Artigos originais
Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”
Backpacker: a social and personal constitution of "backpacking"
Ser mochilero: una constitución social y personal de viajar con mochila
Ser mochileiro: uma constituição social e pessoal do “mochilar”
Caderno Virtual de Turismo, vol. 16, núm. 3, pp. 76-90, 2016
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Recepção: 15 Julho 2015
Aprovação: 31 Outubro 2016
Resumo: Este artigo discute e apresenta a representação social e pessoal do ser mochileiro contemporâneo, aproximando a construção histórica-social-acadêmica e a óptica dos sujeitos mochileiros, a partir dos múltiplos olhares acerca dos viajantes e do ato de viajar. Partindo da aproximação/diferenciação entre turistas e viajantes, e da mudança do foco econômico das viagens para o aspecto relacional, essa investigação adentra o universo subjetivo dos mochileiros desvelando sua constituição identitária. Essa intrínseca relação sujeito-ação, viajante-viagem, que desloca o sujeito a um tempo/espaço descontínuos e provoca, pela vivência da alteridade, um duplo estranhamento no ser e estar diferente de si mesmo e do outro, faz com que a “mochilagem”, para além de uma forma alternativa de viagem, seja uma experiência de vida e represente um jeito de ser e estar no mundo: o ser mochileiro. Para alcançar os sentidos e significados dessa experiência humana, utilizou-se a abordagem qualitativa com múltiplos métodos de pesquisa: Pesquisa bibliográfica; Pesquisa de campo com observação de campo; Entrevistas semiestruturadas; Amostragem pelo método bola de neve e análise de dados.
Palavras-chave: Mochileiro, Significado social e pessoal, Alteridade.
Abstract: This article discusses and presents the social and personal representation of the contemporary backpacker, approaching the historical-social-academic construction and the backpacker's perspective, from the multiple views about the travelers and the act of traveling. Starting from the approach / differentiation between tourists and travelers, and changing the economic focus of the trips to the relational aspect, this research enters the subjective world of backpackers revealing their identity construction. This intrinsic relationship between subject-action, traveler-trip, which move the subjecton discontinuous time / space and causes, by the otherness experience, a double strangeness in being different from one self and the other, makes the backpacker's practise, as well as analternative way to travel, a life time experience and represent a way of being in the world: being backpacker. To reach the meanings of this human experience, we used a qualitative approach with multiple research methods: literature search; Field research with field observation; Semi-structured interviews; Snowball sampling and data analysis.
Keywords: Backpacker, Social and personal signification, Otherness.
Resumen: En este artículo se discute y presenta la representación social y personal de ser un mochilero contemporáneo, acercándose a la construcción histórico-socio-académica y la perspectiva de los sujetos mochileros, a partir de las múltiples miradas sobre los viajeros y el acto de viajar. Partiendo de la aproximación / diferenciación entre los turistas y viajeros, y del cambio de enfoque económico de los viajes al aspecto relacional, esta investigación entra en el mundo subjetivo de los mochileros que revelan su construcción de la identidad. Esta intrínseca relación sujeto-acción, viajero y viaje, que desplaza al sujeto a un tiempo / espacio discontinuo y provoca, por la experiencia de la alteridad, una doble extrañeza en el ser y estar diferente de uno mismo y del otro, hace que el viajar con mochila, además de una forma alternativa de viajar, sea una experiencia de vida y representa una forma de ser y estar en el mundo: ser mochilero. Para lograr los significados de esta experiencia humana, se utilizó un enfoque cualitativo con múltiples métodos de investigación: búsqueda en la literatura; La investigación de campo con la observación de campo; Entrevistas semiestructuradas; El muestreo del método bola de nieve y el análisis de datos.
Palabras clave: Mochilero, Significado social y personal, Alteridad.
Introdução
Este artigo discute e apresenta a representação social e pessoal do ser mochileiro contemporâneo, aproximando a construção histórica-social-acadêmica e a óptica dos sujeitos mochileiros, a partir dos múltiplos olhares acerca dos viajantes e do ato de viajar. Esta intrínseca relação sujeito-ação, viajante-viagem, que engendrou trajetórias humanas ultrapassando o lugar comum da vida cotidiana, confunde-se com a própria história da humanidade (BARBOSA, 2002).
Ao compreender a viagem como um processo para além do deslocamento tempo/espaço, procura-se tratá-la como uma experiência[1] de vida, pois ao remeter o viajante a uma profunda modificação espaço-temporal, rumo a um espaço e tempo descontínuos, tem-se um duplo estranhamento provocado: a experiência do ser e do estar diferente de si mesmo e do outro (PEREZ, 2009, p. 292), que se mantém presente no imaginário das sociedades e na motivação dos sujeitos, pela vivência da alteridade.
Nesse sentido, ao deslocar o foco da pesquisa, com os mochileiros, do viés econômico e adentrar no aspecto relacional dessa forma de viajar, parte-se da diferenciação/aproximação que os termos “turista” e “viajantes” configuram na subjetividade “mochileira”, mergulha-se na vivência do jogo entre identidade e alteridade provocada pela errância, e busca-se compreender qual o significado que essa prática possui para aqueles que a praticam e para a sociedade contemporânea.
