Resumo: A gentrificação é um processo que provoca desapropriações, aumento do preço dos aluguéis e dos custos de vida, diminuição na quantidade de moradias com preço acessível, crescimento dos moradores de rua e de conflitos urbanos. A gentrificação não é mais um fenômeno exclusivo das grandes metrópoles de países desenvolvidos e avançou nas últimas duas décadas sobre as economias menos pujantes com a mesma agressividade apresentada nos países onde a teoria teve origem (nomeadamente, europeus e Estados Unidos). Tomando como pressuposto a ideia de que está ocorrendo um processo de gentrificação na Ilha de Fernando de Noronha/PE, o presente trabalho tem como objetivo caracterizar o processo de gentrificação na ilha por meio de uma pesquisa qualitativa básica. A gentrificação em Fernando de Noronha se mostra única e com particularidades que derivam da sua economia com base no turismo e por ser uma unidade de conservação.
Palavras-chave:GentrificaçãoGentrificação, Fernando de Noronha Fernando de Noronha, Turismo Turismo, Unidade de conservação Unidade de conservação.
Abstract: Gentrification is a process that causes evictions, rising rents and living costs, a decrease in the number of affordable housing, the growth of homeless people and urban struggles. Gentrification is no longer a phenomenon solely to the large metropolises of developed countries and has advanced in the last two decades in the less vigorous economies with the same aggressiveness presented in the countries where the theory originated (notably Europeans and the United States). Assuming the idea that a process of gentrification is taking place in the island of Fernando de Noronha/PE, Brazil, the present work aims to characterize the process of gentrification in the island through qualitative research. The gentrification in Fernando de Noronha is unique and with particularities that derive from its economy based on tourism and for being the unit of conservation.
Keywords: Gentrification, Fernando de Noronha, Tourism, Conservation unit.
Resumen: La gentrificación es un proceso que causa desalojos, aumento de alquileres y costos de vida, una disminución en el número de viviendas asequibles, el crecimiento de personas sin hogar y luchas urbanas. La gentrificación ya no es un fenómeno exclusivo de las grandes metrópolis de los países desarrollados y ha avanzado en las últimas dos décadas en las economías menos vigorosas con la misma agresividad presentada en los países donde se originó la teoría (especialmente los europeos y los Estados Unidos). Asumiendo la idea de que se está llevando a cabo un proceso de gentrificación en la isla de Fernando de Noronha/PE, Brasil, el presente trabajo apunta a caracterizar el proceso de gentrificación en la isla a través de la investigación cualitativa. La gentrificación en Fernando de Noronha es única y con particularidades que derivan de su economía basada en el turismo y por ser la unidad de conservación.
Palabras clave: Gentrificación, Fernando de Noronha, Turismo, Unidad de conservación.
Artigos Originais
Gentrificação em Fernando de Noronha
Gentrification in Fernando de Noronha
Gentrificación en Fernando de Noronha
Recepção: 22 Setembro 2016
Aprovação: 18 Julho 2018
O Arquipélago de Fernando de Noronha foi descoberto em 1503 por Américo Vespúcio. No entanto, até o ano de 1737 não possuía ocupação permanente; era apenas alvo de visitas e ocupações esporádicas. Esse espaço de tempo ficou marcado pelo seu “abandono”, inclusive por parte de seu “dono”, o fidalgo português Fernan de Loronha[1]. Em 1737, o governo de Pernambuco retoma o poder sobre a ilha, que estava sendo ocupada pela França, nação que estabeleceu ali um empreendimento da Companhia das Índias Orientais no ano anterior. A partir desse momento, foi erguida uma vila com a intenção de iniciar uma colônia correcional que viria a receber seus primeiros desterrados (ciganos) dois anos após a retomada. Ela serviu ainda como colônia correcional ou presídio para integrantes da Revolução Farroupilha e capoeiristas após a Proclamação da República (FUNATURA/IBAMA, 1990; IBAMA, 2005; PERNAMBUCO, 2015).
No início do século XIX, já sob controle pernambucano, foram enviados índios das tribos Cimbres e Escada, estabelecidas no agreste do estado, para o desenvolvimento da agricultura local. Já as décadas de 1910 e 1920 se destacaram pela presença de empresas francesas e italianas de cabos submarinos que utilizaram a ilha como base de apoio e contribuíram com algumas edificações presentes até hoje, com destaque para a Vila da Italcable, na Praia da Conceição (PERNAMBUCO, 2015). A Vila, aliás, responde pelo campo empírico da pesquisa.
Devido à sua posição estratégica, a ilha passou a ser marcada por uma forte presença militar, incluindo um destacamento estadunidense, além de unidades do Exército Brasileiro e da Aeronáutica, única força presente até os dias de hoje. No período do Estado Novo (1937–1945), após o golpe de Getúlio Vargas, bem como com o início dos governos militares, em 1964, a ilha também serviu como presídio político (PERNAMBUCO, 2015).
Essa é a versão oficial que remonta o panorama histórico da gênese da sociedade noronhense ao longo desses mais de cinco séculos. Desde seu descobrimento, devido ao abandono, à condição de exclusão social de grande parte de seus imigrantes e ao isolamento geográfico, a ilha sempre contou com uma infraestrutura precária para os padrões ocidentais e sua população gozava de um estilo de vida simples. Na atual distribuição racial da ilha, ninguém se declara indígena, enquanto mais de 50% se declaram pardo, cerca de 35% brancos e quase 15% negros. Com uma renda per capita de R$ 1.034,14, Fernando de Noronha apresenta cerca de 22% da sua população acima de 10 anos sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto (IBGE, 2010).
