Resumo: Este artigo pretende investigar a estratificação social das condições de saúde no Brasil. Testamos as hipóteses da convergência ou divergência do gradiente socioeconômico na saúde ao longo do ciclo de vida de grupos de idade, o que nos permitiu evidenciar se as disparidades sociais em saúde são fruto de processos de nivelamento ou acumulação das (des)vantagens ao longo do ciclo de vida dos brasileiros. Nossos resultados não sustentam a hipótese de convergência dos efeitos da posição socioeconômica na condição de saúde em grupos etários mais velhos da população, antes sinalizam ampliação das disparidades sociais em saúde nesses grupos. Interpretamos e discutimos tais resultados tendo em vista estudos interdisciplinares que abordam processos de acumulação das (des)vantagens socioeconômicas ao longo do ciclo de vida dos indivíduos.
Palavras chave: DesigualdadeDesigualdade,Disparidades sociais em saúdeDisparidades sociais em saúde,Estratificação social da saúdeEstratificação social da saúde,Acumulação da desigualdadeAcumulação da desigualdade,Ciclo de vidaCiclo de vida.
Abstract: The article investigates the social stratification of the conditions of health in Brazil. From testing the hypotheses of convergence or divergence of the socioeconomic gradient on health along the life cycle of the age groups, the article discusses whether the social disparities in health stem from leveling or disadvantages accumulation processes. The outcomes of the study do not support the hypothesis of convergence of the effects of the socioeconomic position in the condition of health of the oldest age groups of the population. They rather indicate the enlargement of the social disparities in those groups. The paper discusses those outcomes in the light of the interdisciplinary studies that approach the processes of accumulation of socioeconomic disadvantages along the life cycle of the individuals.
Keywords: Inequality, Social Stratification, Health Disparities, Social Stratification of Health, Cumulative Disadvantage, Life Course.
Resume: Cet article se propose d’enquêter sur la stratification sociale des conditions de santé au Brésil. Nous avons testé l’hypothèse de convergence ou de divergence du gradient socioéconomique en matière de santé tout au long du cycle de vie des groupes d’âge, ce qui nous a permis de démontrer si les disparités sociales en santé résultent d’un processus de mise à niveau ou d’accumulation de (dés) avantages tout au long du cycle de vie des brésiliens. Nos résultats ne soutiennent pas l’hypothèse de convergence des effets de position socioéconomique dans l’état de santé dans les groupes plus âgés de la population, mais signalent un élargissement des disparités sociales en santé au sein de ces groupes. Nous avons interprété et discuté ces résultats en vue d’études interdisciplinaires qui portent sur les processus d’accumulation de socio-économique (dés) avantages tout au long du cycle de vie des individus.
Mots clés: Inégalité, Disparités sociales en santé, Stratification sociale de la santé, Accumulation des inégalités, Cycle de vie.
Artigo Original
POSIÇÃO SOCIOECONÔMICA, IDADE E CONDIÇÃO DE SAÚDE NO BRASIL
AGE, SOCIOECONOMIC STATUS AND HEALTH IN BRAZIL
LA POSITION SOCIO-ÉCONOMIQUE, L’ÂGE ET L’ÉTAT DE SANTÉ AU BRÉSIL
Recepção: 16 Março 2015
Aprovação: 24 Novembro 2015
DOI: 10.17666/319207/2016
Há evidências, consistentes em diversas populações, de que grupos que se encontram em situação de desvantagem socioeconômica apresentam piores condições de saúde quando comparados com outros grupos em posição mais vantajosa, seja do ponto de vista da renda, melhor nível educacional ou ocupações mais seguras e estáveis no mercado de trabalho. Essas pesquisas mostram que o relacionamento entre posição socioeconômica e saúde se dá em uma ampla gama de dimensões e com diferentes graus de intensidade ( Marmot, Kogevinas e Elston, 1987; Mackenbach e Kunst, 1997; Marmot et al., 1997; Crimmins, 2001; Crimmins e Saito, 2001; Elo, 2009; Umberson, Crosnoe e Reczeck, 2010). No Brasil, pesquisas populacionais orientadas por diversas disciplinas (sociologia, demografia, epidemiologia e economia, principalmente) encontram resultados que corroboram e dialogam com as pesquisas internacionais no sentido de identificar associações entre nível socioeconômico e saúde. Para diversas operacionalizações da condição de saúde (ou desfechos de saúde) – como autoavaliação, prevalência de doenças crônicas, comportamentos de risco etc. – foi demonstrado que quanto pior a posição socioeconômica, maior a chance de desenvolver problemas de saúde e sua progressão para consequências graves ( Neri e Soares, 2002; Barros et al., 2006; Giatii e Barreto, 2006; Santos, 2011).
Dificilmente poderíamos minimizar a dramaticidade desses resultados. As evidências remetidas anteriormente e discutidas adiante demonstram a importância das condições socioeconômicas, não somente na estruturação da saúde, mas, no limite, para a própria duração da vida ( Preston e Taubman, 1994; Elo e Preston, 1996).
A intenção deste artigo é investigar a associação entre posição socioeconômica e saúde no Brasil. Nossa principal inovação é apresentar, em diálogo com a literatura internacional, uma forma de problematizar o tema que se esforça para incorporar o papel da idade na estruturação dessas associações, tema amplamente abordado em trabalhos estrangeiros, mas pouco aprofundado em discussões nacionais.
Denomina-se transição epidemiológica a evolução progressiva de um perfil de alta mortalidade por doenças infecciosas para um outro no qual a prevalência de doenças cardiovasculares, neoplasias, outras doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) e causas externas se tornam predominantes ( Wilkinson, 1994). O que leva esse processo a ocorrer é uma complexa interação entre envelhecimento da população, modelo de desenvolvimento econômico e condições sociais, que, inter-relacionados, são responsáveis pela mudança do perfil de mortalidade e adoecimento da população ( Prata, 1992, p. 168). No Brasil, embora não tenha ocorrido a plena “substituição” das doenças infecciosas pelas crônicas ( Schmidt et al., 2011), alterações significativas do perfil epidemiológico da população ocorreram. As doenças infecciosas e parasitárias eram responsáveis por 46% dos óbitos em 1930 (somente capitais) e apenas 7% em 1985. Em contrapartida, doenças do aparelho circulatório evoluí- ram de 12% para 33% no mesmo período ( Prata, 1992, p. 170). Em 2007, 72% de todas as mortes no Brasil foram atribuídas às DCNT (doenças cardiovasculares, doenças respiratórias crônicas, diabetes, câncer e outras, incluindo doenças renais), 10% por doenças infecciosas e parasitárias, 5% por eventos relacionados com nascimento e mortalidade infantil, e o restante a outros fatores ( Schmidt et al., 2011, p. 1949).
