RESENHA
A cidade, em Robert Park: entre empirismo e invenção. VALLADARES, Licia do Prado (org.). A sociologia urbana de Robert E. Park. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2018. 154 páginas.
The city, in Robert Park: between empiricism and invention. VALLADARES, Licia do Prado (org.). A sociologia urbana de Robert E. Park. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2018. 154 páginas.
A cidade, em Robert Park: entre empirismo e invenção. VALLADARES, Licia do Prado (org.). A sociologia urbana de Robert E. Park. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2018. 154 páginas.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 34, núm. 101, e3410106, 2019
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais - ANPOCS
DOI: 10.1590/3410106/2019
A sociologia como ciência se constitui em autoconsciência crítica da sociedade moderna. A relação do autor com seu tempo é a chave para a leitura da rica seleção de sete textos de Robert Ezra Park sobre a cidade (dos quais, cinco inéditos no Brasil), selecionados e organizados por Licia Valladares no livro A sociologia urbana de Robert Park, lançado em abril de 2018.
Os textos de Robert Park, nessa coletânea, expressam uma tradição científica da época (início do século XX), orientada para a construção do objeto sociológico. 1 Neles, a ambição sociológica se traduz no esforço de levantamento e sistematização dos fenômenos empíricos da cidade moderna, entendida como instituição e organização social, mas também como organismo e fenômeno essencialmente cultural e moral, que incorpora os significados culturais e a importância da racionalidade científica sobre essa realidade, como analisa Max Weber. Licia Valladares e Michel Misse, diretor da Editora UFRJ, tiveram uma excelente ideia de reunir esses textos de Robert Park, em sua maioria desconhecidos, cuidadosamente traduzidos do inglês para o português por Wanda Brand.
A organizadora acumula uma longa e consistente tradição de pesquisas em sociologia urbana no Brasil, especialmente em temáticas relativas à moradia urbana (favela) e pobreza, com grande trânsito entre instituições acadêmicas brasileiras e francesas. Atualmente professora emérita da Université de Lille, Licia Valladares iniciou sua formação acadêmica em universidades francesas, tendo concluído o doutorado em 1974, na Université de Toulouse I, e em 2001 defendido a livre-docência ( Habilitation à Diriger des Recherches – HDR) na Université Lumière Lyon. O livro Passa-se uma casa ( Valladares, 1978 ), resultante de sua tese de doutorado, produz uma inovadora crítica à política habitacional de relocação dos moradores da favela, nos anos 1970, apoiada em pesquisa empírica direta junto aos moradores e famílias incluídas naquele programa na cidade do Rio de Janeiro.
Ao lado desses estudos, Valladares tem contribuído para uma história da sociologia urbana no Brasil, com balanços sobre a contribuição de autores estrangeiros, a exemplo de Anthony Leeds, sobre as favelas do Rio de Janeiro, e o humanismo cristão de Louis-Joseph Lebret, em sua atuação para a emancipação dos povos na América Latina. Essas contribuições estão detalhadas no livro A invenção da favela: do mito de origem à favela.com (Valladares, 2005a), uma autorreflexão sobre seus estudos urbanos no Brasil, que avalia a ação e a influência de urbanistas, sanitaristas e agentes políticos e sociais, produtos e produtores dessa ordem social e cultural sobre a pobreza urbana ( Cardoso, 2006 ), oferecendo grande riqueza analítica e explicitando formas de representação míticas sobre a favela.
É com esse espírito de investigação e motivada pelas formas de transferência e recepção da Escola de Chicago em nosso país que Valladares organizou a coletânea de textos de A sociologia urbana de Robert E. Park, originada de um programa de pesquisas que ela desenvolveu em 2008 no Special Collections Research Center e na biblioteca da universidade, a Regenstein Library, sobre a obra de Park em Chicago.
A obra dá continuidade a duas produções anteriores de Valladares sobre Robert Park. Uma é A Escola de Chicago: impacto de uma tradição no Brasil e na França (Valladares, 2005b), livro que replica uma entrevista realizada por ela e Robert Kant, em 1999, com Isaac Joseph (1943-2004), autor responsável pela introdução da Escola de Chicago na França. 2 A outra é um artigo seu publicado em 2010 no Caderno CRH . 3
Essa coletânea com textos de Park cobre o período de 1915 a 1973 e constitui uma relevante contribuição aos estudos urbanos no Brasil, pelo ineditismo de uma publicação única sobre o autor, considerado por muitos e pela própria Licia, na introdução do livro, o “‘pai’ da sociologia urbana, o principal responsável pela chamada Escola de Chicago, e sociólogo dos mais importantes no início do século XX!” (p. 11).