Com a redemocratização do Estado Brasileiro, em meados dos anos 1980, Fernando de Noronha sofreu profundas mudanças em seu processo de gestão. Por meio do Decreto n.º 92.755, de 05 de junho de 1986, o então presidente José Sarney declara como Área de Proteção Ambiental (APA) o Território Federal de Fernando de Noronha. Em 1987 foi nomeado o primeiro governador civil da ilha, Fernando César Mesquita. A Assembleia Nacional Constituinte, de 1988, define a volta da subordinação ao Estado de Pernambuco e, logo após, pelo Decreto Federal n.º 96.693/88, foi criado o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha (Parnamar), que corresponde a cerca de 2/3 da ilha principal, e envolve todas as ilhas do arquipélago, além da biodiversidade marinha – locais onde são proibidas as ações humanas, exceto a contemplação e a pesquisa. Com esse decreto, a abrangência da APA foi reduzida para cerca de 30% da ilha principal, onde se pode desenvolver habitações e atividades comerciais (FUNATURA/IBAMA, 1990; IBAMA, 2005).
Até o final da década de 1980, a ilha contava com duas pousadas, três restaurantes, quatro bares e apenas uma loja de lembranças. O voo que operava para a ilha tinha capacidade para 16 passageiros. Essa mudança no contexto noronhense após a redemocratização provocou uma maior abertura, tornando o território fértil para o desenvolvimento do turismo (SOUZA, 2007; SOUZA; VIEIRA, 2011). A população, que era de cerca de 1.500 habitantes em 1988, passou para aproximadamente 2.930 no ano de 2015, representando um aumento de quase 95% em apenas 27 anos (IBGE, 2010). Em 2007, já existiam quase 100 pousadas em funcionamento, 26 restaurantes, 23 bares e lanchonetes, 21 lojas de souvenir e 65 locadoras de veículos (SOUZA, 2007). Já em 2013, a ilha contava com 243 empresas atuantes (IBGE, 2015). Muito desse crescimento se deu por conta do investimento de empresários do continente. Em 2015, a ilha recebeu mais de 90.000 turistas (cerca de 25 turistas/habitante/ano) (MARINHO, 2016). A título de ilustração, a cidade mais visitada do mundo, Paris, recebe cerca de 32,3 milhões de visitantes por ano, o que implica uma relação turista/habitante/ano próxima a 15 (OMT, 2015).
A atividade turística provoca impactos no meio onde ocorre e, em Fernando de Noronha, isso não é diferente. A estrutura jurídica e organizacional, a partir da criação da APA e do Parnamar, assegurou controles ambientais rígidos para tentar minimizar os impactos da ação humana e turística. No entanto, os impactos de ordem sociocultural são mais sutis, por vezes invisíveis e intangíveis e, em muitos casos, impossíveis de ser revertidos (SWARBROOKE, 2000). Alguns estudos (FUNATURA/IBAMA, 1990; IBAMA, 2005; LIMA, 2000, 2002, 2008; SANTONIERI, 2002, 2006; SOUZA, 2007; SOUZA; VIEIRA, 2011) já apontam um desgaste na relação entre nativos e não nativos (sejam eles turistas ou residentes temporários). Esse desgaste pode ser ilustrado pela maneira como os ilhéus tratam os não nativos, denominando-os Haole[2]. Inicialmente utilizada para denominar os surfistas estrangeiros nas competições de surf, ela ganha caráter pejorativo por parte dos nativos para se referir aos novos migrantes que fixaram residência em Fernando de Noronha (LIMA, 2000; SANTONIERE, 2006).
Ao longo dos anos, após a “abertura” da ilha, o espaço urbano da APA tem sofrido mudanças radicais (aumento do custo de vida, escassez de moradias, aumento do fluxo migratório, entre outros). Uma dessas mudanças pode ser entendida como um processo de gentrificação. Portanto, o pressuposto do presente trabalho é de que existe um processo de gentrificação em curso na Ilha de Fernando de Noronha.
A gentrificação, em sua definição clássica, que remete ao contexto estadunidense e europeu do século passado, se caracteriza pelo processo de re-habitação de bairros residenciais de classe baixa pela classe média, por parte de moradores regulares ou investidores (SMITH, 1982). Além disso, há mudanças na função e de usos das edificações (GLASS, 1964). Em outras palavras, a gentrificação emergiu para a academia com os programas de reconstrução, nas décadas de 1950 e 1960, ocorridos nas nações desenvolvidas que foram abaladas pela Segunda Guerra Mundial (SCHAFFER; SMITH, 1986). Embora se acreditasse que o processo fosse exclusivo de grandes cidades de países desenvolvidos, estudos recentes (ATKINSON; BRIDGE, 2005; BIDOU-ZACHARIASEN, 2006; CLARK, 2005; LEES; SHIN; LÓPEZ-MORALES, 2015; SMITH, 2002) apontam para um fenômeno de escala global.
Contrariando as primeiras formulações da ocorrência em bairros centrais e frentes marítimas de grandes cidades, a gentrificação assume diferentes formas de acordo com sua localização, não se limitando apenas a áreas residenciais e nem mesmo a uma classe social e econômica específica (CLARK, 2005). Novas formas de gentrificação ilustram essa pluralidade do fenômeno, tais como a supergentrificação (LEES, 2003), a gentrificação insular (CLARK et al., 2007), a gentrificação rural (PHILLIPS, 2002), a gentrificação comercial (BRIDGE; DOWLING, 2001), a gentrificação ecológica (DOOLING, 2009) e a gentrificação turística (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007; GOTHAM, 2005).
Diante de potenciais e efetivos conflitos entre os novos moradores e os nativos, tendo por base o conceito de gentrificação e a nova estrutura econômica, social e política da Ilha de Fernando de Noronha, o trabalho se propõe a responder como se caracteriza esse processo de gentrificação na ilha, sendo este, portanto, o seu objetivo.
A Vila da Italcable é trazida para o trabalho por representar o contexto de Fernando de Noronha, como se fosse uma amostra do que acontece na ilha como um todo. Ela foi erguida no começo do século XX por uma empresa de cabos e comunicação italiana. Por muito tempo serviu de moradia para nativos e aos poucos vem sofrendo mudanças estruturais quanto à finalidade das edificações.
