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Trabalho e lazer de músicos de rua em cidades turísticas: migrantes que vivem dessa arte em Barcelona e no Rio de Janeiro
Denise Falcão; Christianne Luce Gomes
Denise Falcão; Christianne Luce Gomes
Trabalho e lazer de músicos de rua em cidades turísticas: migrantes que vivem dessa arte em Barcelona e no Rio de Janeiro
Work and leisure of street musicians in tourist cities: migrants who live from this art in Barcelona and Rio de Janeiro
Trabajo y ocio de músicos callejeros en ciudades turísticas: migrantes que viven de este arte en Barcelona y Rio de Janeiro
Caderno Virtual de Turismo, vol. 19, núm. 2, pp. 84-98, 2019
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Resumo: Rio de Janeiro e Barcelona apresentam a arte nas ruas como traços marcantes de sua cultura. Considerando a importância dessa temática para o turismo cultural, o objetivo geral deste artigo é compreender a prática social de músicos que tocam nas ruas dessas duas cidades turísticas verificando de que maneira as relações lazer e trabalho são constituídas tendo em vista que a maioria dos sujeitos são migrantes. Além da pesquisa bibliográfica, foi realizada uma investigação etnográfica que envolveu observação e 23 entrevistas. A análise das informações coletadas seguiu os pressupostos etnográficos, buscando reconhecer os significados culturais e pessoais dessa prática para os próprios sujeitos pesquisados. Os resultados evidenciaram que a música de rua é considerada por seus praticantes majoritariamente como trabalho, especialmente em Barcelona. Foram identificadas tensões na ocupação do espaço público, havendo também transgressões que passam despercebidas ao público. Como expressão dos sujeitos e da sociedade, as artes suscitam toda sorte de utopias e instigam novas leituras do contexto urbano contemporâneo.

Palavras-chave:Músicos de ruaMúsicos de rua, Lazer Lazer, Turismo Turismo, Turismo cultural Turismo cultural, Espaço público Espaço público.

Abstract: Rio de Janeiro and Barcelona present the art in the streets as a striking feature of their culture. Considering the importance of this theme for cultural tourism, the general purpose of this article is to understand the social practice of musicians playing on the streets of these tourist cities, verifying how leisure and work relations are constituted, considering that most subjects are migrants. In addition to the bibliographic research, an ethnographic investigation was carried out involving observation and 23 interviews. The analysis of the collected information followed the ethnographic assumptions, seeking to recognize the cultural and personal meanings of this practice for the subjects studied. The results evidenced that the street music is considered by its practitioners mainly as work, especially in Barcelona. Tensions have been identified in the occupation of the public space, and there are transgressions that go unnoticed to the public. As an expression of subjects and society, the arts raise all sorts of utopias and instigate new readings of the contemporary urban context.

Keywords: Street musicians, Leisure, Tourism, Cultural tourism, Public space.

Resumen: Rio de Janeiro y Barcelona presentan el arte en las calles como rasgos marcados de su cultura. Considerando la importancia de esta temática para el turismo cultural, el objetivo general de este artículo es comprender la práctica social de músicos que tocan en las calles de estas dos ciudades turísticas, verificando de qué manera las relaciones de ocio y trabajo se constituyen, teniendo en cuenta que la mayoría de los sujetos son migrantes. Además de una investigación bibliográfica, se realizó una investigación etnográfica que involucró observación y 23 entrevistas. El análisis de las informaciones recolectadas siguió los presupuestos etnográficos, buscando reconocer los significados culturales y personales de esa práctica para los propios sujetos investigados. Los resultados evidenciaron que la música callejera es considerada por sus practicantes mayoritariamente como trabajo, especialmente en Barcelona. Se identificaron tensiones en la ocupación del espacio público, habiendo también transgresiones que pasan desapercibidas al público. Como expresión de los sujetos y de la sociedad, las artes suscitan toda suerte de utopías e instigan nuevas lecturas del contexto urbano contemporáneo.

Palabras clave: Músicos callejeros, Ocio, Turismo, Turismo cultural, Espacio público.

Carátula del artículo

Trabalho e lazer de músicos de rua em cidades turísticas: migrantes que vivem dessa arte em Barcelona e no Rio de Janeiro

Work and leisure of street musicians in tourist cities: migrants who live from this art in Barcelona and Rio de Janeiro

Trabajo y ocio de músicos callejeros en ciudades turísticas: migrantes que viven de este arte en Barcelona y Rio de Janeiro

Denise Falcão
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Christianne Luce Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Caderno Virtual de Turismo, vol. 19, núm. 2, pp. 84-98, 2019
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Recepção: 08 Agosto 2017

Aprovação: 11 Março 2019

1 INTRODUÇÃO

O Rio de Janeiro é um ícone do Brasil mundo afora e o turismo representa uma considerável fatia da economia dessa cidade. Isso é impulsionado não somente pelas suas belezas naturais e culturais, mas também pela realização de eventos internacionais de grande porte. Alguns deles podem ser destacados, como a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Eco 92 –, os Jogos Pan-americanos de 2007, a Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de Futebol Fifa 2014 e, mais recentemente, os Jogos Olímpicos de 2016.

Diversas polêmicas giram em torno dos benefícios proporcionados para os residentes em relação a grandes eventos como esses. Afinal, boa parte dos investimentos nos megaeventos foi passível de corrupção, mal-uso do dinheiro público, especulação imobiliária, erosão social e concentração de melhorias em pontos estratégicos, que promovem a cidade principalmente para o turismo. Desse modo, a população é negligenciada e vivencia cotidianamente várias contradições que aprofundam as desigualdades sociais, pobrezas e violências. Contudo, mesmo com esses sérios problemas, o Rio de Janeiro segue mantendo o título e o glamour de cidade maravilhosa, destinada a atrair turistas estrangeiros e de vários estados do Brasil.

Barcelona, capital da Catalunha, na Espanha, também é marcada por substanciais investimentos decorrentes da realização de grandes eventos, em especial desde 1992, quando sediou os Jogos Olímpicos e alcançou uma imensa projeção internacional, intensificando o turismo na região. Diferentemente da boa recepção ocorrida nesse evento esportivo, nas últimas décadas essa estratégia não vem sendo bem recebida pela população local, que luta contra as perversas consequências do turismo massivo que tem comprometido, seriamente, o direito dos cidadãos à sua própria cidade.

Em 2004, quando Barcelona sediou o Fórum Universal de las Culturas, ocorreram importantes debates e embates sobre esse tipo de empreendimento. Embora apresentasse eixos temáticos de relevância, como o desenvolvimento sustentável, a diversidade cultural e as condições para a paz, esse Fórum não ganhou o apoio da população: ela já havia deixado claro que a cidade necessitava de investimentos que beneficiassem os residentes, em vez de constituir espetáculos promovidos para “os de fora”. Segundo Mauleón (2004), o desenvolvimento urbanístico do litoral norte de Barcelona, onde foi criado o “distrito 22@”, é uma evidência desse processo: deixou de ser residência dos vizinhos do bairro Poblenou para abrigar edifícios com escritórios e apartamentos de luxo, centros comerciais e grandes hotéis.