Particularmente importante para a ocorrência do processo de transição epidemiológica foi a transição demográfica, que é um dos condicionantes fundamentais para a mudança do perfil da morbidade e mortalidade de uma população, uma vez que as doenças crônicas não transmissíveis são muito mais frequentes em populações com maior proporção de idosos. Como outros países, o Brasil também passou por uma transição demográfica que mudou completamente a composição etária da população, no sentido de seu envelhecimento ( Carvalho e Rodríguez-Wong, 2008). Dessa forma, grupos populacionais desprivilegiados passam maior período de tempo sob condições socioeconômicas adversas, comparados a gerações anteriores que tinham menor esperança de vida. Essas condições têm efeito na exposição a fatores de risco como contato com toxinas ou patógenos, trauma social e assistência à saúde inadequada, que afetam a morte e o adoecimento – agora, predominantemente pelas doenças crônicas não transmissíveis ( House et al., 1994; Barros et al., 2006).
Para o tema que nos preocupa – a saúde e as disparidades sociais relacionadas com ela –, essas transformações são essenciais. As mudanças demográficas e epidemiológicas implicam maior período de tempo, ao longo da vida, para que as relações entre recursos socioeconômicos e saúde possam se desdobrar. Em vez de ênfase no estudo da associação entre carência social e saúde (ou doença), uma perspectiva acionada tipicamente em contextos nos quais as transições previamente citadas ainda não ocorreram, passa a ser relevante o estudo da distribuição das condições de saúde em todo o espectro social. Ou seja, as mudanças epidemiológicas e demográficas ao longo do século XX no Brasil fazem com que tenhamos a necessidade de interpretar um quadro que relaciona condições sociais e saúde não apenas pela via da carência (ou pobreza), mas principalmente pela da desigualdade.
Os determinantes sociais da saúde foram caracterizados por muito tempo como coadjuvantes na configuração de fatores que aumentam o risco de adoecer, como se esse processo pudesse ser inteiramente compreendido caso o foco se concentrasse somente em processos biológicos que agem sobre e dentro do organismo. No entanto, retomando a tradição da saúde pública do século XIX, diversos autores reagiram à ausência dos fatores sociais na determinação das condições de saúde com resultados sólidos que apontam na direção da existência de um gradiente socioeconômico na estruturação da saúde ( Galea, 2007; Kunitz, 2007; Krieger, 2011).
Obviamente, há heterogeneidade nas ligações entre posição socioeconômica e saúde. Alguns desfechos são menos afetados, menos associados à estruturação diferencial por estados de saúde (como a leucemia), enquanto outros atingem grupos mais ou menos afluentes (melanoma e câncer de pulmão, respectivamente). Buscar as causas dessa heterogeneidade possibilita verificar quais mecanismos ligam recursos socioeconômicos e adoecimento ou mortalidade, de modo que se possa compreender a desigualdade na distribuição da exposição a riscos que afetam a saúde. Em outras palavras, essa seria uma forma de estudar a estratificação social da saúde ( Galobardes, Lynch e Davey-Smith, 2007). Com efeito, a literatura internacional considera as condições sociais tão importantes que uma das perspectivas mais acionadas como orientação teórica sobre o tema trata o componente socioeconômico como causa fundamental da saúde e do adoecimento ( Link e Phelan, 1995; Link et al., 1998, 2008).
Rapidamente, e longe de sermos exaustivos, podemos mencionar alguns dos âmbitos tidos na literatura como representativos da ligação entre status socioeconômico e saúde. Do ponto de vista comportamental, há evidências que indicam associações entre desvantagem socioeconômica e comportamentos de risco, como fumo, consumo de álcool e obesidade em função de diversos fatores, como dificuldade de acesso à informação, disponibilidade de alimentos saudáveis, entre outros ( Lynch, Kaplan e Shema, 1997, p. 810; Cockerham, Snead e DeWaal, 2002). Em relação à morbidade, também há evidências de maior incidência de doença coronariana e outras doenças crônicas entre os indivíduos de menor status socioeconômico ( Berkman, 2009, p. 35). Outros trabalhos demonstraram a ligação entre pior posição socioeconômica e maior mortalidade em geral e mortalidade por câncer ( Cesana et al., 2001; Menvielle et al., 2005; Munoz et al., 2006; Pollit et al., 2007; Power et al., 2007; Ramsay et al., 2007). É impressionante observar que esse forte gradiente social da saúde se apresenta em diversos países, independentemente da natureza, abrangência ou eficiência de seus sistemas de saúde e políticas sociais ( Szwarcwald et al., 1999, p. 16; Bartley, 2004).
No Brasil, diversos trabalhos apresentam evidências semelhantes às das pesquisas internacionais. Resultados da Pesquisa Mundial de Saúde de 2003 demonstram que a posse de bens de consumo, uma proxy de renda, era um forte marcador de melhor autoavaliação de saúde 1 ( Szwarcwald et al., 2005, p. 20). Também focado na autoavaliação de saúde, outro trabalho estuda a relação entre saúde, trabalho e contexto social. Mobilizando dados da pesquisa Inquérito Domiciliar sobre Comportamentos de Risco e Morbidade Referida de Doenças e Agravos Não Transmissíveis, além de dados do Censo de 2000, o trabalho mostra associações entre desemprego, moradia em favelas ou bairros de baixa renda e maior frequência de autoavaliação da própria saúde como ruim ( Giatii e Barreto, 2006). A associação entre desemprego e autoavaliação de saúde ruim permanece estatisticamente significativa após ajustes no nível individual e ecológico, o que sugere que a dimensão ocupacional pode ser um aspecto relevante na estruturação da desigualdade em saúde ( Giatii e Barreto, 2006). Além desse, outro trabalho demonstra como a operacionalização de uma tipologia ocupacional para classe social se associa à autopercepção de saúde e os resultados mostram que, mesmo levando em conta os tradicionais ajustes sociodemográficos (renda, educação, idade etc.), o acesso à propriedade e exercício de autoridade minimizam a frequência da autopercepção de saúde como ruim ( Santos, 2011).