O termo “Gentry”, em inglês, significa pessoas de uma alta classe social, pequena nobreza e, no Reino Unido, denota à classe logo abaixo da nobreza pelo nascimento ou posição social (CAMBRIDGE, 2015). A partir desse substantivo, derivou-se a palavra inglesa “gentrification”, que significa a transformação de áreas desocupadas ou de baixa renda de uma cidade em áreas residenciais e/ou comerciais voltadas para classes econômicas mais elevadas (LESS; SLATER; WYLY, 2007, p. 15). Por meio de um empréstimo linguístico, o termo e o significado foram trazidos ao português como gentrificação.
A primeira pessoa a empregar o termo “gentrification” foi Ruth Glass, ao observar o fenômeno no centro de Londres, identificando-o como um problema.
Um após o outro, numerosos bairros operários londrinos foram invadidos pelas classes médias […]. Locais com casinhas modestas, com dois aposentos no térreo e dois em cima, foram retomados quando os contratos de aluguel expiraram e se tornaram elegantes residências de alto preço. Residências vitorianas maiores que tinham mudado de função – ou seja, haviam passado a ser utilizadas como pensões familiares ou sublocadas – recuperaram um bom nível de status. Hoje em dia, muitas dessas casas estão sendo subdivididas em apartamentos ou houselets (nos termos do jargão esnobe do mercado imobiliário). O atual estado social e o valor dessas habitações são inversamente proporcionais aos seus tamanhos, e enormemente inflacionados se comparados aos antigos valores do bairro onde estão localizados. Esse processo de gentrificação, uma vez começado em um bairro, se estendeu rapidamente até que quase todas as camadas populares que aí moravam originalmente tivessem deixado o lugar e que todas as características sociais tivessem mudado (GLASS, 1964, p. 7, tradução nossa).
Embora o trabalho de Glass tenha sido transcrito de uma forma “quase poética” ao tratar dessa re-habitação (SMITH, 2006, p. 60), ela criou o termo de forma debochada e irônica levando em consideração os elementos da sociedade rural e tradicional inglesa. Dessa forma, gentrificação significa, literalmente, a substituição de uma população existente por um “aristocrata”. Naquele tempo, a gentrificação dizia respeito a um processo urbano complexo que aumentava o preço das propriedades, transformava prédios antigos e se caracterizava pela expulsão de residentes da classe trabalhadora e a chegada da classe média (HAMNETT, 2003, p. 2401).
O termo que, normalmente, era usado para descrever aspectos residenciais de processos de substituição de população evoluiu. A partir de então, passa a ser utilizado para descrever como o reinvestimento do capital no centro urbano é desenhado para produzir espaço para classes mais ricas do que as que ocupavam esse espaço (SMITH, 1986, p. 3; SMITH, 2000, p. 294).
Diante da transformação do termo, pode-se denominar como gentrificação clássica aquela observada até os meados da década de 1970. Nesse processo tido como “clássico”, bairros urbanos com pouco investimento são melhorados por agentes gentrificadores fazendo com que os antigos residentes sejam deslocados e as casas da classe trabalhadora se tornem casas de classe média (LESS; SLATER; WYLY, 2007, p. 10).
Williams (1986, p. 65) aponta que muitos especialistas estadunidenses se mostraram contrários ao termo gentrificação, preferindo usar termos como revitalização do bairro, renovação, etc. Um número significativo de outros termos foi usado para se referir ao processo de gentrificação. Cada um carregava consigo a perspectiva que o utilizador tinha do processo (SMITH, 1982, p. 139). Mas a ideia progressista da “revitalização” ou “renascimento” tende a desprezar a árdua realidade da pobreza, as desapropriações e o crônico problema de escassez de casas a preços acessíveis (LESS; SLATER; WYLY, 2007, p. 44).
Naturalmente, o processo de gentrificação não é algo que se dê de forma instantânea. Clay (1979, p. 57-59) estabeleceu quatro etapas de como a gentrificação começa e se desenvolve.
Primeira: um pequeno grupo de pessoas se muda para um determinado bairro e renova propriedades para seu uso próprio. Esse grupo assume o risco da mudança. O capital que financia tais mudanças e renovações, na sua maioria, é dos novos moradores. Poucas desapropriações ocorrem devido ao fato de os pioneiros comprarem propriedades abandonadas ou propriedades que representam a oferta de imóveis normal no mercado da região; oferta essa que muitas vezes é alta devido à fragilidade do mercado. As primeiras intervenções se concentram em uma área pequena, normalmente duas ou três quadras. Embora nessa primeira etapa não exista nenhum reconhecimento público, tanto por parte da comunidade como do governo, já se observa a notícia de uma melhora do bairro se espalhando.
Segunda: mais pessoas se mudam e renovam outras propriedades para seu próprio uso. Essas pessoas procuram por imóveis relativamente fáceis de ser adquiridos, abandonados ou não. Sutilmente, inicia-se normalmente por corretores de imóveis, atividades para promover a área e pequenos especuladores que podem renovar poucos imóveis em localizações privilegiadas para revenda ou aluguel. Nessa etapa, já ocorrem algumas desapropriações devido à escassez de casas abandonadas. Se a área tiver que mudar de nome, quase sempre ocorre nesse período de tempo, quando novas fronteiras são identificadas e a mídia começa a dar atenção.