Essa subjetividade constitutiva do mochileiro aparece no que Sorense (2003) denomina de “cultura mochileira” e se evidencia no que tange às relações entre o sujeito, sua atividade e a constituição da sua autoimagem. Essa constituição está permeada por elementos como o “estar na estrada”, a pulsão da errância (MAFFESOLI, 2001), a aventura, a não fixação no tempo e no espaço, a liberdade de escolha, o romper com imposições sociais, etc., que propiciam uma grande motivação dos mochileiros: ir ao encontro do inesperado gerador de saberes diversos e autoconhecimento.
Tendo como foco a forma pela qual os mochileiros fruem as viagens, este estudo desvela significados sociais e pessoais constituídos e constituintes desses sujeitos no âmbito da “experiência mochileira”.
Metodologia
Esta pesquisa de abordagem qualitativa utilizou múltiplos métodos para a compreensão interpretativa dessa experiência humana. Foram eles: Pesquisa bibliográfica; Pesquisa de campo e observação de campo; Entrevista semiestruturada; Amostragem pelo método bola de neve e análise de dados.
As entrevistas foram realizadas durante o ano de 2012 com oito mochileiros e seis responsáveis por hostels. A escolha das localidades nas quais a pesquisa foi desenvolvida não foi uma tarefa fácil. Era necessário encontrar localidades que fossem frequentadas por mochileiros. E encontrá-los. Esses desafios surgiram pelo fato de que mochileiros não se encontram em associações, em sindicatos, em catálogos ou qualquer outro tipo de corporação. Essa tarefa com alto grau de incerteza promoveu para a pesquisadora e para a pesquisa um certo grau de aventura e risco quanto à eficácia da metodologia de observação de campo. Procurando encontrar indícios que ajudassem na escolha de locais adequados, foi verificado, nas pesquisas sobre o tema e na revisão bibliográfica, que locais frequentados por mochileiros geralmente apresentam natureza exuberante e/ou um acervo histórico-cultural acentuado. Assim, a pesquisa foi realizada, com sucesso, em distintas localidades: Paraty - RJ, Paraty-Mirim - RJ, Trindade - RJ e Belo Horizonte -MG, no Brasil; Córdoba e Rosário, na Argentina. Quando algum mochileiro era encontrado e se encaixava no perfil para a pesquisa, a técnica de amostragem bola de neve, que pressupõe a indicação de outros sujeitos de sua rede social com o mesmo perfil, era utilizada com intuito de ampliar o número dos sujeitos, mas o fato de tê-los encontrado durante suas viagens não garantiu a acessibilidade aos indicados. Dos oito mochileiros pesquisados, seis foram entrevistados durante suas viagens e dois foram encontrados trabalhando para conseguir recursos e voltar a viajar.
O perfil dos mochileiros para esta pesquisa se baseou nos seguintes critérios:
· Reconhecer-se como mochileiro. O entrevistado devia se autointitular mochileiro;
· Ter idade igual ou superior a 29 anos, já que, segundo o Estatuto da Juventude, aprovado na forma de um substitutivo em assembleia na Câmara dos Deputados, no dia 06 de outubro de 2011, classifica-o como um adulto;
· Ter realizado, pelo menos, uma viagem de mochila sozinho(a). Esse critério é justificado pela experiência vivida de forma singular, enfatizando o realizar só;
· Ser brasileiro.
O critério da faixa etária mais elevada (adultos) foi adotado para se pesquisar sujeitos que faziam dessa prática uma opção, eliminando, dessa forma, um grande contingente de jovens que viajam “mochilando” pelo fato de apresentarem pouco dinheiro para efetivar a viagem. Os responsáveis pelos hostels não possuíam nenhum perfil específico.
Após o registro das entrevistas em mídia digital, os dados foram transcritos e analisados. Este artigo é um recorte de uma investigação maior, que foi desenvolvida no mestrado do programa de pós-graduação em estudos do lazer UFMG/2013, contando com o apoio da Capes na forma de bolsa de estudos.
Entre viajantes e turistas: uma sutil diferenciação
Como ponto de partida para a representação do ser mochileiro contemporâneo, apresenta-se a tensão existente entre a utilização dos termos “turistas” e “viajantes”. Essa diferenciação, constituída socialmente, desvela possíveis implicações para o sujeito mochileiro ante a sua identificação. Desse modo, através deste levantamento conceitual bibliográfico e emocional empírico, espera-se elucidar a diferença.
Corroborando Morin (2007, p. 72), “os conceitos não se definem jamais por suas fronteiras, mas a partir de seu núcleo. [Afinal] as fronteiras são sempre fluidas, são sempre interferentes”. Essa necessidade do entendimento da diferenciação entre viajantes e turistas, ficou evidente durante a pesquisa empírica. Constatou-se que esses termos acarretavam distintos significados e provocavam singulares emoções para aqueles que foram entrevistados. No intuito de compreender essa diferenciação/aproximação, a pesquisa percorreu possíveis caminhos ante as diferentes interpretações e construções simbólicas, pois, muitas vezes, esses termos são utilizados sem distinção, como se fossem sinônimos e, outras vezes, como se contrapusessem.
Alguns autores, como Barretto (2005, p. 43), Gomes, Pinheiro e Lacerda (2010, p. 27), pontuam a origem do termo “turismo” a partir da palavra tour, de procedência francesa, ligada à riqueza e à classe privilegiada, que quer dizer “viagem” ou “excursão circular”. Tem seu equivalente no inglês turn, que quer dizer volta, e no latim tornare, que quer dizer “dar uma volta, voltar ao ponto inicial”. Desse modo, observa-se que o vocábulo “turismo” traz em si o “retorno” como um fato marcante.