Também podemos mobilizar discussões que se abordam com outros desfechos. As doenças crônicas são objeto de investigação de um estudo que utiliza dados da PNAD de 1998 para estudar as disparidades sociais ligadas a esse tipo de morbidade no Brasil. São avaliadas as prevalências de doze doenças crônicas, analisando-se sua associação segundo sexo, idade, raça/cor, escolaridade, macrorregião de residência e situação urbana ou rural do domicílio. Os problemas de saúde avaliados são: doenças de coluna, hipertensão, artrite, depressão, asma, doença de coração, tendossinovite, diabetes, insuficiência renal, câncer, tuberculose e cirrose. Os resultados mostram importante desigualdade no padrão das doenças crônicas, com desvantagem para as mulheres, indígenas, pessoas com menor escolaridade, cidadãos com plano de saúde, migrantes de outros estados, residentes em áreas urbanas e moradores da região ( Barros et al., 2006, p. 911).
O acúmulo de evidências que vão na direção apontada teve, além de inegável contribuição científica, impactos institucionais relevantes. Em 2005, a Organização Mundial de Saúde criou a Comissão sobre Determinantes Sociais da Saúde (Commission on Social Determinants of Health). O objetivo da comissão é estimular, em nível internacional, a conscientização sobre a importância dos determinantes sociais na situação de saúde de indivíduos e populações. Além disso, visa sistematizar evidências sobre estratégias de promoção da equidade em saúde e fomentar um movimento global para atingi-la. No ano seguinte, mantendo a tradição do sanitarismo nacional, o Brasil foi o primeiro país a criar sua própria comissão, que atua em direções semelhantes à comissão internacional, mas pretende elaborar diretrizes e sugestões de políticas mais próximas à realidade nacional.
Apesar de ter acompanhado a literatura internacional na identificação da associação entre estado de saúde e posição socioeconômica no país, a pesquisa brasileira sobre o tema, até onde foi possível verificar, não problematizou as vias pelas quais essas duas dimensões se relacionam à estruturação das disparidades sociais da condição de saúde ao longo do ciclo de vida. Como a idade é um aspecto essencial na estruturação da saúde, a utilização desse atributo apenas como covariável de controle em modelos estatísticos, sem uma reflexão sistemática sobre sua relação com a saúde e posição socioeconômica, é um fator que limita o conhecimento sobre disparidades sociais em saúde no Brasil. Nossa contribuição focaliza exatamente essa lacuna na pesquisa brasileira sobre o tema pela perspectiva da acumulação da desigualdade ao longo do ciclo de vida, que consideramos uma forma promissora de entender como saúde, ciclo de vida e posição socioeconômica se inter-relacionam na estruturação das disparidades encontradas no país. Nesse sentido, o artigo busca esclarecer se os efeitos da posição socioeconômica sobre a condição de saúde são ampliados ou nivelados nos grupos etários mais velhos.
O viés de acumulação da desigualdade ganhou relevância a partir do trabalho do sociólogo norte-americano Robert K. Merton (1968, 1988, 1995) a respeito de carreiras científicas. A questão básica do autor era que aqueles cientistas que alcançam resultados excepcionais de forma precoce ou relativamente cedo em suas carreiras tenderiam a ter maior e crescente probabilidade de alcançar resultados desejáveis pela comunidade científica em pontos posteriores de suas carreiras ( DiPrete e Eirich, 2006). Ou seja, certos resultados positivos alcançados no início de uma trajetória teriam efeitos significativos em pontos posteriores como, por exemplo, a disponibilidade de recursos financeiros, acesso a laboratórios, bons alunos e pesquisadores e posições profissionais de prestígio no sistema universitário. 2 Nos mesmos trabalhos, o próprio Merton destaca como esse processo é um mecanismo gerador de desigualdade entre cientistas, uma vez que as trajetórias de acumulação têm uma tendência a retornos exponenciais para aqueles que têm trajetórias desse tipo, enquanto carreiras menos bem-sucedidas seriam, na melhor das hipóteses, lineares (quando não estáveis).
Inspirados nessa formulação seminal, outros pesquisadores buscaram especificar hipóteses mais precisas sobre a relação entre acumulação de (des)vantagens e diferentes formas de desigualdade. As perspectivas que chamam a atenção sobre a acumulação de vantagens ou da desigualdade ao longo do ciclo de vida sugerem um processo no qual certas posições na estrutura social em determinado ponto no tempo são altamente associadas a certos tipos de (des)vantagens em pontos posteriores, que podem resultar em divergências sistemáticas e significativas nos ciclos de vida ( Dannefer, 1987, 2003; O’Rand, 1996). Isto é, segundo essa perspectiva, recursos socioeconômicos alcançados em certos estágios do ciclo de vida individual exercem muito provavelmente alguma influência sobre estágios posteriores do mesmo ciclo de vida ( O’Rand e Henretta, 1999; Ferraro e Kelley-Moore, 2003; Ferraro, Shippee e Schafer, 2008).
Quando aplicada à saúde, a perspectiva sobre a acumulação da desigualdade tem algumas particularidades. Metaforicamente, se entendêssemos a saúde como um estoque de recurso finito, poderíamos acionar a imagem de que ela é preservada ou consumida em diferentes taxas ao longo do ciclo de vida, um processo complexo que atuaria na interseção entre estrutura social, ação individual e outros componentes, tanto sistemáticos como aleatórios. Os trabalhos que investigam a estruturação das disparidades sociais em saúde pela perspectiva da acumulação da desigualdade tentam destacar que indivíduos com diferentes níveis de recursos socioeconômicos teriam, sistematicamente, “taxas” diferentes de depreciação de sua saúde ao longo do ciclo de vida. Do ponto de vista agregado, essa associação entre recursos socioeconômicos e variação temporal ampliaria as diferenças do estado de saúde entre indivíduos com idades iguais, mas com diferentes posições socioeconômicas.