Terceira: os novos moradores da segunda e primeira etapa continuam desempenhando um papel relevante no desdobramento do processo de gentrificação, todavia já não são os mais importantes. Aumenta a quantidade de especuladores imobiliários, mas investidores individuais que restauram e renovam moradias para seu próprio uso continuam se estabelecendo na área. Devido ao grande número de restaurações, já se torna visível a mudança arquitetônica do bairro. Desapropriação[3] é a principal forma de aquisição de novas propriedades. A maioria das pessoas que chega à terceira etapa vê suas casas também como investimento. Esses novos moradores começam a formar seus grupos de interesses ou modificar os interesses dos pioneiros. Essa organização provoca uma promoção da área e força uma demanda por serviços públicos de melhor qualidade. Isso geralmente desperta a atenção da grande mídia e do governo local, provocando investimentos de revitalização, combate ao crime, entre outros. Algo que, por sua vez, combinado com o aumento da demanda, provoca um aumento significativo e rápido dos preços das propriedades. Essa massa de novos moradores provoca uma influência no estilo de vida do bairro, momento no qual maiores tensões entre os antigos e os novos moradores podem começar a existir. Se os novos moradores, principalmente os mais recentes, são menos tolerantes em relação ao comportamento das classes mais baixas, essas tensões podem se agravar.
Quarta: um grande número de propriedades estão gentrificadas e o fluxo de novos moradores continua intenso. As propriedades de especuladores estão disponíveis no mercado nessa etapa. O comércio e serviços voltados para classes mais abastadas na região aparecem e se desenvolvem. Os preços das propriedades e aluguéis crescem de forma rápida. São realizados esforços para alcançar maior autonomia política ou um controle público mais rigoroso com o objetivo de priorizar os investimentos privados na região. As desapropriações atingem agora tanto os inquilinos como os donos de propriedades e as tensões relativas às desapropriações e à convivência aumentam.
As etapas propostas por Clay (1979) são baseadas em observações de bairros de grandes cidades estadunidenses do final dos anos 1970. As etapas possuem limitações quando generalizadas. No entanto, quando utilizadas para a apreciação de outras localidades, no panorama atual, elas ainda possuem elementos relevantes.
“A gentrificação de hoje é ligeiramente diferente da gentrificação do começo dos anos 1970, final dos 1980 e até mesmo do começo dos 1990” (LEES, 2000, p. 397). Durante a primeira onda (1970 – 1980), por exemplo, o processo era esporádico, espalhado e, na maioria das vezes, financiado pelo poder público que procurava neutralizar a falta de investimento nos centros urbanos e, principalmente, porque, para o setor privado, ainda era muito arriscado esse investimento. A recessão na economia mundial a partir de 1973 afetou o mercado de habitação e criou uma condição favorável para que o capital privado começasse a ganhar força como desencadeador de processos de gentrificação. Com a recuperação da economia e a maior inserção do capital privado, a segunda onda de gentrificação tomou força em meados dos anos 1980 (HACKWORTH; SMITH, 2001). Esse período foi marcado pelo começo das lutas contra o processo que já evidenciava cenas de despejos, população em situação de rua e o aumento da vulnerabilidade da população pobre (SMITH, 1996).
A crise no mercado de capitais de outubro de 1987 provocou uma reação tardia no mercado de imóveis nos Estados Unidos, que só sentiu os efeitos da recessão a partir de 1989. Tais efeitos foram tão fortes que alguns estudos (BAGLI, 1991; BOURNE, 1993a; 1993b) sugeriram o falecimento da gentrificação e cunharam alguns termos como desgentrificação. Porém, em 1993, os reinvestimentos em bairros pobres ganharam força e surgiu a terceira onda de gentrificação. Essa se distingue das fases pretéritas por quatro razões específicas: 1) já não é um processo exclusivo dos bairros centrais e começa a ocorrer em bairros próximos ao centro; 2) construtoras estão envolvidas em iniciar o processo de gentrificação nos bairros. Nas ondas anteriores, empreiteiras só investiam em um determinado bairro se ele desse sinal de gentrificação – a partir desse momento, elas já se lançam em um investimento pioneiro; 3) os movimentos de resistência à gentrificação perdem força já que a população pobre continuamente é deslocada das áreas centrais, e; 4) o Estado está mais envolvido no processo em comparação com a segunda onda (HACKWORTH; SMITH, 2001).
Embora as consequências negativas da gentrificação estejam mais em evidência, alguns estudos (BYRNE, 2003; CAMERON, 2003; FREEMAN; BRACONI, 2004) destacam pontos positivos do processo. Um aspecto favorável é a melhora visual, de segurança e de prestação de serviços públicos (como limpeza urbana, saneamento e coleta de lixo) em uma determinada área antes tida como “degradada”. Algo que a gentrificação pode proporcionar é uma ascensão financeira de antigos moradores que são capazes de se manter na região pelo maior período de tempo possível e lucrar com o aumento do valor de sua propriedade. Tal aumento no valor das propriedades gera um aumento direto de arrecadação fiscal por meio de impostos e provoca um aumento indireto devido ao aumento do consumo de bens e serviços por parte dessa nova população mais rica. Em bairros muito degradados, observa-se de maneira clara a diminuição do índice de propriedades abandonadas. Essa nova ocupação de prédios antigos e abandonados provoca um freio no processo de expansão de novas fronteiras urbanas, concentrando mais a população no centro e reduzindo o processo de espraiamento urbano. Essa redução de propriedades abandonadas gera um incentivo maior para revitalização de outros prédios e provoca um desenvolvimento da região (ATKINSON; BRIDGE, 2005).
Sendo positiva ou negativa, a gentrificação só ocorre caso exista o que foi chamado de “rent-gap”. O “rent-gap” é a diferença entre o potencial valor de renda da terra e o atual valor capitalizado de renda da terra. Dependendo da amplitude dessa diferença, os proprietários, investidores e construtoras começam o processo de gentrificação e quanto maior a amplitude, mais agressivas são as políticas de desapropriações (SMITH, 1979).