Ainda na pesquisa bibliográfica constatou-se que uma das primeiras definições teóricas de turismo que se tem conhecimento (BARRETTO, 1995; BARBOSA, 2002; REJOWSKI, 2002; MENEZES, 2006) vem de Hermann Von Schullzu Schattenhofen (1911), um economista austríaco que explicitava que “turismo é o conceito que compreende todos os processos, especialmente os econômicos, que se manifestam na chegada, na permanência e na saída do turista de um determinado município, país ou estado” (BARRETTO, 1995, p. 9). Essa perspectiva demonstra a força com que a economia, vinculada à produtividade e ao capitalismo industrial, se consolidava, bem como a presença de uma prática que estava em franco desenvolvimento: o turismo.
O termo turista foi utilizado por Stendhal (1838) quando publicou um livro chamado “Memórias de um Turista”. Nesse livro, o autor denomina o protagonista de sua obra de turista e o caracteriza como um tipo de viajante que começava a ser comum na Europa – um viajante que vai de um lugar para o outro porque quer conhecer as coisas belas que se encontram espalhadas por todos os cantos do mundo. Em sua obra, o turista é aquele que se ausenta de seu lugar de residência para satisfazer uma necessidade específica: a curiosidade, voltando depois à sua vida normal. Nesse texto, do autor citado, é possível verificar a distinção entre o turista, um viajante ilustre, com poder econômico e de “bom gosto”, e o viajante comum, pertencente às classes economicamente empobrecidas.
Fato marcante ocorre no ano de 1841. Thomas Cook fretou um trem e organizou uma viagem entre as cidades de Leicester e Loughborough (cidades Inglesas) para levar uma grande quantidade de pessoas para um congresso antialcoólico (URRY, 2001; FIGUEIREDO, 2010). Esse episódio, descrito como a “primeira” viagem de turismo de massa, gerou controvérsias, já que, se por um lado, Cook é considerado um empreendedor e pioneiro no desenvolvimento histórico do turismo, por outro lado, ele também foi ridicularizado, à época, por proporcionar a uma classe desprestigiada a possibilidade de conhecer lugares que só eram visitados pela elite (SANTOS FILHO, 2005). No entanto, observa-se um paradoxo nesse advento. Se por um lado a ampliação do segmento turístico passou a representar uma possibilidade acessível às viagens para um número maior de pessoas, em contrapartida, produziu a elitização desse mesmo processo ao diferenciar o tipo de viagem realizada.
Nessa passagem histórica, percebe-se outra ruptura entre os termos “turistas” e “viajantes”. Essa quebra se amplia à medida que “o turista” vai ganhando contornos mais definidos e seu simbolismo social vai adquirindo força e prestígio diante de uma sociedade capitalista. O avanço e o desenvolvimento da “indústria turística” ampliaram o acesso a essa forma de viajar da classe burguesa e, mais tarde, dos membros da classe média também. Como pontua Figueiredo (2010, p. 242), “intensificam-se as excursões, criam-se os pacotes turísticos. O turista começa a se transformar em estereótipo e o conceito e a prática se afastam cada vez mais do viajante”.
Essa tensão gerada pelo poder econômico está fortemente enraizada nos conceitos que tentam delinear esse campo de estudos. Desse modo, é possível “pensar o turismo como uma construção histórica que vem sendo moldada segundo o desenvolvimento das relações de produção” (SANTOS FILHO, 2007, p. 70). Como complementa Barretto (1995, p. 50), “o turismo sempre esteve ligado ao modo de produção e ao desenvolvimento tecnológico. O modo de produção determina quem viaja, e o desenvolvimento tecnológico, como fazê-lo”.
Demarcando essa aproximação do turismo com a economia, Ferrara (1999), pesquisadora na área de comunicação e espaço urbano, faz uma abordagem distinta para a viagem e para o turismo. A autora define viagem como “o olhar que se desloca” (1999, p. 17), que pode ser interpretado como um olhar que busca algo que vai além do visível. Já o turismo é definido como “o olhar que se concentra” (1999, p. 20), ou seja, é o olhar (treinado) que já sabe o que deseja ver/conhecer (SOUSA, 2004). Para Ferrara, o que diferencia essas duas instâncias são as motivações que as impulsionam. A viagem é compreendida como uma busca do desconhecido que envolve principalmente o prazer da descoberta do espaço em todas as suas instâncias, sejam elas, sociais, culturais e/ou históricas. Já o turismo representava uma viagem organizada e institucionalizada, apresentando como motivação a utilização do tempo/espaço como uma alternativa de lazer.
Os lugares visitados, sob a égide da sociedade de consumo, tornam-se mercantilizados, produtos a serem consumidos. Nesse sentido, pela lógica do mercado, tem-se a premissa de que quanto mais exclusivo, mais valorado. Sendo assim, viajar constitui uma atividade que “não é comum a todos, mas destina-se apenas aos privilegiados que podem virar turistas” (FERRARA, 1999, p. 20). Nesse contexto, ser turista “é ter poder aquisitivo para desfrutar do conforto e da segurança de uma viagem meticulosamente planificada, com a programação preestabelecida, de tal modo que os riscos de algo dar errado ficam, pelo menos teoricamente, impossibilitados” (SOUSA, 2004, p. 2).