Segundo essa perspectiva, aliado ao processo de envelhecimento, haveria a estruturação de heterogeneidade no estado de saúde de diferentes grupos devido às diferentes exposições a características distintas da estratificação social, da acumulação de experiências e da exposição a oportunidades. A inter-relação entre idade e posição socioeconômica atuaria na direção da criação de diferenças entre os grupos, ou seja, geraria desigualdade em saúde entre os grupos com idades iguais, mas com posição socioeconômica distinta ( Dannefer, 2003; Ferraro, 2006, p. 243; Wilson, Shuey e Elder Jr., 2007; Ferraro, Shippee e Schafer, 2008). Os mecanismos apontados como explicação de processos cumulativos das relações entre essas três dimensões sugerem que a posição socioeconômica exerceria um efeito na saúde ao longo do ciclo de vida, por dar acesso a recursos essenciais como segurança econômica, estilos de vida saudáveis, acesso a ocupações menos insalubres, entre outros benefícios ( Ross e Wu, 1996; Lynch, Kaplan e Shema, 1997; Dannefer, 2003; Lynch, 2003; Wilson, Shuey e Elder Jr., 2007; Lynch, 2008; Vandecasteele, 2011).
Do ponto de vista empírico, alguns estudos mencionam a relevância da hipótese da acumulação em meio a outros que argumentam na direção contrária, como mostraremos a seguir. Em um trabalho seminal, Ross e Wu (1996) examinaram a relação entre escolaridade e saúde para indivíduos entre 20 e 64 anos e encontraram uma interação estatisticamente significativa entre idade e nível educacional, o que levou essas autoras à conclusão de que idade e posição socioeconômica se relacionavam de acordo com a hipótese da acumulação nos Estados Unidos. Em quadro semelhante, mas com a análise de saúde mental, Miech e Shanahan (2000) também encontraram resultados que indicam maior heterogeneidade dos efeitos da posição socioeconômica na saúde mental quando se comparam as diferenças dos efeitos da posição socioeconômica entre grupos etários diferentes. Em outro estudo, utilizando dados de 1994 e 1995 para o Canadá e tendo a autoavaliação de saúde e um índice de funcionalidade em saúde (Health Utility Index ) como variável dependente , Prus (2004) revela que há maior heterogeneidade nos efeitos de posição socioeconômica sobre os estados de saúde de indivíduos mais velhos com status socioeconômicos distintos, o que não acontecia com grupos etários mais jovens. Apesar de encontrarem resultados relevantes que iriam na direção da hipótese da acumulação, todos esses estudos utilizavam dados transversais e, portanto, ainda que identificando efeitos interessantes e robustos, eram passíveis de subestimação, uma vez que a seletividade por mortalidade afetaria os resultados estimados.
Estudos posteriores testaram formulações mais rigorosas dos processos de acumulação das (des)vantagens na saúde buscando ultrapassar a seletividade inerente aos processos sociais que gerariam o resultado do nivelamento dos efeitos da posição socioeconômica sobre o estado de saúde em idades mais avançadas. Pesquisas desenvolvidas por Dupre (2007, 2008), por exemplo, demonstram que as disparidades educacionais na prevalência de problemas de saúde são maiores na vida adulta e declinam com a idade. No entanto, a incidência das doenças e suas taxas de mortalidade aumentam com a idade em uma velocidade maior para pessoas com menor escolaridade quando comparadas aos de maior escolaridade, o que confirma a hipótese das desvantagens acumuladas ( Dupre, 2007, 2008).
Outro estudo em que a relação entre posição socioeconômica e saúde foi investigada tenta examinar como múltiplas dimensões dos recursos sociais estruturam a relação entre envelhecimento e saúde. Analisando a autoavaliação de saúde dos indivíduos de um estudo longitudinal ao longo de dezoito anos, os autores mostram como o processo de acumulação é dependente de certos pontos de sua trajetória ( path dependent), ou seja, a composição do “estoque” de saúde em determinado ponto no tempo depende do ponto anterior e influencia o ponto posterior, o que faz com que a relação entre recursos socioeconômicos e idade seja mais importante na diferenciação entre indivíduos no início das trajetórias, e não ao longo delas ( Wilson, Shuey e Elder, 2007, p. 1911). De forma rigorosa e inserindo variáveis que se modificam ao longo do tempo, os autores mostram como a duração (ou tempo) da exposição à vantagem ou desvantagem socioeconômica tem efeitos que retardam ou aumentam o impacto do declínio da saúde ao longo do tempo ( Wilson, Shuey e Elder, 2007, p. 1912).
Contudo, outras pesquisas igualmente focadas no entendimento entre a relação de idade, posição socioeconômica e condição de saúde tomam outras direções. Esse conjunto de trabalhos destaca que idade, posição socioeconômica e saúde se relacionam em um sentido oposto, de nivelamento dos efeitos da posição socioeconômica sobre as condições de saúde ao longo da vida, e não da acumulação dos efeitos ( Dupre, 2007, 2008). Esse nivelamento poderia ser identificado caso a associação da posição socioeconômica com condição de saúde fosse menor entre grupos etários mais velhos em comparação com os mais jovens. Um simples exemplo ilustra o argumento. Em um cenário hipotético, com somente duas posições socioeconômicas (baixa e alta) e dois grupos etários (jovem e velho), as disparidades socioeconômicas da condição de saúde entre os grupos “baixo” e “alto” seriam maiores no grupo etário “jovem” quando comparado ao grupo etário “velho”. Por isso, se diz que haveria um nivelamento dos efeitos da posição socioeconômica sobre a condição de saúde a partir da idade, ou seja, a desigualdade das condições de saúde diminuiria com o envelhecimento devido à aproximação dos resultados quando os dois grupos são comparados.
