Bar Semente: atrativo turístico e empreendedorismo situado

Bar Semente: tourist attraction and entrepreneurship situated

Bar Semente: atracción turística y emprendimiento situado

Aline Winckler Brufato
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Bianca Mara da Costa Farias
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Dominique Ribeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil

Bar Semente: atrativo turístico e empreendedorismo situado

Caderno Virtual de Turismo, vol. 19, núm. 3, 2019

Universidade Federal do Rio de Janeiro

Recepção: 02 Junho 2019

Aprovação: 20 Dezembro 2019

Resumo: O palco do Bar Semente marcou a revitalização da Lapa, bairro boêmio da zona central da cidade do Rio de Janeiro. Nascido na Lapa como um dos marcos de sua revitalização, o Semente priorizou e investiu na música popular independente, incluindo a instrumental, na formação de plateia e no lançamento de novos artistas, projetando internacionalmente sua marca e sua linguagem. Por quase 20 anos de existência (1998 a 2017), nas noites do bar, é possível afirmar que se formou uma geração Semente de músicos, que segue atuando mundo afora. A partir da lógica Effectuation, busca-se, analisar, o caso do empreendedorismo do Semente, o qual levanta questões centrais sobre empreendedorismo situado e gestão de patrimônio (imaterial) musical da cidade. O artigo também reflete sobre as formas de empreender que contrariariam alguns padrões clássicos da atuação empresarial e da estrita racionalidade econômica e novos olhares e posturas, em relação aos negócios na cultura, envolvendo diferentes motivações e objetivos, além de um leque mais amplo de atores. Isso ajuda a explicar por que a Lapa enfrenta, de maneira recorrente, problemas para se manter como roteiro cultural e, como também sempre encontra formas de sobreviver ou renascer. Aprender sobre as lógicas empreendedoras envolvidas num espaço tão intensamente rico culturalmente, talvez, nos permita não repetir os mesmo erros.

Palavras-chave: Effectuation, Empreendedorismo, Lapa, Patrimônio Cultural Carioca, Turismo.

Abstract: The Bar Semente stage marked the revitalization of Lapa, a bohemian neighborhood in the downtown of Rio de Janeiro. Born in Lapa, as one of the marks of his revitalization, during almost 20 years of existence (1998 to 2017), Semente has prioritized and invested in independent popular music, including instrumental, audience building and launching of new artists, projecting his brand and language internationally. In the evening's Semente was formed the generation of musicians who continues to perform around the world. Analyzing the case of Semente entrepreneurship, from the Effectuation action logic approach, raises central questions about situated entrepreneurship and city's (immaterial) musical heritage management. The article also reflects on the ways of entrepreneurship that could contradict some classic patterns of business activity. There is new perspectives and decisions process in the culture business that involving different motivations, goals, and actors that could help to explain why Lapa had been troubled with maintaining its culture even finding ways to survive or be reborn. This learning process about the entrepreneurial logic involved in culturally rich space can help us not to repeat the same mistakes.

Keywords: Effectuation, Entrepreneurship, Carioca Cultural Heritage, Lapa, Tourism.

Resumen: El escenario del Bar Semente marcó la revitalización de Lapa, barrio bohemio e nel centro de Río de Janeiro. Nacido en Lapa como uno de loss ellos distintivos de su revitalización, Semente ha priorizado la música popular independiente, incluída la creación de audiência sin strumentales y ellanzamiento de nuevos artistas, proyectando internacionalmente su marca. Durante casi 20 años de existencia (1998 a 2017), em lãs noches del bar, se formo La generación Semente de músicos, que continúa actuando en todo el mundo. Analizar el caso Del emprendimiento Semente, desde el enfoque de la lógica de acción Effectuation, plantea preguntas centrales sobre El emprendimiento situado y La gestión del patrimonio musical (inmaterial) de laciudad. El artículo también reflexiona sobre las formas de emprendimiento que contradecirían algunos patrones clásicos de actividad empresarial y una racionalidad económica estricta y nuevas perspectivas y actitudes con respecto a los negocios en la cultura, que implican diferentes motivaciones y objetivos, así como una gama más amplia de actores. Esto ayuda a explicar por qué Lapa tiene problemas recurrentes para mantener su cultura como una hoja de ruta, así como también para encontrar formas de sobrevivir o renacer. Aprender acerca de la lógica empresarial involucrada en un espacio tan intensamente culturalmente rico puede permitirnos no repetir los mismos errores.

Palabras clave: Effectuation, Emprendimiento, Lapa, Patrimonio Cultural Carioca, Turismo.

1 INTRODUÇÃO

Paulo Mendes Campos dizia que recordar os bares (mortos) é contar a história de uma cidade. Segundo este, “[...] os bares nascem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem”. Mais adiante, registra: “O obituário dessas casas fica registrado nos livros de memórias. Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única cidade”[1]. E o Semente é um bar-defunto que guarda segredos sobre uma nova geração de artistas da música brasileira que floresceu, noite a noite, no Rio, na Lapa nos últimos vinte anos.

O Bar Semente (ou simplesmente Semente) é objeto de estudo de caso da tese de doutorado da autora. A pesquisa está em fase inicial e propõe uma reflexão sobre gestão do patrimônio artístico (imaterial) e relacional em empreendimentos artísticos. Nesse sentido, alguns autores, tais como Sarasvathy (2008); Zaoual (2006); Julien (2008); e Bartholo et al (2009), reforçam que o processo de criação de uma empresa não se restringe à relação do empreendedor e de sua firma como a única forma de gerar riqueza, mas contempla outras dimensões relevantes e, dependendo do caso, fundamentais. Essas dimensões mostram que empreender é um ato coletivo e que o meio, suas redes e interações mercantis e não mercantis específicas do segmento contêm a fonte da cultura empreendedora, da diferenciação, do desenvolvimento e dos resultados da empresa.

A Lapa é um patrimônio cultural carioca e também uma região histórica e turística. E, pode-se afirmar que não é o turismo que "cria" a Lapa e sim seu enraizamento na "memória viva" da cidade do Rio de Janeiro. