Resumo: O presente artigo elabora uma análise crítica da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) com relação à homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS). O julgamento favorável à homologação condicionada por dezenove salvaguardas constituiu uma decisão inédita no país e vem oferecendo um pretexto para manobras revisionistas e condicionadoras de outras terras indígenas em diversas frentes da administração pública, da Justiça federal e do Parlamento. Para o desenvolvimento desta análise, adotou-se uma abordagem proveniente da filosofia da linguagem e da linguística pragmática com o objetivo de indagar o que as condicionantes “fizeram” ao “dizer o direito” sobre a TIRSS Depreende-se da análise que o STF não visava apenas reconhecer a homologação da TIRSS, mas produzir um novo consenso jurídico em torno do direito originário dos povos indígenas às suas terras ancestrais.
Palavras chave: Direitos territoriais indígenasDireitos territoriais indígenas,Políticas indigenistasPolíticas indigenistas,IndigenismoIndigenismo,Terras indígenasTerras indígenas.
Abstract: This article presents a critical analysis of the decision of the Supreme Court (STF) regarding the approval of the Raposa/Serra do Sol (TIRSS). The favorable judgment to the approval was conditioned by nineteen (19) safeguards and was an unprecedented decision in the country providing a pretext for revisionist maneuvers on other indigenous lands on several fronts of the government, the Federal justice and the Parliament. For the development of this analysis the article adopts approaches from the philosophy of language and pragmatic linguistics in order to ascertain what the safeguards actually “did” while “the law was being said” on the TIRSS’s case. It appears from the analysis that the Supreme Court was not intended only to recognize the approval of TIRSS, but to produce a new legal consensus on the original right of Indigenous Peoples to their ancestral lands.
Keywords: Indigenous land rights, Indigenous policies, Indigenism, Indigenous territories.
Resume: Cet article procède à une analyse critique de la décision du Tribunal Suprême Fédéral (STF)sur l’homologation de la terre amérindienne Raposa/Serra do Sol. Le jugement favorable à l’homologation avec dix-neuf conditions fut une décision inédite dans le pays et est prétexte à des manœuvres de révision et de conditionnement d’autres terres amérindiennes devant l’administration publique, la justice fédérale et le parlement. L’examen du rôle de ces conditions qui ont « fait parler le droit »se base sur la philosophie du langage et la linguistique pragmatique. Il ressort de cette étude que le STF ne visait pas seulement à reconnaître l’homologation de cette terre, il cherchait aussi à produire un nouveau consensus juridique autour du droit originaire des peuples amérindiens brésiliens vis-à-vis des terres de leurs ancêtres.
Mots clés: Droits territoriaux amérindiens, Politiques amérindiennes, Amérindianisme, Terres amérindiennes.
Artigo original
A HOMOLOGAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA/SERRA DO SOL E SEUS EFEITOS: UMA ANÁLISE PERFORMATIVA DAS 19 CONDICIONANTES DO STF*
THE HOMOLOGATION OF RAPOSA/SERRA DO SOL INDIGENOUS LAND AND ITS EFFECTS: A PERFORMATIVE ANALYSIS OF THE 19 SAFEGUARDS OF THE FEDERAL SUPREME COURT
L’HOMOLOGATION DE LA TERRE AMÉRINDIENNE RAPOSA/SERRA DO SOL ET SES EFFETS : UNE ANALYSE PERFORMATIVE DES 19 CONDITIONS DU STF
Recepção: 08 Outubro 2016
Aprovação: 18 Dezembro 2017
DOI: 10.1590/339803/2018
Decorre disso que a antropologia, ainda que estritamente ocupada com o índio, não possa evitar a análise crítica da sociedade dominante.
Bonfil Batalla (1981, p. 103)
Para elaborar uma análise crítica da atual conjuntura de paralisação administrativa dos processos de regularização fundiária de terras indígenas tradicionalmente ocupadas e também de desconstrução retórica destas como direito originário no Brasil, o presente artigo partirá de uma breve contextualização da tentativa de demarcação e extrusão dos ocupantes não indígenas da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol (TIRSS), após sua homologação pela Presidência da República em 2005, o que provocou forte oposição manifestada em petição (PET n. 3.388 RR)1 ao Supremo Tribunal Federal (STF) com o intuito de anular a homologação. Foi em função desses conflitos que o STF apresentou seu julgamento favorável à homologação, porém condicionando sua decisão a dezenove salvaguardas. Segundo notícia publicada pelo STF:
No julgamento que decidiu que a terra indígena Raposa Serra do Sol terá demarcação contínua e deverá ser deixada pelos produtores rurais que hoje a ocupam (Petição 3388), os ministros do Supremo Tribunal Federal analisaram as dezoito condições propostas pelo ministro Carlos Alberto Menezes Direito para regular a situação nos territórios da União ocupados por índios, e garantir a soberania nacional sobre as terras demarcadas. Ao final dos debates, foram fixadas dezenove ressalvas, sujeitas ainda a alterações durante a redação do acórdão, que será feita pelo relator, ministro Carlos Ayres Britto.
Para cumprimento da decisão, foi designado o presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, que agirá sob a supervisão do ministro Carlos Ayres Britto, como previu o presidente do Supremo, ministro Gilmar Mendes, na proclamação do resultado do julgamento. “Quanto à execução, o Tribunal determinou a execução imediata confiando a supervisão ao eminente relator, ficando cassada a liminar [que impedia a retirada dos não índios], que deverá fazer essa execução em entendimento com o Tribunal Regional Federal da 1ª Região, especialmente o seu presidente”, disse Mendes.2
Tratou-se de uma decisão inédita no país, no que tange ao estabelecimento de uma terra indígena, que acabou por oferecer, para além da solução de um caso específico, um pretexto para manobras revisionistas e condicionadoras de outras terras indígenas em diversas frentes da administração pública, da Justiça federal e do Parlamento, como a Portaria n. 303 da Advocacia-Geral da União (AGU) e o Projeto de Lei Complementar (PLP) n. 227/2012.3
Esses fatos permitem questionar, primeiro, sobre a opção do STF por uma decisão condicionada para um direito constitucionalmente estabelecido, e segundo, sobre a adesão imediata de outros segmentos do Estado e do governo às condicionantes com o propósito explícito de questionar, paralisar e, eventualmente, reverter os processos de constituição de terras indígenas no Brasil.