Pensando no sujeito viajante, uma característica apontada por Souza (2004) é que ele se mostra aberto a interagir permitindo o conhecimento do outro. Entrar em contato com o outro é perceber as diferenças e semelhanças que se estabelecem e se confrontam, representa viver a experiência de alteridade. O viajante, de uma forma geral, é movido primeiramente por um sentimento de liberdade, de vontade, por um desejo de ir em busca do dessemelhante, nos quais a “experiência de viagem permite fremir o eu excitado pelos novos panoramas e novos contatos” (FERRARA, 1999, p. 19). Diante disso, a autora, em contraposição, coloca o turista como o sujeito que procura passivamente apenas o exótico, viaja por curiosidade e ociosidade.
Diante do exposto, pondera-se que não é possível pensar dicotomicamente a relação turista/viajante, como se fosse possível uma categorização fechada em seus princípios conceituais. Torna-se necessário admitir que, para muitos estudiosos, a própria nomenclatura turista traz subdivisões capazes de aproximações e afastamentos do conceito de viajante. Nesse aspecto, a presença de nuances das atitudes e das práticas na forma de viajar produz distinções que necessitam ser reconhecidas na sua especificidade. Dentro dessa classificação encontram-se os “turistas independentes” como um exemplo de aproximação dos viajantes, já que eles, como descrito por Krippendorf (1989, p. 77), “querem ter mais contato com os nativos, renunciar à maioria das infraestruturas turísticas normais, alojar-se de acordo com os hábitos locais e utilizar os meios de transporte público do país”. De acordo com o autor, esse tipo de turista é, acima de tudo, “independente” e não aceita ser manipulado quanto aos percursos que pretende explorar. Não paga pelo serviço de guia e “ainda acredita que viver frugalmente enquanto viaja é simplesmente parte da experiência turística longe do materialismo e consumismo de sua sociedade de origem” (BASTOS, 2006, p. 36).
Os turistas de “pacote” são apontados como sujeitos “despreocupados” e “ignorantes” quanto à história e à cultura local. Nesse sentido, pagam para realização de seus sonhos. Consomem os artefatos dos lugares e os guardam como troféus a serem exibidos quando voltarem a seus lugares de origem (BASTOS, 2006; URRY, 2001; SOUSA, 2004). Nessa mesma lógica Bauman (1997, p. 274) pontua o distanciamento que os turistas possuem da realidade local. “Os turistas pagam antecipadamente por sua liberdade: o direito de não levar em conta interesses e sentimentos nativos [...] fisicamente próximos, espiritualmente distantes.”
Mas será que é possível ser turista sem estabelecer nenhum contato com a cultura local? O turista teria a capacidade de ficar imune à convivência dos nativos? Parece que esse é um fato inevitável, o contato sempre ocorrerá. Talvez a qualidade dessa experiência represente a diferenciação social e pessoal entre os turistas e os viajantes.
Nesse ponto, destacam-se os mochileiros como viajantes, como sujeitos abertos à experiência de contato. Sujeitos que produzem trocas, realizando elos de reciprocidade, nos quais o viajante e o nativo são modificados pelo encontro e pela experiência de alteridade.
Desse modo, no próximo subitem, procura-se esclarecer, ao leitor, indícios de como os mochileiros se constituem tanto como uma subcategoria de turista quanto como um ser viajante, em uma forma de ser e estar no mundo.
Mochileiros: múltiplas configurações em um caleidoscópio [2] de significados
Afinal, mochileiros são turistas ou viajantes? Junto aos contornos apontados por estudiosos pesquisados para a categoria viajantes e/ou turistas, um caleidoscópio de significados é construído. Chama-se de caleidoscópio porque não se pretende fixar características rígidas, mas permitir uma relação dialógica entre a diversidade de visões encontradas. Compreende-se que, dependendo da área a qual o estudioso pertence, seu olhar é direcionado por uma tendência teórica e, diante disso, alguns aspectos específicos são enfatizados.
É importante ressaltar que as publicações nacionais encontradas são escassas em relação a esse tema. Encontra-se produções em maior escala na/sobre a Austrália (país que possui o status de ter o maior número de mochileiros) e na Europa (onde essa prática também é muito difundida). Pode-se inferir que essa diferença na produção de pesquisas seja um reflexo da diferença quantitativa da própria prática desse tipo de viagem entre essas localidades e o Brasil.
A maioria das pesquisas brasileiras, verificadas na revisão bibliográfica, apresenta-se vinculada à área de marketing, de administração, da economia e do turismo. Demonstram como foco principal as relações econômicas geradas por essa prática, e visam, sobretudo, definir o perfil desses sujeitos em um viés mercadológico, com o intuito de possibilitar a ampliação socioeconômica desse grupo no mercado turístico. Assim, por essa óptica, os mochileiros são classificados como uma subcategoria de turista, mais especificamente como turistas independentes.
Esse estudo sobre e com os mochileiros propõe uma mudança perante o foco do olhar mercantilizado dessa prática, para centrar-se na dimensão relacional estabelecida pelos mochileiros. Passa-se a destacar os aspectos referentes às características psicossociais apontadas pelos pesquisadores e ratificadas pelos sujeitos.
Para tanto, manter-se-á as terminologias turista independente, viajante, mochileiro, vagabundo, etc., encontradas nas bibliografias examinadas, pois, como já esclarecido anteriormente, existem diversos vocábulos que parecem descrever o mesmo viajante.
