Resumo: O artigo examina o “esquema Pedro Américo”, que esteve na origem de um novo padrão de consagração no ambiente artístico do Rio de Janeiro, implicando constantes idas e vindas do Brasil à Europa, possibilitadas, sobretudo, por encomendas de grandes obras com motivos patrióticos. Esse esquema foi reproduzido com regularidade entre as décadas de 1870 e 1910 e formou uma elite artística reconhecida por viver de arte entre o Brasil e a Europa. São analisadas no artigoos modos pelos quais as elites políticas foram enredadas e contribuíram para a internacionalização da arte brasileira, mediante o curioso desvio do Brasil pintado na Europa , do qual derivou uma condição instável: nem bem uma arte orientada pelo compromisso com o país, nem bem uma arte internacional do tipo “arte pela arte” dos pompiers , e tampouco a pintura da vida moderna.
Palavras-chave: Viagens de artistasViagens de artistas,Brasil e EuropaBrasil e Europa,Arte brasileiraArte brasileira,Mal de NabucoMal de Nabuco,Elite artísticaElite artística.
Abstract: This paper analyses the “Pedro Américo Scheme”, which was at the origin of a new pattern of validation in the artistic environment of Rio de Janeiro. Itconsisted of constant comings and goings from Brazil to Europe, made possible, above all, by the commission of great works with patriotic motifs. This scheme was reproduced regularlybetween the decades of 1870 and 1910, and it formed and artistic elite known for living of art between Brazil and Europe. The paper analyses the ways in which the elites were entangled and contributed to the internationalization of Brazilian art, through the curious diversion of Brazil painted in Europe ; from which derived an unstable status: not so much an art guided by the commitment with the country, not so much an international art, like the “art for the art” of the pompiers , nor the painting of modern life.
Keywords: Artist travels, Brazil and Europe, Brazilianart, Nabuco’s Disease, Artistic elite.
Résumé: L’article examine la stratégie de Pedro Américo, qui a conduit à un nouveau modèle de consécration dans le milieu artistique de Rio de Janeiro, qui impliquait en des constants va-et-vient entre le Brésil et l’Europe, rendus possibles, surtout, grâce à la commande de grandes œuvres aux motifs patriotiques. Cette stratégie a été régulièrement reproduite entre les décennies de 1870 et 1910 et a formé une élite artistique reconnue comme vivant de l’art entre le Brésil et l’Europe. Nous analysons les manières par lesquelles les élites politiques ont été entremêlées et ont contribué à l’internationalisation de l’art brésilien, qui a eu lieu grâce au curieux écart du Brasil pintado na Europa (Brésil peint en Europe), qui a impliquéune condition instable : il ne s’agissait ni tout à fait d’un art guidé par l’engagement avec le pays ; ni d’un art international du genre de l’art en substitution à l’art pompier; ni tout à fait d’une peinture de la vie moderne.
Mot-clés: Voyages d’artistes, Brésil et Europe, Art brésilien, Le mal de Nabuco, Élite artistique.
Artigo original
VIVER DE ARTE ENTRE O BRASIL E A EUROPA: O “ESQUEMA PEDRO AMÉRICO” *
TO LIVE OF ART BETWEEN BRAZIL AND EUROPE: “THE PEDRO AMERICO SCHEME”
VIVRE DE L’ART ENTRE LE BRÉSIL ET L’EUROPE : LA STRATÉGIE PEDRO AMÉRICO
Recepção: 21 Fevereiro 2018
Aprovação: 23 Novembro 2018
DOI: 10.1590/3410009/2019
A instabilidade a que me refiro provém de que na América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca, o fundo histórico, a perspectiva humana; e que na Europa nos falta a pátria, isto é, a fôrma em que cada um foi vazado ao nascer. De um lado do mar sente-se a ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro, a imaginação europeia (Nabuco, [1900], 1999, p. 49).
Este artigo trata de viagens na consolidação do ambiente artístico do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. O tema já foi estudado tanto em caráter monográfico como em visões de conjunto, sobretudo, no que diz respeito às viagens de formação dos pensionistas da Academia Imperial das Belas Artes (Aiba) e de sua sucessora, a Escola Nacional de Belas Artes (Enba). O foco do artigo são as viagens posteriores, que muitos dos artistas formados no Rio de Janeiro realizaram por conta própria ou para a execução de encomendas contratadas no Brasil.
Parte-se do pressuposto de que as viagens dos pensionistas à Europa, instituídas por Félix-Émile Taunay em 1845, foram essenciais para atualizar a Academia e o ambiente artístico do Rio de Janeiro nas tendências que ganharam maior relevo a partir da década de 1830 tanto na Itália como na França. 1 Nesse sentido, pode-se dizer que as viagens cumpriram seus principais objetivos: dar a dupla formação aos artistas pré-selecionados no Brasil, recrutar os mais destacados para os quadros docentes da Aiba ou, quando não, vê-los redistribuídos na capital ou nas províncias, onde teriam papel de relevo como artistas ou como formadores de novas gerações instruídas em seus ateliês.
No entanto, os artistas que fizeram suas primeiras viagens como pensionistas atualizaram pelo reforço da experiência vivida a noção de que o grande teatro das artes estava de fato no Velho Mundo, bem como a noção de que o modelo de trajetória suposto no regime da dupla formação não precisava terminar na sedentarização do artista laureado. Além disso, o nomadismo do artista, desde o século XVI, era fato conhecido por meio dos abundantes exemplos de desterritorialização na literatura das “vidas de artistas” ( Gomes Júnior, 2007 ). O dilema estava então perfeitamente dado: ir, voltar e ficar fazia sentido do ponto de vista do projeto nacional, por meio do qual a Aiba se justificava, como instituição anexa ao Ministério dos Negócios do Império. Mas, do ponto de vista das ambições do artista, iluminado na sua passagem pelo grande teatro das artes, retornar uma ou mais vezes ao Velho Mundo poderia significar outro tipo de conquista, a condição de mediador permanente entre o centro e a periferia, de preferência estando no centro.
Cumpre saber quais foram os meios agenciados por artistas brasileiros para compensar as desvantagens de sua condição periférica, que impunha um horizonte de reduzidas possibilidades de consagração ou mesmo de reconhecimento nos ambientes artísticos italianos e franceses. Nesse sentido, a alternativa encontrada envolveu iniciativas individuais, que consistiam em engatar o projeto de novas viagens com encomendas de obras com motivos pátrios demandadas pelo Estado; o que dependia muitas vezes da habilidade do artista em convencer os estadistas da necessidade da demanda. Essa foi a solução brasileira para instituir o novo patamar de internacionalização de suas artes, que deu forma a uma elite reconhecida por viver de arte entre o Brasil e a Europa, mesmo que isso tenha sido alcançado por meio de um curioso desvio: o Brasil pintado na Europa .
O artigo é inteiro dedicado a Pedro Américo, aquele que descobriu o esquema mais simples para viver de arte entre o Brasil e a Europa . Cabe ressaltar nessa introdução que não se trata de mais um estudo biográfico do artista, nem mesmo uma interpretação de sua obra nos moldes dos estudos de visualidade, orientados para a leitura interna de obras, em chave estilística e iconográfica. 2 Situado no âmbito da sociologia da cultura, o artigo tem como objeto construído o esquema Pedro Américo, que diz respeito à maneira como um artista brasileiro da segunda metade do século XIX poderia lidar com o fato de que a figuração artística à qual pertencia tinha dinâmicas locais e internacionais e era assimétrica por efeitos do tempo e da concentração. Do lado europeu, o grande teatro das artes correspondia a um conjunto de nexos articulando Paris e Roma, as duas cidades que concentravam a maior capacidade de atrair artistas estrangeiros, dotadas de um número maior de camadas de tempo, superpostas umas às outras e de maior concentração de instituições, clientes e público. Do lado brasileiro, um ambiente novo, ainda rarefeito, com pouco fundo histórico e instituições que foram criadas por um Estado nacional em formação, que apostava na relevância das artes do desenho como elemento central de um processo civilizatório.
Não há pretensão de originalidade no que diz respeito à reconstituição da trajetória artística e letrada de Pedro Américo, artista imensamente estudado por biógrafos e historiadores da arte. O que acredito ser novo na pesquisa exposta neste artigo, é sua articulação com o “mal de Nabuco” 3 – de que tratei em artigo anterior (Gomes Júnior, 2015). A questão pode ser resumida nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda na abertura de Raízes do Brasil :
A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico de consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem ( Holanda,1983 ).
