expulsão dos moradores de baixa renda – não brancos – e do comércio popular para zonas mais afastadas. Mas, também historicamente, essas mesmas elites não ocupam o centro, fazem dele locus para a prática da especulação imobiliária, consonante com um Estado de laissez faire, que não intervém sobre o mercado da terra urbana (cf. Villaça, 1998; Maricato, 1996). O centro, então, esvazia-se de habitação, porquanto as elites mudam-se para áreas mais afastadas; não obstante, o centro permanece cheio de imóveis ociosos, vazios, na prática da especulação imobiliária ( Kowarick, 2009).
Essa é uma dinâmica que parece se repetir na história de São Paulo e de outras cidades: conforme os estratos sociais mais altos ocupam determinada região fora do centro, os estabelecimentos de serviços os seguem e as classes populares ocupam o centro de maneira pouco organizada aos olhos das elites: fundamentalmente, ocupações de prédios ociosos, moradias improvisadas e trabalhos informais. Esse centro torna-se, então, aos olhos das elites, “decadente”. Posteriormente, utiliza-se o argumento da decadência para promover intervenções saneadoras nessas regiões, equacionando pobreza e criminalidade. A esses processos de intervenção em regiões antes abandonadas pelas elites, ocupação popular do centro e equalização de ocupação popular à degradação, alguns pesquisadores têm chamado de gentrificação, importando e problematizando (cf., por exemplo, Leite, 2007; Frúgoli Jr. e Sklair, 2009; Rubino, 2003) o termo de pesquisas feitas no exterior (cf. Smith, 1996; Zukin, 1987). A partir de sua pesquisa sobre a cidade do Recife, no estado de Pernambuco, por exemplo, Leite (2007) reconhece o processo pelo qual, por meio de intervenções no patrimônio e melhorias na infraestrutura urbana, orientadas pelo mercado e pelo turismo, busca-se requalificar os usos da cidade e, com isso, as tecnologias de segregação e confinamento.
Chegamos, então, às ocupações, como as que compõem o pano de fundo dos Fragmentos 1, 3 e 4, que abrem este artigo. As primeiras ocupações de que se tem registro e que publicizaram os movimentos de moradia com suas propostas políticas para o centro de São Paulo – uma revitalização que incluísse a construção de Habitação de Interesse Popular e luta por maior participação da população nos espaços de decisão e debate sobre a política habitacional paulistana – aconteceram em 1997. 10 O Fórum de Cortiços e a Unificação das Lutas de Cortiços (ULC) ocuparam um casarão na Rua do Carmo, na Sé; um antigo prédio do INSS na Avenida 9 de Julho; e o casarão Santos Dumont, no bairro de Campos Elíseos, distrito de Santa Cecília. Este último estava abandonado por seus proprietários desde 1983, e já tinha sido algumas vezes ocupado por grupos de sem-teto desde então, mas não reunidos em um movimento como o da ação de 8 de março de 1997, segundo Roberta Neuhold (2009). Em sua dissertação de mestrado, ela afirma que
[...] depois da ocupação do casarão Santos Dumont, a União dos Movimentos de Moradia (UMM) anunciou que as ocupações no centro da cidade tornar-se-iam recorrentes caso o governo municipal, estadual e federal não atendesse suas reivindicações ( Folha de S.Paulo, 24 de março de 1997) ( Neuhold, 2009, p. 53).
Quase vinte anos já se passaram desde essas primeiras ocupações. Não só na cidade de São Paulo, mas nas grandes cidades do país elas eclodem e se mantêm cotidianamente. O mês de abril é um mês em que, desde o Massacre de Eldorado dos Carajás, as ocupações se intensificam. 11 Muitas dessas pessoas que ocupam terrenos e prédios ociosos em São Paulo são mulheres de baixa renda e migrantes das regiões Norte e Nordeste do país e do interior do estado. De peles de muitas cores, 12 muitas dessas pessoas não se consideram negras e endossam a afirmação presente no Fragmento 4 da introdução deste artigo: afirmam-se trabalhadoras e trabalhadores da cidade de São Paulo. Vejamos como isso corrobora o argumento da branquidade do Estado.
