Dossiê Temático
Recepção: 30 Agosto 2017
Aprovação: 15 Janeiro 2018
DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.18n1.2018.1480
Resumo: Neste artigo, analisamos variáveis da imagem da cidade do Rio de Janeiro em produções audiovisuais da República da China (re)apresentadas no YouTube no dia da abertura dos Jogos Olímpicos de 2016, em que assuntos como zika, poluição e sexo prevaleceram sobre outros pontos relevantes do megaevento. Para tanto, elegemos uma compilação de 11 notícias animadas, produzidas pelo site taiwanês TomoNews, publicada em seu canal americano no YouTube em 05 de agosto de 2016. Nos produtos analisados, é possível perceber que, apesar dos esforços empreendidos ao longo dos anos na construção da marca Rio, por meio do city branding, houve uma descrença, apresentada de forma irônica, de que a cidade estaria preparada para receber as Olimpíadas, especialmente devido às possíveis epidemias e à violência. Inspirados em autores como Sodré, Siqueira e Amâncio, discutimos questões relacionadas à comunicação, ao turismo e ao patrimônio em uma cidade pautada pelo medo, mas que quer atrair turistas.
Palavras-chave: Megaevento, Rio de Janeiro, Marca, Turismo, YouTube.
Abstract: In this article, we’ll analyze an array of variables related to the image of Rio de Janeiro in audiovisual productions from the Republic of China (re)published on YouTube on the opening day of the 2016 Summer Olympic Games, in which subjects such as zika, pollution and sex prevailed over other relevant points of the mega-event. In order to do that, we have chosen a compilation of 11 animated news stories produced by the Taiwanese website TomoNews, published on its American YouTube channel on August 5, 2016. In the products analyzed, it is possible to realize that despite of the efforts in city branding to construct the brand Rio, there was an ironic disbelief that the city would be prepared to host the Summer Olympics, especially due to possible epidemics and violence. Inspired by authors like Sodré, Siqueira and Amâncio, we discussed issues related to communication, tourism and heritage in a city ruled by fear, but that wants to attract tourists.
Keywords: Mega-event, Rio de Janeiro, Brand, Tourism, YouTube.
Resumen: En este artículo analizamos variables de la imagen de la ciudad de Río de Janeiro en producciones audiovisuales de la República de China presentadas en YouTube el día de la apertura de los Juegos Olímpicos de 2016, en que temas como zika, contaminación de la naturaleza y sexo prevalecieron sobre otros puntos relevantes del megaevento. Para ello, elegimos una compilación de 11 noticias animadas, producidas por el sitio taiwanés TomoNews, publicada en su canal estadounidense en YouTube el 5 de agosto de 2016. En los productos analizados, es posible percibir que, a pesar de los esfuerzos emprendidos a lo largo de los años en la construcción de la marca Rio por medio del city branding, hubo una incredulidad, presentada de forma irónica, de que la ciudad estaría preparada para recibir las Olimpiadas, especialmente debido a las posibles epidemias y a la violencia. Inspirados en autores como Sodré, Siqueira y Amâncio, discutimos cuestiones relacionadas con la comunicación, el turismo y el patrimonio en una ciudad pautada por el miedo, pero que quiere atraer turistas.
Palabras clave: Megaevento, Rio de Janeiro, Marca, Turismo, YouTube.
INTRODUÇÃO
A cidade do Rio de Janeiro, desde o início do século XX, desperta interesse da mídia internacional, tendo sido objeto da imprensa, do cinema e da publicidade em vários países do mundo devido a suas belezas naturais, mas, também, por ser uma metrópole com importantes desigualdades sociais. Dotada de um cosmopolitismo peculiar, que mistura calorosa recepção aos estrangeiros e uma cultura popular baseada em sincretismos e precariedades habitacionais, a antiga capital da República é, até os dias atuais, a cidade brasileira mais citada na imprensa internacional. Para o melhor e também para o pior.
Com a inclusão da cidade no circuito global de megaeventos, tais como a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos, uma série de matérias, reportagens e documentários de diferentes origens geográficas foi apresentada em formato audiovisual, sendo muitos deles postados no YouTube.
Neste artigo, interessou-nos trabalhar com produtos midiáticos desenvolvidos fora da esfera ocidental. Após a repercussão na mídia brasileira da notícia intitulada Olimpíadas Rio 2016: Brasil deveria cancelar os Jogos porque ninguém quer morrer para ir assisti-los[1], chamou-nos atenção outros vídeos elaborados pelo site taiwanês TomoNews, conhecido pela falta de censura e pelo uso indiscriminado do sarcasmo nas suas abordagens. O TomoNews é um site de humor com notícias[2], altamente criticado por alguns segmentos da imprensa brasileira, por ser considerado de mau gosto e abusivo. O perfil editorial do site encontrou nos preparativos para os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro material suficiente para produzir diversas matérias e piadas em torno dos absurdos da cidade e dos possíveis fiascos que aconteceriam durante o megaevento. Sua inspiração principal residiu nas histórias de violência, prostituição, epidemias e atrasos nas obras associadas ao Brasil.
Nesse contexto, elegeu-se para debate uma compilação de 11 notícias animadas, intitulada Olimpíadas Rio 2016: as mais sensuais e “cocozentas” olimpíadas de todos os tempos - compilação[3]. As notícias foram originalmente publicadas pelo site TomoNews entre fevereiro e agosto de 2016, tendo mais de 680 mil visualizações apenas no site americano (elas foram disponibilizadas também em outros idiomas). A compilação foi publicada em seu canal americano no YouTube em 05 de agosto de 2016, dia da cerimônia de abertura dos jogos, e gerou 52827[4] visualizações.
Nos produtos analisados, é possível observar que, apesar dos esforços empreendidos ao longo dos anos na construção da marca Rio, por meio do city branding, houve uma descrença, apresentada de forma irônica, de que a cidade estaria preparada para receber as Olimpíadas, especialmente devido a possíveis epidemias e à violência. Inspirados em autores como Sodré, Siqueira e Amâncio, discutimos questões relacionadas à comunicação, ao turismo e ao patrimônio em uma cidade pautada pelo medo, mas que quer atrair consumidores.
MARCA RIO E AS EMOÇÕES PRÉ-OLÍMPICAS
Entre o início dos anos 2000 e o ano de 2008, aproximadamente, os discursos sobre violência e medo relacionados à cidade do Rio de Janeiro dominavam a mídia nacional, pautando, consequentemente, a mídia internacional. A eleição da cidade do Rio de Janeiro para sediar jogos da Copa do Mundo de Futebol (entre eles, os mais importantes, como de abertura e de encerramento) e os Jogos Olímpicos colocaram um grande desafio às autoridades interessadas no desenvolvimento econômico da cidade e do país por meio do turismo: atrair turistas (consumidores, portanto) para uma cidade partida pelas diferenças sociais e pelo medo da violência urbana. Foi necessário, então, reconstruir a marca e os imaginários da cidade maravilhosa. Entendemos, aqui, segundo Siqueira e Siqueira (2016), que os imaginários são uma relação socialmente construída, negociada e mantida no curso das interações sociais, que está em constante transformação (e, portanto, é histórico e dinâmico), têm natureza da ordem do simbólico (uma mediação entre sociedade, cultura e inconsciente) e não se reduzem à consciência individual, nem a um tempo preciso, perpassando tempos e espaços.
O Rio de Janeiro vem consolidando, ao longo de sua história, sua “vocação” para sediar megaeventos, apesar da imagem de violência que é associada à cidade (FREITAS, 2011). Desde que começou a sediar grandes eventos internacionais, no início do século XX, o poder público atua no ambiente urbano para “adequá-lo” a um ideal de cidade pensado para o consumo turístico por meio da gentrificação, de reformas, de obras e da construção de uma marca para a cidade. O uso de técnicas de city branding – campo do marketing destinado ao estudo da construção da marca para cidades e territórios – pode ser visto na análise histórica, mas sua aplicação ganha força na última década, especialmente se considerarmos que o próprio campo é institucionalizado e ganha status de ciência ao ser avalizado por uma área de conhecimento (Administração).
O investimento no desenvolvimento da marca da cidade para atrair turistas durante a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos foi realizado ao longo dos anos. Institucionalmente, percebe-se um esforço concreto de planejamento para essa ação a partir do Plano Aquarela 2020 (INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO, 2009). No documento, fica clara a estratégia de utilizar os megaeventos para posicionar o País entre os principais mercados turísticos do mundo, colocando a qualidade exigida pela Federação Internacional de Futebol (Fifa) e pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) como um grande benefício, por si só, ao País, em relação à infraestrutura, deslocamentos, acessos, transmissão e comunicação.
É possível ver um ápice dessa marca da cidade, no que diz respeito às relações e afetos que estabelece, no ano de 2012. Não apenas por sua eleição, neste ano, como Patrimônio Cultural da Humanidade (a cidade foi a primeira do mundo a receber o título), mas também pelo fato de a marca ir para além da questão territorial, estabelecendo uma relação cultural: ser carioca, morar no Rio ou visitar a cidade passam a ter um status, um valor (FREITAS; GOTARDO; SANT’ANNA, 2015). Das representações de violência que dominavam os noticiários e documentários turísticos em 2007 e 2008, da exclusão da favela como parte da cidade (a ideia da cidade partida), vemos uma construção do amor à cidade e do destino turístico perfeito, com uma nova geografia de seu consumo: das favelas “pacificadas” e “civilizadas” (GOTARDO, 2016). Por meio de diversas técnicas de city branding, a marca Rio se constrói a partir de uma emoção: o amor à cidade, pregado em filmes, vinhetas, festivais, publicidades, documentários turísticos, campanhas governamentais e até na parede externa do aeroporto Santos Dumont, na área da pista de pousos e decolagens.
No entanto, em junho de 2013, as manifestações tomaram conta do País, tendo como uma de suas pautas o fim da realização da Copa do Mundo e como um de seus palcos a Copa das Confederações, considerado um evento-teste, o que ampliou a repercussão dos protestos. Além disso, havia uma descrença da própria Fifa de que o país estaria pronto para receber os jogos[5]. Os problemas políticos no País tornaram-se ainda mais graves, culminando com o impeachment da presidenta Dilma Rousseff às vésperas dos Jogos Olímpicos. Além disso, o não cumprimento de diversas promessas feitas por ocasião das eleições da cidade para sediar o megaevento, bem como de exigências do Comitê Olímpico Internacional (como a despoluição da Baía de Guanabara), voltou a despertar a desconfiança da mídia internacional em relação a essa “vocação” da cidade-espetáculo para receber megaeventos. O amor ao Rio, então, parece se “converter” em diversas outras emoções às vésperas das Olimpíadas: medo da violência, da poluição e do zika (ameaças biológicas), nojo, descrença na capacidade de sediar um megaevento, além da exploração da sexualidade e do corpo como atrativos.
Segundo Siqueira (2015), a emoção parece ser condição necessária ao jornalismo, promovendo uma conexão entre os interlocutores. Segundo a autora, “o jornalismo pode utilizar-se dos efeitos da dramatização buscando tocar o receptor, provocar nele certo estado emocional favorável à recepção dos conteúdos e sentidos da notícia” (SIQUEIRA, 2015, p. 17). Trata-se, de certa forma, do uso das emoções de forma “profissional”, mas velada, já que as emoções, no processo midiático, devem passar despercebidas, misturando-se aos discursos para reforçar outras mensagens. Dessa forma, entende-se que, na contemporaneidade, a construção de sentidos e imaginários na mídia passa pelo corpo e pelas emoções. E, apesar da diferença da emoção construída pela mídia para aquela vivenciada no ambiente social, elas possuem uma profunda semelhança: sua construção tem bases sociais e culturais.