Com o foco na esfera artística, que operava com baixo grau de autonomia, o objetivo principal do artigo é jogar luz sobre esse que foi um dos problemas centrais do pensamento brasileiro entre o fim do XIX e meados do século XX – de Joaquim Nabuco a Sérgio Buarque de Holanda – para interpretar o desejo do artista de voltar para a Europa.
Na historiografia de Pedro Américo, apesar da grande variedade de estudos que esquadrinharam seu ir e vir entre o Brasil e a Europa, as viagens foram tratadas como um dado natural de sua trajetória, artista que, como tantos outros, do Velho ou do Novo Mundo, saíram de seus lugares de origem para passar, uma ou mais vezes, ou ficar em Roma, Paris ou noutras capitais artísticas. Mesmo nos trabalhos mais recentes e de maior fôlego, como os de Rosemberg (2002) , Zaccara (2011) e Maciel (2016) a naturalização das viagens é constante. Para nenhum deles a viagem é vista como um problema, não no sentido de condená-la, mas no que diz respeito à condição instável que dela deriva 4 , que à época tinha como centro as tensões do localismo e do cosmopolitismo ou, de forma mais específica, a tensão entre arte empenhada em projeto civilizatório de caráter nacional por oposição a arte autonomizada, cuja condição de possibilidade estava restrita ao Velho Mundo.
O interesse por Pedro Américo deriva do fato de que foi ele quem tornou viável uma segunda etapa de internacionalização das artes, para além da viagem de formação do artista como bolsista da Aiba. Esse esquema foi modelar, isto é, foi repetido por outros, e, ao se concretizar, por meio da fatura de obras para o ornamento do Estado, 5 produziu uma condição instável: nem uma arte orientada pelo compromisso com o Brasil, o que implicaria ficar, optar pelos gêneros baixos e tomá-lo como um problema; 6 nem uma arte internacional do tipo arte pela arte dos pompiers , 7 que demandava um domínio técnico e estético irretocável, assim como o sucesso nos salões parisienses; nem a pintura da vida moderna (Baudelaire, 1999, a, b; Clark, 20048 ).
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Em 1855, quando Pedro Américo começou seus estudos, a Academia Imperial das Belas Artes (Aiba) era uma instituição consolidada, que havia superado tanto os seus tempos de incerteza (1816-1826) como o período de relativa improvisação, que precedeu a gestão de Félix-Émile Taunay (1834-1851). Foi com este que as Exposições Gerais e seu sistema de prêmios foram instituídos, que a Pinacoteca foi reorganizada e ampliada, que a biblioteca com suas coleções de gravuras e livros didáticos foi criada e também que os prêmios viagem começaram a vigorar, para proporcionar dupla formação, no Brasil e na Europa. 9 Com isso, foi estabelecida uma rotina que pressupunha trajetórias de artistas de médio e longo prazo e estabelecia um vínculo dinâmico com a cidade, sobretudo em razão das Exposições Gerais, por seu poder de induzir o debate. Só então o público e a crítica podiam acompanhar a carreira de um artista em seus anos escolares no Brasil, em sua evolução decorrente das viagens ao exterior e mesmo em sua obra madura, na medida em que as exposições acolhiam tanto antigos alunos como artistas formados em outros ambientes. Nesse sentido, a rotina não dizia respeito apenas ao mundo fechado da instituição, mas também a todo o seu entorno.
Sob o prisma do artista, podem ser distinguidos os seguintes passos:
a) o ingresso na Academia como aluno e a realização dos cursos de forma sequencial;
b) a disputa e a obtenção de prêmios nos salões, com a conquista da viagem à Europa (instituída em 1845) na condição de pensionista;
c) a frequentação de ateliê de um ou mais mestres das escola francesa ou italianas, com a exposição de pinturas em salões europeus (tornadas obrigatórias em 1854 na gestão de Porto-Alegre) e o envio destes e de outros quadros ou cópias para serem apresentados nas Exposições Gerais no Rio de Janeiro;
d) o retorno, seguido de uma exposição individual ou de um lugar de destaque na Exposição Geral e o estabelecimento de um ateliê, com possibilidade de formação de clientela privada e obtenção de encomendas públicas ou eclesiásticas.
Nessa sequência podem ser identificados outros passos, sempre mais seletivos:
e) a agregação aos quadros da Aiba como professor especialista em uma de suas áreas, com a possibilidade da compra de parte de sua produção individual para a Pinacoteca da academia com verbas suplementares do Ministério do Império;
f) as viagens de retorno à Europa para a realização de grandes encomendas contratadas no Brasil.
Pode-se dizer que a consagração artística na segunda metade do século XIX e mesmo no início do século XX demandava trajetórias que estivessem vinculadas, ao menos em parte, à passagem por esses patamares do sistema acadêmico, que assim funcionou mesmo depois do advento da República e da transformação da Aiba em Escola Nacional de Belas Artes. Isso significa afirmar que o ambiente artístico no Rio de Janeiro era um conjunto estruturado e que o ensino acadêmico institucionalizado estava em seu centro e tinha assumido a atribuição de legislar e arbitrar as práticas artísticas; mesmo tendo em conta que, desde a década de 1870, era possível identificar um ambiente artístico, com vozes críticas discordantes que se manifestavam na imprensa, com a presença de artistas estrangeiros e outsiders nativos, formados nas bordas do sistema, que disputavam a atenção do público e o mercado de bens artísticos, na capital e nas províncias. 10
A legitimidade da Aiba como instituição central não dependia apenas da chancela e dos recursos de Estado; mas do fato de que era um centro que se reportava e era reconhecido por outros centros em um universo hierarquizado de caráter internacional. As academias, na Europa, configuravam uma rede, que envolvia não apenas o universo das artes do desenho. Seus membros mais notáveis, ou mais hábeis em estabelecer relações, eram membros honorários ou sócios correspondentes de outras. A Academia de Belas Artes de Paris, que comportava também uma classe de música, teve Canova, Haydn, Thorvaldsen, Salieri, Rossini, De Cornelius, Overbeck, Verdi, Carosfeld, e uma plêiade de nomes que são hoje conhecidos por poucos. 11 Essa característica era comum não só às academias de Belas Artes, mas a todo tipo de sociedade científica ou letrada. O exemplo disso são as páginas de rosto de grande parte dos livros acadêmicos desse período, como os encontrados no catálogo da biblioteca da Aiba, que apresentavam muitas vezes os inúmeros títulos de seus autores na folha de rosto. Certamente pode-se pensar que quanto menos importante fosse o autor maior era o zelo em ostentar tais brasões, o que não está longe da verdade, mas ao mesmo tempo revela os compromissos e o sistema de lealdades dessas instituições.
Logo que a Academia Imperial das Belas Artes no Brasil ganhou maior consistência, sob a direção de Félix-Émile Taunay e depois, no período da direção de Porto-Alegre, muitos sócios correspondentes foram admitidos. Professores da Academia de San Luca em Roma, diretores e conservadores do Louvre, membros do Instituto de França e de outras instituições europeias; inúmeros artistas de renome: Schnetz, Lesueur, Petitot, Hersent, Ingres, Vinet, François-Joseph Heim, Abel de Pujol, Léon Cogniet, Eugène Delacroix, em uma lista de 131 correspondentes ( Galvão, 1958 ).
Esses sócios foram eleitos em duas datas, em 1851, no fim da gestão de Félix-Émile Taunay e, em 1857, no fim da gestão de Araújo Porto-Alegre. A criação desses cargos pode ser entendida como medida estratégica para facilitar o envio de pensionistas principalmente para Roma e Paris, mas certamente o objetivo era mais amplo, pois implicava no reconhecimento da instituição brasileira no universo das Academias na Europa, mesmo que em situação de evidente assimetria, já que o trânsito dos nomes se dava em via de mão única. Cabia ao Brasil, portanto, importar sócios correspondentes em troca de acolhimento de seus pensionistas, com a perspectiva de que estes pudessem ingressar no grande jogo das legitimações recíprocas, o que nunca chegou a realmente acontecer. 12
Com essas iniciativas, havia sido superada a fase em que as relações internacionais eram travadas de forma menos sistemática e um pouco ao sabor de ações individuais, dos Taunay, de Grandjean de Montigny, de Debret, de Porto-Alegre, que travou preciosas relações na França entre 1831 e 1837. A partir de então, o vínculo entre os dois mundos deixou de ser mantido quase que exclusivamente por franceses que se distribuíam entre Paris e o Rio de Janeiro; os brasileiros, que eram antes coadjuvantes, passaram a exercer o papel principal, agora como membros de uma instituição que pretendia ter mais a apresentar além de panoramas e viagens pitorescas (Gomes Júnior, 2012).