A desvalorização de uma propriedade é explicada (SMITH, 1979, p. 90-92) a partir de cinco etapas:
Na primeira (novas construções e o primeiro ciclo de uso), uma nova construção reflete o valor tanto da terra quanto do edifício. Com as construções ao redor e o desenvolvimento da área, o valor da propriedade aumenta em um primeiro momento, embora o preço da edificação comece a cair. Os preços das edificações caem por três motivos: aumento na produtividade, obsolescência arquitetônica e depreciação da estrutura física. O aumento da produtividade provoca uma melhor utilização dos recursos, permitindo aos construtores edificar uma mesma estrutura gastando menos. A obsolescência arquitetônica é um estímulo pouco importante para refletir na queda do valor de propriedades, mas possui uma parcela de influência. Já a depreciação da estrutura física é um fator importante na queda dos preços da edificação, dependendo da manutenção dada ao longo do seu uso.
Na segunda (“landlordism” e “homeownership”), reparos e manutenção simples são realizados nas casas a fim de manter o preço a um nível aceitável, porém, a queda nos preços é inevitável. A elite normalmente relaciona sua casa como um investimento e não simplesmente um lar. Diante dessa queda de preços, a não ser que reparos sejam realizados, os donos tendem a procurar novas casas para seu investimento, vendendo ou alugando as antigas, fazendo com que a região tenha uma tendência à predominância de aluguéis, provocando uma menor taxa de manutenção.
Na terceira (“blockbusting”[4] e ruptura), com o amadurecimento da desvalorização, a região começa a receber uma população mais pobre. Corretores alimentam o preconceito social e racial para comprar casas baratas de antigos donos e vendê-las a preços mais altos para pessoas esperançosas por sua primeira casa. Os que não se deixam dominar pelo preconceito e não vendem suas casas acabam por ter que baixar os preços dos aluguéis, provocando uma menor taxa de manutenção.
Na quarta (“redlining”[5]), a falta de manutenção provoca uma queda maior nos valores das edificações. Essa desvalorização reflete nas instituições financeiras que não aceitam as propriedades como garantias. O vandalismo aumenta, principalmente nas propriedades vazias. Os donos começam a não ter incentivo de gastos com manutenção até zerar os investimentos.
Na quinta (abandono), quando os proprietários não alcançam nenhum ganho, a propriedade é abandonada. Isso é um fenômeno geral da região, não de uma única propriedade. Os prédios não são abandonados porque não possuem mais utilidade, mas sim porque não são mais lucrativos.
Logicamente, o esquema acima mencionado não necessita ser completo para que a gentrificação ocorra. O primeiro estágio é de investimento e construção de novas edificações para então passar para estágios de diminuição de investimento. O retorno do investimento, ou seja, do capital, se dá pela tendência cíclica no desenvolvimento urbano (BOURASSA, 1990).
Ao se comercializar uma propriedade, seja venda ou aluguel, o cliente paga pela edificação e a terra. Embora os comportamentos dos preços desses dois fatores sejam independentes, a edificação possui uma maior influência na negociação, depreciando, em alguns casos, o valor da terra sem que ela efetivamente tenha se desvalorizado. Essa efetiva distorção de preços, potencial e capitalizado, é o que é chamado de “rent-gap”. A gentrificação ocorre quando a diferença é grande o suficiente para a construtora comprar a propriedade barata, pagar os custos de construção/reforma, bem como possíveis juros de empréstimos e vender por um preço com um retorno satisfatório para o investidor. Na verdade, a gentrificação emerge pela ação de diferentes agentes do mercado imobiliário, voltando-se para a relação de produção e consumo. A gentrificação tem relação com a ação social coletiva na região. Essas ações partem, normalmente, de três tipos de agentes gentrificadores: 1) construtoras profissionais que compram propriedades, as restauram e vendem para lucrar; 2) pessoas que compram, restauram e ocupam a moradia e; 3) investidores que alugam as propriedades após a restauração (SMITH, 1979).
“Parte da beleza da ‘rent-gap theory’ é sua elegância, embora, infelizmente, isso seja alcançado à custa de um entendimento muito simplificado do processo de gentrificação” (HAMNETT, 1991, p. 179). A sua simplicidade se confronta com a complexidade da mensuração do potencial valor de aluguel. Por isso, os estudos empíricos (BADCOCK, 1990; BOURASSA, 1990; CLARK, 1987, 1988; LEY, 1986, 1987) não conseguiram validá-la estatisticamente, incluindo estudos de Smith (SCHAFFER; SMITH, 1986; SMITH, 1989, 1992; SMITH; SCHAFFER, 1987; SMITH; DUNCAN; REID, 1989), o seu criador.
Contudo, um fator importante da “rent-gap theory” é a diferença entre o valor atual da renda da edificação e o valor potencial sob a perspectiva de um valor de “uso superior e melhor” (SMITH, 1987). Essa proposição ajuda a explicar as mutações na teoria da gentrificação, gerando uma extrapolação para outros locais e realidades, tais como a insular e turística, uma vez que nem sempre os agentes gentrificadores estão enquadrados nos propostos por Smith (1979).
Embora grande parte dos estudos e casos de gentrificação se concentrem em bairros de grandes cidades, tal processo não é novo em comunidades insulares. Durante pesquisas realizadas com corretores imobiliários em Blekinge[6], foi perguntado como era o mercado imobiliário na ilha e a resposta mais comum era “histérico” (CLARK et al., 2007).
Os processos de gentrificação de comunidades costeiras e insulares são bastante comuns nos últimos séculos. O processo disfarça e complica vários conflitos sociais e de classes, normalmente embalados pela disputa entre os nativos, os “summer guests”[7], e os residentes permanentes (GUSTAVSSON, 1981 apud CLARK et al., 2007).