A esse respeito, é preciso recordar que já em meados dos anos de 1950, Oracy Nogueira chamou a atenção para o “preconceito de cor” no Brasil, que não era idêntico ao racismo dos Estados Unidos – este último, ele denominou “preconceito racial de origem”, que existe a partir do conhecimento de que a pessoa tem algum parente ascendente negro, ainda que a pessoa em questão seja loira de olhos azuis, sem qualquer traço de negritude. O preconceito presente no Brasil se expressava, segundo Nogueira, como “preconceito racial de marca”, ou “preconceito de cor”: um preconceito diferente do de raça de origem e irredutível à dimensão classista, pois “atinge pessoas (negras e pardas) [também] das chamadas classes superiores”, como lembra Cavalcanti (1996). Em “Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem”, Nogueira ([1954] 1985) elenca doze enunciados para diferenciar ambos os tipos (ideais, como o autor faz questão de frisar) de preconceitos raciais. O último enunciado diz respeito ao
[...] tipo de movimento político a que inspira: quando o preconceito é de marca, a luta do grupo discriminado tende a se confundir com a luta de classes; onde é de origem, o grupo discriminado atua como uma “minoria nacional” coesa e, portanto, capaz e propensa à ação conjugada ( Nogueira, 1985, p. 303).
Tomemos, a título de exercício, essa proposição de Nogueira. Se assim o for, essa dita confusão entre a luta contra a desigualdade social (ou “luta de classes”) e a luta contra o racismo (ou “luta do grupo discriminado [por preconceito de marca]”) pode parecer, à primeira vista, nociva à luta antirracista, porquanto reforce a subsunção das relações raciais às relações de classe – tônica hegemônica do pensamento social brasileiro até os anos de 1970, como mencionei no início deste artigo – e acabe, por fim, negando a existência do racialismo, isto é, da raça como operador de desigualdade nas relações sociais. No entanto, proponho que justamente essa “confusão” endosse a tese que aqui apresento acerca da branquidade do Estado na ocupação da cidade. Para explicar como, é necessário agregar outro ponto de vista à proposição de Nogueira: a de que a cor (ou raça) não é oriunda apenas da autodeclaração e autoclassificação, mas também da heteroclassificação, isto é, da classificação atribuída por um elemento exterior. A heteroclassificação, como alguns pesquisadores sugerem (cf., por exemplo, Petruccelli, 2000, 2007), também atrela classe e raça. E um elemento que realiza tal classificação com bastante ferocidade é o Estado, ou dimensões do Estado.
Durante a ação de reintegração de posse do Fragmento 3 do início deste artigo, duas dimensões do Estado que se fazem presentes, mais intensa ou mais sub-repticiamente, são: a Polícia Militar e a Secretaria de Habitação. Ainda que, como dito anteriormente, as pessoas que ocupam prédios ociosos organizadas em movimentos sociais de luta por moradia considerem-se de cor branca, negra, parda, branca-moreno-claro, cor de jambo, preta, morena-pálida, cor-de-cuia, alemã, alourada, ruiva ou roxa, 13 não é sua autodeclaração racial ou de cor que terá qualquer efeito sobre sua situação de moradia ou sobre o lugar que lhe é permitido ou outorgado na cidade; antes, é a heteroclassificação racial realizada por um Estado que atua de modo racializado e racista que é corresponsável pela remoção das famílias da ocupação São João de seu local de moradia. Ao expulsá-las de suas moradias; ao não as reconhecer como cidadãs portadoras de direitos; ao não reconhecer, no caso, a prevalência do direito à moradia sobre o direito à propriedade; 14 ao não permitir que seus corpos habitem determinadas regiões da cidade; ao fazer tudo isso, proponho, o Estado as está classificando como não brancas. E, ao serem consideradas não brancas, são alvo da branquidade de Estado.