Nesse sentido, o processo de formação do artista em duas etapas – no Brasil e na Europa –, seguido de seu recrutamento para os quadros da Aiba, no Rio de Janeiro, agregava prestígio à academia e confirmava a sua legitimidade como instituição central, porque seus membros haviam sido rebatizados no interior do grande teatro das artes, aquele ambiente que se estendia de Paris a Roma, com eventuais passagens por Florença, Veneza ou Nápoles, para o necessário contato com Erculano e Pompeia, sítios privilegiados da herança clássica. Dos 22 pensionistas enviados à Europa (dezessete sustentados com as verbas regulares da Academia e cinco com bolsas subsidiadas pessoalmente por dom Pedro II), seis foram professores regulares ou interinos na Academia (Agostinho José da Motta, Victor Meirelles, João Zeferino da Costa, Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Pedro Américo) e um deles (Pedro Weingartner) foi nomeado, mas não assumiu a função (Cavalcanti, 2001, pp. 72 e 73).
Pedro Américo (1843-1905) pode ser visto como o artista paradigmático, depois da consolidação da Aiba, por ter passado por todas as etapas e ter se constituído em exemplo de consagração artística, emulado por tantos outros. Foi ele quem abriu o caminho para última etapa do percurso (etapa f ), demonstrando sua viabilidade. De certa forma, mais do que todos os outros, Pedro Américo soube acumular certos trunfos que potencializavam aqueles obtidos no âmbito estrito da esfera artística. De um lado, uma formação letrada e científica, comprovada por títulos europeus; do outro, uma rede de relações bastante estratégicas que estava baseada em relação estreita com Luís Pedreira do Couto Ferraz, 13 Araújo Porto-Alegre – que redundou no casamento com Carlota, sua filha – e no reconhecimento e na proteção de dom Pedro II, seu admirador. 14
Com Pedro Américo tudo aconteceu muito rápido. Recrutado pela academia em 1855, aos doze anos, em pouco menos de cinco anos já havia transitado pelas duas etapas iniciais ( a + b ), queimando parte da segunda – o concurso para o prêmio viagem –, que pôde evitar por graça do imperador, que assumiu pessoalmente as despesas da viagem. 15 Em 1859, aos dezesseis anos, já se encontrava em Paris, onde foi orientado por Coignet e Cornu e teve como professores Flandrin, Fleury e Signol na Escola de Belas Artes ( Zaccara, 2011 , p. 56), além de estudar física, filosofia, ciências experimentais em cursos na Sorbonne e no Collège de France. Também fez discurso na Academia de Ciências de Bruxelas, escreveu “Refutação à Vida de Jesus de Renan”, escreveu uma memória sobre a reforma da École de Beaux-Arts e com ela conquistou a admiração de Violet Le Duc, além de quase ter obtido uma condecoração de Napoleão III (Cardoso de Oliveira, 1943 ). Copiou ainda obras modelares e pintou A carioca , seu trabalho de maior relevo nos anos em que esteve em Paris e viajou pela Europa. 16
A partir de sua volta em 1864, Pedro Américo iniciaria uma relação intermitente com o Brasil, marcada por constantes retornos à Europa, que podiam corresponder aos seus sucessos ou fracassos em conquistar posições, honrarias ou encomendas, ou ainda decorrer de suas diatribes na imprensa carioca que, depois de recebê-lo com entusiasmo, passou a detratá-lo por suposta mitomania. 17 Mesmo sendo agraciado com as insígnias da Ordem de Christo e da Palestina – por sua refutação da Vida de Jesus de Renan 18 – e de ter obtido na Aiba a cadeira de desenho figurado em novembro de 1865, no início de 1866 já embarcava novamente para a Europa, para uma estadia na qual se dedicou menos à pintura e mais aos seus outros dotes, literários e científicos. Nesse período Pedro Américo produziu alguma poesia, a primeira versão do romance O holocausto e obteve o diploma na Universidade Livre de Bruxelas, com a tese La science et les systèmes: questions d’Histoire et de Philosophie Naturelle , sobre o método nas ciências e nas artes; neste trabalho, advogando ideias espiritualistas, o artista teria rechaçado os fundamentos do positivismo. 19 Em fins de 1869, Pedro Américo, de passagem por Lisboa, casou-se com Carlota Porto-Alegre e pintou aquele que pode ser dito o seu melhor retrato, Araújo Porto-Alegre com uma edição de Colombo (livro publicado em 1866), poema épico do qual o diplomata se ocupou em suas andanças pela Europa. Depois disso, retornou ao Brasil, em início de 1870 e, em março desse ano, assumiu a cadeira de Estética e Arqueologia na Aiba, com solene discurso na presença do imperador, mas não há indícios de que tenha ministrado cursos de forma regular.
Foram então três anos no Brasil em múltiplas atividades. Nesse período, o fato mais importante foi a grande aposta da concepção e execução de A Batalha de Campo Grande , em gênero que o artista não havia praticado até então: a pintura de batalhas em grande formato (6 × 4 metros). No rescaldo da Guerra do Paraguai (1865-1870), por iniciativas de Estado e da Aiba, teve início no Brasil a prática que, no período napoleônico, fizera a glória da Escola de David, com a pintura de cenas de guerras ainda em curso. A Victor Meireles já havia sido atribuída a elaboração de Passagem de Humaitá (1868) e de Combate naval de Riachuelo (concluída em 1872).
Pode-se dizer que no retorno de Pedro Américo ao Brasil eram secundários os objetivos de reassumir sua posição na Aiba e as tantas atividades que exerceu então. 20 Como indica Vladimir Oliveira (2012) , em 8 de novembro de 1869 Pedro Américo enviara da Europa carta ao mordomo do Conde d’Eu buscando informações sobre o episódio de 16 de agosto de 1869, que havia sido divulgado na imprensa do Rio de Janeiro como um fait-divers , em razão do fato de que o herói da batalha foi antes de tudo um comandante impulsivo que colocou sua vida em risco e teve que ser salvo por oficiais inferiores que souberam evitar um mal maior. Tudo leva a crer que foi exatamente nesses meses, anteriores ao retorno do artista, que começou a ser montado o que chamo de “esquema Pedro Américo”, o qual, em pouco tempo, abriria espaço para a afirmação da última etapa (f) da consagração do artista no Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, cabia ao artista aparar arestas de sua turbulenta relação com a imprensa, frutos de dissabores que teriam precipitado sua fuga para a Europa em 1866. Alguns gestos dirigidos à redação de A Reforma são exemplares. Antes mesmo do retorno, Américo enviou um exemplar da tese defendida em Bruxelas, o que foi registrado em nota, de 18 de dezembro, na qual é dito que o artista foi “recebido como lente agregado àquela universidade”, posição que nunca assumiu. Já no Brasil, A Reforma registrava o recebimento de “folheto contendo o importante discurso, que o sr. dr. Pedro Américo de Figueiredo proferiu, quando abriu o seu curso de estética e arqueologia [na Aiba]” (30 mar. 1870). E, por fim, em 5 de maio do mesmo ano: “Pelo sr. dr. Pedro Américo de Figueiredo foi oferecido à redação da Reforma um lindo quadro intitulado: Na Véspera do Triunfo . É um trabalho artístico de grande valor”.
Acompanhar as manifestações sobre Pedro Américo em A Reforma é útil e simplifica os meus propósitos, pois elas apresentam com clareza os passos por meio dos quais o esquema foi viabilizado.
Pouco mais de um mês após a doação de Na véspera do triunfo , o jornal publicava um artigo elogioso sobre “um quadro em honra ao sr. Conde d’Eu” (16 jun. 1870), quando este estava ainda em elaboração. Em 1º de novembro, registrava que a Aiba havia publicado “em avulso” um discurso de Américo “por ocasião da distribuição de prêmios”, e agradecia o envio do folheto. Em dez de novembro, o jornal publicava uma carta enviada a Américo pelo reitor da Universidade Livre de Bruxelas, que se dizia indignado com certos órgãos da imprensa brasileira, por fazerem crer que a instituição, “famosa criação do partido liberal na Bélgica, vende diplomas!”. Isso era um prolongamento da querela dos diplomas, tema que havia sido explorado por alguns jornalistas e outros adversários entre 1865 e janeiro do ano seguinte, antes da primeira fuga para a Europa .
Em 31 de agosto de 1870, o jornal reportava que um representante do Rio Grande do Norte na Câmara dos Deputados, o sr. Gomes da Silva, “apresentou uma proposta de compra do quadro da Batalha do Campo Grande – primoroso trabalho do distinto artista, que é incontestavelmente uma glória nacional”. E é importante notar que o quadro ainda não havia sido exposto ao público. Finalmente, em oito de setembro: “Está terminado o quadro da Batalha de Campo Grande. [...] O autor, Pedro Américo, tem franqueado as portas da sua oficina a todos que tem querido admirar o seu magnífico trabalho”.