Slater (2004) apresenta duas perspectivas de gentrificação: a) revanchista, onde a classe média/classe branca dominadora exercita a revanche pelo que acreditam ser um “roubo da cidade” pela classe trabalhadora. O trabalho de Smith (1996, p. 211) via a gentrificação sob o discurso da cidade revanchista como uma manifestação espacial do “terror racial/social/de gênero sentido pela classe média e dominadora”; e b) emancipatória, onde a nova classe média desbrava corajosamente as fronteiras urbanas em busca de uma cidade melhor. Caulfield (1989) se mostrava mais otimista em relação à gentrificação e acreditava que o processo não era contra a classe trabalhadora, mas sim contra a instituição repressiva à boa vida no subúrbio, comum na América anglo-saxônica.
As duas perspectivas propostas por Slater (2004) são apoderadas para o contexto de pequenas comunidades insulares por Clark et al. (2007), interpretando o deslocamento de dinheiro e de uma população para uma determinada ilha como uma ameaça aos métodos de subsistência transmitidos pelas gerações, causando desapropriação (forçada ou não) e um falecimento da cultura local. Apresenta o processo também como algo benéfico para o desenvolvimento local, tratando o que vem do continente como bom e bem-vindo, mesmo que esse desenvolvimento represente um declínio da economia local e um despovoamento de habitantes locais, ou seja, uma redução da população nativa.
Dentro de um grande centro urbano, frequentemente se observa uma verdadeira guerra por espaços e, para Hansen (2003), a gentrificação é um dos resultados dessas guerras. Dentro de comunidades insulares, onde o espaço muitas vezes pode ser uma forte restrição, tais guerras podem ser mais “duras”, fazendo com que a mercantilização do espaço se torne mais evidente e desenvolva uma polarização socioeconômica. Como consequência, os nativos que trabalham em serviços de baixa renda acabam forçados a se mudar para encontrar uma moradia que melhor se encaixe nos seus padrões de vida, porque as pessoas que procuram moradia não são capazes de acompanhar o poder de compra de pessoas interessadas em casas de veraneio (CLARK et al., 2007), muito menos comparados a investidores do ramo de hotelaria e hospedagem.
Dentro da própria ilha, pode-se encontrar nativos com diferentes perspectivas das propostas por Slater (2004), principalmente quando se observa a diferença socioeconômica. Nativos que conseguiram se manter na ilha e desenvolveram novas formas de sobreviver enxergam a gentrificação do ponto de vista emancipatório. Já os nativos que resistem à transição e à invasão dos “summer guests” e lutam pelo desenvolvimento de políticas que reconheçam o direito de moradias adequadas e a um preço justo enxergam a gentrificação do ponto de vista revanchista.
Para Clark et al. (2007, p. 504), “não há nada de extraordinário na gentrificação das ilhas suecas”. O processo ocorrido no país nórdico é similar aos processos que estão ocorrendo em várias ilhas ao redor do mundo (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007). Alguns de forma bastante sutil e outros cruéis e predatórios para as comunidades insulares: “paraísos descobertos, El Dourados ocupados, percepção de desenvolvimento, potenciais concretizados” (CLARK et al., 2007, p. 504).
“As ondas mais recentes de gentrificação estão intrinsecamente entrelaçadas com os circuitos do capital global e da cultura” (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007, p. 278). Quando se trata do processo de planejamento urbano, as cidades, os bairros e as regiões têm se preocupado cada vez mais com a atração de investimentos e geração de riquezas, tornando a gentrificação um elemento crucial nesse processo.
A transformação das perspectivas das cidades de modelos Keynesianos para Neoliberais possui uma conexão com a evolução da gentrificação (LESS; SLATER; WYLY, 2007), gerando um “novo urbanismo que reconstrói a cidade como uma arena para o consumo” (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007, p. 279). Nessa perspectiva, o turismo é um poderoso setor da economia que gera (mais) consumo. A gentrificação turística fundamenta-se “pelas peculiaridades dos exemplos marcados pelo processo em si e não pela sua intensidade ou magnitude” (WYLY; HAMMEL, 1998, p. 302).
A razão para a ocorrência da gentrificação turística se deve ao fato de o “turismo ser um processo globalizado que conecta as forças exógenas das corporações multinacionais e os fluxos de capital, com poderes locais de moradores, elites e consumidores” (GOTHAM, 2005, p. 1101). A indústria do turismo é “global” e dominada por grandes corporações internacionais, como, por exemplo, as cadeias de hotéis, operadoras de cartão de crédito, agências de aluguel de carros, e agências e operadores de turismo (GOTHAM, 2005). Consequentemente, o “turismo se torna uma poderosa força de homogeneização e padronização” (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007, p. 279).
Contraditoriamente, a indústria do turismo é “local” uma vez que o consumo turístico é inerente ao espaço onde ele ocorre. Dessa forma, o turismo “envolve a produção de peculiaridades, culturas e diferentes histórias locais que encantam os visitantes por serem exóticas e únicas” (GOTHAM, 2005, p. 1102), isto é, da mesma forma pela qual se busca viver experiências únicas, que só podem ser alcançadas no próprio local, os pacotes turísticos são extremamente homogeneizados. Os hotéis possuem estruturas semelhantes (os das grandes redes, principalmente), os meios de transportes são quase todos os mesmos, os restaurantes com culinária internacional e até os locais de tirar as fotografias são iguais para a maioria das pessoas.
A indústria do turismo tem o poder de conectar processos globais e locais (TEO; LI, 2003). Diante desses opostos, as paisagens turísticas se tornam produtos dessa disputa entre as forças globais e locais e, em alguns casos, intensificam as lutas locais pela representatividade da cidade como, por exemplo, que tipo de futuro se almeja construir? E... Para quem? Frequentemente, as elites locais encorajam explicitamente o turismo como fonte de empregos, arrecadação de impostos e injeção de dinheiro estrangeiro na economia local, além de importante fonte de aumento de renda para negócios locais e alavanca para investimentos econômicos em infraestrutura, entre outros. As lógicas da economia neoliberal de segmentação de mercado, diferenciação e consumo globalizado são aplicadas às paisagens turísticas. Essas práticas acabam por descaracterizar as paisagens. A gentrificação de potenciais destinos turísticos une práticas de produção e consumo em uma nova paisagem urbana (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007).