Com isso, é possível inferir que, na compilação de reportagens em questão neste artigo, a exploração das emoções pode ter um fim retórico, ou seja, é usada como pano de fundo dos argumentos que visam gerar uma descrença na capacidade de sediar megaeventos, questionando a suposta “vocação” que a cidade buscava resgatar por meio da construção de sua marca e das técnicas de city branding (o qual também, por sua vez, usou das emoções para essa reconstrução da imagem da cidade-mercadoria). Medo, nojo, sexualização do corpo feminino colonial são emoções produzidas por imagens que têm, supostamente, um caráter noticioso, ainda que satírico. Salienta-se que
Imagens operam no campo do simbólico, das representações coletivas. São construções mentais, possibilitadas pela percepção dos objetos contidos nos mundos físico, social e cultural. A percepção do mundo exterior e objetivo – mas também do interior e subjetivo – é uma das condições da construção das imagens e de sua dinâmica, o imaginário. As imagens guardam, portanto, alguma relação do mundo exterior com a dimensão interna dos sujeitos. Assim, imagens não são simples cópias dos dados percebidos por nossos sentidos ou reproduções fiéis dos objetos percebidos da realidade (SIQUEIRA; SIQUEIRA, 2011).
No que diz respeito à “cultura do medo”, entende-se que ela pauta o cotidiano dos centros urbanos e é também, em certa medida, construída pelas representações da violência na mídia. Segundo Caldeira (2003), essa ordem social que ameaça grupos, os quais mudam sua forma de morar, trabalhar, consumir e se distrair, é produzida por discursos com diversas referências que tanto legitimam a exclusão social e a gentrificação quanto ajudam a reproduzir o medo. Eles frequentemente dizem respeito ao crime, especialmente ao violento, mas também a questões raciais / étnicas, preconceitos de classe, sendo que suas práticas de segregação estão ligadas invariavelmente a contextos internacionais de transformação social. Segundo a autora:
A fala do crime constrói sua reordenação simbólica do mundo elaborando preconceitos e naturalizando a percepção de certos grupos como perigosos. Ela, de modo simplista, divide o mundo entre o bem e o mal e criminaliza certas categorias sociais. Essa criminalização simbólica é um processo social dominante e tão difundido que até as próprias vítimas dos estereótipos (os pobres, por exemplo) acabam por reproduzi-lo, ainda que ambiguamente. (CALDEIRA, 2003, p. 9).
Em relação ao nojo, ele é entendido especialmente no que engloba o corpo e seus orifícios, invocando uma experiência sensorial que estabelece uma barreira social, a qual tem como função proteger e manter o indivíduo em segurança (FORTUNA, 2015). Segundo a autora, “o nojo atua como um importante regulador social, na medida em que ajuda a estruturar o mundo, pois tem um incrível poder de gerar imagens, organizar e internalizar muitas de nossas atitudes morais, sociais e políticas” (FORTUNA, 2015, p. 75). Ela salienta que o nojo deve repelir para ser considerado nojo: “o nojo difere das outras emoções por apresentar um estilo único e aversivo. A linguagem do nojo invoca uma experiência fortemente sensorial de como é estar em perigo pelo nojento, o que é estar perto disso, ter que cheirar, ver ou tocar” (MILLER apud FORTUNA, 2015, p. 79).
É interessante notar que, tanto no que diz respeito a essa “característica” do nojo quanto na questão do medo da violência, a segurança é, na teoria de marketing, o segundo item da hierarquia de necessidades de Maslow, também conhecida por pirâmide de Maslow, vindo apenas após as necessidades fisiológicas. Assim, isso também pode ser visto sob um viés mercadológico, ou seja, a sensação de falta de segurança proporcionada pela exploração emocional do medo pode ser considerada um argumento mercadológico de convencimento.
Por fim, o corpo da mulher brasileira e sua sexualização como atrativo turístico se confunde com a história da promoção do turismo no Brasil[6] (GOMES; GASTAL, 2015). Quando a Embratur é criada, em 1966, divulga
a imagem do Brasil como país harmônico, reafirmando a identidade nacional em torno da mestiçagem/sexualidade/paraíso. Construiu, assim, a mulher brasileira como atrativo turístico ao utilizar, seguidamente, imagens de mulheres seminuas associadas a paisagens naturais, notadamente as praias, ou a eventos culturais como o carnaval, nos materiais de divulgação turística (GOMES; GASTAL, 2015, p. 212).
Assim, as autoras entendem que o corpo sexualizado da mulher brasileira é uma construção cultural, permeada por relações de poder, dos discursos sobre turismo. Essas estruturas de poder, especialmente da mídia, são fundamentais na reconstrução dos imaginários. As análises empreendidas para desconstruir esses discursos permitem perceber essas estruturas de poder em torno da colonialidade, racismo e sexismo.