Mas, para classificá-las como não brancas, é preciso definir o que é o branco. Ora, para o Estado, o que é branco? É branco o próprio Estado, as políticas de Estado, a ocupação da cidade orientada pelas elites e pelo capital. É branca a norma, e é branco, também, subsumir as relações raciais às relações de classe. É branco não entender as relações sociais como racializadas. As vidas que não se encaixam nos ideais da branquitude são vidas não brancas. Sob esse ponto de vista, também o indígena é um não branco – que se une a outros não brancos no ato do Fragmento 2 do início deste artigo.
Classificar as pessoas que ocupam prédios organizadas em movimentos de moradia como não brancas é, ainda, expressão de um modo de funcionamento do Estado que, enquanto baluarte do modernismo, opera dicotomicamente pela lógica do “ou”: se se é não branco, não se pode ser branco. É aqui que entra a menção, novamente, à tese de Oracy Nogueira (1985): ainda que muitas dessas pessoas não se autodeclarem negras, ao serem consideradas não brancas pelo Estado recebem um tratamento diferente do tratamento dirigido aos brancos. Os tratamentos recebidos pelos não brancos por parte da Polícia Militar são exemplares desse modo de funcionamento, como o é o tratamento recebido por Dito no Fragmento 3 pelas famílias da ocupação São João.
Quando a mulher do Fragmento 1 me entrega os documentos, sua ação reconhece a existência de um modo de funcionamento racialista na política estatal, ao equalizar mulher branca e Estado. Quando a carta da ocupação São João, no Fragmento 4, afirma que os moradores da ocupação são trabalhadores da cidade, ela parece atualizar uma formulação tributária de uma lógica classista – que, não obstante, subsume um sistema de classificação racialista. Proponho que essa formulação denote uma habilidade tradutória, 15 mobilizada para a relação com o modo de funcionamento do Estado, que subsume a lógica racialista a uma lógica classista. Esse modo de funcionamento permite ao Estado atualizar, conforme apontaram Bernardino-Costa, Santos e Silvério (2009), seu caráter proclamadamente antirracialista: ao não reconhecer a raça como um operador de desigualdade social, esse modo de funcionamento estatal perpetua, justamente, o racismo e a branquidade do Estado.
A ocupação do Fragmento 1 é a ocupação Mauá, com a qual trabalhei detidamente em minha dissertação de mestrado ( Paterniani, 2013) e que existe desde 2007. Formada por três movimentos, ela foi ocupada primeiramente por muitas pessoas que foram despejadas de outras duas ocupações, a Plínio Ramos e a Prestes Maia. A ocupação do edifício Prestes Maia, que se tornou a maior ocupação vertical do Brasil – cerca de 500 famílias passaram por lá – ocorreu em 2003. Ela se tornou referência por seu tamanho, mas também por ter começado numa gestão da prefeitura e terminado em outra – duas gestões que engendraram concepções distintas de cidade e da relação com os movimentos sociais: a gestão Marta Suplicy, do PT, que evocava a gestão Luiza Erundina, especialmente pela retomada da política habitacional de mutirão autogestionário e pela criação de programas de habitação de interesse social, como o Locação Social e o Bolsa Aluguel; 16 e a gestão Serra/Kassab, de uma coligação entre PSDB/DEM/PSD, marcada por reintegrações de posse truculentas e falta de diálogo com movimentos sociais em geral. Ocupada em 3 de novembro, a ocupação Mauá é assim descrita por Carlos Filadelfo (2008, pp. 86-87), na etnografia realizada em seu mestrado:
O prédio é composto por dois blocos: um voltado para a Rua Brigadeiro Tobias, número 700, de 9 andares; e o outro de 22 andares na Avenida Prestes Maia, número 911. Originalmente funcionava no prédio a Companhia de Tecidos, cuja entrada era pelo bloco menor, onde ainda consta o nome da antiga empresa em sua fachada. […] Além de suas amplas dimensões, capazes de comportar muitas famílias que vinham de condições precárias de moradia, a localização do prédio correspondia a um grande atrativo para muitos dos integrantes do movimento. A Prestes Maia é uma das avenidas de maior circulação da cidade, com grande concentração de variados tipos de serviços e uma das mais completas infraestruturas da cidade, com ampla oferta de transportes, saúde e educação. O prédio localiza-se muito próximo à Estação da Luz, o que corresponde a fácil acesso ao metrô e ao trem metropolitano. Além disso, a região oferece linhas de ônibus para boa parte da cidade de São Paulo. Mas um dos principais motivos foram mesmo as oportunidades de geração de renda que essa região oferece, já que a maioria dos futuros moradores já trabalhava na região como ambulantes e catadores de material reciclável.