Os conflitos e as contradições verificadas tanto em Barcelona como no Rio de Janeiro, no entanto, não impedem que essas cidades continuem sendo destinos turísticos altamente procurados e valorizados. Segundo os dados divulgados pelo Ministério do Turismo, enquanto o Rio de Janeiro é a cidade com o maior fluxo de turismo no Brasil (MTUR, 2013), Barcelona é a mais visitada da Espanha, um país que ocupa as primeiras posições em termos de fluxo turístico na Europa e no mundo, conforme os dados estatísticos levantados pelo Ministério da Indústria, Energia e Turismo – Movimientos Turísticos en Frontera (FRONTUR, 2014).

A imagem de destinos turísticos como esses, mediante estratégias mercadológicas, afeta a percepção dos sujeitos e acaba influenciando a escolha por visitá-los. Afinal, imagens singulares são projetadas sobre o Rio de Janeiro e também sobre Barcelona: como sublinham Añaña, Anjos e Pereira (2016), isso decorre da promessa de viver experiências prazerosas, capazes de propiciar experiências únicas, em virtude do grau de diferenciação que veiculam. Nesse processo, o contato cultural entre turistas e residentes é fundamental para aumentar o nível de satisfação obtido em um destino turístico (CARDONA, 2014). Esse contato cultural é propiciado por várias vias, entre as quais pode ser destacada a prática social de músicos que tocam nas ruas do Rio de Janeiro e de Barcelona e potencializam o turismo cultural nesses contextos.

No caminho da estetização do mundo (LIPOVETSKY; SERROY, 2015) é possível observar, pela web, um aumento na circulação de imagens de músicos de ruas feitas por eles próprios, ou pelo público que aprecia essa arte sensível-poética. Esse público é constituído, principalmente, por turistas dispostos a compartilhar as experiências vividas em suas viagens. É corriqueiro encontrar, nas distintas redes sociais virtuais, postagens com filmagens, fotos e/ou comentários que destacam a atuação de músicos de ruas, o que acaba contribuindo para a promoção de destinos turísticos como Rio de Janeiro e Barcelona. O crescimento dessas circularidades tem impacto direto na imagem desses locais, como espaços vividos (LEFEBVRE, 2001). Esses elementos, entre outros, confluem para que o Rio e Barcelona atraiam um número significativo de artistas, dispostos a ocupar as ruas e os espaços públicos dessas cidades para “viver de sua arte”.

Assim, vários músicos migram de suas cidades e países de origem para expressar a cultura, a beleza, a sensibilidade e a arte em pontos estratégicos de cada cidade, tendo como intenção, entre outras questões, a melhoria da qualidade de vida. Com isso, contribuem para a divulgação, a manutenção e a recepção dessas metrópoles como polos turísticos, o que ressalta a importância de compreender a prática social de trabalho e de lazer dos músicos, que fazem sua arte nas ruas e espaços públicos do Rio de Janeiro e de Barcelona. Este foi o desafio que instigou a realização desta pesquisa doutoral.

Tendo em vista essa realidade, indaga-se: a prática social desses músicos pode ser considerada trabalho? Que relações ela estabelece com o lazer desses sujeitos? Como ela se constitui social e economicamente, e que tipo de condição requer para ser concretizada? Sendo as cidades turísticas parte de um processo de estetização urbana, de que maneira os músicos que tocam nas ruas do Rio de Janeiro e de Barcelona lidam com uma possível mercantilização de sua arte?

Segundo Pesavento (1992), é preciso olhar o espaço público como palco da vida, como uma vitrine viva, espetáculo, local de luta, subversão da ordem pública, lugar de desconfiança e território afetivo-existencial. Isso se torna relevante de ser pesquisado em qualquer contexto, em especial nas cidades turísticas de grande visibilidade e projeção internacional. Considerando esses desafios, o objetivo deste artigo é compreender a prática social de músicos que tocam nas ruas do Rio de Janeiro e de Barcelona, verificando de que maneira as relações lazer e trabalho são constituídas, quais condições interferem na sua concretização e como a possível mercantilização dessa arte é tratada pelos artistas nos destinos turísticos pesquisados.

Para alcançar esse objetivo, foi realizada uma pesquisa de abordagem qualitativa, conforme será detalhado no próximo tópico.

2 METODOLOGIA

Nesta pesquisa qualitativa foram empregadas múltiplas estratégias metodológicas. Para aprofundar a temática, foi realizada uma pesquisa bibliográfica em livros, periódicos especializados, artigos acadêmicos, dissertações e teses nas diversas áreas que se inter-relacionam e compõem o escopo teórico da investigação. Esse aprofundamento é primordial, pois potencializa o espectro da diversidade de olhares sobre o que está sendo estudado (GALVÃO, 2010).

Foi também realizada uma pesquisa de campo, guiada pela etnografia, nas duas cidades turísticas escolhidas como locus da investigação. A pesquisa de campo como um todo foi desenvolvida no período de dezembro de 2014 a dezembro de 2016, sendo 12 meses dedicados ao Rio de Janeiro e 12 meses a Barcelona.

No primeiro estágio da pesquisa de campo foi utilizado o método flâneur dans la metrópole, conforme Baudelaire (2001), que consiste em flanar pelas ruas de uma metrópole para perscrutar a pulsação da cidade. Como pontua Benjamin (1989, p. 38), “se o flâneur se torna sem querer detetive, socialmente a transformação lhe assenta muito bem, pois justifica a sua ociosidade”. Nesse sentido, foram percorridos vários espaços de circulação nas cidades escolhidas a fim de encontrar e mapear os sujeitos da pesquisa no exercício de sua arte. Foi observado se os músicos de rua tinham pontos fixos para tocar no Rio de Janeiro e em Barcelona, ou se se locomoviam em um certo nomadismo (regular ou imprevisível). Essa busca foi essencial para mapear possíveis circuitos nos quais eles atuam.

No segundo estágio foram selecionados os campos nos quais a observação da pesquisa aconteceria. A escolha desses pontos foi respaldada pela constância de músicos tocando nas localidades e na grande circulação de pessoas nesses locais. No Rio de Janeiro esses pontos foram a orla do Arpoador, o centro antigo do Rio (Rua São José e Rua Lavradio), e três praças com estações de metrô: Largo da Carioca, Largo do Machado e Praça Saens Peña. Já em Barcelona, os locais de observação foram a região do entorno da catedral, no centro histórico de Barcelona, o Parc Güell e as praças do bairro Gracia (Plaza del sol, Plaza de la Vila de Gràcia e Plaza de la Revolución). Esses pontos estão demarcados na Figura 1.

Um quarto ponto de observação foi incorporado em ambas as cidades devido à grande incidência de músicos tocando em vagões dos metrôs. Assim, em Barcelona, observou-se a Linha L4 e, no Rio de Janeiro, a Linha 1.


Figura 1
Pontos de observação dos músicos de rua nas cidades do Rio de Janeiro e Barcelona
Elaboração própria

Concomitantemente ao método flâneur, o “plantão antropológico” (FALCÃO, 2016) foi sistematizado como estratégia que possibilitou observar e acompanhar o desenvolvimento da arte dos músicos, a ocupação do espaço, as relações/tensões estabelecidas/vivenciadas, o início e o fim das apresentações musicais. Nesse sentido, o tempo da observação foi determinado pelas práticas dos sujeitos, podendo ocorrer full time e exigindo um posicionamento estratégico nos diferentes pontos de observação.