Para responder a esses questionamentos, será adotada uma análise pragmática dos enunciados proferidos pelo STF nas dezenove condicionantes, lembrando que a maior parte delas já se encontra no texto da Constituição Federal. O objetivo é indagar e demonstrar que as repercussões das condicionantes, para além do caso da regularização fundiária da TIRSS, uma vez que aspectos da decisão vêm sendo adotados para paralisar e reverter processos de regularização de outras terras indígenas, se devem, precisamente, ao efeito perlocucionário ou persuasivo da reiteração do que já está na Constituição Federal, atualizado em um contexto processual específico da mais alta corte do país, independentemente do que foi dito no item 4 da ementa do Acórdão, segundo a qual: “A decisão proferida em ação popular é desprovida de força vinculante, em sentido técnico. Nesses termos, os fundamentos adotados pela Corte não se estendem, de forma automática, a outros processos em que se discuta matéria similar.” (STF, 2013, p. 2)
Como se compreende nos estudos de filosofia da linguagem e linguística pragmática, apoiados nas palestras seminais de John Austin (1962),4 proferir certas palavras, sentenças e discursos, mesmo entabular conversas, entre outras situações comunicativas, não implica simplesmente “dizer algo sobre”, mas “fazer algo com”. Dizer enquanto ato performativo locucionário implica um fazer respectivo (efeito ilocucionário), que pode ser observado e aferido pela eficácia de seus efeitos sobre os receptores da mensagem (efeitos perlocucionários). Entretanto, isso não se dá apenas pelo poder e agencialidade dos emissores, mas também pelas condições apropriadas para a eficácia da enunciação em si enquanto ação performativa. Essas “condições apropriadas”, por sua vez, decorrem do caráter ritualístico existente em determinadas situações sociais, desde as mais prosaicas até as mais dramatizadas, como são os julgamentos nas altas cortes.
Os rituais, por sua vez, devem ser vistos como um complexo de palavras e ações. Não se trata somente de observar as palavras como algo separado dos ritos. O pronunciamento das palavras é em si mesmo um ritual. Desse modo, afirma Edmund Leach:
Quando os antropólogos falam sobre ritual eles estão normalmente pensando, primeiramente, em comportamentos do tipo não-verbal, portanto vale a pena lembrar meus colegas antropólogos que (como eu utilizo o termo) a própria fala é uma forma de ritual; ritual não-verbal é simplesmente um tipo diferente, menos especializado, de sistema de signos. Para os leitores não-antropológicos eu diria simplesmente que meu foco de interesse neste trabalho é a relação entre ritual como um sistema de comunicação e a fala comum como um sistema de comunicação (Leach, [1966] 1972, p. 334, parêntesis no original, tradução nossa).5
Entretanto, mais do que reter a perspectiva de Leach sobre o ritual, é necessário considerar a releitura de Stanley Tambiah sobre o material etnográfico de Bronislaw Malinowski entre os trobriandeses, para apreender seus procedimentos de análise das fórmulas mágicas dessa sociedade como um desdobramento mesmo dos argumentos de Leach. Isso porque tais procedimentos se revelaram centrais para a abordagem a seguir dos enunciados dos juízes do STF. Segundo Tambiah, o papel da linguagem no ritual se confronta imediatamente com o lugar atribuído a ela como veículo de comunicação entre pessoas. Por definição, as pessoas em comunicação devem se entender mutuamente. Porém, no ritual, a linguagem parece ser usada de modos que violam tal função comunicativa (Tambiah, 1985, p. 22). Se concebemos, então, o ritual como um complexo sistema comunicativo de palavras e ações, é precisamente a interconexão entre palavras e ações que deve ser mais bem compreendida (Tambiah, 1985, p. 29).
Tambiah sugere que analisemos essa interconexão a partir de duas instâncias ou estruturas (frames) de todo ritual. Refere-se aqui a uma instância interna (inner frame), semântica, que opera transferências verbais (metáfora e metonímia) com base em uma lógica de escolha dos elementos (signos) que melhor servem para a eficácia do que se deseja realizar (lembrando que, para Tambiah, a eficácia é intrínseca à realização do ritual e não um mero efeito deste), e a uma segunda instância, externa (outer frame), para se reportar a outro nível de significado, em que todo o complexo de rituais é acionado por indivíduos ou grupos em busca de seus objetivos institucionais. Essa segunda instância é definida por Tambiah como pragmática e corresponde ao que Malinowski designou como o “contexto da situação”. Essa instância nos leva a investigar como o ritual se relaciona a outras atividades, em quais contextos e situações ele é praticado, e quais as consequências que ele pode produzir para vários segmentos da sociedade e para os próprios indivíduos performadores do ritual (Tambiah, 1985, p. 35).
Considerando a decisão do STF sobre a homologação da TIRSS como um “evento ritual”, temos que as condicionantes expressariam enunciados ilocucionários ou intencionais por parte da Corte; entretanto, as repercussões e iniciativas delas decorrentes, no que tange ao modo como tem sido desconstruídos os direitos originários dos povos indígenas às suas terras em outras instâncias do Estado, somente podem ser explicadas pela eficácia perlucionária do rito.
Dito de outro modo, o fato de o STF ter “ditado”, internamente, suas salvaguardas para homologar a TIRSS como direito originário motivou, externamente, outros a aplicarem o teor das mesmas sobre outras terras. Isso não pode ser considerado apenas como um efeito jurídico da decisão do STF, uma vez que este concordou, como citado anteriormente, que seu julgamento não possui caráter vinculante. A vinculação, como veremos, é antes um efeito simbólico perlocucionário originado no poder tutelar do STF, onde o acórdão: “[...] ostenta a força moral e persuasiva de uma decisão da mais alta Corte do País, do que decorre um elevado ônus argumentativo nos casos em se cogite da superação de suas razões” (STF, 2013, p. 2).
Nesse sentido, as condicionantes do STF adquiriram uma função mais conativa do que referencial,6 uma vez que encontraram no contexto atual de correlação de forças do campo indigenista, desfavorável aos povos indígenas, uma receptividade que conferiu a elas máxima eficácia persuasiva. Isso é algo que extrapola a intencionalidade de seus agentes, pois decorre do caráter estruturante da instituição, a partir do qual se pronunciam suas posições, inserida que está em um campo social e político etnicamente segmentado e assimétrico mais amplo.
Considerando que o caso da “Homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol”, como ficou conhecido, acumulou um volume significativo de documentos (audiovisuais ou escritos), produzido em diversos eventos estatais, governamentais e não governamentais, na imprensa, na academia e na sociedade civil brasileira de modo geral, e no próprio contexto roraimense e das aldeias, de modo particular, não se buscará aqui uma descrição exaustiva das circunstâncias diante das quais o STF foi obrigado a se debruçar. A polifonia que compõe esse arquivo, que segue sendo construído, torna difícil uma análise que depreenda o papel e as interações das instituições estatais (executivas, legislativas, judiciárias, policiais e militares das instâncias municipais, estadual e federal) que participam na configuração e acirramento do próprio conflito, promovido que foi por interesses particulares, contrários à regularização fundiária da terra indígena em área contínua, propondo, em vez disso, demarcações de áreas fragmentadas e descontínuas, eufemisticamente chamadas de “ilhas”.