Uma peculiaridade marcou a ocupação Prestes Maia: uma vasta biblioteca, organizada por um dos moradores, Seu Severino, a partir de 600 títulos que havia coletado em seu trabalho como catador de lixo nas ruas de São Paulo. Ela funcionava no subsolo da ocupação, onde também funcionavam uma brinquedoteca e “salas de reciclagem para os catadores tratarem o material coletado nas ruas” ( Filadelfo, 2008, p. 101). No fim da ocupação, a biblioteca, que ganhou projeção na mídia, interesse da imprensa, de documentaristas e de estudantes, somava cerca de 17 mil livros ( Filadelfo, 2008, pp. 22, 102-103).
A reintegração de posse da Prestes Maia ocorreu em 15 de junho de 2007. As famílias foram atendidas e o prédio continuou vazio. Heitor Frúgoli 17 lembra que, após a violenta desocupação, as famílias tinham duas alternativas de atendimento: morar na periferia, em conjunto habitacional, ou optar por receber a Bolsa Aluguel. Ele conta sobre a angústia que tomava conta das pessoas na hora dessa tomada de decisão: havia uma fila que todos deviam enfrentar, imensa. Ao fim da fila, devia-se declarar sua escolha a um representante da prefeitura. Frúgoli diz que a dificuldade da decisão era tamanha que muitas pessoas enfrentavam a fila sem conseguir resolver e, estando cara a cara com o representante da prefeitura, voltavam ao final da fila para ter mais tempo para decidir.
A Plínio Ramos, ocupada em 2003 por 79 famílias, tornou-se referência entre os movimentos de moradia, tanto pela organização da ocupação como pela violência do despejo que as famílias sofreram, em 16 de agosto de 2005, dois anos e oito meses após a ocupação. “Os moradores organizaram no prédio atividades como educação infantil, alfabetização de jovens e adultos, oficina de costura, grupos de mulheres e jovens, atividades culturais e de formação política. Até mesmo uma horta hidropônica vertical foi criada, utilizando paredes da construção” ( Fórum Centro Vivo, 2006, p. 36). No despejo, a polícia fez uso de bombas de gás lacrimogêneo, gás de pimenta e balas de borracha. No dossiê organizado pelo Fórum Centro Vivo (2006, p. 36), lê-se: “este despejo forçado envolvendo cerca de trezentas pessoas – entre elas 110 crianças – foi o mais violento de que se teve notícia nos últimos anos da cidade de São Paulo”. Não foi um mero despejo; foi preciso matar, com doses de truculência, essa ocupação tão viva. O dossiê segue: “Com o despejo, os moradores que não tinham para onde ir montaram seus barracos na rua em frente ao prédio, que teve portas e janelas vedadas com tijolos e cimento e permanece vazio” ( Idem, p. 37), como é de praxe em imóveis reintegrados. O acampamento cresceu, com famílias despejadas de outras ocupações, e se estendeu nas “calçadas da rua Mauá com a Plínio Ramos” ( Idem, p. 39).