Em sua pesquisa Cohen (1972), um pesquisador marroquino, iniciou seus estudos sobre viagens independentes. O estudo trata de experiências turísticas e a distinção entre turistas institucionalizados e não institucionalizados. Por turistas institucionalizados ele se referia aos turistas de massa, e os turistas não institucionalizados foram referidos no estudo como “vagabundos” – jovens que vagavam (1972). O vagabundo/andarilho foi descrito como uma pessoa que "propositadamente viaja sem qualquer itinerário ou horário, sem destino ou propósito bem definido" (COHEN, 2003, p. 3). Em sua pesquisa, que buscava explicar as motivações para esse tipo de viagem, o autor relata que a razão encontrada para essa prática foram as grandes mudanças sociais e políticas dos anos 1960: a revolução estudantil[3] (que ele entende que falhou) e a Guerra do Vietnã, que levou à alienação generalizada de jovens ocidentais, especialmente na Europa Ocidental e na América (COHEN, 1972).
Outro aspecto ressaltado por Welk (2004, p. 85), corroborando Cohen, é que as motivações que esses “vagabundos” tinham para viajar era sua rebeldia contra uma "geração de pais conformistas". Assim, esse autor acredita que essa situação levou os jovens a várias tentativas de criação de estilos de vida alternativos por meio de viagens a outros países, na esperança de buscar a redenção pessoal, mudando e revolucionando a própria sociedade em que viviam.
Ainda no âmbito acadêmico, Welk (2004, p. 85) sinaliza que vagabundo era uma definição para a juventude nômade, no início da década de 1970, e que muitos já nomeavam de “viajante hippie”. Esses viajantes rumaram a muitos lugares distantes das rotas turísticas convencionais, impulsionados pela crítica à alienação produzida pela própria sociedade e pela incapacidade de encontrar autenticidade para a volta. Dessa forma, Cohen (2003) vê o vagabundo/hippie como um modelo ideológico que os mochileiros atuais pretendem recriar, porém, pontua que, pela atual configuração social, não é possível vincular o mochileiro à alienação, já que para o segundo o autor (2003, p. 11), “as mudanças de circunstâncias socioculturais do Ocidente contemporâneo, associadas ao surgimento do pós-modernismo, com sua maior abertura ao multiculturalismo e de múltiplas identidades [...], tornam implausível de vincular mochila com alienação”.
No final da década de 1980, Reilly (1988) descreve-os como viajantes de longo prazo e baixo orçamento. O termo backpacker (mochileiro) é utilizado por Pearce (1991) para descrever os “vagabundos” modernos, na literatura acadêmica. Nesse aspecto, em 1995, encontra-se uma descrição mais detalhada desses sujeitos como sendo turistas que organizam o itinerário das suas viagens de forma mais independente, flexível e econômica, por períodos longos; turistas, que enfatizam o encontro com outras pessoas (do local ou estrangeiras) e buscam conhecer vários destinos formulados por eles (PEARCE; LOCKER-MURPHY, 1995). Essa conceituação de mochileiros foi encontrada de forma recorrente nas pesquisas e, diante disso, parece representar a caracterização que tem uma maior aceitação entre os pesquisadores.
Em sua pesquisa sobre mochileiros que viajavam pela África do Norte e Oriental, Índia, Oriente Médio e sudeste da Ásia, Sorensen (2003, p. 850) aborda a cultura de viagens de turismo internacional com representantes de mochileiros. O autor evidencia que esses viajantes possuem uma “cultura de mochila”.
Para uma análise do turismo de mochila como uma cultura – aqui faz-se um parêntese para essa explicação –, o autor entende que a complexidade de significados e diferenças dos sistemas humanos e a organização da diversidade (em vez da repetição uniforme) produzem distintos sentidos para essa atividade, que, hoje, se encontra no centro das discussões acerca do conceito de cultura. Portanto, ele considera pertinente utilizar o termo cultura backpacker (mochileiro), pois essa terminologia não é vista apenas como a cultura dos sujeitos categorizados como mochileiros, mas, também, é reconhecida como essencial na contínua recriação da categoria de mochileiro.
O crescimento dessa prática é apontado pelo autor a partir do crescimento das estalagens de Khao San Road (Bangkok) que, no início da década de 1980, eram apenas duas construções e hoje esse número chega a centenas na mesma região. Esse aumento quantitativo de acomodações utilizadas por mochileiros (albergues da juventude, hostels, pousadas econômicas, etc.) não se traduz em uma homogeneidade dos sujeitos mochileiros, mas aponta uma tendência. O autor relata a existência de um contingente complexo e multifacetado de sujeitos mochileiros, impossibilitando, assim, uma categorização distinta e homogênea. Essa heterogeneidade é manifestada, segundo Sorensen (2003 p. 2), pela diversidade de “nacionalidade, idade, finalidade, motivação, organização de viagem, ou em que parte do ciclo da vida o sujeito se encontra”. Sendo assim, Sorensen coloca o olhar sobre o fenômeno “estar na estrada”, como o “fato” que sempre se repete entre os mochileiros.
Outro olhar, elaborado por Cidade (2012), remete às construções simbólicas vinculadas ao mítico-religioso. Em sua pesquisa com mochileiros, o autor observa a relação dessa prática com a necessidade de autenticidade e com a valorização do sofrimento. O autor descreve que (2012, p. 6):
[...]é extremamente recorrente entre mochileiros, conforme observei em viagens pretéritas, a busca por “autenticidade”, de sair do “beatentrack” turístico. O autêntico exige uma elaboração de conhecimento pessoal, de busca por experiências inéditas (...). É uma aversão do que é fácil, do dado, como os serviços oferecidos pelas agências de viagens e indústria do turismo. Para ser um “verdadeiro” viajante e “ter” experiências autênticas, é preciso se esforçar.