Abordar as condicionantes do STF como objeto de análise constitui, portanto, uma tentativa sucinta de abordar uma cena complexa e conflituosa, justamente porque o faz na instância e agência que se pretende suprema e pacificadora de todas as demais, configurando assim um exercício de “antropologia para cima”.7 O que se pretende é analisar antropologicamente os efeitos simbólicos perlocucionários dos “enunciados” do STF para resolver legalmente o conflito e não etnografar o processo ritual ou a situação social em si e por si mesmos.
Penso que o modo etnograficamente mais apropriado de abordar o resultado do julgamento da mais alta corte no caso em questão é reconhecê-lo como enunciação máxima do poder tutelar praticado no Brasil (Souza Lima, 1995)8 e, enquanto tal, considerá-lo um discurso moldado pelo positivismo enquanto ideologia de construção nacional (Teófilo da Silva e Lorenzoni, 2014). A presente análise insere-se, portanto, em certa “antropologia da administração e da governança no Brasil” (Teixeira e Souza Lima, 2010), em especial quando define governança para além de um registro meramente tecnocrático, ou seja, no sentido foucaultiano de tecnologias de governo (Teixeira e Souza Lima, 2010, p. 55), que operam processos de subjetivação e manejo de populações e territórios utilizando a biopolítica como dispositivo disciplinar. Desse modo, lembrar que o STF constitui a cúpula do Poder Judiciário responsável por tutelar a própria Constituição Federal enquanto poder constituinte ou lei maior do país faz que analisemos menos o porquê de suas decisões terem peso, mas como logram eficácia simbólica justamente por serem decisões “do STF” e não de um tribunal federal em particular.9
Segundo a cronologia elaborada pelo Instituto Socioambiental (ISA) sobre o processo de regularização fundiária da TIRSS, o clima que reinava na região após a homologação da área contínua pela presidência era extremamente conflitivo, isto é, envolvia ataques armados e atentados que provocaram mortes de indígenas, agressões físicas, bloqueio de estradas etc. A operação de extrusamento ou “desintrusão” da área (chamada de Operação Upatakon III)11 revela quanto as agências estatais, entre elas o Exército, podem vir a se tornar muito mais parte do problema do que da solução do conflito, como podemos depreender do seguinte relato:
Em abril [de 2008], 350 homens da Polícia Federal e da Força Nacional de Segurança Pública chegam a Roraima para se juntar a outros 150 agentes que já estão em Boa Vista. Manifestantes contrários à homologação das áreas destróem pontes com dinamite e motosserras. A Polícia Federal se compromete a investigar a autoria dos ataques à comunidade.
O secretário-executivo do Ministério da Justiça, Luiz Paulo Barreto, revela que o grupo de produtores de arroz que resiste em deixar a Terra Indígena, em Roraima, quer confronto e prepara bombas contra a ação da Polícia Federal.
Aproximadamente 50 indígenas chegam à Vila Surumu, entrada principal da Raposa-Serra do Sol, pintados para a guerra. Eles foram se unir aos manifestantes favoráveis à permanência de não-índios e arrozeiros na região.
Cerca de 100 manifestantes atacam, em 7/4, um posto da Polícia Federal, localizado em Pacaraima (RR). Fecham a fronteira entre o Brasil e a Venezuela com pneus e carros. De acordo com a polícia, índios e comerciantes que apóiam a permanência dos rizicultores na Reserva Raposa-Serra do Sol jogaram uma bomba caseira no posto e tentaram explodir um carro em frente ao local, mas os policiais conseguiram prender o homem que tentava tocar fogo no veículo. A Polícia Rodoviária Federal deve enviar uma equipe até a fronteira para tentar liberar a rodovia.
No dia 10 de abril, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) anuncia a ordem de suspensão, dada pelo STF, da Operação Upatakon III. O CIR declara que irá recorrer da decisão. O STF nega recurso impetrado pela Advocacia Geral da União (AGU) contra a liminar que suspendeu a operação.
Em 15 de abril, o rizicultor Paulo César Quartiero é reconduzido ao cargo de prefeito de Pacaraima.
Em maio, dez índios são baleados por funcionários de Quartiero, enquanto construíam casas na aldeia ao lado da fazenda Depósito. No dia seguinte, o ministro Tarso Genro, da Justiça, visita a Raposa. Paulo Cesar Quartiero é preso e levado para a sede da PF em Brasília.
O governador Anchieta Júnior protocola ação junto ao STF para anular a demarcação da Raposa-Serra do Sol em área contínua e refazê-la em ilhas. Ibama vistoria a fazenda Depósito e multa Quartiero por crimes ambientais cometidos no valor de R$ 30 milhões e 600 mil. Procurador-Geral da Republica se declara favorável à Terra Indígena e a Funai decide entrar com ação junto com a PGR contra a ação do governador de Roraima.
As comunidades indígenas da TI Raposa-Serra do Sol pedem para entrar na ação popular defendendo a manutenção da demarcação, apoiadas pelo CIR e pelo ISA.12
A campanha anti-homologação orquestrada pelos rizicultores ou “arrozeiros”, como passaram a ser chamados, passou a adotar argumentos ultranacionalistas, desenvolvimentistas e federalistas para tentar reverter o reconhecimento da terra indígena. Esses argumentos foram ampliados enormemente com a opinião emitida pelo general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia na época, durante um seminário no Rio de Janeiro, quando afirmou: “A política indigenista brasileira está completamente dissociada do processo histórico de colonização do nosso país. Precisa ser revista com urgência.”13
Em resumo, configurou-se uma situação em que diferentes setores do Estado passaram a falar em uníssono com os interesses anti-indígenas de parte da sociedade e do agronegócio de Roraima, donde mais importante do que analisar os discursos proferidos, em termos semânticos, é saber quem disse o quê, para quem e com qual finalidade, em termos pragmáticos. Trata-se de uma situação de grande complexidade, considerando a diversidade étnica e ideológica dos grupos envolvidos, a animosidade na defesa dos respectivos interesses e a assimetria de poder favoravel àqueles avessos à homologação da TIRSS em área contínua para mobilizar a população, os órgãos estaduais e outras instâncias do Estado, para fazerem valer seus interesses.14 Entretanto, a situação é ainda mais complexa por se configurar em um espaço de so- breposição de políticas de gestão territorial como são as de conservação ambiental, proteção indígena e segurança de fronteiras.