A ocupação Mauá tem uma localização emblemática: uma das ruas limítrofes do polígono alvo do Projeto Nova Luz. 18 Esse mesmo polígono recebeu, há alguns anos, a alcunha de cracolândia, principalmente pela grande mídia, por concentrar usuários de crack. 19 A região da cracolândia passou a ser alvo, assim, especialmente em 2010 e 2011, de violentas operações que vinculavam o governo municipal e estadual e a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Assim, a dicotomia Nova Luz/cracolândia acaba sendo uma dicotomia que reflete um mesmo real: o real dos dominantes, para usar os termos de Deleuze (1985), pois o diagnóstico da degradação (contido no termo cracolândia) serve como justificativa para a revitalização (proposta pelo Nova Luz), e tanto o diagnóstico como o Projeto representam interesses exteriores aos das pessoas cujas vidas acontecem pela região.
A história das ocupações Prestes Maia e Plínio Ramos evidencia a reação do Estado a essas formas de vida que desafiam projetos de cidade em curso e endossados pelo próprio Estado. São políticas de Estado que visam expulsar as pessoas não brancas e de baixa renda de seus locais de moradia devido a políticas urbanísticas autoritárias em áreas centrais. Esse autoritarismo de Estado, embora imbuído de branquidade, é formulado – por algumas das pessoas afetadas, organizadas nos movimentos de moradia, nas ONGs que se opõem a projetos como o Nova Luz, arquitetos e estudantes – como um projeto burguês ou elitizado, isto é, em que a raça aparece subsumida à classe.
Mais recentemente, em paralelo às ocupações, a cidade de São Paulo e outras grandes cidades brasileiras passaram a dar mais atenção, especialmente através da grande mídia, a outro fenômeno: o rolezinho. Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Scalco (2014, p. 2) sumarizam a situação:
Trata-se de adolescentes das periferias urbanas que se reúnem em grande número para passear, namorar e cantar funk nos shopping centers de suas cidades. O evento causou apreensão nos frequentadores e, consequentemente, fez com que alguns proprietários dos estabelecimentos conseguissem o direito na justiça de proibir a realização dos rolezinhos, barrando o acesso dos jovens. Deste então, emergiu um amplo debate sobre a ferida aberta da segregação racial e social na sociedade brasileira, uma vez que a maioria desses jovens é composta por negros e pobres.
Para além da importante relação entre pessoas, mercadorias e marcas enquanto fenômeno das periferias globais, que essas autoras demonstram, o que interessa a este artigo é a dimensão racista que a reação aos rolezinhos manifestaram. Nas palavras delas:
Um dos pontos altos da midiatização dos rolezinhos foi a sua capacidade de trazer à tona o debate da segregação social e espacial e da desigualdade, especialmente a partir do momento em que o critério para barrar a entrada de jovens nos shoppings centers passou a ser completamente aleatório, calcando-se na classe e na cor. A força policial foi usada para que se cumprisse a ordem judicial de proibição dos rolezinhos e isso foi amplamente legitimado pela população [...]. Em suma, os negros da periferia estavam sendo uma vez mais vítimas de um apartheid velado à la brasileira (nesse caso, nem tão velado assim) ( Pinheiro-Machado e Scalco, 2014, p. 11).
Por fim, as autoras lembram da existência de dois “Brasis”, o branco e o negro, que, quando se encontram, o primeiro faz uso de suas armas mais poderosas – a força policial – para manter imaculado seus espaços de sociabilidade. Ora, a força policial é aparato estatal; o Estado intervém, portanto, para assegurar que os espaços brancos se mantenham salvaguardados da presença não branca e da presença negra. Ei-la, a branquidade do Estado, tanto nas reintegrações de posse dos prédios ocupados como na intervenção policial nos rolezinhos em shoppings centers.