Com base nesse quadro teórico, busca-se compreender o uso das emoções na construção dos imaginários sobre o Rio de Janeiro enquanto marca a ser consumida como destino turístico por ocasião dos jogos olímpicos, mais precisamente em relação à sua imagem negativa nos meses que antecederam o megaevento. Para tanto, foi eleita uma compilação de 11 notícias animadas, produzidas pelo site taiwanês TomoNews, publicada em seu canal americano no YouTube em 05 de agosto de 2016, dia da cerimônia de abertura dos jogos. Entende-se que há um uso das emoções para transmitir uma imagem negativa da cidade, como medo, nojo e sexualização dos corpos femininos.
MEDO E NOJO DO RIO: UMA DERROCADA DA MARCA?
TomoNews é um canal de notícias animadas que se propõe “inovador” em relação à forma de produzir e distribuir notícias[7]. Foi criado para ser distribuidor para o mercado americano das animações produzidas pela Next Animation Studio[8], um estúdio de animação localizado em Taiwan, o qual emprega mais de 500 artistas e criadores. Segundo o site da Next Animation Studio[9], são mais de 200 milhões de visualizações mensais dos vídeos, disponíveis em 13 línguas. Ainda segundo o site, “TomoNews reage às notícias da mesma forma que os espectadores. Algumas histórias nos fazem rir. Algumas histórias nos deixam indignados. Algumas histórias nos fazem suspirar e chacoalhar nossas cabeças. Você ouvirá isso em nossa voz, especialmente quando somos sarcásticos ou extremamente audaciosos.”[10] Assim, podemos perceber, já na descrição, que há um reconhecimento público e mercadológico sobre o uso das emoções nas matérias, com o objetivo de criar empatia e “refletir” a reação do público. Eles se opõem a qualquer tipo de censura e dizem não pedir desculpas pelo sarcasmo.
Nas 11 matérias, vemos alguns temas recorrentes. O mais frequente deles, trazido em seis notícias, é o da poluição das águas, relacionando com o fato de que a prefeitura do Rio de Janeiro prometeu, por ocasião da candidatura da cidade, tratar cerca de 80% do esgoto lançado no mar e na Baía de Guanabara, o que não foi cumprido (e que é claramente dito diversas vezes). Nesse tema, vemos representações de todo tipo de sujeira: lixo na areia da praia, pessoas cobertas com sujeira e excrementos, sofás, eletrodomésticos e pessoas mortas nas águas, enfim, todo tipo de material possível.
Essa sujeira é relacionada a algumas questões relativas aos jogos. Em primeiro lugar, ao não cumprimento da promessa de candidatura e à descrença nas instituições públicas, o que contribui para a ideia de que a cidade não estaria preparada para receber um evento desse porte. Em uma das matérias, denuncia-se a presença de uma superbactéria nas praias de Copacabana, Ipanema, Botafogo, Flamengo e Leblon resistente a drogas e classificada pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA como um problema de saúde pública urgente, provavelmente causado por hospitais (ou seja, a instituição que deveria cuidar da saúde, no Brasil, gera uma doença que mata), e que, segundo a matéria, pode matar em até 50% dos casos (a matéria não apresenta fatos além da presença da superbactéria nas águas). Como cuidado, as matérias sugerem o uso de vacinas e remédios preventivos, além da higienização constante com álcool (em banhos de álcool) e limpeza dos equipamentos dos atletas com cloro.