De acordo com essa hipótese, a “equalização” dos efeitos da posição socioeconômica com o avançar da idade seria identificada por um processo, intrínseco à estruturação da saúde, e por um artefato metodológico. A primeira razão é de fácil identificação. O argumento seria que, a partir de certa idade, os efeitos do envelhecimento se impõe para toda população, independentemente de características socioeconômicas ( House et al., 1990; House et al. 1994). A segunda razão que levaria à identificação do nivelamento do efeito das condições socioeconômicas na estruturação das condições de saúde entre diferentes grupos etários seria não propriamente um efeito direto, mas um artefato metodológico gerado pela seletividade da mortalidade. Indivíduos com piores condições de saúde (mais numerosos em estratos de posição socioeconômica mais baixa) vivenciariam riscos mais altos de morrer em idades jovens do que indivíduos mais saudáveis (mais numerosos entre grupos de posição socioeconômica mais alta). Do ponto de vista agregado, essa seletividade enfraqueceria a associação entre status socioeconômico, idade e saúde, uma vez que reduziria a heterogeneidade socioeconômica nos grupos mais velhos porque indivíduos menos saudáveis já teriam sido “eliminados” (via mortalidade) da população quando mais jovens, restando, entre os grupos desprivilegiados, aqueles indivíduos mais saudáveis e resistentes às condições adversas implicadas por seu nível socioeconômico. Empiricamente, estudos que utilizavam dados ou análises transversais ( cross-sectional) produziram resultados que vão na direção do nivelamento ( House et al., 1994; Crimmins, 2001; Lauderdale, 2001; House, 2002; Dupre, 2007, 2008). As perspectivas que sugerem a hipótese do nivelamento dos efeitos socioeconômicos sobre a saúde com o envelhecimento não necessariamente negam os efeitos da posição socioeconômica na condição de saúde. No entanto, elas indicam uma espécie de limite biológico para que esse efeito seja identificado, além dos sérios desafios metodológicos envolvidos na identificação da tendência a partir de dados transversais ( House et al., 1990; House et al., 1994; House, 2002; House, Lantz e Herd, 2005; Herd, Goesling e House, 2007).
Tendo essas discussões em perspectiva, pretendemos, com este trabalho, investigar a relação entre posição socioeconômica, idade e saúde no Brasil. De acordo com o que buscamos demonstrar anteriormente, trabalhos internacionais indicam duas possibilidades distintas de identificar empiricamente a tendência, tanto no sentido da acumulação como do nivelamento dos efeitos da posição socioeconômica sobre a condição de saúde entre grupos etários distintos. Assim, nossa principal pergunta é a seguinte: as disparidades sociais em saúde aumentam ou diminuem entre os diferentes grupos etários no Brasil? A hipótese de acumulação da desigualdade se aplica ao estudo da estruturação socioeconômica da saúde no país? Com os dados e métodos ao nosso alcance, buscamos responder a essas perguntas e, especificamente, investigar se os efeitos socioeconômicos na saúde são nivelados ou acentuados com a idade no Brasil. Até onde foi possível conhecer, este é o primeiro trabalho a acionar essa perspectiva para a investigação no âmbito da discussão das disparidades sociais em saúde no país. 3
Os dados que utilizamos são da Pesquisa da Dimensão Social das Desigualdades (PDSD), realizada em 2008 pelo Ibope Inteligência, sob encomenda de um consórcio de pesquisadores interessados no tema da desigualdade social. O objetivo do grupo era realizar um levantamento de dados primários para distintos domínios da desigualdade social e a percepção que os brasileiros tinham sobre o tema. Esse banco de dados é particularmente estratégico para nossos interesses por conter tanto uma detalhada caracterização socioeconômica, como também duas formas distintas de operacionalização do estado de saúde. No total, 8.048 domicílios de todo o país foram visitados, e neles 12.326 pessoas, entre chefes de domicílio e cônjuges foram entrevistados. Ao eliminar os casos com informações faltantes para as variáveis utilizadas em nossos modelos, totalizamos a amostra com 11.372 indivíduos. Todas as nossas análises foram ponderadas utilizando os pesos amostrais disponibilizados na base de dados através da opção sample weights disponível no Stata ( StataCorp, 2011a, 2011b).
A autoavaliação de saúde é uma medida basea- da em uma pergunta que estimula os indivíduos a avaliar seu estado de saúde em uma escala que varia de 4 a 5 pontos. Essa medida simples é utilizada em trabalhos das diversas áreas preocupadas com o entendimento da determinação social do adoecimento e da mortalidade. Seu uso passou a ser corrente em pesquisas populacionais a partir de estudos que mostraram que ela é um poderoso preditor da mortalidade e de outras condições de morbidade. 4 Essa é uma medida coletada em grandes pesquisas populacionais em diversos países, como o World Value Survey e o European Value Survey, a pesquisa National Health and Nutrition Examination Survey nos Estados Unidos e as Pesquisas Nacionais de Amostragem Domiciliar no Brasil, por exemplo. Organismos internacionais, como a Organização Mundial da Saúde, recomendam essa variável como um padrão a ser utilizado em inquéritos interessados na pesquisa da saúde populacional ( Jylha, 2009). A medida pretende representar o bem-estar geral do respondente e não simplesmente a presença ou a ausência de doenças. Em nossa pesquisa, a pergunta feita aos entrevistados foi: “Em geral, você diria que sua saúde é:”. Como opções de resposta, havia as seguintes alternativas: excelente, muito boa, boa, razoável e ruim. Em nossas análises, agrupamos as três primeiras alternativas e comparamos a associação das variáveis independentes com essa opção de resposta, em contraste com razoável e ruim (categoria de referência). 5
Também fazemos uso de outra medida de autoavaliação da saúde presente no questionário. Nossa outra variável dependente é um índice agregado que reflete as condições físicas dos indivíduos que fazem parte da amostra. No questionário da PDSD havia um módulo diretamente adaptado do Short Form Health Survey (SF-36, daqui em diante). Esse instrumento é relativamente comum na pesquisa populacional sobre saúde. Seu objetivo é detectar diferenças entre dimensões médicas e sociais no estado de saúde, assim como mudanças no estado de saúde ao longo do tempo através de poucas perguntas. Essa seção do questionário é constituída por 36 perguntas, uma delas se refere a transições do estado de saúde no período de um ano e não é utilizada no cálculo do índice, que é feito pelo agrupamento das outras 35 questões que se referem a nove domínios diferentes da saúde: (1) funcionamento físico, (2) incapacidade física, (3) dores corporais, (4) avaliação geral da saúde, (5) vitalidade, (6) “funcionamento social”, (7) funcionamento emocional, (8) saúde mental e (9) transições de saúde. Essas dimensões, por sua vez, são agregadas em duas medidas distintas e sintéticas, um componente de saúde física e outro componente de saúde mental, para os quais maiores escores significam mais saúde ( Abdalla, Buckingham e Garrat, 1993; Ware et al., 2007; Laguardia et al., 2011). 6