Mas isso foi apenas o começo, pois outros lances mais espetaculares já estavam preparados: uma biografia do artista, então com 27 anos, artigos laudatórios e uma série de ações para colocar a Batalha de Campo Grande no centro das atenções, o que produziu até o involuntário envolvimento de Machado de Assis na campanha publicitária ( A Reforma , 8 nov. 1870). Seus principais apoios foram Luis Caetano Pereira Guimarães Júnior, o biógrafo, e Ladislau de Souza Mello Netto, 21 que atuou como avalista das pretensões científicas 22 e dos títulos de Pedro Américo, além de intermediário nas relações do artista com a imprensa, uma espécie de relações públicas .
Em 13 de setembro, A Reforma anunciava o recebimento da biografia; no dia 30 do mesmo mês publicava um longo artigo de Coelho da Cunha sobre o quadro, carregado de elogios e comparações, elevando Pedro Américo à altura de Michelangelo, Rafael, Murillo, Velázques, Rubens, entre outros; a generosidade do articulista é tamanha que sobram encômios ao autor da biografia, “uma das glórias da mocidade atual”. O fecho é bombástico e faz crer que estamos em um novo momento da história do Brasil: “O caráter nacional já rompeu a marcha, é Pedro Américo o seu chefe, é Guimarães Júnior o seu arauto”. Como se fosse pouco, o jornal publicava em 5 de novembro uma carta de Ladislau Netto com elogios exclusivos ao trabalho do biógrafo, e aparecia a notícia, ainda em novembro, de que Pedro Américo havia recebido a condecoração da Ordem da Rosa, junto com oficiais do Exército brasileiro, por seus feitos relativos à Guerra do Paraguai.
Por A Batalha de Campo Grande , obra não encomendada, Pedro Américo receberia treze contos ( Christo, 2005 , p. 158); mas, além disso, uma imensa notoriedade e muitas outras encomendas, entre as quais o Ataque da ilha do Carvalho e os retratos de corpo inteiro de dom Pedro I e dom Pedro II; 23 um retrato equestre do Duque de Caxias, a Ondina , e uma reprodução da cabeça de São Jerônimo ( Oliveira, 1943 , p. 92). Mas, sobretudo, a sua grande conquista foi o contrato para a pintura de A Batalha de Avaí , com a qual o esquema se concretizou. Nesse caso, deixou então de haver uma fuga para a Europa , como em 1866, mas um retorno glorioso para mais um passo na consagração do artista, que seguiu para Florença, para pintar o quadro entre 1873 e 1877, com os custos iniciais da viagem incluídos na encomenda ou minimizados por gestões diplomáticas, como a instalação de seu ateliê em uma sala do Convento da Santíssima Annunziata, cedida pelo governo italiano.
Percebe-se que com esses passos, bem organizados e coordenados por um grupo de amigos, Pedro Américo conseguiu uma projeção nunca antes vista no ambiente artístico do Rio de Janeiro e se preparou para assumir a condição de artista em permanente trânsito entre o Novo e o Velho Mundo, tendo que periodicamente renovar no Novo a crença em seu crédito obtido no interior do grande teatro das artes.
Em 1878, o esquema Pedro Américo não apenas havia funcionado como já era evidente no ambiente artístico do Rio de Janeiro, quando o artista apresentou a Batalha de Avaí na capital do Império em uma construção efêmera (um barracão), feita exclusivamente para acolher a obra, já que não havia recinto próprio às suas dimensões. Na imprensa carioca o quadro foi recebido com elogios e críticas. Foi então que o grupo dos áulicos do artista ganhou um reforço na figura de Fernando Osório, filho do General, que representava então o Rio Grande do Sul no parlamento, onde fez a defesa pública do quadro e apresentou inúmeras informações sobre sua repercussão na Europa. Na sequência do discurso de Fernando Osório, o Jornal do Commercio começou a publicar traduções de artigos publicados de Florença a São Petersburgo, com elogios a Batalha do Avaí.24 Mas chama a atenção o fato de que Pedro Américo pessoalmente pouco se envolveu, pois permaneceu no Rio de Janeiro por apenas quatro meses, tempo suficiente para obter as glórias públicas, para negociar o preço final do quadro e para preparar uma segunda operação nos mesmos moldes. Na Revista Ilustrada , em artigo assinado por Junio, acompanhado de ilustrações, comenta-se que Pedro Américo dirigiu uma circular a todos os presidentes de províncias solicitando o lançamento de uma subscrição popular para alcançar sessenta contos, no mínimo, para que o Brasil pudesse ter a honra de possuir mais um quadro pintado por ele ( Revista Ilustrada , 1878 [n. 112], a carta circular de Pedro Américo havia sido publicada em O Cruzeiro ). 25 Segundo Junio, Pedro Américo, que havia adulado Caxias com A Batalha de Avaí , agora adulava o General Osório, para obter outra encomenda de cena histórica de grande formato, sobre os feitos de “24 de maio” (Batalha de Tuiuti). Sobre os sessenta contos, o artigo entra em detalhes: “[...] dos quais trinta fossem remetidos sem demora a ele lá na Itália [...]. Os outros trinta ficariam depositados no tesouro para lhe serem entregues... logo que se acabassem os primeiros”. Supõe-se que, com esse montante, o artista pretendia uma folga, já que outro artigo da mesma Revista Ilustrada , um pouco posterior, dizia que o artista teria auferido cinquenta contos com a Batalha de Avaí ( Revista Ilustrada , 1879 [n.160]). 26 Mas a pintura do episódio de 24 de maio não obteve respaldo nem do governo central, nem dos presidentes das províncias. De qualquer forma, a prática de obter encomendas para serem executadas na Europa aparecia como um corolário da consagração do artista, mesmo que sujeito a críticas de ocasião nas páginas da imprensa dedicadas às artes.
Outras investidas de Pedro Américo aconteceram entre setembro de 1884 e fevereiro de 1886, quando o artista, novamente no Brasil, buscava renovar os seus créditos, apresentando no Salão de 1884 quatorze trabalhos trazidos da Europa, entre os quais Os filhos de Eduardo IV , Almoço árabe , Moisés e Jocabed , Heloísa , Judite e Holofernes e outra versão de A carioca . Nesse período, retomou seu posto na Aiba, iniciativa que recebeu um irônico comentário no Jornal do Commercio (21 set. 1884): “O pintor Pedro Américo, de torna viagem, assumiu a sua cadeira. Parecia-me mais natural que a cadeira assumisse o pintor”. Pouco depois, em janeiro do ano seguinte, tornou-se nome de rua: a antiga Pedreira da Glória, no Catete, foi batizada então de Rua Pedro Américo ( Jornal do Commercio , 10 jan. 1885) e, em seguida, recebeu outra condecoração da Ordem da Rosa. Mas esse retorno ao Brasil foi marcado por dois fracassos e um sucesso. Em agosto de 1885, a Câmara Municipal abriu concurso para a pintura de quadro comemorativo da libertação dos escravos, no caso, a Lei dos Sexagenários. Pedro Américo apresentou proposta de realizar o quadro em um ano, pelo custo de vinte contos, mas foi preterido na disputa que favoreceu Pedro José Pinto Peres (antigo aluno de Agostinho José da Mota e de Victor Meirelles na Aiba), que, além de comprometer-se a apresentar croquis para serem julgados, propunha o custo de dez contos para a realização da pintura ( Jornal do Commercio , 7 set. 1885). O segundo fracasso resultou da tentativa de venda de suas últimas obras ao Ministério do Império. Pedido que, “Por deficiência de verba no orçamento vigente, não pôde ser atendido [...] o governo, entretanto, fará a aquisição dos quadros, nas condições propostas, logo que disponha de meios para esse fim” ( Jornal do Commercio , 7 nov. 1885).
Mas havia outro horizonte, fora da capital do Império, capaz de reverter o desânimo dos fracassos anteriores. Pouco depois, o Jornal do Commercio (17 jan. 1886) estampava uma notícia vinda de São Paulo: “O dr. Pedro Américo entrou em acordo definitivo com a comissão do Ipiranga, sobre a execução do grande quadro da proclamação da independência do Império”. Com isso, Pedro Américo repetiria o esquema na pintura de Independência ou morte , por encomenda do Museu Paulista, o que lhe facultaria outra temporada na Europa para a execução do quadro. Por este o artista receberia trinta contos, seis como adiantamento, conforme contrato assinado em janeiro de 1886. Conforme Cecília Salles de Oliveira, que examinou o contrato, cabia ao artista arcar com todos os custos do projeto e da execução, inclusive o da moldura, prevendo-se as dimensões de 8,4 por 4,9 metros, com realização no prazo máximo de três anos. Pedro Américo foi célere e em menos de um mês embarcou com sua mulher e dois filhos para Florença, onde cumpriria com todas as obrigações do contrato: “[...] em 14 de julho de 1888 a tela e o ‘retábulo’ que a acompanhava, foram entregues em São Paulo, pelo próprio artista, ao presidente da Comissão do Monumento do Ipiranga” ( Oliveira, 1999 , pp. 66-67)”.