Pode-se perceber, nesses casos, uma ligação estreita com o conceito de biopolítica. Segundo Foucault (2000), a biopolítica é uma nova tecnologia de poder regulamentar que lida com a população, a qual é vista como um problema científico e político, biológico e de poder, controlando questões como proporção de nascimentos e óbitos, fecundidade, longevidade, entre outras, constituindo em sua prática áreas de saber que definem o campo de atuação de seu poder: o de intervir para fazer viver e o de deixar morrer. Esse poder “intervém sobretudo nesse nível para aumentar a vida, para controlar seus acidentes, suas eventualidades, suas deficiências, daí por diante a morte, como termo da vida, é evidentemente o termo, o limite, a extremidade do poder” (FOUCAULT, 2000, p. 295-296). Como processos biossociológicos, a biopolítica e o biopoder implicam órgãos complexos de coordenação e centralização. Nesse contexto, a medicina, como uma área de saber técnico, torna-se o elemento
[...] cuja importância será considerável dado o vínculo que estabelece entre as influências científicas sobre os processos biológicos e orgânicos (isto é, sobre a população e sobre o corpo) e, ao mesmo tempo, na medida em que a medicina vai ser uma técnica política de intervenção, com efeitos de poder próprios. A medicina é um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores. (FOUCAULT, 2000, p. 301-302)
Ligada a essa questão, vemos o tratamento dado aos “efeitos” da sujeira sobre o corpo do carioca, do turista e do atleta. A morte e a decomposição das partes dos corpos que tocam as águas são algumas “consequências” àqueles que arriscam o contato. Diarreia e vômito são amplamente explorados tanto nos corpos esculturais e negros das brasileiras quanto nos corpos brancos e gordos dos turistas, e até a estátua do Cristo Redentor sofre com a diarreia. Em relação aos atletas, a matéria prega que as Olimpíadas são “muito mais sobre sobreviver que sobre vencer” e sobre a habilidade de manter a boca fechada. Fica claro, nesses casos, que há um amplo uso do nojo como regulador e construtor de sentidos sobre a cidade. Em um dos momentos, a narração pergunta: se os governantes não podem fazer nada por esse evento único, onde vão parar?
Dentro ainda da questão da biopolítica, temos as representações sobre o zika. Os mosquitos estão presentes em algumas matérias, sendo que uma, especificamente, diz que, se a pessoa conseguir sobreviver ao Rio, ela pode pegar o vírus zika, o que geraria uma epidemia “de bebês zika, um grande presente para dar ao mundo”[11], enquanto desenhos de bebês com microcefalia são distribuídos sobre um mapa-múndi (bebês brancos sobre a Europa e Oceania, negros sobre a África).
Os problemas de saúde gerados por uma superbactéria mortal e os “bebês zika” relacionam-se também com o medo que é imputado em relação à violência na cidade. Homens negros encapuzados, algumas vezes sem camisa e com calças rotas (pobres), aparecem armados ameaçando turistas (gordos e brancos) e atletas. Roubam dinheiro, celulares, medalhas, matam pessoas desarmadas que não reagem, perseguem – ratificando a ideia de que os discursos sobre medo e violência frequentemente estão ligados ao crime violento e também a questões raciais e preconceitos de classe. Uma das matérias cita o jogador de futebol Rivaldo, o qual sugeriu publicamente que os turistas não viessem ao Rio pelo perigo de morte[12]. A violência também aparece na matéria que aborda pedaços de corpos encontrados em Copacabana, em local próximo à arena de vôlei de praia. Imagens de uma perna são exibidas, enquanto o narrador diz que as partes do corpo não foram retiradas porque policiais não estão recebendo salário. Também fazem “piada” em relação ao mau cheiro durante os jogos, por causa do calor (relacionando, mais uma vez, ao nojo e aos problemas nas instituições públicas).
O medo também aparece na qualidade das construções, que reforçam mais uma vez a descrença nas instituições públicas. Há citações à queda da ciclovia, à não finalização dos estádios, aos problemas hidráulicos e elétricos da Vila Olímpica, assim como à possibilidade de desmoronamento das obras finalizadas. Os brasileiros são mostrados como preguiçosos: enquanto os pedreiros de uma obra não finalizada jogam futebol e descansam, a estátua do Cristo Redentor aparece sentada fumando um cigarro (provavelmente de maconha). Além disso, em referência à morte do jaguar durante a passagem da tocha, os brasileiros são chamados de “muito estúpidos”[13].
No que diz respeito à sexualidade, ela já pode ser vista em uma das primeiras cenas da compilação: duas mulheres negras (imaginário da “mulata”) de biquíni com seios grandes correm felizes em câmera lenta até caírem devido à sujeira na areia da praia. Na narração, temos o seguinte texto: “O Rio de Janeiro é uma ótima cidade, com lindas costas e vistas deslumbrantes, e é por isso que hospeda as Olimpíadas de verão de 2016”[14].