A tradução e validação do questionário já havia sido feita para o Brasil, mas para um contexto com representatividade restrita, tanto para o perfil de morbidade pesquisado (artrite reumatoide) como para representatividade amostral, de apenas 50 indivíduos (43 mulheres e 7 homens) ( Ciconelli et al., 1999). Esse estudo concluiu que o questionário em português é reprodutível e válido para nosso contexto linguístico. Outros pesquisadores realizaram a validação específica do módulo da mesma pesquisa que estamos trabalhando ( Laguardia et al., 2011). Esse estudo apresentou resultados que mostram a confiança, validade do módulo traduzido para o português para essa amostra populacional e também demonstra que os testes e suposições de escalas vão nas mesmas direções hipotetizadas pelos formuladores do questionário e que o módulo tem bom poder discriminatório entre grupos de pessoas com e sem condições crônicas de adoecimento, o que indica que as questões contidas no questionário têm validade para o contexto brasileiro ( Laguardia et al., 2011). Dos dois índices resultantes da bateria de perguntas SF-36, os componentes de saúde física e mental, analisaremos somente o primeiro. A saúde mental, operacionalizada através de questões que tocam essa dimensão presentes no módulo, foge às discussões que avançamos no presente trabalho e têm especificidades próprias, que não teríamos condições de avaliar, apesar de serem extremamente interessantes. 7
Nossas variáveis de controle são sexo, situação do domicílio (rural ou urbano), região de moradia no país (Norte, Nordeste, Sudeste, Centro-Oeste ou Sul), estado civil, idade e cor/raça (seguindo as definições do IBGE das cores branca, preta, pardo, amarelo e indígena). A utilização desta variável é feita devido ao forte componente socioeconômico associado a ela, como mostram as pesquisas sobre desigualdade no Brasil sob diferentes aspectos. 8 Também utilizamos uma variável que representa um índice de bens no domicílio, que é nosso proxy de renda.
Por fim, resta o esclarecimento sobre a variável que utilizamos como marcadora da posição socioeconômica, que é o nível educacional alcançado pelos indivíduos. Há muita controvérsia e pouco consenso sobre qual a melhor forma de operacionalização desse tipo de variável em pesquisas de saúde ( Galobardes, Lynch e Davey-Smith, 2007). A literatura parece alternar considerações conceituais e o pragmatismo da disponibilidade dos dados ao tratar do tema. Um debate presente nas pesquisas reflete certa polarização entre pesquisadores norte-americanos e ingleses e se dá em torno do eixo educação versus classe ( Davey-Smith et al., 1998).
Há diversos trabalhos que demonstram a relevância da classe como aspecto estruturante das desigualdades em saúde, uma tradição bastante ligada à Inglaterra e à presença histórica de indicadores ocupacionais. 9 Uma das hipóteses mais aceitas para a ligação entre classe e saúde seria através do estresse envolvido nas atividades ocupacionais, que, por sua vez, se relaciona com o fato de se ter mais ou menos autonomia e demandas no ambiente de trabalho ( Karasck e Theorell, 1990; Väänänen et al., 2012). Por outro lado, há pesquisas que privilegiam o uso do nível educacional como forma de tratamento da posição social nas pesquisas sobre disparidades sociais em saúde. O principal argumento a favor deste indicador seria sua relevância na estruturação de estilos de vida saudáveis e um nível de cognição mais aguçada, que predispõe a estruturação da boa saúde nos indivíduos e atuariam na estruturação de estilos de vida e comportamentos saudáveis promotores da boa saúde ( Mirowsky e Ross, 2003).
Não bastasse essa falta de consenso, o fato de estarmos lidando com uma questão de pesquisa que foca especificamente a estruturação da condição de saúde em estágios mais avançados do ciclo de vida coloca outras dimensões à questão. Indicadores de posição socioeconômica não podem ser usados de forma indiscriminada quando a variabilidade etária da população sob foco é grande. No que diz respeito à ocupação, por exemplo, a inserção ocupacional a partir de certa idade é ínfima, o que enfraquece a relevância desse indicador no presente contexto. Obviamente, o problema também se estende para outras variáveis, como renda, por exemplo ( Park, 2005).
Esse é um debate antigo e vivo na literatura com a qual dialogamos ( Braveman et al., 2005; Braveman, 2006). Longe de tentar resolver as disputas levantadas na discussão, adotamos uma postura que balanceia considerações conceituais e pragmáticas. As diferentes variáveis que podemos utilizar para operacionalizar a posição socioeconômica dos indivíduos têm significados distintos ao longo do ciclo de vida. A flutuação da renda, por exemplo, é extremamente condicionada à maturidade dos indivíduos no mercado de trabalho, tendo uma forte correlação com a idade das pessoas. A ocupação também, uma vez que há mobilidade intrageracional, está relacionada com a idade. Em uma pesquisa transversal ( cross-section), outro tipo de problema metodológico se impõe sobre os indicadores. Chamamos a atenção para possíveis problemas de causalidade reversa que pode haver no uso de classe e educação. Como a escolaridade alcançada pelos indivíduos é temporalmente anterior à participação na força de trabalho (e o estabelecimento de um vínculo ocupacional), os efeitos nas disparidades sociais atribuídos à classe podem ser, na verdade, uma consequência da escolaridade alcançada em um ponto anterior do ciclo de vida e não propriamente mecanismos ligados à atividade ocupacional identificados em um ponto do tempo posterior. Principalmente por esse tipo de consideração, e pelas limitações metodológicas do trabalho com dados transversais que estamos analisando, optamos por utilizar o nível educacional como variável marcadora de posição socioeconômica. Como a escolaridade e seu acúmulo é anterior ao processo de realização ocupacional e ao alcance de diferentes níveis de renda, acreditamos que esse é o melhor e mais estável indicador para nossas análises empíricas.