De acordo com Stephen Baines (2009), que tem acompanhado o longo processo de identificação territorial e regularização fundiária das áreas indígenas próximas à região fronteiriça com a Guiana, os diferentes segmentos da sociedade nacional e regional – entre eles, militares, políticos, empresários e agricultores – buscaram, como descrito antes, formas legais e ilegais de “desconstituir” o direito dos povos indígenas Makuxi, Taurepang, Ingarikó e Patamona às suas terras tradicionais.
Foi uma surpresa para os povos indígenas que uma meia dúzia de rizicultores grileiros que ocuparam parte da Terra Indígena Raposa Serra do Sol em Roraima e vinham expandindo suas lavouras nos últimos anos, agredindo o ambiente com agrotóxicos, junto com alguns políticos e empresários de Roraima, tivessem pressionado o Governo Federal a colocar em julgamento a demarcação desta Terra Indígena, concluída em 1998, após décadas de luta por parte dos seus habitantes indígenas, e homologada pelo governo do Presidente Lula em abril de 2005. E ficaram ainda mais surpresos, após alguns destes rizicultores terem recorrido à violência contra os índios, burlando a lei e agindo com ameaças, táticas de guerrilha e agressões noticiadas pela imprensa.
[...]
A situação reflete a contradição entre o Governo Federal, que implementa a política indigenista do Estado, respaldada na Constituição Federal de 1988, e os interesses desenvolvimentistas das elites do Estado de Roraima, inimigos tradicionais dos povos indígenas (Baines, 2009, p. 32).
A constatação dessa contradição por Baines revela um double bind do governo com relação aos direitos territoriais dos povos indígenas, que são garantidos pelo processo de regularização fundiária advindo da demarcação das terras indígenas, ao mesmo tempo que o governo promove políticas de colonização, desenvolvimento e conservação sobre essas mesmas áreas. Essa interpretação de que o governo federal e diversas instituições do Estado – incluindo suas altas cortes – operam com “duplos vínculos” em relação aos direitos territoriais dos povos indígenas continua sendo validada pelos eventos que sucederam à decisão favorável do STF, em março de 2009, pela homologação da Terra Indígena Raposa/Serra do Sol em área contínua. Essa decisão visava pacificar os conflitos em torno da homologação da área, mas a resistência armada dos habitantes não autorizados a deixá-la, aliada à PET n. 3.388, acabou por obrigar o STF a construir uma saída pacificadora para o conflito. Este era, para falar como Malinowski, o “contexto da situação” em torno da PET n. 3.388.
Como veremos a seguir, quando a constitucionalidade do direito originário dos povos indígenas da TIRSS se torna objeto de julgamento pelo STF, aliada à PET n. 3.388, tendo como pano de fundo o acirramento do conflito, de modo armado e violento pelos “arrozeiros”, deve-se compreender que tal julgamento se pronuncia como uma sentença constitutiva, isto é, que estabelece uma nova jurisdição para a matéria de maneira a disciplinar sua interpretação. Isso se dá, evidentemente, pela própria legitimidade do STF, mas também, simbolicamente, pela própria performatividade (Tambiah, 1985) dos juízes que proferem seus votos enquanto um evento ritual. A decisão do STF deve ser compreendida, portanto, como expressão de um “direito falado”, tal como o definiu Rojas Garzón (2008):
Considero que é no texto aplicado pelos agentes do Estado que se materializam os conteúdos e limites concretos dos dispositivos escritos, criando do lado destes o que chamo de direito falado, entendendo por este o direito aplicado pelos juízes, que são os agentes dentro do Estado que resolvem “soberanamente” caso a caso a ambiguidade da norma escrita, bem seja no seu papel de intermediador da relação entre os povos indígenas e o Poder Executivo, ou em qualidade de representante do próprio Estado, quando decidem sobre as regras de relacionamento entre os povos indígenas e os demais particulares (Rojas Garzón, 2008, p. 17, grifos no original).
Dito isso, faz-se necessário analisar as condicionantes do STF para a homologação da TIRSS, buscando reconhecer ali, “no texto aplicado pelos agentes do Estado”, os aspectos semânticos que asseguram a constitucionalidade da homologação (primeiro vínculo), ao mesmo tempo que desconstroem pragmaticamente sua efetividade para compatibilizá-la com os interesses das partes contrárias (segundo vínculo). Ou seja, a eficácia das condicionantes somente pode ser aferida pela predominância em termos pragmáticos do segundo vínculo em detrimento do primeiro, como veremos a seguir.
Detenhamo-nos, neste momento, nos enunciados propriamente ditos das dezenove condicionantes formuladas pelo STF:
Da perspectiva estritamente jurídica (e semântica), as condicionantes se apresentam, em termos de linguística pragmática, cumprindo uma função referencial com a reafirmação normativa da ordem constitucional estabelecida, ou seja, um ato de reconhecimento da legalidade dos procedimentos demarcatórios e sua constitucionalidade para fins de homologação.
Entretanto, considerando-se os efeitos perlocucionários das condicionantes enquanto uma “decisão do STF”, não é tanto o que as condicionantes dizem que importa analisar, mas o que as condicionantes fizeram e permitiram que fosse feito após terem sido pronunciadas. Nesse sentido, devemos compreender cada condicionante como um ato performativo do STF, onde cada enunciado, assim como o conjunto deles, associado às declarações dos votos e o acórdão, implicou um fazer específico, no caso, de desconstrução das terras indígenas como direito originário exclusivo dos povos indígenas. Isso se dá, em primeiro lugar, pela utilização do plural “terras indígenas” e “índios” na formulação das salvaguardas quando deveria ter sido empregado o singular “TIRSS” e mencionado cada povo indígena nela habitante. Disso decorre o efeito perlocucionário das condicionantes para os receptores do julgamento que entendem, a partir da relação metonímica estabelecida entre a TIRSS e todas as Terras Indígenas do país, que o STF está ditando sobre o conjunto das “terras indígenas” e dos “índios” e não somente o caso em questão.
Dessa forma, das três condicionantes elaboradas para reafirmar o caráter inalienável, imprescritível e indisponível da TIRSS (condicionantes 14, 16 e 18), o sentido produzido pela redundância é a delimitação metafórica de todas as terras indígenas estritamente como “bens da União”. São condicionantes que cumprem uma função conativa justamente porque visam atingir aqueles que têm definido terras indígenas como “territórios não nacionais” ou “santuários protegidos” para prescrever em seu lugar a relatividade desse status sempre que haja “relevante interesse público da União”. Esse interesse, como se pode deduzir, se impõe ao “relevante interesse que os povos indígenas possuem ou podem vir a ter” e foi diretamente empregado na redação do PLP n. 227/2012.