Para os fins deste artigo, interessaram as expressões da branquidade do Estado em, especialmente, duas dimensões que dizem respeito à ocupação da cidade: a política urbana (ou urbanística) e a repressão policial a ela vinculada, especificamente na cidade de São Paulo. Desejei demonstrar como a branquidade do Estado atua, na ocupação da cidade, por meio de repressão e força policial (como nas reintegrações de posse e intervenção policial nos rolezinhos em shopping centers), por meio de orientações políticas e decretos (como os casos de reintegrações de posse de ocupações e o caso da proibição do footing na Rua Direita em 1938), e também por meio de outorga do poder de branquidade a entidades privadas (como é o caso do consórcio de empresas que efetivava o Projeto Nova Luz). Tangencialmente, também dei algumas sugestões de como a branquidade se mostra fora do Estado – com as pessoas brancas reclamando da “negrada” no footing no centro e os donos e frequentadores (brancos) dos estabelecimentos comerciais de shoppings centers proibindo a entrada de jovens com base em sua classe “vista” em sua raça “não normal”. O Fragmento 3 demonstra a branquidade do Estado, proibindo, por meio da força policial, um homem negro de exercer seu próprio trabalho como advogado, dada a assumida incongruência entre sua profissão e sua cor de pele.
Também desejei argumentar como a branquidade do Estado opera vinculada à heteroclassificação racial realizada pelo próprio Estado, e como esse processo de classificação subsume raça à classe social. Uma abordagem mais detida permite-nos desvelar essa subsunção, que aqui desenvolvi a partir de trecho da carta da ocupação São João. Nela, propus observarmos a habilidade tradutória dos movimentos sociais para lidar com o Estado, incorporando léxica e gramaticalmente tal subsunção. A percepção da subsunção reforça a negação do caráter não racialista do Estado; a escolha do Fragmento 1 se deu especialmente porque penso sê-lo exemplar da expressão do reconhecimento de que o Estado opera de modo racialista e racista.
Evidentemente, é preciso ponderar, o Estado não é um monolito homogêneo, e talvez haja espaços e projetos dentro do Estado que possam questionar ou subverter a branquidade – embora, como mencionado no início deste artigo, eu não tenha partido da abordagem investigativa acerca da possibilidade de existência de um Estado não racista. Se assim o for, quero dizer, se for possível encontrar brechas de subversão da política de branquidade dentro do Estado, talvez essas brechas sejam os espaços ocupados por pessoas com histórias de vida e de luta nos movimentos sociais. Talvez esse seja um dos sentidos pelos quais os movimentos sociais insistem na participação e na atuação em setores do Estado. 20 Algumas políticas de governo, como as supracitadas da gestão Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo; reuniões com representantes do governo federal, como as que os recentes atos de rua (como o do Fragmento 2) e ocupações do MTST renderam a seus dirigentes, nas quais algumas demandas dos movimentos são atendidas; 21 o Estatuto da Cidade; experiências de autogestão (cf. Oliveira, 2010, p. 181): tudo isso os movimentos de moradia consideram “conquistas”. Para manter o léxico deste artigo, proponho que entendamos o que os movimentos chamam de “conquistas” como expressões da subversão da branquidade do Estado.
Enfim, o que a branquidade do Estado também demonstra é um Estado fundado em uma relação na qual o outro não é reconhecido como diferente, mas sim como desigual. Atualmente, um uso da noção de alteridade 22 endossa isso, porque a conjuga com um Estado que é, por definição, oriundo de uma relação contratual de dominação, a dialética senhor-escravo. A relação de dominação que funda o Estado imputa desigualdade à diferença que o conceito de alteridade engendra. E, a partir dessa imputação de desigualdade, vem a orientação do controle por sobre a vida não branca. Como branquidade do Estado, entendi os vínculos entre os diferentes tipos de racismo presentes em algumas práticas e concepções estatais. A branquidade do Estado abarca, estrategicamente, um modo de funcionamento parasitário, que contém em si a orientação para a morte e o aniquilamento dos modos de habitar e de viver não brancos. Essa orientação, no entanto, não pode ser plenamente realizada, porque ela justamente faz parte do funcionamento do Estado. Por isso, esse modo de expressão parasitário da orientação de aniquilamento: porquanto atua no sentido de definir, delimitar, controlar e outorgar os modos de habitar e de viver não brancos; os modos de habitar e de viver negros.