O terceiro estágio da pesquisa foi deflagrado após uma aproximação dos músicos de rua que demonstraram abertura para contribuir com a pesquisa, por meio da concessão de uma entrevista com roteiro semiestruturado. As entrevistas foram realizadas conforme a disponibilidade dos sujeitos e o local foi definido em comum acordo entre as partes.

A escolha pela entrevista semiestruturada (MARCONI; LAKATOS, 1999; MINAYO, 2001) deveu-se à possibilidade de utilizar um roteiro previamente elaborado que visasse atingir, ou pelo menos direcionar, as questões aos objetivos da pesquisa. Esse roteiro foi flexível, permitindo um reordenamento das perguntas e até mesmo a inclusão ou exclusão de outras, no intuito de propiciar maior fluidez e aprofundamento ao tema investigado. O roteiro envolveu os seguintes temas: procedência dos sujeitos; a escolha da cidade para tocar nas ruas; a constituição do ser músico (história de vida); a relação dessa prática social com o próprio sustento; em que medida essa prática é permeada por lazer; dificuldades e facilidades para a ocupação dos espaços públicos e quais sentidos essa prática social tem para os sujeitos.

No Rio de Janeiro foram entrevistadas nove pessoas, todos músicos, sendo que um deles coordena um coletivo de artistas de rua. Em Barcelona foram realizadas 14 entrevistas: 13 músicos e um gestor dessa prática na capital da Catalunha. Todos esses voluntários concordaram com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e, sempre que autorizado, as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, transcritas. O anonimato dos entrevistados foi preservado, sendo identificados na pesquisa por nomes de pássaros, acrescidos entre parênteses da cidade/local onde realizam sua arte, a idade e a naturalidade/nacionalidade.

A análise interpretativa dos dados deu-se, sobretudo, pela articulação entre o que foi observado no trabalho de campo, as regulamentações políticas locais, as entrevistas e a pesquisa bibliográfica. Os resultados desse processo investigativo serão apresentados a seguir.

3 INTERSTÍCIOS ENTRE LAZER E TRABALHO: GLAMOUR E PRECARIZAÇÃO NO RIO DE JANEIRO E BARCELONA

Este tópico se debruça sobre a compreensão do fazer artístico dos músicos de rua contemporâneos e suas relações com duas esferas da vida, o trabalho e o lazer, conforme as pesquisas de campo realizadas nas duas cidades turísticas selecionadas na pesquisa.

Na contemporaneidade, a arte volta a ser valorizada nas ruas após um longo período de reclusão e “encarceramento” em museus, galerias e salas de concertos, entre outros espaços culturais fechados, de acesso elitizado e distanciado da vida e da cultura popular. Sua ocupação maciça nos espaços urbanos visibiliza sua existência e traz novos desafios para os estudos no campo do turismo cultural. Seja pela relação de proximidade e espontaneidade que a arte na rua estabelece com os interessados, seja pelo seu caráter reivindicatório ou transgressivo de direito à cidade, pelo encantamento que produz, pela fruição do lazer que propicia, por seu ativismo social, ou ainda, pela circulação midiática; seja por todos esses motivos juntos e/ou nenhum deles, o fato é que os artistas de rua ganham espaço, adeptos e cada dia mais admiradores em contextos urbanos.

Para Pesavento (2007, p. 14), as “cidades são, por excelência, um fenômeno cultural, integradas a esse princípio, de atribuição de significados ao mundo”. A autora entende a cidade como sensibilidade, por ser locus de produção de imagens e discursos que os representa. Os músicos de rua, nessa interação, propõem, em alguma medida, a quebra do cotidiano e apresentam, por meio de suas performances artísticas, formas de ser e de estar no mundo. Estar ali, nas bordas do caminho, apresentando seu repertório musical, convida o passante a um momento de ruptura no destino traçado e a um regozijo em tempos tão corridos. Isso representa uma experiência com a sensibilidade citadina, um usufruto do lazer a céu aberto e gratuito.

Rio de Janeiro e Barcelona, duas cidades cosmopolitas e turísticas, apresentam a arte nas ruas como traços marcantes de sua cultura. Enquanto a arte carrega a expressão de seus sujeitos, a arte nas ruas conclama a expressão de sujeitos “marginais”, que muitas vezes transgridem os códigos e as hierarquias instituídas – porque a marginalidade, ainda hoje, se apresenta como um forte estigma da rua.

Os músicos que contribuíram para a pesquisa desenvolvem sua arte em espaços públicos: ruas, praças, metrôs e centro histórico. Em sua maioria, esses músicos são migrantes: em Barcelona, dos 13 entrevistados, somente um é de nacionalidade espanhola, da cidade de Cádiz na região de Andaluzia, os demais são provenientes de países latino-americanos (6 pessoas), europeus (4) e asiáticos (2). No Rio de Janeiro, 4 músicos são estrangeiros (3 da América do Sul e 1 europeu) e 4 são brasileiros (1 carioca). Além desses músicos, 2 profissionais com atuação relacionada a essa prática social no Rio e em Barcelona também foram entrevistados, totalizando 23 entrevistas.

As diferenças nas dimensões territoriais de Brasil e Espanha e as diferenças culturais/econômicas dentro dos próprios países são indícios importantes que apontam motivos para as migrações desses sujeitos. Um fator comum em atratividade para os músicos nos dois campos é que tanto o Rio de Janeiro como Barcelona são cidades com altíssimo fluxo turístico e que têm a arte como força da cultura. Isso evidencia que o movimento migratório dos músicos tem relação direta com a dinâmica econômica da cidade/país escolhidos e, em alguma medida, com o grau de insatisfação vividos no país/cidade de origem.

No que diz respeito aos processos migratórios, duas perspectivas podem enriquecer essa reflexão: a pulsão da errância a que Maffesoli (2001) se refere em uma perspectiva da necessidade de fuga do cotidiano, que se manifesta no indivíduo impulsionando-o em direção ao ignorado, ao inesperado (FALCÃO, 2016), e a força da ordem econômico-social-colonizadora que, muitas vezes, produz diásporas. Compreender as relações diaspóricas como um fenômeno migratório (forçado ou incentivado) que hoje se relaciona sob as condições contemporâneas de globalização, traz à tona questões como a multiculturalidade, a plurietnia e a polifonia presentes nas grandes metrópoles.

Para Martins (1988), migrar temporariamente é mais do que ir e vir; é viver em territórios diferentes, com temporalidades perpassadas pelas contradições sociais. Segundo o autor, ser migrante temporário significa viver tais contradições em duplicidade. É como se cada migrante fosse duas pessoas ao mesmo tempo, cada uma constituída de relações sociais historicamente determinadas: é viver como presente e sonhar como ausente. O migrante temporário é aquele que se considera “fora de casa”, “fora do lugar”, mas que almeja, como muitos dos entrevistados na pesquisa, encontrar um lugar de acolhida para si e sua arte.

Em termos gerais, o fato de serem migrantes oriundos de diferentes lugares, não se apresenta como uma questão problemática entre os músicos que tocam em Barcelona e no Rio de Janeiro, mas aponta certas restrições embasadas por políticas migratórias de cada país.