Outras três condicionantes destinam-se a fazer das terras indígenas áreas abertas e subordináveis às Forças Armadas e à Polícia Federal (condicionante 6), assim como abertas a entes federativos (condicionante 19) e outros órgãos públicos, e mais duas a fazer dos recursos ambientais presentes nas terras indígenas objeto de gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, entre outros órgãos estatais (condicionante 9), submetendo os usos indígenas desses recursos ao Estado e reinstaurando uma divisão simbólica do território com o objetivo de apaziguar as lutas pela definição da realidade regional (ver Bourdieu, 2006, p. 118).
Essas condicionantes cumprem, desse modo, e pragmaticamente falando, uma função conativa ao visarem construir um consenso perante a sociedade nacional (e regional) em torno da abertura das terras indígenas aos órgãos de exercício da violência legítima pelo Estado, assim como ao exercício de gestão do ambiente pelo órgão ambientalista oficial, deixando claro que o sentido de “proteção integral” das terras indígenas é redutível, hierarquicamente, ao seu uso conservacionista.
Uma vez mais, as práticas indígenas de controle legítimo do acesso a seus territórios e recursos são subordinadas às práticas políticas e policiais dos respectivos órgãos do Estado. O que se faz aqui é reafirmar a soberania do Estado, entendida como poder policial e de controle, sobre as terras indígenas, legitimando o papel das forças militares, policiais e fiscalizadoras no interior das terras indígenas sem qualquer possibilidade de diálogo ou controle dos povos indígenas sobre essa atuação. Esses órgãos passam a ser os verdadeiros executores de uma política de acesso às terras indígenas em detrimento dos povos indígenas, suas organizações e o próprio órgão indigenista.
Finalmente, cinco condicionantes falam do direito de ir e vir pelas terras indígenas, isto é, ingressar na área demarcada, mas o que tais condicionantes fazem é normalizar a permanência em seu interior (condicionantes 10, 11, 12, 13 e 15), servindo-se para tal de uma função metalinguística, na medida em que falam sobre a observação de regras previamente definidas pelos órgãos militares, policiais e públicos, anteriormente mencionados, em detrimento das regras ou práticas de controle exercidas ou estabelecidas pelos indígenas ou pela Funai diante do trânsito de terceiros. Neste último aspecto, abre-se inclusive a possibilidade de coação e criminalização de práticas indígenas de obtenção de renda pela fiscalização do trânsito de terceiros em suas terras.
No total, foram enunciadas 11 condicionantes com vistas a desconstruir a compreensão de que as terras indígenas são áreas fechadas, intransitáveis e inexploráveis por não indígenas. Em síntese, reiterou-se pela redundância o sentido de que terras indígenas enquanto bens da União destinam-se mais aos “relevantes interesses” da União do que à proteção dos indígenas e seu patrimônio em conformidade com seus usos, costumes e tradições. Promove-se, assim, uma grave inversão da função primordial das terras indígenas como áreas de proteção da reprodução física e cultural dos índios, ao mesmo tempo que se hierarquiza, para fins de administração e exploração econômica, essas finalidades por intermédio de instituições estatais não indígenas, que passam a ter prioridade ou precedência para gozá-las, a exemplo de corporações ou outros agentes econômicos. Esses efeitos afrontam diretamente o artigo 7º da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT),16 ratificada pelo governo brasileiro, porém não regulamentada.
Se essas condicionantes servem para abrir as terras indígenas, deixando claro que cabe antes ao Estado a autorização de ingresso, trânsito e usufruto nas e das mesmas, promovendo indiretamente um assalto à autonomia indígena no controle do seu espaço de reprodução física e cultural, as outras seis condicionantes servem para limitar diretamente a “exclusividade” do usufruto indígena dos seus territórios e recursos. Essas condicionantes se destacam pelo modo “omissivo” com que tratam o “usufruto exclusivo” dos indígenas às riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas, conforme prescreve o parágrafo 2º do artigo 231 da Constituição Federal. Numa palavra, são condicionantes que se constroem in a fit of absentmindness (ou “acesso de distração”), como observou Alcida Ramos (1998) em sua crítica da “desrazão indigenista”, construindo de forma totalmente poética pela redundância da expressão “o usufruto dos índios” no início de cada condicionante o fim de sua “exclusividade”. Quase se pode ouvir o ritmo fúnebre de sua enunciação.
O conjunto de enunciados performativos faz com que as condicionantes deixem de ser meras ressalvas para julgar um ato administrativo sobre uma terra indígena em particular para se converterem em práticas retóricas produtoras de uma forma unívoca de representar terras indígenas e de estruturar de modo hierarquizado diversos tipos de ações sobre elas e em seu interior, independentemente das disposições indígenas em favor ou em contrário, quiçá levando em consideração o direito de consulta tal como previsto pela Convenção 169 da OIT, ratificada pelo Congresso Nacional.
Seguindo essa análise, vemos manifestar-se a estrutura das relações entre Estado e povos indígenas no Brasil como manutenção de uma situação colonial (Balandier, 1951, 1966), sobretudo pela reiteração do direito autoatribuído por um povo de exercer a apropriação, exploração e gestão dos territó- rios de outros povos em nome da própria su- perioridade étnica, presumida como uma capacidade superior inata de usufruir e extrair riqueza desses territórios em detrimento dos direitos originários dos seus habitantes anteriores.17 O que essa primeira análise indica é que a incorporação dos direitos territoriais indígenas à Constituição Federal resulta de uma criação legal e, por esse motivo, pode também ser desconstruída legalmente ao se “dizer o direito”, independentemente de consensos e acordos anteriormente firmados (Green, 1983, p. 353).
Sob esses termos, torna-se reconhecível a conjuntura que torna uma decisão jurídica um exercício de controle direto de uma situação de colonialismo interno segundo uma doutrina de política indigenista especificamente tutelar (Balandier, 1993, p. 113). Deparamo-nos com o poder tutelar como administração jurídico-política das relações interétnicas, não mais como “tutela do direito”, mas como: “[...] uma forma reelaborada de uma guerra, ou, de maneira muito mais específica, do que se pode construir como um modelo formal de uma das formas de relacionamento possível entre um ‘eu’ e um ‘outro’ afastados por uma alteridade (econômica, política, simbólica e espacial) radical, isto é, a conquista, cujos princípios primeiros se repetem – como toda a repetição, de forma diferenciada – a cada pacificação” (Souza Lima, 1995, p. 43, grifos no original).