Licia Valladares faz uma síntese biográfica de Robert Park na introdução (pp. 11-19), esclarecendo o leitor sobre o conjunto da obra de Park, suas influências, e apresentando os critérios de seleção dos textos que compõem a coletânea e seus conteúdos. Ao final, Valladares disponibiliza para o público brasileiro, no anexo (pp. 145-151), os resultados sistemáticos de sua pesquisa bibliográfica sobre Robert Park em livros, teses e introduções a outros livros, apresenta ainda uma cronologia biográfica de Park e uma cronologia de escritos que se referem a ele, nos Estados Unidos, no período de 1927 a 1977, e registra, ao final, as instituições das quais Park participou, oferecendo aos interessados na história da sociologia e, especificamente, na história da Escola de Chicago e na do próprio autor, uma base inédita de dados sobre a trajetória biográfica e bibliográfica de Robert Park, explorados em sua pesquisa de 2008 nos Estados Unidos.
O primeiro texto da coletânea, “História de vida” , constitui uma autobiografia de Park, publicada em The American Journal of Sociology (v. 79, n. 2, p. 251-260, set. 1973), na qual o autor articula suas experiências de vida com a emergência de suas preocupações sobre a cidade . O segundo texto, “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano” 4– descreve a cidade “como um produto da natureza humana”, como explicita Valladares, e advoga um programa de pesquisa sobre a cidade, entendida como uma unidade geográfica e ecológica, mas também econômica, fundada na divisão do trabalho, e como área cultural estruturada em processos de vizinhança, segregação, mobilidade, relação social, controle social e ordem moral (p. 16). A terceira parte da coletânea reúne duas introduções de Park a livros de ex-alunos: The ghetto , de Louis Wirth, de 1929 (terceiro texto), que discute certo tipo de isolamento moral, e The gold coast and the slum , de Harvey W. Zorbaugh, também de 1929 (quarto texto), que analisa processos de autossegregação em termos de padrões de isolamento cultural (p. 17). O artigo “A cidade como laboratório social” (quinto texto) , de 1929, apresenta a cidade organizada em áreas naturais, que desempenham funções na economia urbana e constituem, ao mesmo tempo, uma unidade cultural. Na sequência (o sexto texto da coletânea), vem o clássico artigo “A migração humana e o homem marginal” , de 1928. Inspirado na figura do “estrangeiro” de Georg Simmel, Park caracteriza e define o homem marginal como um “híbrido cultural”, aquele que veio de fora para instalar-se e permanece exterior ao grupo social, expressando conflitos interculturais, a exemplo dos negros do Sul dos Estados Unidos, que vivem à margem da cultura branca. O sétimo e último texto constitui a introdução que Park escreveu, em 1942, no livro de Donald Pierson (1971 [1945]), Brancos e pretos na Bahia , também um seu ex-aluno de doutorado. 5 Nele, Park discute a questão da miscigenação, colaborando para compreender como a divisão de classes, em Salvador, também passa por divisões étnicas, embora considere que “o problema racial no país [Brasil] parece ser mais ‘acadêmico’ que real, tendo em vista o exercício pleno de práticas religiosas de matriz africana, como o Candomblé” (Park, 1971 [1942], p. 19).
Alguns comentadores da obra de Park ( Schemeil, 1983 ; Bourmeau, 1988 ) indicam a importância de sua experiência jornalística na construção de seu pensamento sociológico e destacam a importância que ele atribui à pesquisa empírica nos estudos das cidades. O próprio autor, em sua História de vida , distingue como sua experiência de jornalista o levou a assentar as bases de uma observação empírica sistemática sobre a cidade, respaldada no que ele chama de “reportagens científicas”. Dessa experiência, adveio a compreensão das relações entre o jornal e a sociedade, como uma “poderosa agência para a educação e reforma” (p. 28), tema de seu doutorado em Berlim, no qual, sob a influência de Georg Simmel, analisa o jornal como fenômeno sociológico. Da prática jornalística, especialmente como editor de cidades, ele ressalta a importância da sistematização empírica na constituição do mundo real, consolidando uma postura metodológica que, segundo Becker (1996) , combina, de forma eclética, métodos quantitativos e qualitativos. Para Park, “O mundo real era a experiência dos homens e mulheres reais, e não descrições abreviadas e taquigrafadas do que chamamos conhecimento” (p. 29), o que vai marcar fortemente sua prática científica, expressa na ideia de “Cidade como laboratório” (quinto texto).