No Rio, a música na rua é incentivada pela Lei Ordinária nº 5.429/2012, o que propicia uma ocupação do espaço de forma mais democrática. Quem determina quando e onde vão tocar são os próprios músicos, mas isso não elimina as disputas por territórios, ou melhor dizendo, a necessidade de uma autorregulação por parte dos usuários do espaço. Os músicos demonstram tranquilidade e apresentam elevado grau de flexibilidade para lidar com essa situação, como foi observado no trabalho de campo e também foi comentado pelo entrevistado Mergulhão (RJ/rua, 28 anos, França). Na entrevista desse músico, quando foi abordado o tema “escolha dos espaços para tocar”, ou seguindo os pressupostos Lefebvrianos (2001), como os sujeitos se apropriam da cidade, foi relatado o seguinte:

Ah, nossos pontos preferidos? Tem que ser lugar que passa muita gente e de preferência sem pressa, sabe?! [...] às vezes rola que a gente chega no ponto e já tem alguém tocando. Não tem nada a fazer. Todo mundo pode tocar. A gente pergunta se ainda vai tocar muito tempo e, dependendo da resposta, a gente espera ou vai procurar outro lugar por perto. Mas se a gente perceber que a pessoa também tá gostando do lugar e o horário é parecido, a gente tenta conversar e fazer um acordo. [Esses acordos dão certo?] Não rola muito isso. Uma vez só. Sempre tem muito espaço, ninguém é dono da rua e se já tem alguém, a gente se vira.

Gaivota (RJ/metrô, 24 anos, Paraíba/Brasil), que toca no metrô no Rio de Janeiro, afirma que não existe nenhum problema em relação à escolha do vagão, a não ser pela segurança. Ela procura ficar nos primeiros vagões porque dá para ver se tem guarda na estação, e observa com atenção se ele vai entrar no metrô, pois é comum ter repressão a essa prática, ainda colocada às margens da cultura instituída. Se já tiver alguém tocando ali, a alternativa é trocar de vagão. Para ela, é bom quando encontra outro músico e eles acabam tocando juntos. Ela diz: “Tem uma galera da música, dos malabares, que a gente já se conhece. Quem tá na rua sempre está se esbarrando. E quando a gente encontra e tem uma liga, sempre rola coisa boa. A geral gosta e a gente se diverte!”

O músico venezuelano Atobá (RJ/rua, 32 anos, Venezuela) afirma que não existe lugar marcado para tocar no Rio de Janeiro, então não há esse problema. “Se tem gente onde eu tinha pensado, eu escolho outro lugar por perto que eu possa pegar o mesmo movimento de gente. Mas não pode ser lugar de apressado, porque é preciso tempo para parar e ouvir”. Em geral, os turistas, assim como os residentes abertos a desfrutar de alguns momentos de lazer, constituem o público dos músicos entrevistados.

Gerir o espaço e o tempo das apresentações, nas interações sociais com outros músicos e/ou artistas nos espaços públicos, é uma alternativa tranquila de autorregulação entre os músicos que tocam no Rio de Janeiro. É preciso ressaltar que esses músicos não têm espaços demarcados para desenvolver a sua arte. Então, é possível tratar da ocupação da rua como um local de interações, encontros e confrontos, e não de espaço público como um local ordenado e regulado pelo governo.

Barcelona tem outra dinâmica, pois a ocupação dos espaços públicos é regulada pelo ayuntamiento, instituição responsável pela gestão da cidade (prefeitura). Todos os músicos interessados em tocar nas ruas precisam ser cadastrados no projeto Music al carrer (Música na rua, em catalão). Esse projeto regula a prática no centro histórico de Barcelona concedendo uma permissão – chamada de “carnê” – para tocar nos 23 pontos demarcados na cidade. Mensalmente, é realizado um sorteio com os músicos presentes para definir os dias e horários em que cada músico cadastrado pode tocar por um período de duas horas. Participar da reunião não garante que cada músico tenha um ponto para tocar, mas, se não participar, fica excluído daquele mês (NORMATIVA MÚSICS DE CARRER, 2015). A ordem dos sorteados determina a ordem das escolhas dos pontos, e os mais desejados pelos músicos são aqueles com maior fluxo de turistas. Consequentemente, são também os mais vigiados pela guarda urbana.

Seguindo essa lógica, cada músico sabe previamente onde poderá tocar, em qual dia e em qual horário. Porém, os músicos que já estabeleceram vínculos de amizade se comunicam quando sabem que alguém vai faltar, e assim abre-se mais uma oportunidade para que outro músico assuma o horário vago. Em uma das entrevistas, foi comentado que já houve uma situação em que um desconhecido buscava tocar pela região e foi denunciado à guarda urbana pelos próprios músicos. Sabiá (BCN/centro, 45 anos, Romênia) relata:

Como alguém chega sem saber de nada e pensa que pode tocar onde quiser? Aqui no Gótico tem que ter permissão e não aceitamos aventureiros tocando. Imagina a confusão que seria com todo mundo que quisesse, tocando aqui. Ele que busque um lugar para tocar. Aqui já tem muitos músicos.

Esse depoimento deixa claro que a lógica de ocupação dos espaços públicos demarcados em Barcelona não passa por nenhuma negociação, o que contrasta bastante com a dinâmica verificada no Rio de Janeiro. Mesmo todos sendo unânimes em afirmar que estão insatisfeitos com a estrutura do projeto que regula a música no centro histórico de Barcelona, a atitude que se observa é de sujeitos em suas individualizações, tentando preservar as vantagens da pequena condição conquistada: o “carnê”, ou melhor dizendo, o direito de tocar no centro histórico... direito esse, pertencente a poucos.

Em alguns locais públicos com grande fluxo de turistas, como o entorno da catedral de Barcelona, o controle é mais rígido, mas em outros há uma maior flexibilidade. É o que acontece no Parc Güell, um atrativo turístico bastante visitado por abrigar a obra modernista do arquiteto Antonio Gaudí que foi declarado pela Unesco, em 1984, Patrimônio Cultural da Humanidade. No Parc Güell não existe permissão para tocar, é proibido, mas a música é e sempre esteve presente ali, como em toda a cidade. Devido ao grande número de ações policiais que impedem ou interrompem as apresentações, com muitas apreensões dos instrumentos dos músicos, foi criado em junho de 2006 a Associação de Músicos e Artistas do Parc Güell – Amue. O objetivo da Amue é fortalecer os músicos por meio de uma regulação alternativa, em face do desinteresse das autoridades municipais em gerir oficialmente aquele espaço. Mas essa entidade sofre com a falta de legitimação de uma parte dos próprios músicos que tocam por ali.

Isso acontece porque, no Parc Güell, existem horários e locais em que determinados músicos tocam sempre, mas isso é um “acordo de cavalheiros” firmado tacitamente entre os mais antigos. Porém, nada impede que outro músico “desavisado” e/ou “transgressor” ocupe o espaço e comece a tocar. Mediante tal situação, alguns entrevistados relataram qual é a conduta geralmente adotada: esperar um pouco, até o músico perceber e liberar o espaço. Se a espera se prolongar demais, o músico da vez avisa que é seu turno. Eles afirmaram que dificilmente têm problemas com isso, pois, quando o outro músico é avisado, quase sempre finaliza sem muitas dificuldades. Muitos buscam tocar ali porque também é um local muito procurado pelos turistas que visitam Barcelona.

Uirapuru (BCN/Parc, 51 anos, México), um dos músicos do Parc Güell que não têm lugar nem horário marcado, disse na entrevista que não fez nenhum acordo com os demais músicos e está buscando um “lugar ao sol”. Com isso, ele afirma que fica sempre procurando uma oportunidade para tocar.