Feito esse parêntesis teórico, é possível prosseguir na análise das oito condicionantes definidoras ou delimitadoras da noção de “usufruto exclusivo” dos indígenas como expressão de uma raison d’Etát segundo uma lógica colonialista. Na verdade, das 19 condicionantes, a questão da abrangência do “usufruto dos índios” e a proibição de ampliação da área é a preocupação central para reconhecer a homologação da TIRSS Trata-se de uma conveniente redefinição do conceito legal de terra indígena como uma área imprescindível para a reprodução física e cultural de uma população etnicamente distinta para ser pensada enquanto espaço de fruição compartilhada e gerida pela sociedade não indígena e seu Estado.
O que o STF acaba por promover com as condicionantes é a legitimação do status quo de esbulho e exploração ilegal das terras indígenas, pois, como se sabe, do total de áreas reconhecidas por direito, compreendendo de 12,2% a 13,3% do território brasileiro, mais de 8% encontram-se ilegalmente exploradas ou sem regularização definitiva, isto é, os indígenas não as têm usufruído exclusivamente de fato.
Segundo as condicionantes redefinidoras do sentido de “usufruto exclusivo indígena”, estamos agora em condições de reconhecer a “po/ética” colonial18 de seus enunciados:
Ao enfatizar o “usufruto dos índios” pela redundância do “não abrange” se produz o efeito desejado da “relativização” desse usufruto “sempre” que houver interesse da União para o exercício da força policial ou militar, exploração econômica ou conservação ambiental. Esse “interesse da União”, em verdade, expressa eufemisticamente uma “necessidade” de ocasião, que, por sua vez, é a fundamentação moral e política do poder soberano, que subjaz a instauração de estados de exceção (Agamben, 2004). Mais além, o uso do “sempre”, do “dependerá”, do “independentemente” e do “sobrepor” nas condicionantes indicam o poder que se pretende perpétuo sobre as terras indígenas e a administração de suas formas de fruição.
A po/ética acionada esvazia perlocucionariamente o sentido constitucional de “exclusividade” do usufruto indígena a suas terras e recursos, o que seria a base de sua autodeterminação tal como prevista no artigo 231 da Constituição Federal e na Convenção 169 da OIT, para preenchê-la com o sentido de soberania próprio de um Estado capitalista, segundo o qual terras, indígenas ou não, são bens ou propriedades. Esse Estado seria a única instância habilitada a produzir riqueza em “suas” terras, condição esta para assegurar sua soberania conforme os princípios da uti possidetis. A sobrevivência indígena é assim subordinada à sobrevivência do próprio Estado-nação, representado como um “bando”, do qual os povos indígenas veem-se incluídos, ainda que seja uma “inclusão na exceção”, como teoriza Giorgio Agamben (2002, p. 117), para quem:
É esta estrutura de bando que devemos aprender a reconhecer nas relações políticas e nos espaços públicos onde ainda vivemos. […] Ela é o nomos soberano que condiciona todas as outras normas, a especialização originária que torna possível e governável toda localização e toda territorialização.
O poder soberano do Estado-nação, manifestado pelo STF diante da PET n. 3.388, expressa essa estrutura de “bando” justamente ao buscar pacificar o conflito interétnico em torno das disputas territoriais, subordinando o direito originário dos povos indígenas ao usufruto exclusivo das terras tradicionalmente ocupadas à razão de Estado do ordenamento territorial, para fins de seu controle/exploração/conservação como fundamento da soberania nacional. O caráter colonial da forma como o direito é falado acentua-se com a autodefinição do STF enquanto tribunal superior, onde as próprias interpretações da Constituição e do direito se enunciam como melhores e justas. A reboque da enunciação “superior” do direito, engendra-se um sentimento etnocrático como ideologia legitimadora por trás dessas deliberações que não têm outra finalidade senão a de estabelecer um novo consenso hegemônico.19
Dito isso, temos que as condicionantes do STF acionam o poder tutelar de forma a exercer uma “po/ética” colonial como forma de administração dos conflitos, recorrendo ao velho repertório das sesmarias, que é, precisamente, o repertório que, no tempo das capitanias hereditárias, alienou a posse da terra daqueles que praticavam de maneira autônoma seu usufruto, em favor do direito de propriedade. Vale lembrar que foi segundo essa velha moldura colonial que nossos constituintes pensaram proteger as terras indígenas enquanto entidades inalienáveis e os direitos sobre elas imprescritíveis e indisponíveis. Ao fazerem delas “posse” dos índios e “domínio” da União, o que se pretendia era proteger os direitos indígenas sobre suas terras e não mais tutelar esses direitos.
A decisão do STF na PET n. 3.388 tem implicado, portanto, verdadeira desconstrução simbólica pragmática do direito originário dos povos indígenas às suas terras ancestrais com a flexibilização da “exclusividade” do usufruto alcançada com o julgamento de um caso (TIRSS) como se fosse representativo, metonimicamente, de um todo (o conjunto das terras indígenas) e como se esse todo fosse, metaforicamente, um “bem” para dividir. Isso se dá pela descaracterização, condicionante a condicionante, do que uma terra indígena deveria ser e a função que deveria cumprir a partir da desconstrução da exclusividade do usufruto das terras indígenas pelos ocupantes indígenas. Terra indígena passa a ser pragmaticamente concebida como recurso econômico e não mais como um território material e simbolicamente imprescindível à autodeterminação dos povos indígenas e sua sobrevivência física e cultural.
A oposição à homologação da TIRSS não se configura como um caso único, de tal modo que o julgamento sobre seu desfecho no âmbito do STF foi acompanhado proximamente por outros interessados em saber qual seria a nova leitura dos direitos originários no país. Com a elaboração das condicionantes pelo STF conformou-se uma interpretação pragmática alçada a paradigmática para “pacificar” os demais conflitos interétnicos em curso. Veja-se, por exemplo, a mobilização e organização de forte resistência aos processos administrativos constituidores de terras indígenas no baixo Tapajós no Pará, no sul da Bahia, no cone sul do Mato Grosso do Sul, no oeste do Paraná, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, principalmente. Destacam-se, nesses contextos, as críticas de produtores rurais em âmbito judicial sobre a atuação antropológica nos processos de identificação e delimitação,20 campanhas publicitárias e jornalísticas anti-indígenas e, o mais grave, o emprego do “marco temporal” – noção citada no acórdão da PET n. 3.388, que indica o ano de promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 como o momento inaugural para reconhecimento das terras tradicionais sob posse dos indígenas (“o marco da tradicionalidade da ocupação” segundo a retórica do ministro Ayres Britto).21
Uma situação social elucidativa da efervescência gerada pela decisão do STF se deu em abril de 2013, quando a presidenta Dilma Rousseff foi alvo de vaias por parte de produtores rurais em Campo Grande (Mato Grosso do Sul). Na ocasião, ouviram-se gritos de “demarcação não”, um protesto explícito contra os processos de demarcação de terras indígenas no estado, que visam assegurar uma reparação histórica aos povos indígenas Guarani e Kaiowá. Após essa situação constrangedora, a ex-ministra Gleisi Hoffmann, da Casa Civil, deixou clara a postura que o governo federal adotaria a partir de então, pedindo ao Ministério da Justiça a suspensão dos processos de regularização fundiária de terras indígenas em Terra Roxa e Guaíra, municípios do Paraná (estado onde concorreria ao cargo de governadora) e não no Mato Grosso do Sul. A Casa Civil, conforme foi amplamente divulgado pela imprensa, utilizou as divergências de um suposto estudo da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) para desqualificar os estudos antropológicos da Funai e assim fundamentar sua solicitação. Posteriormente, a Embrapa negou a existência de tais estudos.