A questão da perfeição física é evidenciada desde as narrativas fundadoras (Carta de Caminha, por exemplo), tal como nos aponta Amâncio (2000). O autor salienta que “o Brasil pré-colonial evoca retrospectivamente uma mitologia da sedução do trópico, com sua paisagem paradisíaca e sua gente sensual e receptiva” (AMÂNCIO, 2000, p. 22). Esse imaginário é amplamente explorado pelo marketing até os dias atuais, já que suas técnicas contribuíram para a reconstrução de “imaginários coloniais de paraíso a fim de motivar novos viajantes europeus, os turistas, a se deslocar para locais que teriam sido antigas colônias” (GOMES; GASTAL, 2015, p. 213). Trata-se de um imaginário de paraíso corroborado pelo texto da matéria.
A modelo Gisele Bündchen é exibida em fotografia e em representação gráfica de biquíni enquanto bate em seu então ex-marido Tom Brady. Passistas são exibidas em diferentes momentos, tanto de biquíni quanto nuas; enquanto um turista dança feliz ao lado delas, ele vomita ao ver homens nus (provavelmente gays) sambando. Com exceção da modelo, as outras mulheres são negras. Segundo Gomes e Gastal (2015), trata-se da construção da figura da “Eva”, a mulher brasileira pecadora e hipersexualizada, geralmente fundida à figura da “mulata”, exaltando uma dupla opressão: de gênero e de raça. As autoras destacam que
Echtner e Prasad (2003) analisam as representações de diferentes países da periferia do capitalismo hegemônico como destinos turísticos, destacando que estas se estabeleceram em torno dos mitos do inalterado (essencializado), do não civilizado e do não reprimido (com sexualidade exarcebada), os quais replicam discursos coloniais e mantêm geopolíticas de poder (GOMES; GASTAL, 2015, p. 214).
É possível observar nas notícias que, apesar de ser uma crítica ao Brasil, os estereótipos turísticos em torno do corpo feminino são amplamente explorados. No entanto, considerando-se o contexto geral de sátira e ironia, podem ser entendidos como parte do que deve ser evitado no País. O texto diz que a cidade “usará” os corpos das mulheres para esconder os problemas: “O Brasil está apostando em todos os peitos e bundas para manter a atenção de todos longe das construções e instalações de má qualidade”[15].
Embora outros temas sejam apresentados nas notícias, como a questão do dinheiro e da gentrificação, a recorrência dos temas abordados acima se destacam na construção das emoções relacionadas ao medo e nojo, usando a poluição, a violência e a sexualidade como “notícias”. A busca pelas emoções são também o que Sodré (2006, p. 102) chama de “estratégias sensíveis”, as quais constroem
(...) um real semiurgicamente constituído em toda sua extensão, uma verdadeira cultura das sensações e das emoções, da qual se faz uma experiência mais afetiva do que lógico-argumentativa. Daí a prevalência dos estereótipos, que são emoções coletivas esteticamente condensadas, nos territórios imateriais do bios midiático.
Tal como proposto pelo site em sua apresentação, o uso das emoções seria um “reflexo” das reações dos espectadores. Mas é necessário, dentro das relações de poder, considerar a dimensão da mídia como construtora de realidades e em como ela pode “informar, iludir, seduzir, reforçar ou (re)construir imaginários” (SIQUEIRA; SIQUEIRA, 2011, p. 666).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Siqueira (2015, p. 33), “o sensível ocupa papel de catalisador na produção de sentidos no campo midiático”. É possível perceber como a emoção toma o lugar do fato na construção das notícias que fazem parte do corpus de análise deste artigo, ainda que como “pano de fundo” – por exemplo, imputar o medo dizendo que uma superbactéria supostamente hospitalar caiu no esgoto, contaminou seis praias, tem mortalidade de cerca de 50% e é um problema de saúde pública urgente de acordo com uma instituição internacional. De informação comprovada, só há a presença da superbactéria nas praias.