Nossa estratégia de modelagem se relaciona com a estrutura das variáveis dependentes avaliadas. Para o caso da autoavaliação de saúde, fazemos uso de regressões logísticas devido ao fato de termos dicotomizado nossa variável dependente ( Long, 1997; Long e Freese, 2001). Para o índice de saúde física operacionalizado através do módulo SF-36, fazemos uso de regressões pelo método dos Mínimos Quadrados Ordinários ( Fox, 2008; Treiman, 2009). Para responder à pergunta se os efeitos socioeconômicos na disparidade em saúde convergem ou divergem com a idade, adicionamos um termo interativo entre idade e educação nos dois tipos de modelo. Para uma apresentação mais intuitiva desses efeitos, apresentamos gráficos com probabilidades preditas e valores preditos que variam de acordo com a idade, enquanto as outras variáveis são mantidas em seus valores médios. Todas as análises descritivas, modelos multivariados e técnicas de pós-estimação foram feitas usando o software Stata 12 ( StataCorp, 2011b). 10
As estatísticas descritivas apresentadas na Tabela 1 mostram que há certa discrepância entre as duas variáveis dependentes utilizadas. O componente físico do SF-36 tem uma média de 48,89, um pouco abaixo da mediana (52,25), enquanto a autoavaliação de saúde mostra que pouco mais da metade da amostra avalia sua saúde como boa ou ótima. Essa heterogeneidade entre os resultados mostra como a condição de saúde é percebida de forma diferente pelos respondentes, o que, potencialmente, faz a exploração multivariada das variáveis e sua comparação algo interessante.

Em nossas análises, apesar de todos os ajustes adicionados aos modelos, os níveis educacionais têm um efeito estatisticamente significativo nas condições de saúde dos indivíduos da amostra. Nossos modelos mostram que, comparados aos analfabetos, quanto maior a escolaridade, melhor a situação de saúde nas duas formas de operacionalização da condição de saúde dos respondentes. O sinal das variáveis indica que aqueles com escolaridade mais alta têm, sistematicamente, melhor condição de saúde.
Testamos mais especificamente o papel estruturador da escolaridade nos modelos que contêm o termo de interação entre nível educacional e idade. Com essa especificação, buscamos testar a hipótese de que o efeito da posição socioeconômica (em nosso caso mensurada via escolaridade) é moderada pela idade em sua associação com a condição de saúde operacionalizada das duas formas mencionadas. Para facilitar a interpretação dos resultados, apresentamos valores preditos e probabilidades preditas nos Gráficos 1, 2, 3 e 4. Esses resultados são a média dos valores preditos ou as médias das probabilidades marginais preditas da interação entre escolaridade e idade obtidas nos modelos apresentados na Tabela A1 e Tabela A2 (presentes no Anexo), com todas as outras variáveis do modelo colocadas em suas próprias médias. A ilustração escolhida sublinha o que seria um perfil hipotético de nossa amostra e segue recomendações de apresentação de resultados para modelos multivariados em geral, e especialmente aqueles que contêm termos interativos e lidam com variáveis dependentes categóricas presentes na literatura ( King, Tomz e Wittenberg, 2000; Long e Freese, 2001, 2006). No Gráfico 3 e Gráfico 4, inserimos intervalos de confiança para as estimativas pontuais ilustradas no Gráfico 1 e Gráfico 2 com o intuito de comparar a situação mais extrema presente na amostra do ponto de vista da posição socioeconômica (aqueles sem nenhuma escolaridade) com todos os outros grupos. Procedemos dessa forma para facilitar a inspeção visual dos testes e evitar a poluição que apareceria caso optássemos por juntar todas as linhas e análises em uma mesma ilustração. 11 Os valores de todas essas ilustrações se encontram na Tabela A3 e Tabela A4 do Anexo.




Todos os gráficos demonstram, consistentemente, que a estruturação socioeconômica da saúde, operacionalizada através da escolaridade alcançada pelos respondentes, é fortemente modificada pela idade. Grupos de mais idade têm em média pior condição de saúde, como ilustram os Gráficos 1 e 2. No entanto, aqueles com alcance educacional maior têm, em média, melhor condição social de saúde, quando comparados a seus pares de idade que tiveram alcance educacional menor. Os resultados apontam, consistentemente, a relevância da hipótese de acumulação da desigualdade ao longo do ciclo de vida. O acesso a maiores níveis de escolaridade, aparentemente, desacelera o impacto do envelhecimento na saúde dos indivíduos mais privilegiados e opera de forma contrária para aqueles menos privilegiados.
Os Gráficos 3 e 4 nos permitem fazer testes mais precisos a respeito das diferenças entre a interação entre níveis de escolaridade e idade e sua associação com a condição de saúde. Sua interpretação é intuitiva e pode ser feita da seguinte forma: caso as estimativas pontuais – as formas geométricas que representam os pontos nos gráficos – não estiverem contidas dentro das faixas verticais que representam os intervalos de confiança de outra estimativa, é possível concluir que aquelas duas estimativas são estatisticamente diferentes. As comparações 1 a 4 do Gráfico 3 contrastam o grupo de menor alcance educacional com todos os outros grupos de escolaridade. Essas ilustrações demonstram como o grupo mais desprivilegiado da amostra é também aquele que tem o maior efeito da interação entre idade e escolaridade sobre as condições de saúde e, além disso, essas diferenças são estatisticamente distintas de todos outros níveis de escolaridade a partir da idade de 50 a 54 anos, exceto a comparação com o grupo de escolaridade imediatamente superior, aqueles com 1 a 4 anos de escolaridade. Os resultados vão na mesma direção quando tomamos a autoavaliação de saúde como variável dependente, como mostram as comparações 5 a 8 do Gráfico 4. Os resultados indicam que a posição socioeconômica minimiza o impacto do envelhecimento nas duas formas que operacionalizamos o estado de saúde, evidência que confirma o argumento da acumulação das (des)vantagens sociais.