Segundo Cidade (2012), entre os mochileiros, o sofrimento físico seria o mais relevante e indicativo das peculiaridades desse tipo de viagem, pois essa forma de viajar prevê contenções econômicas em alimentação, alojamento e transporte. O mesmo autor (2012, p. 1) salienta que “o sofrimento não é apenas uma condição necessária filosoficamente oriunda da fome, da sede, da doença, da velhice, etc. É culturalmente valorizado, utilizado como parâmetro para a distribuição e o ordenamento de posições e bens culturais”. Nessa lógica, o sofrimento pode tornar-se prazer, principalmente quando é visto como belo, como superação, como heroísmo. A apropriação do sacrifício como valor passa a adquirir certa legitimidade ante os demais atores sociais. Nesse ponto representa uma necessidade subjetiva, enraizada no sujeito, mas oriunda da coerção social como quase todas as necessidades.
O conforto do turista se traduz em um contexto de alienação gerada pela sociedade capitalista. Conforme relata Cidade (2012, p. 13), entre turistas e mochileiros, os últimos costumam insinuar que o “excesso” de conforto e ordenamento, concomitante ao curto tempo de viagem, faz com que o turista tenha bem-estar do corpo ao preço da alienação da “alma”. Enquanto isso, as privações de conforto, gerando sofrimento do corpo, providenciam a imersão “da alma”, possibilitando vivenciar a cultura local “verdadeiramente”. Nesse aspecto, o turista, se coloca em um patamar social acima do nativo, o que anula a possibilidade de conhecimento, do encontro. “O conforto é antítese da experiência nativa” (Cidade, 2012 p. 13). E o turismo de “pacote” muitas vezes gera ambientes artificiais, em relação ao mundo compartilhado pelos nativos.
Noutra perspectiva, pautada no marketing turístico, Aoqui (2005, p. 5/6), em sua pesquisa, demonstra uma visão mercadológica e procura identificar os aspectos relevantes desse grupo. Sendo assim, ele descreve os mochileiros como turistas que gastam mais dinheiro do que outros em razão da longa duração de sua visita, que possuem uma natureza aventureira que se traduz em dinheiro gasto em áreas geográficas mais amplas, incluindo regiões economicamente marginalizadas; proporcionam benefícios econômicos nos quais a comunidade, com pouco capital ou treinamento, possa fornecer serviços e produtos procurados; turistas que possibilitam o desenvolvimento de habilidades, recursos, matérias-primas e know-how locais, que não demandam luxo, e que, portanto, gastam mais dinheiro em bens produzidos localmente (como comida) e serviços (transporte e acomodação em casa de família) e menos em artigos importados que causam a repatriação de dinheiro, que usam poucos recursos (hidromassagem, sauna, ar-condicionado, banho quente), sendo, por isso, mais gentis ao ambiente.
Esse autor aponta ainda que os mochileiros também fazem parte de um nicho de mercado já captado pela indústria turística:
[...] populares entre os jovens de diversos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Holanda, na Alemanha, na Austrália e no Japão, o comportamento dos viajantes dessas diferentes nacionalidades são bastante similares. Isso ocorre em função desse grupo possuir uma mídia paralela de viagem que são os guias de viagem, tipo Lonely Planet e RoughGuide. Assim, os turistas backpackers leem os mesmos guias, frequentam os mesmos meios de hospedagem e visitam as mesmas atrações. (AOQUI 2005, p. 80)
Essa colocação de Aoqui (2005) possui uma visão divergente em relação à necessidade de autenticidade pontuada por Cidade (2012), já que ressalta uma “massificação” dentro do próprio movimento mochileiro.
Ligada ao turismo de marketing, Laurie Murphy (2001) caracteriza os mochileiros como viajantes que não utilizam pacotes turísticos comerciais, que viajam com um orçamento restrito, que apresentam problemas referentes à falta de tempo quando relacionado à extensão do itinerário que pretendem percorrer e viajar para ver o máximo possível, indo além dos atrativos turísticos comuns para experimentar e aprender mais sobre o país visitado. Ela também menciona que os turistas mochileiros necessitam de certas habilidades sociais, tais como: habilidade para iniciar conversa com pessoas estranhas, na maioria das vezes estrangeiras; comportamento mais aberto do que o usual; tolerância maior diante da diversidade das atitudes dos outros, uma vez que convivem e compartilham espaços comuns como albergues da juventude e hostels.
É possível observar que, no final do século XX, existe um aumento nas pesquisas realizadas com esse tipo de viajante, principalmente vinculadas às ciências sociais. Ainda não é possível circunscrever as pesquisas que abordam esse tipo de viagem sobre um mesmo vocábulo. Todavia verifica-se que os estudos sobre esses viajantes emergem e, com isso, as caracterizações tornam-se diversificadas e flexíveis. Encontram-se vários estudos que demonstram pesquisar um “mesmo grupo”, porém, são utilizadas terminologias distintas, como verificado anteriormente.
A diversidade de olhares dos diferentes pesquisadores demonstra a complexa teia de inter-relações possíveis de se construir quando o objetivo é circunscrever um grupo dinâmico e aponta, também, que a singularidade do pesquisador, constituída por sua subjetividade e sua história, é parte indissociável na análise dos estudos. Assim, afirma-se que a configuração do ser mochileiro é constituída por subjetividades, sendo variada e cambiante como a maleabilidade e a potencialidade de transformação de um caleidoscópio, pois ela nunca será fechada, completa e exata.