Em alguns casos precedendo e em outros reverberando as campanhas antidemarcatórias de produtores rurais e empresas do agronegócio, além de empresas e corporações ligadas à mineração, ao setor energético, às empresas florestais, aos transportes e portos etc., uma série de atos administrativos do governo federal e de atos legislativos do Congresso Nacional poderiam ser compreendidos como expressão do modo padronizado como setores anti-indígenas têm atuado no país, na contramão dos direitos já previstos para os povos indígenas desde 1988. Esses atos compreenderam portarias, emendas, reformas, projetos de lei e programas oficiais,22 que têm em comum a promoção de efeitos diretos ou indiretos sobre o processo de demarcação de terras indígenas no Brasil, o que expressa a vinculação direta de certos parlamentares e do próprio governo, à época, com os agentes e agências contrários aos direitos dos povos indígenas às suas terras tal como foram definidas na Constituição Federal de 1988.
O que busco ressaltar aqui é que as condicionantes propostas pelo STF como dispositivos para reconhecer em definitivo a homologação da TIRSS e, ao mesmo tempo, pacificar os conflitos provocados por diversos atores e grupos do agronegócio de Roraima, do governo estadual e do Exército brasileiro, acabaram sendo anunciadas em um contexto revisionista mais amplo dos procedimentos demarcatórios de outros poderes públicos, para além do contexto específico da TIRSS, emprestando eficácia simbólica para o questionamento generalizado dos processos de regularização fundiária de terras indígenas em todo o país, tal como expresso nos atos mencionados. Isso se deu pela suposição de que as condicionantes, por força de seus próprios enunciados feitos de modo generalizador, possuiriam caráter vinculante ou normativo sobre todos (erga omnes) e não somente sobre as partes da ação judicial (Barroso, 2012, p. 71).
Dito de outro modo, as condicionantes do STF promoveram, perlocucionariamente, a compactação de iniciativas dispersas que visam retroagir o reconhecimento do direito originário dos povos indígenas às suas terras e, com isso, promoveu a coesão de adversários indígenas presentes nos demais poderes, ao conferir sentido e validade jurídica a uma oposição que se restringia ao campo das relações interétnicas locais.
Como observou Bordieu (2006, pp. 14-15):
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. Isto significa que o poder simbólico não reside nos “sistemas simbólicos” em forma de uma “illocutionary force” mas que se define numa relação determinada – e por meio desta – entre os que exercem o poder e os que lhe estão sujeitos, quer dizer, isto é, na própria estrutura do campo em que se produz e se reproduz a crença. O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras.
Isto significa dizer que o STF exerceu, para além da estrutura interna e ilocucionária da enunciação das condicionantes, um poder simbólico externo que tornou restrito (o que é mais do que simplesmente afirmar ou descrever) os sentidos da “exclusividade” dos direitos dos povos indígenas às suas terras ancestrais. A força perlocucionária da decisão do STF não deriva, portanto, exclusivamente, de sua pragmática interna, mas da própria estrutura do campo “ruralista” (termo que passou a ser empregado em âmbito nacional) e o reconhecimento dos agentes deste campo acerca da legitimação simbólica que o STF promoveu para a consecução de seus interesses. Isso possibilitou uma configuração mais coesa da frente anti-indígena “ruralista”, que passou a se movimentar, desde então, cada vez mais rapidamente e sentindo-se autorizada pelas condicionantes, conseguindo impedir e reverter a declaração e mesmo a homologação de terras indígenas já reconhecidas, como a Terra Indígena Guyraroká no Mato Grosso do Sul, entre outras, e tendo realizado em 2 de dezembro de 2014 a apresentação do projeto de lei complementar do senador Romero Jucá, que visa reelaborar o parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição Federal.23
Vale lembrar que, no dia seguinte a essa apresentação, foi realizada outra do relatório do deputado Osmar Serraglio acerca da PEC n. 215/00. Serraglio, nomeado Ministro da Justiça em março de 2017, se vale de argumentos apelativos da moralidade cristã para caracterizar “pequenos colonos” ou “famílias de trabalhadores rurais” como os mais prejudicados pelos processos de regularização fundiária das terras indígenas, ocultando informações sobre a crescente concentração fundiária na maioria dos estados por empresas e empresários do agronegócio e suas várias frentes de produção de commodities, para favorecer a transferência de responsabilidade executiva pelos trabalhos de demarcação de terras indígenas para o Congresso Nacional, a despei- to de este ser um exercício inconstitucional do Poder Legislativo.
As reações de parlamentares ruralistas no Congresso e a própria portaria n. 303 da AGU, por exemplo, indicam que a força perlocucionária da decisão do STF não partiu simplesmente da reiteração dos “preceitos constitucionais”, mas da “reiteração” dos preceitos constitucionais, ou seja, do ato de enunciá-los pragmaticamente num novo contexto situacional. Essa força incrementou a pressão para que os processos de demarcação de terras indígenas em curso sejam revistos em prol de maior ingerência por parte dos estados e municípios (condicionante esta interposta pelo ministro Celso de Mello) em detrimento do processo administrativo conduzido pela Funai (visto na postura assumida pelo Ministério da Justiça e pela Casa Civil no período), o que expressa um efeito inesperado decorrente da persuasividade simbólica da decisão condicionada do STF para o caso da TIRSS sobre o estatuto das terras indígenas de modo geral, o que pode ser depreendido da paralisação dos procedimentos de regularização no âmbito judicial que adotaram a “tese do marco temporal” em escala nacional.
Como atos e decisões oficiais não são meras palavras, mas atos dotados de poder simbólico para construir a realidade, o próprio STF se viu, então, obrigado a deliberar sobre sua própria deliberação, isto é, sobre os efeitos perlocucionários de seu ato ilocucionário, julgando essa matéria em outubro de 2013, quando decidiu que a decisão de 2009 não é vinculante.