Não foi apenas pela contratação de Independência ou morte que o ano de 1886 mostrou-se auspicioso para o artista. O Ministro do Império por fim aprovou a compra dos onze quadros apresentados no Salão de 1884 pela quantia de 28 contos, pagos em quatro prestações anuais, de oito, seis, seis e oito contos ( Aiba, 1887 ); isso significa que entre 1886 e 1889 Pedro Américo auferiu 58 contos, um rendimento de proporções bastante significativas numa época em que os preços não eram corroídos pela inflação. 27 Para se ter uma base comparativa sobre esse montante, os salários pagos ao corpo diplomático brasileiro no exterior são uma boa referência: afora gratificações, um embaixador recebia 3,2 contos anuais; os ministros residentes, 2,4 contos, e os Encarregados de Negócios, 2 contos (Castro, 1979, p. 161). Com alguma probabilidade, essa situação financeira favorável talvez tenha estado na base do projeto de mudança de Florença para Paris, relatado por Cardoso de Oliveira na biografia do artista (Oliveira, 1943, p. 164). Tudo se passou no curso de uma viagem à França, no primeiro semestre de 1889, na qual Pedro Américo visitou a Exposição Universal, aberta em maio, quando “Alugou em um dos mais aprazíveis arrabaldes da grande Capital, uma elegante e confortável residência; e, deixando a família, regressou à Itália para efetuar a mudança” ( Idem, Ibidem ). Mas ele teria desistido do projeto de mudança, por razões que não são suficientemente claras, 28 mesmo tendo com isso perdido os valores do adiantamento que fez para o aluguel da nova residência.
A passagem pelo Brasil em 1888 teve um caráter bastante transitório, com a finalidade da entrega de Independência ou morte ao Museu Paulista. Mas durante os três meses de permanência destaca-se a passagem por sua terra natal: após 22 anos de ausência, a viagem à Paraíba aconteceu na carreira náutica para a Europa (Recife era a última parada dos paquetes no Brasil, depois de partirem do Rio de Janeiro). 29 Ao que tudo indica, mulher e filhos haviam permanecido na Itália. Apesar de circunstancial, a passagem por João Pessoa e Areia se revestiu de um significado particular. Como narra a Gazeta da Parahyba , na edição de 26 de setembro de 1888, Pedro Américo foi recebido com pompa, com a presença do presidente da província e de outras autoridades, acompanhados de um grande número de “homens do povo”. Na semana em que esteve por lá, além de aclamado, os jornais deram muita atenção ao ilustre conterrâneo, publicando inclusive traduções de artigos de jornais italianos dedicados ao artista e suas obras. Em Recife, chegou a ser criada uma “Associação Pedro Américo” por iniciativa de letrados locais, como noticiou a Gazeta da Parahyba pouco depois da despedida dele, em 3 de outubro de 1888.
Sabe-se que Pedro Américo, então em Florença, onde permaneceu por cerca de um ano, pintou Voltaire abençoando o neto de Franklin em nome de Deus e da liberdade , quadro que enviou ao Brasil em maio de 1889, como noticiou o Jornal do Commercio.30 Outro dado de relevo foi a conquista de uma nova encomenda, noticiada em O Rio de Janeiro em 14 de setembro: “Consta que o Ministro do Império incumbiu o pintor nacional dr. Pedro Américo de uma composição destinada a comemorar a decretação da lei de 18 de maio, que aboliu a escravidão do Brasil”.
Mas o plano foi abortado por uma simples razão: a proclamação da República em 15 de novembro de 1889. 31 Se houve um compromisso do Ministro do Império com a realização do quadro, era pouco provável que o novo regime o mantivesse. Mas Pedro Américo não se abateu e imediatamente articulou um novo plano, mais demorado e mais custoso do ponto de vista do envolvimento pessoal em articulações fora do âmbito exclusivo das artes. Pouco depois, em 24 de novembro, a Gazeta da Parahyba publicava a seguinte nota:
Proclamação da República (serviço telegráfico). Florença (Itália) 23:
Ao Governo da Paraíba.
Apresento-me candidato ao congresso, sustentando o governo da República.
Pedro Américo
Na década então em curso Pedro Américo passou bem mais tempo na Itália do que no Brasil, mas não se pode dizer que fosse desinformado sobre as questões da corte e da política, pelo simples fato de cortejar e negociar continuamente nesses âmbitos, mesmo estando em Florença. Também não era ele suficientemente ingênuo para não perceber que muita coisa mudaria na transição entre os regimes; mudaria, sobretudo, para ele, cujos principais trunfos vinham da relação com dom Pedro II e do trânsito fácil entre os estadistas do império, a começar pelo Visconde do Bom Retiro (Luís Pedreira do Couto Ferraz), cujo vínculo remontava à sua chegada ao Rio de Janeiro, quando menino, passando pelo General Osório, pelo Barão do Rio Branco, pelo barão Homem de Mello, o Conselheiro Ramalho e tantos outros com quem lidava com altivez. Antes de tudo, por simples experiência, Pedro Américo sabia que todo o sistema das artes estava atrelado ao poder por vínculos de mecenato. Apesar de pouco se saber sobre eventual clientela europeia do artista, é razoável supor que a maior parte de seus ganhos derivava das encomendas obtidas no Brasil ou dos quadros pintados na Europa e trazidos para serem expostos e vendidos no Rio de Janeiro.
Nesse sentido, com o advento da República e o provável ocaso de toda sua rede de relações, essencial na obtenção de encomendas, a Pedro Américo cabia encontrar outras vias para a reprodução de seu esquema, o que torna inteligível sua rápida tomada de posição, que implicou em construir com seus próprios meios um novo caminho, mesmo que este implicasse em uma transição do mundo das artes para a representação política. Era necessário então ter uma participação direta na reconstrução das instituições artísticas no congresso constituinte do novo regime. 32
Sem vir ao Brasil por razões políticas, 33 Pedro Américo elegeu-se deputado com votação expressiva no âmbito de um pequeno estado. A chapa Republicana, pela qual concorreu, foi vitoriosa tanto para o Senado como para a Câmara, e Américo foi o segundo mais votado entre os deputados, com 9.866 votos, sendo superado apenas por Epitácio Pessoa, que obteve 9.975 votos ( O Estado da Parahyba , 21 nov. 1890).
Há que se dizer que sua relação com o parlamento foi semelhante àquela que travou com a Aiba, como professor de desenho ou de história da arte e arqueologia. Retornava ao Rio de Janeiro, assumia o cargo, fazia discursos notáveis, lutava por encomendas, pedia licenças médicas e logo retornava à Europa. Seus três anos de vida parlamentar foram entremeados por duas longas viagens. Sem dúvida, foram anos turbulentos, de acirradas lutas políticas, que desandaram em revoltas, como a da Armada, que abalou a capital entre fins de 1891 e meados de 1893, mas o artista não se abalou por demais com tantos contratempos. A República passou pela renúncia de seu primeiro presidente, por um estado de sítio, pelo fechamento do Congresso e só contornou a crise político-militar pela mão forte de Floriano Peixoto, na época que foi depois conhecida como República da Espada. No período da constituinte, entre 15 de novembro de 1890 e 24 de fevereiro de 1891, Pedro Américo teve atuação discreta: não fez mais do que apoiar as posições, firmemente defendidas por Epitácio Pessoa, no sentido de barrar a limitação das bancadas dos estados com pequenas populações, que seriam restringidas pelo cálculo demográfico que previa 70 mil votos para cada vaga, e também impedir a eleição direta para presidente, assinando a proposta de emenda que previa o voto indireto, “em uma circunscrição com eleitores especiais em número igual para todos os estados” ( Annaes do Congresso Constituinte , 26 dez. 1890). Ambas as propostas foram derrotadas.