A gente vai conhecendo os músicos e eles vão conhecendo a gente. Conversa, entende como funciona, e vai tocando enquanto dá. Eu sempre chego mais cedo nos pontos e vou tocando. Se o ponto estiver ocupado vou para outro, mas eu gosto mesmo é daqui das pedras [passagem obrigatória para quem caminha nessa área] e das palmeiras [outro ponto no Parc Güell que tem uma linda vista sobre Barcelona até o mar].

Cacatua (BCN/Parc, 37 anos, Itália), na entrevista, salientou que “seria muito bom se regulassem os músicos aqui no Parc Güell”. Ele explica: “A gente ia poder trabalhar mais tranquilo. No verão não ia precisar chegar mais cedo para garantir o lugar e evitar o stress”. Esse esclarecimento evidencia que quando o fluxo turístico aumenta muito em Barcelona, aumenta também a quantidade de músicos querendo tocar e o “acordo de cavalheiros” fica mais tensionado, tornando-se frágil pela pressão exercida por aqueles que não estão contemplados.

Ainda sobre encontrar espaço para tocar, Uirapuru (BCN/Parc, 51 anos, México) relatou o seguinte:

o Parc Güell é grande e sempre se pode achar um lugar para tocar, mas existem lugares melhores para você ganhar dinheiro, onde os turistas passam mais. Lá em cima do parque é lindo, a vista, a tranquilidade. Mas o turista não vai lá! Eu subo quando quero tocar sozinho, as músicas que componho.

Em suma, as considerações que transitam entre atitudes mais solidárias e/ou mais individualizadas foram verificadas na ocupação pública dos principais atrativos turísticos pesquisados em Barcelona. Elas ganham peso e sentidos diferenciados quando a prática de tocar na rua integra uma condição regulatória de tempo/espaço para os músicos na sociedade contemporânea. A escolha pelos “melhores” lugares sempre está associada a locais pelos quais circulam mais pessoas, especialmente turistas, possibilitando um maior ganho financeiro. Diferentemente do que foi observado no Rio de Janeiro, a disputa se torna mais acirrada em Barcelona quando algum músico se sente invadido em seus direitos e/ou impedido de usufrui-los. Afinal, é uma luta diária pelo sustento.

3.1 A ARTE DE TOCAR NA RUA: TRABALHO OU LAZER?

Ao ser transformado em instrumento para o sustento, o fazer artístico por meio da música na rua ganha contornos mais rígidos. A arte prescinde de liberdade e tempo para fazer-se expressão. Com os novos contornos estéticos e importância mercadológica, ela ganha glamour na rua, na mesma proporção da cidade que a acolhe e/ou a explora.

O trabalho nas ruas aumenta exponencialmente na atualidade, mas segue mantendo seu desprestígio social por concretizar-se nesse locus. Perde seu caráter transitório para constituir-se como algo corriqueiro sendo, cada vez mais, uma opção diante da precarização trabalhista mundial, fortemente marcada pelo aumento da “informalidade”. A arte já não tem tempo para expressar-se, por isso precisa estar engajada na velocidade e na volatilidade esperada para acompanhar a necessidade de consumo estético das cidades turísticas.

Os músicos entrevistados nas duas cidades consideram, majoritariamente, que sua arte não é compreendida como trabalho – pelo menos não como trabalho formal, com carteira assinada, salário e assistência de seguridade, por exemplo. Nenhum músico possui algum tipo de “emprego fichado”, seja para tocar nas ruas, bares, casas de espetáculos ou outros locais. A única ocasião em que algum músico relatou que já teve remuneração fixa foi quando participava de orquestras sinfônicas em sua terra natal.

Para compreender melhor essa situação, é preciso voltar ao século XIX, quando o trabalho produtivo foi associado às virtudes dos sujeitos e aos efeitos benéficos sociais. A ele imputa-se o aumento da riqueza e a eliminação da miséria. Sobre ele também recai a “suposta contribuição para o estabelecimento da ordem, para o ato histórico de colocar a espécie humana no comando de seu próprio destino” (BAUMAN, 2001, p. 157). Se um dia o sonho moderno de progresso se apresentou na quebra das burocracias rotineiras com a flexibilidade proposta pelas novas formas de gerir o trabalho, atualmente vê-se a nova faceta perversa que essa flexibilidade gerou. Bauman (2009) enfatiza que essa nova faceta é a perspectiva de desintegração social, pois, com a ideia de progresso desvinculada de melhoria partilhada e transferida para a sobrevivência do indivíduo, instala-se a competição entre os pares: é o “salve-se quem puder”.

Algumas ponderações contidas no Relatório do Desenvolvimento Humano, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2015) chamam atenção para a tendência em reduzir o trabalho aos termos econômicos. O relatório afirma, como pressuposto, que o trabalho pode reforçar o desenvolvimento humano entendendo que esse “desenvolvimento significa alargar as escolhas humanas atribuindo maior destaque à riqueza das vidas humanas, e não, de forma redutora, à riqueza das economias” (PNUD, 2015, n. p.).

Tal pressuposto vai na contramão do sistema neoliberal contemporâneo, uma vez que ainda existem trabalhos forçados que destroem a dignidade humana, sacrificam a liberdade e a autonomia dos sujeitos. O relatório também sinaliza que situações prejudiciais, como discriminação (racial, sexista, religiosa, migratória, etc.), violência e insegurança se apresentam como elementos presentes na precarização do trabalho. “Sem políticas adequadas, a desigualdade de oportunidades e de recompensas no mundo do trabalho pode gerar divisões, perpetuando as desigualdades na sociedade” (PNUD, 2015, p. 1). Esse cuidado precisa ser adotado, especialmente nos dias atuais, marcados pela flexibilização nas relações laborais.

Nessa mesma linha de pensamento, Sennett (2009, p. 9) argumenta:

É bastante natural que a flexibilidade cause ansiedade: as pessoas não sabem que riscos serão compensados, que caminhos seguir. [...] Hoje se usa a flexibilidade como outra maneira de levantar a maldição da opressão do capitalismo. Diz-se que, atacando a burocracia rígida e enfatizando o risco, a flexibilidade dá às pessoas mais liberdade para moldar suas vidas. Na verdade, a nova ordem impõe novos controles, em vez de simplesmente abolir as regras do passado – mas também esses novos controles são difíceis de entender. O novo capitalismo é um sistema de poder muitas vezes ilegível. Talvez o aspecto da flexibilidade que mais confusão causa seja seu impacto sobre o caráter pessoal.

Colocar o sujeito como o único responsável pelo seu próprio destino é retirar a responsabilidade social do Estado sobre as condições em que cada ser humano está inserido, ou seja, propicia a desintegração social. Quando os músicos não têm nenhuma garantia sobre o desenvolvimento de sua arte, a forma como lidam com os encontros/confrontos proporcionados pela ocupação das ruas de Barcelona e do Rio de Janeiro apresenta características mais coletivas, com soluções mais democráticas. Por outro lado, quando existe alguma regra determinada, explícita ou implicitamente, os princípios de igualdade desaparecem e vale a força da ordem preestabelecida.