Seja para criar uma relação ou representar o espectador, tal como proposto pelo site que as veicula, seja para catalisar a produção de sentidos, ou ainda, para criar um real a partir das experiências afetivas, é claro o apelo a emoções tidas / criadas como negativas – nojo, medo, sexualização – na construção da imagem do Rio de Janeiro enquanto sede das Olimpíadas nos meses que antecedem o evento, reforçadas com a publicação, no dia da abertura dos jogos, da compilação das matérias produzidas ao longo de seis meses.
É fato que a descrença na capacidade da cidade em sediar o megaevento percorreu a mídia internacional[16] e que havia motivos para desconfiança, tais como o não cumprimento de promessas feitas por ocasião da candidatura, a demora na finalização de obras, o surto de zika, o acidente com a ciclovia e o aumento dos índices de violência. No entanto, esses fatos foram explorados, nas notícias em questão, de forma a criar nojo, repulsa e medo, assim como os estereótipos sobre o corpo da mulher brasileira foram utilizados da forma mais negativa possível e os brasileiros foram chamados de preguiçosos e burros (também estereótipos). Assim, é possível inferir que esse processo de construção de emoções a partir das notícias pode passar desapercebido para grande parte dos interlocutores, na medida em que se misturam aos discursos para reforçar o conteúdo “noticioso”.
Por meio dessa breve análise, é possível observar uma oposição dos sentimentos veiculados na compilação das notícias do site TomoNews ao amor à cidade que se buscou construir por meio do city branding durante os anos que antecederam o megaevento. E, com ironia, enquanto homens negros, pobres e encapuzados correm atrás de um galo que representa os estandartes das passistas de samba, o narrador diz: “mal podemos esperar por essa maravilhosa celebração da cultura brasileira”[17].
Referências
AMANCIO, T. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, 2003.
FORTUNA, D. R. Emoções deslocadas: o nojo de Deus em Estamira. In: SIQUEIRA, D. da C. O. (Org.). A construção social das emoções: corpo e produção de sentidos na comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 75-89.
FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
FREITAS, R. F. Rio de Janeiro, lugar de eventos: das exposições do início do século XX aos megaeventos contemporâneos. In: ENCONTRO DA COMPÓS, XX, 2011, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: UFRGS, 2011.
FREITAS, R. F.; GOTARDO, A. T.; SANT'ANNA, C. N. de. Ativos intangíveis na marca Rio: o consumo turístico da cidade nos documentários internacionais. In: ENCONTRO DA COMPÓS, XXIV, 2015, Brasília. Anais... Brasília, UnB, 2015.
GOMES, M. S.; GASTAL, S. Evas e Marias no turismo do Brasil: o corpo como atrativo turístico e signo de hospitalidade. In: SIQUEIRA, D. da C. O. (Org.). A construção social das emoções: corpo e produção de sentidos na comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 207-226.
GOTARDO, A. T. Rio para gringo: a construção de sentidos sobre o carioca e a cidade para consumo turístico. 2016. 165 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Faculdade de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
INSTITUTO BRASILEIRO DE TURISMO (Brasil). Plano Aquarela 2020: marketing turístico internacional. Brasília: Assessoria de Comunicação da Embratur, 2009.
SIQUEIRA, D. da C. O. Corpo, construção social das emoções e produção de sentidos na comunicação. In: ______ (Org.). A construção social das emoções: corpo e produção de sentidos na comunicação. Porto Alegre: Sulina, 2015. p. 15-35.
SIQUEIRA, D. da CO. O.; SIQUEIRA, E. D. de. O imaginário da diferença: identidade e etnocentrismo na publicidade sobre o Brasil. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 23, n. 3, set./dez. 2016.
SIQUEIRA, E. D. de; SIQUEIRA, D. da C. O. O corpo como imaginário da cidade. Famecos: mídia, cultura e tecnologia, Porto Alegre, v. 18, n. 3, p. 657-673, set./dez. 2011.
SODRÉ, M. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.
TOMONEWS. Rio Olympics 2016: the sexiest, poopiest olympics ever – compilation. Taiwan: Next Animation Studios, 05 ago. 2016. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=WFsVMBa6PyI&t=391s . Acesso em: 29 ago. 2017.
Notas