Esse elo entre globalização e regionalização ocorre quando companhias de entretenimento e as redes de varejo estão conectadas com o fluxo financeiro global, influenciando o capital para redesenvolver espaços residenciais e comerciais. Nesse processo, companhias de entretenimento exaltam as paisagens em seus produtos e atividades, valorizando o meio social onde estão inseridas por meio de fotografias e símbolos que relacionam o local com experiências prazerosas. Ao mesmo tempo, o crescimento do turismo gera o que foi chamado de afinidade eletiva, com mudanças culturais e estéticas generalizadas, a proliferação da publicidade e o desenvolvimento de sofisticadas campanhas publicitárias para criar demanda para propriedades gentrificadas (GOTHAM, 2005).
Por se tratar de uma Unidade de Conservação da União, as pesquisas desenvolvidas no Arquipélago devem ser submetidas a uma análise prévia com o intuito de preservar a fauna e flora local. A primeira submissão relativa ao projeto de pesquisa que originou o presente estudo ocorreu de forma eletrônica por meio do Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (Sisbio), diretamente no sítio eletrônico do Ibama, no dia 28 de setembro de 2015.
Após algumas dificuldades e desencontros, foi conseguida, em 26 de outubro de 2015, a autorização para a realização da pesquisa. Depois, foi solicitada à Administração da Ilha de Fernando de Noronha, por meio do envio por correios de documentação, a isenção da Taxa de Preservação Ambiental (TPA).
Vale destacar que a Ilha de Fernando de Noronha já foi visitada por nós dois, isto é, a despeito da realização da pesquisa, os dois autores deste trabalho já tinham tido contato prévio com a ilha e seus moradores, estrutura de acolhimento a turistas, etc. No entanto, um de nós frequenta a ilha com muito mais assiduidade, tendo começado a se apropriar da realidade local em meados da década de 2000. Durante aproximadamente 10 anos de visitas frequentes, um de nós começou a perceber a diminuição dos rostos conhecidos. A diminuição era justificada pela ida em definitivo de ilhéus para o continente. Essa migração foi vista com olhares leigos durante muito tempo, até que as lentes teóricas iluminaram a percepção a respeito do que vem acontecendo na ilha.
A primeira visita de campo, propriamente dita, com a finalidade de realização de uma pesquisa científica, se desenvolveu na semana do dia 1º ao dia 8 de novembro de 2015. Na ocasião, um de nós ficou hospedado em uma casa na Vila Italcable. Durante essa semana, foi estabelecida uma conversa com a proprietária[8] do local, tentando estabelecer diálogos simétricos, onde ela tinha total liberdade de tema e tempo, de forma direta e natural, como proposto por Mattos (2005). As conversas muitas vezes se mostraram livres, mas se tentava trazer à tona os temas sobre a dificuldade de se viver atualmente na ilha; como é atualmente a vida no local; como era a vida na ilha antes da escalada do turismo; o custo monetário, social e moral de se viver na ilha; a assimetria de tratamento por parte da administração para com os nativos versus os empresários; os conflitos com empresários e turistas; o movimento de êxodo dos nativos, etc.
Já de volta a Fortaleza, começamos a analisar os dados e foi verificada a necessidade de voltar ao campo empírico. A volta ocorreu na semana do dia 28 de fevereiro ao dia 6 de março de 2016. Dois dias antes de um de nós chegar ao campo empírico, a pessoa que deu hospedaria recebeu um Auto de Infração de n.º 036018 do ICMBio referente a uma ampliação irregular do prédio histórico onde reside[9]. Essa autuação mudou a dinâmica de como as conversas com ela ocorreram. As conversas deixaram de ser apenas na varanda, sentados à mesa, e passaram a ser em qualquer lugar da ilha. Embora tenhamos tido dificuldade na gravação das conversas e, consequentemente, na transcrição, essas conversas caminhando, no ônibus ou sentados à espera de ser recebido por algum funcionário do ICMBio ou da administração possibilitaram uma fluidez mais natural das narrativas. Esse incidente também possibilitou encontros com pessoas-chave da gestão da ilha, como a chefe da área de proteção ambiental de Fernando de Noronha e com funcionários da administração. Encontros que se transformaram em conversas de fundamental importância para a construção do trabalho.
Nessa segunda visita de campo, o autor responsável pela ida à ilha teve a sensação de ter sido aceito pelo campo como pesquisador – as pessoas com quem encontrava e conversava se mostravam mais confortáveis para dividir suas experiências. Além disso, forneceram documentos, como o tombo da edificação onde a informante reside e também fotografias antigas. A despeito desses dados, documentos, como leis, dados históricos da ilha e fotografias gerais, vieram de fontes secundárias, como a internet e outros trabalhos acadêmicos realizados previamente sobre a ilha.
Para a análise de dados gerados nas conversações desencadeadas pela pesquisa de campo, foi utilizada a técnica de análise de conversação sob uma ótica da etnometodologia. Nessa análise são enfatizados os significados, principalmente, e a linguagem. Nesse sentido, ao se anunciarem uns aos outros, os autores da conversação não estão transmitindo a situação pura, mas, sim, o significado dado por eles à situação relatada. O parâmetro utilizado é o interpretativo e não o normativo, por meio de uma investigação racional que faz parte da comunidade estudada. Dessa maneira, para a presente análise, os indivíduos agem e refletem conforme suas interações individuais (MACCALI; MAGALHÃES; TAKAHASHI, 2013). As análises foram realizadas concomitantemente à coleta dos dados, o que influenciou a escolha da técnica, pois os conflitos expostos pelos sujeitos de pesquisa não eram de conhecimento prévio e permitiram uma maior flexibilidade para a condução da investigação, até para permitir aos pesquisadores aprofundar temas que julgassem necessários (MATTOS, 2005).