No próximo subtítulo, a subjetividade constitutiva do mochileiro aparece de forma evidente no que tange às relações entre o sujeito, sua atividade e a constituição da sua autoimagem, a partir dos significados pessoais e sociais que emergem no âmbito da “experiência mochileira”.
A autoimagem mochileira: significados pessoais e sociais
Para a compreensão das autoimagens constituídas pelos mochileiros, um incalculável número de representações simbólicas emergiram ante os sujeitos praticantes dessa atividade. Esse tipo de fenômeno constitui uma subjetivação coletiva que habita o imaginário social compartilhado por sujeitos que produzem sentidos próprios. Assim, trata-se, nesse momento, dessas intercorrências entre o significado social e pessoal, entre o que a sociedade espera e imagina e o que o sujeito deseja e é capaz de vivenciar.
Quando indagados sobre em que tipo de viajantes se enquadravam, os entrevistados se reconheceram e se autointitularam como mochileiros. Esse reconhecimento implica um consenso que carrega um significado forte entre eles: mochileiro não é turista. Mochileiro é um viajante. Com diferentes graus de intensidade, esses sujeitos se conectam com um quadro de referência do “ser mochileiro”, por uma questão de filosofia, de identidade, de sentimento de pertença ou sentimentos de valores comuns como: liberdade, aventura, desejo de ir além, experiência de alteridade, etc.
Ser mochileiro pode ser traduzido, segundo os entrevistados, como colocar uma mochila nas costas e partir em uma viagem. Lançar-se ao desconhecido, ao novo, para no confronto com o inesperado emergir a “saborosa” superação do desafio.
O “estar na estrada”, essa necessidade de mobilidade e da busca pelo desconhecido é fator marcante entre eles. Maffesoli (2001) denomina essa necessidade de mobilidade como “pulsão da errância”. A errância, segundo o autor (2001, p. 16), “traduz bem a pluralidade da pessoa e a duplicidade da existência”. Pela pulsão da errância o viajante rompe com o tempo/espaço linear, faz a circulação de ideias, de sentimentos, de cultura e o contato com o diverso torna-se propulsor do fluxo contínuo e ininterrupto de saberes. Viajar é uma aprendizagem, apontam os mochileiros.
A aventura da errância representa parte constituinte de todas as viagens dos mochileiros. Pode-se inferir que ela representa a grande motivação, pois propicia o encontro com o inesperado e a quebra da rotina do dia a dia. A aventura para os mochileiros começa no planejamento da viagem. Esse planejamento é feito de forma meticulosa, cuidadosa e visa conseguir a maior quantidade de informações possíveis. O grau de aventura que o sujeito intenciona vivenciar fica explícito no tipo de roteiro que ele monta e por quais caminhos escolhe seguir.
Se colocar a mochila nas costas implica lançar-se a uma aventura, não se pode esquecer que essa aventura é recheada de imaginação e simbolismos. Mais do que objetos, a mochila de um mochileiro carrega sonhos de liberdade.
A possibilidade de ir e vir constitui um elemento presente nessa prática. “Donos do próprio desejo”, os mochileiros têm como uma das características marcantes a liberdade para a mobilidade. Eles não se fixam em lugar nenhum. A potencialidade para o movimento implica uma não fixação de tempo e de espaço. A perspectiva da troca de lugar, da variação do tempo de permanência, da possibilidade de seguir adiante ou não, depende da motivação do sujeito no momento em que se encontra. Por esse motivo, compreende-se que os mochileiros não participam de excursões agenciadas, nem compram pacotes turísticos. Essa formatação da viagem turística “de pacote” apresenta uma estrutura rígida na organização do tempo e do espaço, tornando coletivizado o que é individual. Desse modo, a viagem agenciada turisticamente tende a anular o sujeito diante da massificação da atividade.
Elementos recorrentes em suas falas para justificar a liberdade como significado do “mochilar” foram a pré-disposição para ultrapassar limites, o desejo de transpor fronteiras e a possibilidade de quebrar regras.
Assim, ser mochileiro carrega o ideal de ser um sujeito que rompe com as imposições sociais. Além disso, a liberdade, nesse caso, se relaciona com a possibilidade do sujeito expressar-se diante o mundo. A significação de autenticidade se faz presente. A tomada de decisão, que é o ponto central na tensão entre exercer o desejo individual ou ceder à coerção social, torna-se um dos “traços mais amplos das atividades portadoras de consequências que um indivíduo leva consigo na vida cotidiana e no curso de sua existência” (GIDDENS, 2002, p. 107). Pode-se assinalar que “mochilar” representa uma prática de liberdade. Porque o tempo todo é a própria pessoa que tem que decidir o que e como fazer! Essa exclamação foi ouvida várias vezes durante o processo de entrevista com os mochileiros.
Na visão dos responsáveis pelos hostels, encontrou-se uma visão um pouco mais homogeneizante dessa relação mochileiro/liberdade. Na perspectiva desses pesquisados, há um entendimento de que os mochileiros têm uma relação maior com a liberdade, porque precisam de menos coisas materiais para viver, procuram hospedagens mais simples, não gastam dinheiro com excursões (fazem os passeios de forma mais autônoma), não possuem horários fixos e se alimentam no hostel (fazem a própria comida). Outro elemento apontado é que, apesar de realizarem muitos contatos relacionais, eles são de caráter temporário, enfatizando o não vínculo e a liberdade na relação. Outro aspecto sinalizado acerca da liberdade, abordado pelos entrevistados, indica a necessidade que os mochileiros têm de entrar em contato com a natureza. Para os responsáveis pelos hostels, esse parece ser um ponto marcante da condição de mochileiro: a natureza representa o cenário para exercerem a liberdade.