O nível de coerção social vivenciada pelos músicos entrevistados é reflexivo em seu ser/estar/atuar no mundo. Quanto mais os espaços sociais são hierarquizados, ordenados, regulamentados e estetizados, mais se vê a arte transformada em mercadoria e o sujeito tentando vender sua arte (ou vender-se como arte). Quanto menos o Estado gera essa prática social, mais os sujeitos compartilham a precariedade do trabalho. Porém, em alguma medida, nessa segunda alternativa as oportunidades parecem ser mais acessíveis a todos.

Bauman (2009) sublinha que essa metamorfose social contemporânea na qual o trabalho passa por um momento de precarização mundial, reflexos que Sennett (2009) pontua em sua obra “a corrosão do caráter”, é que:

a sociabilidade humana experimenta uma transformação que pode ser sintetizada nos seguintes processos: a metamorfose do cidadão, sujeito de direitos, em indivíduo em busca de afirmação no espaço social; a passagem de estruturas de solidariedade coletiva para as de disputa e competição; o enfraquecimento dos sistemas de proteção estatal às intempéries da vida, gerando um permanente ambiente de incerteza; a colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual; o fim da perspectiva do planejamento em longo prazo, e o divórcio e a iminente apartação total entre poder e política. (BAUMAN, 2009, p. 1)

Em Barcelona o entendimento de que a atuação dos músicos de rua não é trabalho fica evidenciado, por parte do governo, quando este cria um projeto cultural voltado para os músicos de rua onde eles só têm obrigações: horários a cumprir, lugares a ocupar e procedimentos a adotar. Nenhum tipo de assistência social lhes é outorgado. O Estado se coloca distante, sem nenhuma responsabilidade sobre esses sujeitos, omitindo-se nas relações de seguridade social. Mesmo assim, o marketing estético/cultural da cidade utiliza as imagens dos músicos e se beneficia dos simbolismos de sua arte para potencializar o turismo.

No Rio de Janeiro a relação de trabalho segue a mesma linha da informalidade. O Estado não regula a prática de tocar na rua, embora na última década tenham sido criadas políticas públicas com incentivos financeiros para subsidiar projetos culturais nas esferas Federal, Estadual e Municipal, o que significou um pequeno passo no reconhecimento da importância da arte na cidade. Muitos músicos e artistas de rua tentam desenvolver projetos financiados pelo governo para garantir uma remuneração. Porém, as formalizações necessárias para a inscrição excedem em burocracias e o percentual de demanda é muito superior à oferta, de forma que a maioria dos músicos não consegue acessar esses financiamentos. Dessa maneira, eles seguem sobrevivendo com as contribuições obtidas nas ruas. No Rio, também, nenhum tipo de benefício de seguridade social existe, pois, não se considera que o sujeito esteja trabalhando.

Nesse sentido, Lipovetsky e Serroy (2015, p. 14) esclarecem:

O desenvolvimento do capitalismo financeiro contemporâneo não exclui de modo algum a potencialização de um capitalismo de tipo artista em ruptura com o modo de regulação fordiano da economia. Não se deve entender com isso um capitalismo que, menos cínico ou menos agressivo, daria as costas aos imperativos de racionalidade contábil e de rentabilidade máxima, mas um novo modo de funcionamento que explora racionalmente e de maneira generalizada as dimensões estético-imaginárias-emocionais tendo em vista o lucro e a conquista dos mercados.

Sobreviver da arte nas ruas significa reinventar-se a cada instante. Quando afirmado anteriormente que os músicos de rua procuram vender-se, o que está sendo considerado é a performance do artista, os contornos estéticos/mercadológicos/sensíveis que são por eles utilizados com intenção de sensibilizar seus públicos em seus anseios de espectadores e/ou consumidores culturais. Ao se transformarem em mercadoria, os músicos buscam obter alguma renda para poder viver da sua arte. É ver o seu talento reconhecido nas contribuições depositadas em seus chapéus.

3.2 MÚSICOS DE RUA: ENTRE O SENSÍVEL E O RENTÁVEL

Em várias entrevistas, foi destacado que o repertório montado para as apresentações parte de dois pontos específicos: músicas que cada músico domina e gosta de tocar, e aquelas que fazem grande sucesso. Todos afirmam que é mais difícil tocar uma música quando não gostam dela, mas exceções são feitas quando isso é parte do mainstrean. Essas músicas são imprescindíveis: “podem não ser boas para tocar, mas são boas para o bolso”, afirmou Pardal (BCN/Parc, 32 anos, Argentina) ao se referir àquelas músicas que toca apenas porque lhe rendem boas moedas por parte dos turistas que visitam o parque.

Todos os músicos que participaram da pesquisa incluem em seus repertórios músicas de própria autoria. Todos compõem, todos criam, todos revelam o desejo de tornarem suas canções conhecidas e, para isso, muitos utilizam as redes sociais e canais tecnológicos de comunicação para divulgá-las. As músicas de autoria própria são incluídas no repertório, mas este é majoritariamente composto por músicas consagradas. Afirmam que têm reservadas algumas canções infalíveis como estratégia para propiciar uma melhor arrecadação, aquelas de grande apelo sentimental, hits amplamente conhecidos e/ou músicas às quais os artistas se entregam de alma à execução. Após uma preciosidade virtuosa, é seguro o tilintar de moedas e a chuva de notas no chapéu dos músicos.

Nesse jogo entre o sensível e o rentável está o sujeito músico engolido, mas também resistindo ao sistema que o enxerga como mercadoria. Ao levar para seu repertório músicas autorais e/ou executá-las de forma primorosa e/ou como forma de reivindicação, esses sujeitos, em alguma medida, permitem a “emergência do seu Eu” (REY, 2004). A satisfação que sentem ao executar parte de seus próprios repertórios restitui, aos músicos, o lado sensível e expressivo da arte. Devolve aos sujeitos a essência de sua prática social, pois todos são encantados pela arte de tocar.

O músico Uirapuru (BCN/Parc, 51 anos, México), que ainda não está legalizado na Espanha, apresentou músicas de sua autoria compostas em uma perspectiva crítica ao sistema que ele vive e sente influências diretas em sua vida: a dificuldade de conseguir os “papeis”, ou seja, resolver as questões migratórias presentes na Espanha para conseguir um N.I.E. (número de identificação de estrangeiros), documento que lhe confere a condição de estar legalmente no país. Em duas de suas músicas (intituladas “El corrido de Barcelona” e “El Blues de la luz”) ele trata dessa questão.

Outra forma de se expressar contra o sistema foi verbalizada por Cacatua (BCN/Parc, 37 anos, Itália), ao definir sua apresentação como uma performance produzida para que não se entenda com a mente, mas se conecte com a vibração do diferente e, claro, garanta a contribuição do público. Ela se assemelha ao bizarro e ao grotesco dos bufões medievais, impossível de passar em branco, pois chama muito atenção dos turistas. Segundo o músico,

é assim que o mundo está funcionando atualmente. Ninguém entende ninguém, isso já não importa, mas se você faz alguma coisa diferente, mesmo sem sentido, as pessoas gostam. Eu estou sempre surpreendendo os turistas, mexo com todo mundo. Faço careta e toco rock’n roll.