A análise dos dados obtidos no campo empírico forneceu subsídios para confirmação do pressuposto da pesquisa, isto é, de que existe um processo de gentrificação em curso na Ilha de Fernando de Noronha. Porém, o processo não ocorre de forma exclusiva e integral no território noronhense.
O crescimento econômico da ilha por intermédio do turismo ainda gera diversos conflitos territoriais. A gentrificação foi observada principalmente em relação aos prédios históricos. Resgatando a distinção teórica feita por Smith (1982), a qual diferencia gentrificação de desenvolvimento, sendo este o desbravamento de novas fronteiras urbanas com novas edificações, podemos afirmar que esse fenômeno também assola a ilha. Tal fenômeno ocorre também pelo motivo da ilha ainda possuir espaços desocupados e novas edificações sendo erguidas, mas nas áreas de zonas histórico-culturais tombadas pelo Iphan, que determina preservação da edificação já construída, a gentrificação de fato ocorre.
As características da gentrificação em Fernando de Noronha são peculiares, caracterizando-se como sendo um híbrido entre a gentrificação clássica e suas mutações: gentrificação turística e insular.
As principais características da gentrificação clássica foram a transformação de uma região de baixa renda em área residencial e comercial para classe econômica mais alta (LESS; SLATER; WYLY, 2007), o êxodo das camadas populares e a mudança na dinâmica social (GLASS, 1964), além do aumento do preço das propriedades (HAMNETT, 2003) e investimento do capital em uma determinada área para desenhar um espaço voltado para classes mais abastadas (SMITH, 1986, 2000). Devido à antiguidade de algumas edificações na ilha, pode ser observada uma forte proximidade com a chamada “rent-gap theory” (SMITH, 1979), com essas edificações depreciando-se ao longo do tempo e tornando-se atrativas aos agentes gentrificadores.
Alguns pontos da gentrificação clássica não foram observados na ilha, como propriedades abandonadas no começo do processo (SMITH, 1979); isso se dá pela alta demanda por moradia no local, o que não permite que nenhuma casa fique sem ocupação. Também foi constatado que os pioneiros da gentrificação não foram pessoas com a intenção de fazer residência na ilha, e não foi observada nenhuma evidência de especulação imobiliária, nem de renovações de imóveis para revenda como foi proposto por Clay (1979).
As características da gentrificação insular observadas na ilha foram o conflito social entre nativos, turistas e novos residentes permanentes (GUSTAVSSON, 1981 apud CLARK et al., 2007), bem como um declínio da população nativa e o sentimento de ameaça do investimento de fora da ilha (CLARK et al., 2007). Não foi possível observar a distinção de visões por parte dos nativos quanto ao processo de gentrificação enunciado por Slater (2004) como sendo revanchista (para aqueles que são contra essa invasão de pessoas de fora da ilha) ou emancipatória (para aqueles que enxergam o processo como sendo algo bom). Neste trabalho, só foi possível ouvir o lado de quem enxerga o processo sob a ótica revanchista.
As características da gentrificação turística observadas na ilha foram a produção do espaço da cidade para o consumo (GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007), quando a ilha começou a ser invadida por hotéis, pousadas, restaurantes, empresas de receptivo e ainda nos espaços que outrora eram de preservação ambiental, como visto nos postos de observação e informação da Baía do Sancho e do Sueste. Outro fator observado é a homogeneização e a padronização do espaço urbano (GOTHAM, 2005; GARCÍA HERRERA; SMITH; VERA, 2007), que mudou tanto os espaços urbanos como as edificações, vide a reforma na casa de uma das informantes da pesquisa.
Apesar dos achados, identificamos que o presente estudo apresenta três limitações. A primeira foi a dificuldade de localização (e a consequente ausência de entrevistas com) (d)os sujeitos que já não moram mais na ilha como consequência do processo de gentrificação. A maioria desses sujeitos mora em Pernambuco e no Rio Grande do Norte e não demonstraram abertura para tratar do assunto, ainda que procurados.
A segunda foi o fato de o comércio de habitação por parte de particulares em Fernando de Noronha ser muito velado. Existem limitações legais para a comercialização de imóveis na ilha, o que não impede que aconteça na prática. Isso faz com que as pessoas não se sintam confortáveis para explicitar detalhes dos aluguéis, associações e vendas das propriedades, limitando, assim, a coleta de dados.
A terceira foi a escassez de formulações teóricas mais sofisticadas que ajudassem a compreender melhor as mutações da gentrificação turística e insular. A gentrificação turística conta com um pouco mais de artigos publicados do que a gentrificação insular, mas ainda assim há poucos trabalhos. Já a gentrificação insular apresenta a barreira da língua, pois suas principais publicações estão em sueco.
Para pesquisas futuras, recomendamos a tentativa de romper as barreiras das limitações enfrentadas por nós. Recomendamos, também, a formulação de teorizações a respeito de como a gentrificação ocorre no Brasil, uma vez que não tivemos o movimento nos anos 1980 e 1990 das elites se deslocando para os subúrbios (tendo como referência o caso estadunidense, em que subúrbios são áreas valorizadas – nem sempre verificado no Brasil).
Recomendamos, ainda, a tratativa da gentrificação insular em algumas cidades continentais, interpretando-as como ilhas devido ao seu difícil acesso, como, por exemplo a cidade de Jericoacoara, tornando a pesquisa menos custosa mas sem perder validade teórica. Dentro da recomendação, chamamos atenção para o percalço que a pesquisa em gentrificação apresenta: a confusão entre os termos gentrificação e desenvolvimento. Os principais teóricos deixam claro que gentrificação exige o retorno das pessoas a locais tidos como degradados e, consequentemente, do capital às edificações onde já estivera antes. Alguns estudos, principalmente nacionais, utilizam de forma errônea o termo gentrificação, quando na verdade estão tratando de desenvolvimento – algo a ser retomado em estudos futuros.