Foi só na legislatura de 1892, depois de nove meses de licença em Florença por razões médicas , que Pedro Américo adquiriu dicção própria e fez proposições no âmbito da educação, das artes, das relações exteriores e dos direitos autorais. Na sessão de 6 de julho pronunciou um longo discurso propondo a criação de três universidades, em São Paulo, no Rio de Janeiro e num dos estados do Norte (Bahia, Pernambuco ou Pará); a criação de um teatro nacional e de uma galeria nacional de pintura e escultura “[...] à qual se abriguem as primícias do gênio brasileiro e os poucos restos da arte tradicional que possuímos e vão se perdendo”. Além disso, assuntos menores também foram contemplados: a supressão das loterias, a tributação severa das “corridas de animais exóticos e a proibição dos cursos de touros”. Os Annaes do Congresso registram, no fim do discurso, as reações da plateia: “Apoiados, muito bem. O orador é abraçado e muito felicitado pelos srs. deputados”.
Notícias dessa fala e dos projetos nela contidos apareceram em jornais de São Paulo ( A Província de São Paulo ) e do Rio de Janeiro ( Diário do Commercio , Jornal do Brasil , O Paiz ). O que não pareceu suficiente para o autor, que tomou a iniciativa de publicar seus discursos na Constituinte e nas legislaturas seguintes em livreto impresso pela tipografia nacional, como destaca o Jornal do Brasil na edição de 24 de agosto de 1892, um dia antes de publicar a notícia de que “O sr. Pedro Américo, deputado pelo estado da Paraíba, vai retirar-se para a Europa por motivo de moléstia em pessoa de sua família”.
Nos anos de vida parlamentar, Pedro Américo passou dezesseis meses em Florença e quinze meses no Brasil, onde permaneceu durante um período inicial de nove meses e dois outros de três meses. Afora a abertura do Congresso Constituinte, quando esteve desde o princípio, nas outras legislaturas chegava depois do início dos trabalhos e era um dos primeiros a ir embora, o que significa que pouco esteve disponível para fazer gestões no âmbito de outros poderes ou instituições, para estar presente em reuniões partidárias, costurar acordos, viajar ao estado que o elegeu. Contava apenas com suas grandes ideias e sua florida oratória. Comportava-se como aquele que, por conhecer a Europa, era capaz de dar exemplos da política inglesa, das iniciativas dos estadistas franceses no plano da cultura, das riquezas da arte italiana. Não é improvável que suspeitasse do caráter impraticável de seus inúmeros projetos, diante da situação de crise bancária, cambial e fiscal (o Encilhamento), que agregou gravidade à crise político-militar nos primeiros anos da República. Quando Pedro Américo foi criticado nos debates parlamentares com o argumento de que “Não temos dinheiro para o necessário, como havemos de gastar com luxo?”, replicou que não entendia de política nem de finanças, antes de dar a resposta mais previsível: “A arte não é um luxo”. Mas não há como descartar a hipótese de certo jogo de cena – um alheamento artístico – sobretudo por se tratar de alguém acostumado a negociar sua arte com os poderes instituídos e, além disso, muito ciente do peso dos limites orçamentários em tantas de suas investidas para vender quadros ou conquistar encomendas. Se não entendia de política parlamentar é porque, de fato, teve com ela uma relação tangencial, mas no âmbito das finanças públicas em matéria de arte e instituições artísticas não era propriamente um neófito.
De qualquer forma, em diversas sessões da Câmara no mês de julho, insistiu para que seus projetos fossem levados adiante, mas sem sucesso. Mas é interessante notar que, nesse mesmo mês, Pedro Américo abria outra frente de debate e proposições: as relações exteriores, seu orçamento e o fechamento de legações, sobretudo na Itália: protestava contra o fechamento do consulado no Vaticano e apresentava um projeto autorizando a criação de um consulado em Milão, o que vinha na contracorrente da redução de legações. Certamente seria mal interpretado se a cidade proposta tivesse sido Florença. Talvez fosse esse um plano alternativo, na eventualidade do fracasso de suas investidas parlamentares no campo das artes.
Como de hábito, na relação com o Brasil, Pedro Américo buscava aproveitar ao máximo seus retornos da Itália para o país natal, o que significa que quase nunca esteve concentrado em um único alvo: a edificação do teatro demandaria decoração e muita pintura, assim como a galeria nacional de arte, mas demorariam muitos anos a ser construídos; a legação diplomática em Milão precisaria de um cônsul brasileiro habituado com a Itália; e a República demandava estátuas e pinturas de seus heróis.
Já nos primeiros meses do novo regime, o dia 21 de abril foi instituído como feriado nacional e, em 1892, foi comemorado o centenário da morte de Tiradentes. Este foi então o plano de curto prazo, propriamente artístico, que foi colocado em marcha de parte na fase final da vida parlamentar de Pedro Américo: a execução de uma série de quadros dedicados ao martírio de Tiradentes. Mas não é possível saber se o projeto já existia desde o início da atividade parlamentar ou se foi concebido mais tarde. Maraliz Vieira Christo (2005) , que escreveu um minucioso trabalho sobre a série dedicada ao mártir da Conjuração Mineira, 34 aventa a hipótese de que os quadros foram idealizados para fazer parte da galeria nacional, advogada por ele no parlamento em julho de 1892. Antes de Pedro Américo ater-se a Tiradentes, Aurélio Figueiredo e Décio Villares, seus discípulos e colaboradores em vários empreendimentos, já tinham se ocupado dele. Villares, pintor articulado com a Igreja Positivista do Brasil, foi o artista central nas comemorações de 21 de abril de 1890, como responsável pela fixação da presumida fisionomia do inconfidente; Figueiredo já era notado, desde abril de 1892, como pintor de Os últimos momentos de Tiradentes , quadro que seria exposto no ano seguinte ( O Paiz , 22 abr. 1892). Até então, Pedro Américo não estava atuando nesse nível – que sempre fora o seu –, por estar ocupado com suas atividades parlamentares. Entre o fim de julho e o início de agosto de 1892, o artista parecia ciente de que seus projetos não seriam incluídos no orçamento da República. Acompanhando os informes sobre as atividades do Congresso publicados por Jornal do Brasil , vê-se que interviu sucessivas vezes na defesa de seus projetos e contra o corte de verbas para a instrução pública e as artes, sem com isso obter respaldo, até que em 12 de agosto, data da aprovação do orçamento, Pedro Américo votou “não, em nome dos interesses da República”. Depois disso, como vimos, publicou seus discursos e voltou para Florença. Nada ficou, portanto, das três universidades, do teatro e da galeria nacionais. Foi apenas então que, na Itália, deu início aos estudos e aos esboços da série de quadros dedicados à Conjuração Mineira. A hipótese aqui aventada é de que os quadros foram idealizados quando o fracasso na aprovação da Galeria Nacional parecia confirmar-se para o artista, e não como uma iniciativa paralela ao projeto da Galeria, com a intenção de nela vê-los abrigados. Cardoso de Oliveira (1943 , p. 178) fala de um rumor que corria na capital acusando o Pedro Américo de tal pretensão, mas ressalta que o rumor era infundado, em razão de preceito constitucional que vedava a compra pela União de propriedades de deputados e senadores.
Ainda sobre os projetos de Pedro Américo no parlamento é preciso notar seu caráter pioneiro. Como não reconhecer a importância dos três projetos mais grandiosos? As universidades , que foram criadas apenas na década de 1930, exclusivamente em São Paulo e Rio de Janeiro; o teatro nacional que aguardaria o conjunto de reformas urbanas de Pereira Passos para ser inaugurado em 1909; e a galeria nacional que, apesar de ter sido projetada em 1908 por Adolfo Morales de los Rios para sediar a Escola Nacional de Belas Artes – o projeto de Pedro Américo supunha que a galeria nacional seria independente da Escola –, só ganhou o estatuto de Museu Nacional em 1937, no protetorado Vargas. Junto desses projetos, há que se destacar que suas proposições menores, contrárias às “corridas de animais exóticos” e aos “cursos de touros, divertimento estúpido e cruel” (Annaes da Câmara dos Deputados, 6 jul. 1992), ressaltavam o tom higienista e a intenção de fazer do Rio de Janeiro uma capital europeia, apropriada para o estilo de vida de uma burguesia com pretensões cosmopolitas.
Pedro Américo poderia então ser visto como um reformador esclarecido , não fosse seu açodamento e sua extrema economia de meios para agenciar tantos objetivos grandiosos. Aqueles vaticínios do artigo de Coelho da Cunha nos idos de 1870, que dizia ser o artista “uma das glórias da mocidade atual”, o condutor da marcha do “caráter nacional”, pelo fato de ter pintado A Batalha de Campo Grande ( A Reforma , 13 set. 1870), pareciam então ser confirmadas, não fossem seus projetos intempestivos, diante do estado calamitoso do Brasil e de sua capital nos tempos do Encilhamento e da Revolta da Armada. Projetos sem lastro de um iluminado que, vivendo em Florença, voltava ao Brasil para orientar os seus rumos – e obter encomendas que lá o sustentassem. Seu zelo em publicar os discursos depois de ver suas propostas fracassarem funcionava muito bem como uma espécie de atestado ao futuro a demonstrar que o país não estava preparado para as grandes missões antevistas pelo profeta dos novos tempos.