Considero que Park, portanto, em suas reflexões, renuncia a explicações fundadas em idealizações antecipadas de pressupostos teóricos e vê a cidade como um “concreto pensado”, ou seja, um conjunto de fenômenos reais, resgatado pela sistematização empírica, que cria a base para sua posterior teorização. Como analisa Rubem Oliven (2010, p. 12), Park tinha como objeto de estudo tudo o que ocorre no contexto urbano.
Essa ênfase empírica dos estudos urbanos, em Robert Park, faz da cidade uma noção aberta, sensível e vivenciada, que vai se atualizando numa decodificação criativa de várias problemáticas e manifestações de fenômenos políticos, sociais, culturais e morais que ocorrem na cidade. Mesmo exibindo sua clara predileção pela cidade, seus estudos abarcam diversas dimensões relevantes articuladas – como as relações raciais, a organização política da cidade, o controle social, o público, a imprensa –, que emanam dessas contribuições. Suas análises sobre a conduta coletiva e o controle social e cultural remetem tanto a uma sociologia urbana como a uma ecologia social e a uma sociologia política, podendo-se concluir que contribuem, no conjunto, para a construção de uma sociologia geral.
Apreendendo a experiência urbana como síntese entre empiria e invenção, Park desenha um pensamento científico que se abre a campos relacionais complexos nas fronteiras da cidade. Da sistematização dos dados dessa realidade nasce um conhecimento que pensa os componentes fundamentais da pesquisa urbana, ao mesmo tempo que vai delineando o campo e o objeto de uma sociologia urbana e suas fronteiras.
Para finalizar, duas coisas precisam ser ditas sobre esse livro. A primeira é o fato de que algumas das contribuições de Robert Park, no período de 1915 a 1973, estão agora reunidas num único volume, traduzido para o português e disponível para um amplo público no Brasil. A segunda é que os sociólogos que manejam vastas pesquisas de campo sobre fenômenos urbanos dispõem, com essa publicação, de um mapeamento sistemático das problemáticas clássicas das pesquisas urbanas, que ajudam a decifrar e a decodificar as múltiplas dimensões da cidade como campo de pesquisa no presente.
BIBLIOGRAFIA
BECKER , Howard . ( 1996 ), “ A Escola de Chicago” (Conferência). Mana , Rio de Janeiro, 2 ( 2 ): 177 - 188 .
BOURMEAU , Sylvain . ( 1988 ), “ Robert Park, journaliste et sociologue” . Politix – Revue des Sciences Sociales du Politique , 1 ( 3 -4): 50 - 61 .
CARDOSO , Adalberto . ( 2006 ), “ Metamorfoses da pobreza” . Novos estudos Cebrap , 75 : 213 - 217 .
OLIVEN, R. G. (1980), Urbanização e mudança social no Brasil . Petrópolis: Vozes. [Revisto e publicado em 2010, disponível on-line na Scielo Books].
PARK , Robert . ( 1915 ), “ The city: suggestions for the investigation of human behavior in the city environment” . American Journal of Sociology , 20 : 577 - 612 .
PARK, Robert. (1971 [1942]), Introdução, in D. Pierson, Brancos e pretos na Bahia: estudo de contato racial , São Paulo, Companhia Editora Nacional (col. Brasiliana, v. 241).
PARK, Robert. ( 1967 ), “A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio urbano”, in G. Velho, O fenômeno urbano, Rio de Janeiro, Zahar.
PIERSON, Donald. (1971 [1945]), Brancos e pretos na Bahia : estudo de contato racial . São Paulo, Companhia Editora Nacional (col. Brasiliana, v. 241).
SCHEMEIL , Yves . ( 1983 ), “ D’une sociologie naturaliste à une sociologie politique: Robert Park” . Revue Française de Sociologie , XXIV ( 4 ): 631 -651.
VALLADARES, Licia. ( 1978 ), Passa-se uma casa . Rio de Janeiro, Zahar.
VALLADARES, Licia. (2005a), A invenção da favela: do mito de origem a favela.com . Rio de Janeiro, Editora FGV.
VALLADARES, Licia. (org.) (2005b), A Escola de Chicago: impacto de uma tradição no Brasil e na França . Belo Horizonte, Editora UFMG.
VALLADARES , Licia . ( 2010 ), “ A visita do Robert Park ao Brasil, o ‘homem marginal’ e a Bahia como laboratório” . Caderno CRH , 23 (28): 35 - 49 .
WIRTH, Louis. ( 1929 ), The ghetto . Chicago, University of Chicago Press.
ZORBAUGH, Harvey. ( 1929 ), The gold coast and the slum: a sociological study of Chicago’s near North Side . Chicago, University of Chicago Press.
Notas