Como parte de seu corpo, Gaivota (RJ/metrô, 24 anos, Paraíba/Brasil) sente seu instrumento musical. Ela comenta que o acordeom é capaz de expressar emoções, tem uma receptividade muito grande no Rio de Janeiro e que as pessoas gostam muito de forró. “É só começar a tocar que sempre tem gente para cantar... e até dançar! (risos).” Ela fez alusão a um casal que começou a dançar no metrô um dia desses. Com os dois (acordeom e forró) ela nasceu e cresceu escutando. “Tocar grandes mestres como Gonzagão, Dominguinhos, Trio nordestino faz matar a saudade de casa, da minha gente e leva alegria para o povo que muitas vezes volta cansado depois de um dia de trabalho”. Gaivota toca preferencialmente à noite no metrô.

O músico de rua Lemos (2016), que participa do coletivo Artistas Metroviários (AME), em uma entrevista à “Cena da música independente” afirma acreditar que as intervenções em transportes coletivos educam a sociedade. Ele pontua:

Vivo de arte de rua, mesmo sendo considerado um dos melhores pandeiristas da atualidade. Não o faço apenas por necessidade, e sim por acreditar no propósito de levar a música a quem menos tem acesso. É uma saída, mesmo que em doses homeopáticas, de saúde mental pública. A intervenção dentro dos vagões é muito importante, porque a maioria das pessoas que não possui condições de ter acesso à cultura, sequer têm tempo para acessá-la.

São inúmeros os motivos que fazem da arte a expressão de seu artista. Talvez existam tantos motivos quantos sujeitos. É importante atentar que mesmo comprimidos pela lógica contemporânea de produção/consumo cultural efêmero, os músicos de rua mantêm essa prática social como algo que mesmo sendo igual, nunca se repete: o jogo do porta-voz da cultura popular, seja como bufão, seja como trovador, seja como contestador. É possível perceber que quanto mais liberdade os sujeitos têm para se expressarem, mais essa característica da linguagem sensível aparece. Mais a relação com o público se faz negociada e negociável. Mais a ocupação do espaço se faz democrática e evidencia o “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001).

Mas não é possível negligenciar o fato de que os músicos que tocam nas ruas e espaços públicos do Rio de Janeiro e de Barcelona, como em outras cidades, precisam sobreviver de sua arte e isso implica um grande desafio: obter dinheiro. Encher o chapéu e pagar as próprias contas, como todas as pessoas. Daí a necessidade de desenvolver certas estratégias... e, assim, o sistema se retroalimenta.

Muitos entrevistados entendem que a rua representa um ótimo canal para serem “descobertos”. Vários músicos afirmaram conseguir outros trabalhos com pessoas que os assistiram em apresentações pelas ruas, metrôs, parques, etc. Os sonhos existem e eles alçam voos altos. A arte necessita de admiradores e o artista deseja reconhecimento. Todos ficam felizes quando conseguem fazer uma roda com pessoas interessadas em ouvi-los, não só porque poderão ter um bom ganho, mas porque sua música está atraindo o público. Quero-quero (RJ/rua, 52 anos, Argentina), por exemplo, disse que toca em duas bandas de rua e que este é o melhor lugar para ganhar dinheiro, embora já tenha conseguido muito “trampo” (trabalho) em bares, por causa da rua. Segundo ele, a rua é melhor que bar. “No bar eles te exploram. Não querem pagar nada pela banda, somos 5 ou 6 músicos, querem que o show seja longo, com bom repertório e muitas vezes só pagam a gente uma semana depois.” E conclui: “Eu prefiro a rua. Se gostam, te pagam, se não gostam vão embora”.

A relação de prazer, satisfação, e expressão do sujeito que também se encontra imbricada na luta do dia a dia desses músicos, levou à seguinte reflexão: em suas práticas de trabalho informal, também cabe a fruição de lazer? Justamente pelo fato de a música estar inserida no imaginário social como pertencente ao campo do desfrute (lazer), esse tema tornou-se interessante. Seriam os músicos de rua, eméritos representantes de propiciar lazer aos passantes, fruidores desse mesmo lazer como prática social?

É preciso não perder de vista que as relações de lazer e de trabalho se configuram nessa prática social. O tempo/espaço social no qual ela se materializa está diretamente relacionado à possível sobreposição de uma esfera sobre a outra. Como aponta Bauman (2001), nos tempos atuais diversas esferas da vida cotidiana se apresentam nas relações em formato líquido, ou seja, é difícil colocar uma barreira rígida, separando-as. As fronteiras são porosas e inter-relacionam, mas o formato é dado por aquilo que a contém, nesse caso, o sistema e o sujeito em suas relações com ele.

Nesse sentido, é possível afirmar que quanto mais regulado está o espaço de atuação do músico, mais ele compreende sua prática como trabalho. E quanto mais liberdade, ou a busca por ela, o sujeito está imbuído, mais parece que sua prática permeia o lazer. Esse entendimento segue a compreensão de trabalho como algo duro, um sacrifício que precisa ser vencido em nome do sustento. E o lazer, não como contraposição ao trabalho, mas como uma dimensão da cultura na qual sua fruição está ligada à experiência subjetiva e lúdica do sujeito.

Os entrevistados com mais liberdade e menos segurança em suas práticas parecem lidar melhor com as imprevisibilidades. Os músicos que desenvolvem suas práticas no Rio de Janeiro colocam como grande atrativo da prática nas ruas o inesperado, a possibilidade de tudo acontecer. “Todo dia alguma coisa diferente acontece” (Mergulhão, RJ/praça, 28 anos, França), “nenhum dia é igual ao outro” (Atobá, RJ/rua, 32 anos, Venezuela), “tocar na rua é uma caixinha de surpresa” (Fragata, RJ/rua, 23 anos, Ceará/Brasil), “o rio e a rua sempre estão em movimento” (Biguá, RJ/rua, 58 anos, Peru). A capacidade de lidar com o imprevisível, de relacionar-se com situações adversas e compreendê-las como um desafio a ser vencido de forma lúdica, sem estresse, representa uma perspectiva mais leve diante da vida que não é fácil de ser levada, já que do “trabalho lúdico”, vem o sustento. Nesse momento, se aponta a relativização do termo trabalho como algo duro e penoso e apresenta-se a perspectiva intersticial com vivências lúdicas.

Outra percepção firmada que pode parecer um contrassenso, mas talvez seja reflexo dos tempos contemporâneos e suas transformações efêmeras, pode se apresentar na seguinte configuração: desde a modernidade, o lazer foi apropriado pela indústria de entretenimento e, assim como o turismo, deslocou-se para a dimensão de consumo. O músico de rua, além de ser apropriado pela estetização das cidades turísticas na transição do século XX para o século XXI, também foi inserindo-se na esfera do consumo cultural. Nessa perspectiva, os músicos de rua se apropriam de sua própria estetização para serem consumidos culturalmente por turistas e por residentes interessados na arte musical proporcionada nas ruas e espaços públicos, que ali estão de passagem. Assim, a música nas ruas, que vem de uma tradição de acesso ao lazer gratuito e popular, fica fortemente inserida na dimensão econômica ao se configurar como trabalho – pelo menos para os músicos observados no trabalho de campo e entrevistados na pesquisa.