Entendo que uma boa interpretação de Tiradentes esquartejado deve levar em conta esse pano de fundo. Mesmo depois de pronto, o título do quadro era outro, Tiradentes supliciado , 35 tela prevista para ser a última de uma série de cinco dedicadas ao então herói da República. Na medida em que o suplício é ato anterior ao esquartejamento, cabe sugerir que em algum momento houve um deslocamento do conceito por meio do qual a representação havia sido planejada. Cardoso de Oliveira afirma que a versão final do quadro foi pintada em janeiro de 1893, “no curto lapso de doze dias de trabalho”, mas são conhecidos três desenhos anatômicos do corpo esquartejado, feitos provavelmente no mês anterior ( Christo, 2005 ). Sugiro, portanto, que o deslizamento do momento do suplício para a representação do corpo morto, esquartejado , teve relação com suas decepções parlamentares. E o mesmo pode-se dizer da maneira , altamente despojada, que diferia de seu padrão habitual.
Tanto na atividade de representação política, com seus projetos para fazer do Rio de Janeiro uma capital europeia, como em suas pinturas de claro caráter encomiástico – anteriores e posteriores ao Tiradentes – para enaltecer tanto a Monarquia ( Libertação dos escravos ) como a República e também o Velho Regime ( Paz e Concórdia ), 36 o que ressalta é a pompa das imagens grandiosas pressupostas nas obras públicas defendidas no parlamento (o teatro e a galeria nacionais) ou nas arquiteturas imaginárias presentes nos dois quadros. Também ressalta a visão idílica sobre o fim da escravidão e o advento da República como processos plenamente resolvidos, em representações maniqueístas, com demônios abatidos aos pés da princesa Isabel, em Libertação dos escravos , ou aos pés da alegoria da Paz – republicana – que desce as escadas para ser coroada tanto pelos louros terrestres, oferecidos por representantes de muitos povos, como pelos louros de uma figura feminina celestial, que parece descer junto de um cortejo de anjos que, no céu azul, sustentam uma cruz católica, em Paz e concórdia . A presença do Barão do Rio Branco, ao lado do artista, à esquerda da alegoria da República pacificada, é como um atestado de que o novo regime continuava a obra dos estadistas do império. 37
O voto “não, em nome dos interesses da República”, havia sido o pronunciamento final do artista na última legislatura, em protesto contra o orçamento aprovado pela Câmara. Alguns meses antes, o centenário de Tiradentes havia sido comemorado com entusiasmo, e os antigos discípulos de Pedro Américo, agora seus rivais, inclusive seu irmão, firmavam-se na iconografia do alferes, com representações convencionais. Tiradentes esquartejado pode ser entendido como um quadro no qual o artista pompier quis provocar um incêndio. A operação é simples: nas comemorações de 1892 e na iconografia de Décio Villares e Aurélio Figueiredo, Tiradentes aparecia como símbolo da República – que viria cumprir as promessas fraudadas pelo império dos Bragança –, enquanto que, no quadro de Pedro Américo, Tiradentes (seu corpo despedaçado) torna-se metáfora da República, esquartejada desde o início, nas mãos de uma camada dirigente incapaz de dar a ela os melhores rumos. 38
Se foi essa a ideia, Pedro Américo não deu a ela contornos verbais, nem público ou crítica conduziram o debate nessa direção. Ao contrário, o que predominou nos comentários sobre o quadro foram as ideias de excesso e mau gosto. No entanto, há uma pequena passagem na defesa que o artista fez de seu quadro que, de forma alusiva, pode caminhar no sentido aqui proposto: “Creio ter oferecido à consideração pública um espetáculo próprio para tornar patente a hediondez da barbárie humana, no tempo em que viveu, cheio de angélicas esperanças e heroicas ilusões patrióticas , o mártir de cuja grandeza moral ainda alguns duvidam” ( Gazeta de Notícias , 11 jul. 1893, grifos meus).
A barbárie , bem definida no tempo e no espaço, foi cometida sob o império dos Bragança, cujo último membro foi zeloso protetor de Pedro Américo, o que talvez justifique diluí-la em barbárie humana . Mas as angélicas esperanças e heroicas ilusões podem ser tanto as do tempo da Conjuração Mineira como as do tempo da República, que procurava se justificar como o regime que, ao negar a Monarquia, estabeleceria o nexo com aquelas ideias originais de liberdade, outrora ensaiadas e violentamente castradas. No entanto, a República logo em seu advento teria tido o mesmo destino de Tiradentes: o de ser esquartejada.
Mas Tiradentes esquartejado foi apenas um arroubo, um gesto fatal, porque Pedro Américo, na época, parecia expressar-se melhor nos quadros alegóricos, nos quais o processo histórico recente aparecia bem resolvido, tanto na transição do trabalho escravo para o trabalho livre como na transição entre os regimes, que no pincel do artista ocorria sob o signo da paz e da concórdia. Isso em nada combina com Tiradentes esquartejado , quadro que é implacável e joga por terra todas as ilusões, produzindo agudo desconforto.
A tela foi inicialmente exposta no salão do jornal Cidade do Rio e depois transferida para a Glace Élégante, um estabelecimento que com certa regularidade promovia exposições de arte. 39 No Jornal do Brasil (18 jul. 1893), em seção intitulada “Belas Artes”, o articulista apresenta um resumo do impacto da tela: “No caso que examinamos, qual o efeito moral que [...] poderá produzir sobre o público o quadro de Pedro Américo? Um só: o desgosto”. No mundo que se queria elegante, nos arredores da Rua do Ouvidor, o quadro não tinha lugar e lá ficou por pouco tempo, pois em 20 de julho Pedro Américo já estava em Juiz de Fora para entrega-lo à municipalidade. Logo depois, em 28 de agosto, a Gazeta de Notícias informava: “Parte hoje para a Europa o ilustre pintor dr. Pedro Américo, deputado no Congresso Federal. S. ex. vai visitar sua família, atualmente em Antibes, e da qual recebeu notícias pouco agradáveis”. Depois disso, o artista nunca mais retornou ao Brasil.
Sua última transferência para a Europa, onde faleceu em 1905, aconteceria sem os recursos assegurados pelo Estado ou por outras instituições. Bem depois de sua morte, em 20 de abril de 1914, o jornal O Estado de S. Paulo transcreveu trechos de um artigo – que antes havia sido publicado em A Notícia , no Rio de Janeiro –, de “um brasileiro”, que visitou a viúva do pintor em Florença:
Vi, na casa da ilustre senhora, 36 telas de Pedro Américo, que o grande artista conservou até sua morte, sem vender. São trabalhos magníficos. Antes de morrer, Pedro Américo disse à esposa que não vendesse aqueles quadros senão em conjunto. E que não vendesse senão ao Brasil. Era seu desejo que se formasse com eles uma sala num qualquer museu brasileiro, exclusivamente de trabalhos seus, [mas] o momento é inoportuno para o Brasil, principalmente para a União [...].
Não é possível saber se todas essas telas foram pintadas no último período de Pedro Américo em Florença, entre 1893 e 1905, ou se havia entre elas quadros anteriores. De qualquer forma, é um número razoável de bens artísticos que, presume-se, não encontraram compradores enquanto eram elaborados. Como a pintura era a principal fonte de rendimentos do artista, supõe-se também que não foram feitos para permanecerem guardados. O interesse de Pedro Américo por encomendas públicas esteve sempre articulado com o plano menor do mercado, âmbito no qual também atuou. Na curta viagem que fez ao Brasil entre junho e julho de 1890, cujas razões são desconhecidas, o jornal O Paiz reportou, em 19 de junho, que na vitrine do estabelecimento Notre Dame de Paris estavam expostas três pequenas pinturas de animais – dois leões em uma furna; um tigre deitado; um leão em pé. Tanto estas como os quadros expostos na Glace Élégante em 1893 – que não encontraram compradores – revelam o quanto o mercado de bens artísticos no Rio de Janeiro era visado por Pedro Américo e permite aventar a hipótese de que o mercado italiano não lhe era tão favorável.
Mal ou bem, este é um breve resumo do caráter agônico da vida do artista mais bem-sucedido da segunda metade do século XIX. Para os fins aqui pretendidos, cabe mostrar que Pedro Américo conseguiu realizar de forma contínua e sistemática a etapa final (f) da trajetória dos artistas formados pela Academia no Rio de Janeiro: a vida de artista entre o Brasil e a Europa , por meio da conquista de encomendas públicas de grandes obras a serem realizadas no Velho Mundo. Em sua carreira, desde os dezesseis anos de idade, entre 1855 e 1905, Pedro Américo passou 37 anos na Europa e treze no Brasil 40 .