Mas a força persuasiva da decisão original já havia produzido suas consequências ou, para falar em linguagem antropológica, a eficácia simbólica converteu-se em violência pragmática ao esvaziar o sentido antropológico de terra indígena como “terra tradicionalmente ocupada pelos índios” e de “usufruto exclusivo” para impor a definição dominante e mercadológica da terra indígena como “bem da União”.
A relatoria do ministro Carlos Ayres Britto no caso da homologação da TIRSS, que embasou extensamente a elaboração das condicionantes, acabou por construir um “cavalo de Troia” no âmbito dos direitos dos povos indígenas no Brasil. E isso se deu, sobretudo, pela definição do dia 5 de outubro de 1988 como “marco zero” da “ocupação tradicional”, o que anula histórias extremamente violentas de massacres, expropriações e deslocamentos forçados de comunidades indígenas de seus territórios.24 Com isso, promove-se um consenso pretensamente hegemônico em torno da impunidade diante dos crimes cometidos contra os indígenas antes de 1988.
As dezenove condicionantes colocaram irreversivelmente sub judice os procedimentos demarcatórios de terras indígenas, decorrentes do reconhecimento constitucional do usufruto exclusivo dos povos indígenas às suas terras. E, consequentemente, deflagraram um quadro generalizado de desconstrução do direito originário dos povos indígenas às suas terras tradicionalmente ocupadas, sejam elas já constituídas, das outras em constituição e daquelas por constituir, configurando, nas palavras do antropólogo João Pacheco de Oliveira, a: “[...] maior ofensiva contra a política indigenista na história brasileira”.25
No caso da decisão relativa à PET n. 3.388, o relator, ministro Carlos Ayres Britto, foi favorável em seu voto à demarcação em área contínua da TIRSS, reafirmando uma série de consensos administrativos em torno da matéria, nomeadamente: (1) “a condição indígena da área demarcada”; (2) “que as terras indígenas constituem bens da União”; (3) “que somente à União compete instaurar, dar sequência, concluir e efetivar esse processo por atos situados na esfera de atuação do Poder Executivo Federal” etc. Entretanto, ao relativizar a abrangência da “exclusividade” do usufruto indígena sobre suas terras e recursos, as condicionantes limitaram a extensão espacial de sua autonomia, abrindo espaço para a delimitação temporal da mesma ao enunciar o marco temporal para efetivação desse direito circunscrito à data de promulgação da Constituição de 1988. Com isso, o voto do ministro não fez frente ao poder simbólico das dezenove condicionantes. Não por outra razão, o Advogado-Geral da União Luís Inácio Adams promulgou a Portaria n. 303, de 16 de julho de 2012,26 com o intuito de tornar vinculante (leia-se jurisprudencial ou disciplinador no âmbito da AGU) a todos os processos demarcatórios a “tese do marco temporal”, o que foi recentemente reitera- do pelo parecer n. 001/2017 da mesma AGU.
Tal feito engendrou nova controvérsia com relação ao caráter vinculante ou não dessa interpretação, o que resultou em Acórdão do STF publicado em 23 de outubro de 2013, tendo como relator o ministro Roberto Barroso, quando se rejeitou a vinculação do “marco temporal” a outros processos demarcatórios no país. Mais uma vez, isso não foi suficiente para deter os efeitos perlocucionários das condicionantes ora analisadas e a “tese do marco temporal” sobre outros agentes e agências estatais dos três poderes e nas três instâncias da federação (municipal, estadual e federal). Isso comprova a importância do “contexto da situação” para assegurar eficácia persuasiva a certos rituais. Não basta que os atores do rito o reencenem. O contexto e a estrutura das relações de poder são decisivos para assegurar o sucesso da performance e tornar irreversíveis seus efeitos.
Este artigo foi elaborado com o objetivo de explicar porque as condicionantes do STF ganharam tanta força persuasiva, notável até hoje, para a desconstrução simbólica do estatuto jurídico das terras indígenas no Brasil. A ideia foi demonstrar de que modo o contexto da situação no qual a mais alta corte do país decidiu sobre o caso contribuiu para que elas produzissem efeitos contrários à efetivação dos direitos dos povos indígenas, mesmo quando pretendia justamente reconhecê-los.
Sob essa perspectiva, o adensamento da ofensiva anti-indígena atual não é mera manifestação de um retrocesso ou de um revisionismo advindo da ascensão de grupos e setores anti-indígenas ao poder, como se poderia pensar à primeira vista, mas resultado do respaldo simbólico advindo do STF ao “dizer/fazer” o direito sobre as terras indígenas, que emprestou legitimidade às investidas anti-indígenas contra esse direito.
Como se espera ter demonstrado com a análise pragmática das condicionantes, esse poder simbólico é revelador de um padrão de exercício de poder que se perpetua de modo tipificado nas situações coloniais. A estas correspondem contextos situacionais que significam as interpretações jurisprudenciais com vistas a legitimar a dominação de uma ou mais etnias sobre outras, obrigando-as a viveram submetidas a ideias, ideologias e poderes alheios aos seus.
No caso brasileiro, essa orientação tem perdurado por séculos de políticas de integração orientadas para a assimilação das populações indígenas segundo concepções contraditórias de proteção e aculturação – ambas sustentadas por leis, decretos, regulamentações e regimes tutelares, nos quais as terras e reservas indígenas não passariam de “salas de espera” até o efetivo desaparecimento (vulgo “assimilação”) dos indígenas. A Constituição Federal buscou promover a superação dessa situação, livrando os povos indígenas da condição de tutelados pelo reconhecimento dos seus usos, costumes e tradições e do usufruto exclusivo das terras que tradicionalmente ocupam. Em vez de reiterar esse consenso, as condicionantes do STF não reconheceram apenas semanticamente a homologação da TIRSS, mas produziram pragmaticamente uma desconstrução simbólica do direito originário dos povos indígenas às suas terras ancestrais. Essa desconstrução encontra-se hoje em curso, não mais simbolicamente, mas administrativamente, legislativamente e juridicamente, de modo a submeter as “terras indígenas” como espaços de usufruto exclusivo indígena a meros “bens da União”, com validade retroativa somente a 5 de outubro de 1988.
Caso a marcha dessa desconstrução não seja impedida, passaremos da maior “ofensiva contra a política indigenista da história”, como foi dito por João Pacheco de Oliveira,27 à maior anistia de invasões ilegais e a consequente transferência de terras indígenas para não indígenas que se tem conhecimento no continente.