O principal objetivo deste artigo é avaliar a associação entre idade, posição socioeconômica (operacionalizada através da escolaridade) e condição de saúde. Em diálogo com a literatura internacional que se debruçou sobre problemas similares, investigamos se a interação entre idade e escolaridade convergia entre grupos etários mais velhos ou se, ao contrário, havia divergência. Nossos resultados não suportam a hipótese da convergência, eles sinalizam ampliação das disparidades sociais em saúde entre grupos etários mais velhos no Brasil. Com efeito, nossas ilustrações mostram que, para as duas formas de operacionalização da condição de saúde utilizadas, há significativa diferença entre grupos de diferentes posições socioeconômicas e que em particular aqueles em situação desprivilegiada são os que têm as piores condições de saúde, principalmente se comparados com os dois extremos da posição socioeconômica utilizada.
Apoiados nas discussões contemporâneas sobre a relação entre condições socioeconômicas, adoecimento e mortalidade, constatamos a relevância da hipótese da acumulação da desigualdade ao longo do ciclo de vida para o caso brasileiro ( Dannefer, 1987; Ferraro e Kelley-Moore, 2003; Dupre, 2007, 2008; Ferraro, Shippee e Schafer, 2008; Power, Kuh e Morton, 2013). As evidências presentes nesse conjunto de trabalhos e em um conjunto impressionante de pesquisas ao redor do mundo indicam que tanto a interconexão das várias fases do ciclo de vida assim como exposições a riscos e comportamentos presentes em distintas etapas do ciclo de vida individual têm consequências de longo prazo para a condição de saúde ( Hayward e Gorman, 2004; Power, Kuh e Morton, 2013).
Obviamente, essas evidências têm de ser analisadas com cautela, por vários motivos. A questão de endogeneidade e seletividade da relação entre posição socioeconômica e saúde é um problema constantemente discutido na literatura com a qual dialogamos ( Haas, 2006; 2007; Haas e Fosse, 2008; Haas, Glymour e Berkman, 2011). Infelizmente, a natureza de nossos dados, que são transversais ( cross-sectional) nos impossibilita de dar um tratamento adequando para a questão. Idealmente, teríamos à disposição dados longitudinais que investigassem tanto o processo de realização socioeconômica dos indivíduos investigados como também suas condições de saúde para ao longo de seu ciclo de vida conseguirmos balancear a direção da causalidade entre os fatores. Como para o nível de representatividade pretendido em nossa discussão, que é nacional, não existem dados de tal natureza para o Brasil, o melhor que podemos fazer é confiar na literatura internacional, que mostra – na disponibilidade de desenhos de pesquisa mais rigorosos – que, apesar da seletividade ser uma questão não trivial ( Smith, 1999; Beckett, 2000; Smith, 2004), ela não tende a inviabilizar a direção da associação que utilizamos ao longo do artigo, que vai das condições sociais e socioeconômicas (como fatores fundamentais) à condição de saúde ( Carpiano, Link e Phelan, 2008; Link et al., 2008; Link, 2008; Phelan, Link e Tehranifar, 2010).
É possível aprofundar a questão da seletividade ainda sob outro ângulo. Como mencionamos antes, há sérias questões metodológicas que permeiam nossas considerações da relação entre posição socioeconômica, idade e condição de saúde. Determinados resultados, como o nivelamento dos efeitos da posição socioeconômica sobre a saúde, poderiam ser meros artefatos da própria estruturação dos ciclos de vida dos diferentes grupos avaliados, que, expostos a diferentes taxas de mortalidade, acabariam produzindo o resultado identificado (nivelamento) ( Lynch, 2003, 2006, 2008). No entanto, a partir dessa discussão e tendo nossos resultados em perspectiva, é possível afirmar que, caso esse processo (taxas de mortalidade maiores para os grupos de posição socioeconômica diferente) tenha operado nos casos sob foco, nossos resultados estariam subestimados, mas na direção correta. Estimativas mais precisas também só seriam possíveis realizando estudos com desenho mais sofisticados para a realidade brasileira (estudos longitudinais ou de painel), o que, infelizmente, para o nível de representatividade em que operamos (nacional), ainda é uma situação inexistente no país.
Por fim, outra questão que afeta nossos resultados é o fato que tratamos a associação entre condição de saúde e posição socioeconômica entre grupos etários sob a sugestão de que estamos tratando o processo de envelhecimento dos grupos avaliados ao longo de seus ciclos de vida. Ambas as situações são problemáticas. Aqui, somos constrangidos pelas clássicas discussões sobre idade-período- coorte, que afetariam nossos resultados. Isso ocorreria, por exemplo, pelo fato de coortes mais jovens e mais velhas estarem sujeitas a diferentes exposições a situações prejudiciais à sua saúde, que as fariam ter trajetórias muito distintas das coortes que as precederam ( Ross e Wu, 1996; Lynch, 2003, 2006; Yang, 2008). As profundas mudanças econômicas, sociais, nutricionais, epidemiológicas e demográficas pelas quais o Brasil passou nas últimas décadas permitem conjecturar que, de fato, essa seria uma via interessante a ser explorada, apesar das enormes dificuldades envolvidas no plano de identificação de modelos estatísticos que possibilitariam a modelagem nessa direção de uma forma confiável ( Glenn, 2005; Yang e Land, 2013).
Apesar dessas limitações, o presente artigo ilumina tendências significativas para um âmbito primordial passível de ser afetado pelas condições socioeconômicas, que são as condições de saúde. Mostramos como, no Brasil, posição socioeconômica e saúde são dois âmbitos altamente associados, ainda mais entre grupos etários de idade mais avançada. Nossa pesquisa mostra a importância de mobilizar perspectivas ligadas ao ciclo de vida para compreender a estruturação da desigualdade socioeconômica e a necessidade de interpretar o problema de forma holística e multidisciplinar, principalmente através do entendimento que a estruturação da saúde é um processo que se desenvolve ao longo de todo ciclo de vida.