Pelo desenrolar dos acontecimentos narrados no artigo, percebe-se que Pedro Américo vivia de grandes apostas, o que na arte de seu tempo ainda significava grandes formatos e pintura de história. Nos anos que passou no Brasil é perceptível que, invariavelmente, de forma direta ou indireta, o artista lutava para conquistar encomendas dessa natureza. Quando não conseguia, voltava a Florença por conta própria, administrando seus ganhos anteriores, além de salário ou aposentadoria, pois nada indica que tivesse rendas não derivadas de seu trabalho. Pedro Américo de certa forma quis demonstrar que sua condição de artista na Europa não dependia exclusivamente do que contratava ou vendia no Brasil. A mais veemente declaração foi feita em 1876, na circular que enviou aos governadores das províncias tentando obter recursos para pintar a Batalha de Tuiuti (os feitos de 24 de maio), referida na nota 25 deste artigo:
Finalmente cumpre-me declarar que nenhum cálculo egoístico me leva a emitir essa ideia visto que tanto o meu caráter, quanto as encomendas de que me acho incumbido por opulentos e ilustres europeus, me colocam acima da necessidade de recorrer às especulações de mero interesse próprio , acrescentando que exponho [o projeto da pintura de Batalha de Tuiuti] exclusivamente solicitado por motivos morais, como sejam: o entusiasmo pela glória de minha pátria, o amor às artes [...] (grifos meus).
No âmbito desta pesquisa não foi possível aquilatar se o mercado europeu foi ou não favorável a Pedro Américo, embora, se estivesse ele cercado pelo interesse de opulentos e ilustres europeus, talvez não tivesse transitado tantas vezes pelo Atlântico em busca de encomendas no Brasil. 41
Durante o período em que esteve em Florença por conta própria, entre 1877 e 1884, depois do projeto de Batalha de Tuiuti ter fracassado, Pedro Américo pintou sua maior série de quadros não encomendados. Foram catorze ao todo, entre eles Dona Catarina de Ataíde , Os filhos de Eduardo IV , David e Abisag , Almoço árabe , Moisés e Jocabed , Heloísa , Judite e Holofernes , Joana D’Arc , A noite , A rabequista árabe , A menina em costume de 1600 , Estudo de perfil , Mater dolorosa e outra versão de A carioca . Telas de médio formato para o padrão do artista, entre 1,5 e 5 metros quadrados, que foram apresentadas na Exposição de 1884 e das quais onze foram depois compradas pelo Ministério do Império.
Esses me parecem ser os melhores exemplos do que poderia ser entendido como resultado de seu projeto pessoal. Pedro Américo já havia vivido muitos anos na Europa, anos de juventude, anos de maturidade, já tinha tido a oportunidade do contato, na França e na Itália, na Holanda e na Inglaterra com todas as mais relevantes tendências da arte internacional. E, além disso, não estava premido por problemas materiais, pois lá chegara com a segurança dos trinta contos que recebera por Batalha do Avaí . Portanto, nessas condições pôde fazer o que quis.
E o que são esses quadros? Em primeiro lugar, uma lista na qual grande parte dos assuntos haviam sido repisados ao longo de muitos séculos de pintura acadêmica (Moisés, David, Judite) e outros que vinham sendo explorados desde Ingres e Delaroche ( Joana d’Arc , Os filhos de Eduardo IV ). Mais exclusivos das tendências da época são A rabequista árabe , um exercício escolar orientalista, e A noite com os gênios do estudo e do amor , em que parece ter demonstrado atenção ao simbolismo de William Bouguereau. Em quase todos eles, Pedro Américo buscou soluções próprias do ponto de vista da invenção ou disposição poética ; em todos, o artista parecia querer dizer ao Brasil: “ Anch’io sono pittore ”, um grande pintor internacional.
No entanto, a crítica brasileira não se impressionou com tais feitos. Na crítica ligeira da imprensa, é notável que as pinturas mais despretensiosas, como A menina em costume de 1600 , A rabequista árabe e Estudo de perfil , tenham sido as mais unanimemente aplaudidas (em Gazeta de Notícias , 8 set. 1884; em O Brasil , 5 out. 1884; em Revista Ilustrada , 1884, n. 391). Também chama atenção a crítica mais detalhada da Revista Ilustrada , assinada por X (Angelo Agostini), tanto na identificação de problemas anatômicos em dona Catarina ou de verossimilhança em Judite, perfeitamente arrumada depois de decapitar Holofernes, como na constância dos olhos esbugalhados, em David, Joana d’Arc e Mater Dolorosa . Crítica de pacotilha, mas boa para perceber os critérios em voga – sintetizados na máxima de X: “A pintura de história não pode ser considerada senão como realista. A poesia, o idealismo e a fantasia devem ceder o passo à verdade” – e para perceber que os gêneros baixos tinham então melhor acolhida do que os altos.
Entre os críticos que deixaram os registros mais detidos sobre a exposição de 1884, em Félix Ferreira (2012) ressaltam as observações sobre defeitos de acabamento e composição em vários quadros, o que parecia inadmissível no padrão que a pintura acadêmica havia alcançado. Já Gonzaga Duque, que nunca escondeu suas simpatias pelo artista – a despeito da caricatura que fez dele na personagem de Teléforo de Andrade em Mocidade Morta –, critica o conjunto, mas poupa e até elogia alguns dos quadros. No entanto, é taxativo na avaliação final do resultado de mais uma longa estadia em Florença: “o pintor de Avaí nenhum progresso alcançou no espaço de cinco anos; a sua composição está tão adiantada como esteve no tempo em que pintou São Jerônimo e o São Pedro”, para depois arrematar: “A pintura que Américo nos apresenta é uma pintura do luxo, da magnificência; uma arte sensual, voluptuosa e bonita” (Gonzaga Duque, 1995 , pp. 166-167). Entenda-se que os adjetivos voluptuosa e bonita, mobilizados pelo crítico, não são propriamente elogios, mas indicadores da renúncia do artista em enfrentar os desafios da pintura moderna, cujo objeto por excelência deveria ser o homem, o homem de seu próprio tempo, como preconizava Théophile Thoré. 42
Pode-se dizer, por fim, que além da pintura pompier , que tanto admirou e tentou emular, Pedro Américo não se deu conta de quase tudo o que se passou com a redescoberta da arte holandesa, da qual Thoré foi um dos protagonistas, que fez da pintura de gênero e de paisagem as chaves dos novos tempos. Não se deu conta também de tudo o que derivou da escola de Barbizon ou das correntes naturalistas que eclodiram nos idos de 1848, nem mesmo dos pintores macchiaioli , que eram seus vizinhos em Florença. Nada disso abalou Pedro Américo.
Se foi ele quem abriu o caminho da etapa final (f) da consagração do artista, foi ele também quem mostrou os seus limites. Apesar de ter sido o artista de maior consagração na época em que viveu e de ter deixado um conjunto de obras emblemáticas, que foram o mais relevante ornamento do Estado, Pedro Américo, no viver de arte entre o Brasil e a Europa , foi duplamente travado do ponto de vista propriamente artístico. Não enfrentou a Europa, porque se acomodou a pintar para o público e as instituições brasileiras aquilo que lá era então banal; nem enfrentou o Brasil, porque não quis ou não teve tempo. 43 Sempre que aqui esteve foi para articular outros retornos ao Velho Continente.
Todos os jornais foram consultados digitalmente na Hemeroteca Digital [ online ] da Fundação Biblioteca Nacional (disponível em bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital, consultado em 19/12/2018):
A Comédia Social (Rio de Janeiro)
A Província de São Paulo (São Paulo)
A Notícia (Rio de Janeiro)
A Reforma (Rio de Janeiro)
Correio Mercantil (Rio de Janeiro)
Correio Paulistano (São Paulo)
Diário da Parahyba (João Pessoa)
Gazeta de Noticias (Rio de Janeiro)
Gazeta da Parahyba (João Pessoa)
Jornal do Brasil (Rio de Janeiro)
Jornal do Commercio (Rio de Janeiro)
Juiz de Fora (Juiz de Fora)
O Estado da Parahyba (João Pessoa)
O Cruzeiro (Rio de Janeiro)
O Estado de São Paulo (São Paulo)
O Rio de Janeiro (Rio de Janeiro)
O Paiz (Rio de Janeiro)
Revista Ilustrada (Rio de Janeiro)