Ao longo da pesquisa foi possível constatar que, mesmo com a ressignificação alcançada hoje pela arte musical desenvolvida na rua, ela segue situando-se em um lugar geralmente reservado aos desprestigiados socialmente. Assim, um paradoxo compõe a realidade social desses artistas e suas práticas: se existe o glamour dos talentosos músicos de rua que embelezam e encantam as cidades, também existe uma incômoda mendicância praticada por sujeitos vagabundos que tocam nas ruas em troca de gorjetas/esmolas. Seja como músico talentoso ou músico mendigo, no imaginário da maioria das pessoas, a música na rua está socialmente relacionada ao lazer e ao turismo cultural, e não a uma atividade produtiva ou rentável, encarregada de prover o sustento.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com a mesma intensidade que a imagem de cidades como Rio de Janeiro e Barcelona mobiliza sonhos e desejos de milhares de pessoas que se propõem a conhecê-las desfrutando suas belezas e culturas – os turistas –, também é possível observar que alcança aqueles que se imaginam usufruindo de todas as maravilhas que o imaginário simbólico e midiático dessas cidades projeta: os músicos.

Uma das questões que esta pesquisa contemplou está focada na ocupação que os músicos fazem de um espaço público específico: a rua, locus privilegiado de circulação, de encontros e desencontros, de práticas culturais, de lazer, do inesperado, de instabilidades e possibilidades. Corroborando Caiafa (2002, p. 1), “a experiência do estranho e do inesperado é uma marca das cidades e precisamente o que a caracteriza como um universo de circulação e comunicação bastante singular”. Nesse sentido, a cidade bem como a rua são lugares construídos e organizados, palco de sociabilidades diversificadas e complexas, no qual o Estado, a sociedade e os sujeitos promovem relações com focos de poder e trocas. E é desse espaço que os músicos sujeitos deste estudo se apropriam para desenvolverem sua arte nas ruas das duas cidades turísticas estudadas.

Como elemento instigador desta pesquisa em dois contextos distintos, tem-se a atuação diferenciada do Estado diante da situação de ocupação do espaço público. No Rio de Janeiro, a rua é “livre” e há uma legislação específica que permite a atividade dos músicos em espaço público. Em Barcelona, para o sujeito tocar na rua é necessário obter uma licença concedida anualmente aos interessados (embora essa concessão não aconteça há 4 anos), depois que se credenciam no projeto do governo municipal que regulamenta a música na rua. Dessa maneira, há tensões explícitas e implícitas para a ocupação do espaço público, havendo também possíveis transgressões dela decorrentes, que passam despercebidas aos turistas.

Os músicos entrevistados explicaram que a ideia de cidade turística com elevado apreço pelas artes nas ruas foi fator decisivo para o seu deslocamento. Por um lado, as entrevistas revelaram de forma unânime que a migração havia intenção de sustento e de melhoria da qualidade de vida com a realização dessa prática e, quase todos, migraram com o objetivo de tocar nas ruas de uma grande cidade turística, seja Rio de Janeiro ou Barcelona. Em geral, os músicos entendem que, onde há turistas, há maiores possibilidades de ganho financeiro fazendo o que mais gostam: tocar em espaços abertos e públicos.

Por outro lado, a apropriação dessa prática pelo turismo como elemento estetizante das cidades, como representante emérito da diversidade social e cultural que tais metrópoles possuem, promove a transformação de uma parte sensível da cidade em mercadoria. A maneira como essas questões se fazem presentes na dinâmica social de trabalho e lazer que os músicos de rua constroem por meio de sua arte, no tempo/espaço social contemporâneo por eles vivido nos dois centros urbanos turísticos investigados, reveste-se de determinadas peculiaridades.

Em Barcelona, de forma recorrente, os sujeitos compreendem a prática de tocar na rua como trabalho, como provedor de sustento. Quando essa prática é extremamente controlada e regulada, como acontece em alguns atrativos turísticos de Barcelona, é concebida como trabalho precarizado, pois os músicos não detêm nenhum direito, apenas deveres a cumprir. No Rio de Janeiro, ficou evidenciada uma maior possibilidade de alcançar a tão sonhada qualidade de vida, o que se articula com formas mais alternativas de viver, incluindo a esfera do trabalho e do lazer. Isso indica que dessa prática também tiram seus sustentos, mas desejam desfrutar uma vida mais livre. Essa compreensão se aproxima também do entendimento dos músicos “ilegais” de Barcelona, os que não possuem o carnê.

Apesar de ser constitutivo da subjetividade dos sujeitos, um dos sentidos que os músicos dão à concepção de melhor qualidade de vida é comum nos dois locus investigados: (sobre)viver desenvolvendo sua arte na rua. A condição migrante dos músicos ratifica e potencializa o ideal imaginário, produzido e veiculado sobre as perspectivas culturais e financeiras das duas cidades turísticas envolvidas.

Assim, a prática social aqui investigada se constitui social e economicamente na informalidade e na precariedade, se o olhar for pela dimensão trabalho. Não desejando ser explorados, por exemplo, quando tocam em bares e acreditando que “a rua” é mais sincera e sensível no reconhecimento do valor da arte, esses artistas preferem encará-la como um lugar possível para garantir algum sustento com sua arte, mesmo com sua condição de incerteza. A dimensão do lazer, que também está imbricada nessa prática, se apresenta no fazer lúdico de suas apresentações musicais, nas interações que se estabelecem com o público e com os outros ocupantes do espaço, nas expressões de sentimentos, no virtuosismo da apresentação, no propiciar lazer e assim se retroalimenta dessa energia pulsante que contagia. Portanto, a relação que essa prática social estabelece com o lazer e o trabalho desses sujeitos é ambígua, pois, se a arte de tocar na rua não é integralmente trabalho, tampouco, é lazer. É outro tipo de experiência não fragmentada na qual trabalho e lazer se sobrepõem na liquidez das sociedades contemporâneas.

A condição requerida para essa prática ser concretizada é o direito à cidade, ou seja, a possibilidade de ocupar os espaços sociais com tempo para desenvolver a arte de tocar nas ruas. Os músicos lidam com uma possível mercantilização de sua arte, geralmente tocando músicas mais conhecidas e apreciadas para obter mais retorno financeiro. Entretanto, para não se anularem diante dessa mercantilização, tocam com virtuosidade e compõem letras que fazem críticas ao sistema capitalista, por exemplo.

“O trabalho desenvolvido por artistas, músicos e escritores enriquecem as vidas humanas”, afirma o Relatório do Desenvolvimento Humano (PNUD, 2015, p. 4). O documento procura aguçar a compreensão que o desenvolvimento mundial necessita de uma perspectiva mais humana, na qual é preciso refrear os efeitos avassaladores que metas pautadas apenas em referenciais econômicos alcançam. É necessário investir em políticas públicas que sejam capazes de diminuir as diferenças sociais, minimizar os maus tratos de qualquer forma de discriminação e ajudar o desenvolvimento das potencialidades humanas.

As artes como expressões das culturas, entre as quais a música de rua, precisam ser incentivadas enquanto parte desse desenvolvimento, e não apenas como produtos culturais a serem consumidos de forma alienada em grandes centros turísticos, como os que foram aqui estudados. As artes possuem potencialidades não só para transgredir, mas também para ir além de realidades prescritas. Como expressão dos sujeitos e da sociedade, as artes suscitam toda sorte de utopias e instigam novas leituras do contexto urbano... por isso, o turismo cultural precisa estar atento a esse processo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
[1] Professora da UFOP e Pós-doutoranda na UFMG com bolsa da Capes
[2] Professora da UFMG, pesquisadora do CNPq e bolsista da Capes

Figura 1
Pontos de observação dos músicos de rua nas cidades do Rio de Janeiro e Barcelona
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