Esse posicionamento dos responsáveis pelos hostels engrossa o imaginário social de que não se consegue ser livre dentro das cidades, de que entrar em contato com a natureza propicia ao sujeito essa vivência de liberação das amarras sociais, transportando-o para outro tempo/espaço e a outra condição de existência.
Retomando o pensamento de Perez (2009), ao remeter-se a um tempo/espaço descontínuo, essa profunda modificação espaço-temporal acarreta no sujeito um duplo estranhamento: a experiência de ser diferente de si e do outro e a experiência de estar diferente de si e do outro. Nesse sentido, a experiência da viagem ao proporcionar ao viajante o contato com o diferente, o diverso, o desconhecido, propicia um momento de encontro consigo mesmo, um reencontro do sujeito diante de uma sociedade que tenta aniquilar ou confundir a própria identidade pessoal. Afirmaram os mochileiros que viajar é reencontrar-se na essência do ser.
A retórica dos mochileiros propiciou a compreensão de que a expectativa da viagem de mochila marca fortemente a motivação de ir ao encontro do inesperado e do inusitado. A possibilidade de entrar em contato com novas emoções, o reconhecer-se e o estranhar-se diante de um outro, marca o inacabado da condição humana. A metamorfose, pela qual o sujeito passa através do visto e vivido antes, durante e depois de uma “mochilada”, reflete o jogo produzido entre referenciais de identidades e alteridades constituintes da subjetividade do sujeito.
Nesse contexto de mediação entre o conhecido que se carrega (ideias, cultura, moral, etc.) e o desconhecido, com o qual o sujeito se permite entrar em contato, as mudanças, as sensibilidades e a tolerância com a diversidade se ampliam.
Lançar-se ao encontro do outro representa a aceitação do inacabamento e da dinamicidade da constituição do sujeito, pois no deslocamento, que toda viagem implica, é necessário validar a relação eu-outro, próprio-alheio, individual-social, em um jogo constante entre a identidade e a alteridade na produção do sentido e na capacidade reconstrutiva da subjetividade do sujeito.
A viagem, corroborando Kryzinski (1997), gera um significado como operador cognitivo, gerador de saberes diversos e de metadiscursos. Mede a reflexividade entre identidade-alteridade por meio da tensão dialógica entre o familiar e o estranho. Desse modo, tem-se no outro um espelho que às vezes reflete o conhecido e às vezes aponta o desconhecido. Como diz Bakhtin (2003), o olhar do outro sempre será diferente do meu, mas preciso dele para me enxergar diferente do que me vejo.
Na visão dos responsáveis pelos hostels tem-se a percepção da vivência da alteridade pelo convívio dentro do próprio hostel. Foi argumentado que as relações vividas entre as pessoas (que às vezes são muito diferentes) fazem com que cada uma seja mais tolerante e menos preconceituosa com o diverso, com o não familiar. As trocas vivenciadas e os “choques” culturais (entre todos, inclusive os responsáveis pelos hostels) são experiências riquíssimas que são levadas para a vida toda como aprendizagem em lidar com o inusitado, com o diferente e com o novo. E essa aprendizagem identificada tanto pelos mochileiros como pelos responsáveis pelos hostels propicia o autoconhecimento.
Considerações Finais
Esta pesquisa, na busca de compreender a constituição dos sujeitos mochileiros e os significados das viagens de mochila, precisou adentrar no universo subjetivo dos sujeitos praticantes e no significado social existente sobre essa forma de viagem.
Constatou-se que mais do que uma forma “barata” de viajar, mochilar representa um estilo de vida, um propiciador de encontros com e pelo mundo. Esses encontros acabam gerando algo muito forte para os mochileiros: as aprendizagens, e em especial as aprendizagens que proporcionam o autoconhecimento. Essa prática configurada a partir da mediação sujeito-mundo carrega em si rastros de elementos que por afinidade ou repulsa vão aproximando ou afastando o sujeito daquilo que lhe convém: suas motivações, seus desejos, seus propósitos, desvelando a singularidade que toda atividade humana possui ao escapar de qualquer tentativa de padronização.
A viagem de mochila compreendida como uma forma alternativa de viagem diante da indústria turística tenciona valores simbólicos que são gestados pela prática turística hegemônica. Os mochileiros não compactuam com a transformação das viagens em mercadorias a serem consumidas.
Na identificação com a prática foi comum os mochileiros se caracterizarem como viajantes auto-organizados, que não utilizam os serviços de agências turísticas. Viajam para múltiplos destinos. Possuem um roteiro flexível sujeito a mudanças. Suas viagens são por tempo prolongado, gastando pouco dinheiro, conhecendo lugares que ultrapassam os divulgados nos roteiros turísticos e as pessoas que habitam a região.
Enfim, “mochilar” remete a uma espécie de ruptura do cotidiano. Representa a liberdade de opção feita pelo viajante. Representa ainda a motivação do sujeito que busca a “experiência do ser". Desse modo, colocar uma mochila nas costas e partir rumo ao desconhecido representa para os mochileiros transformar o mundo no cenário para aprendizagens distintas e para a expressão da sua singularidade.
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Notas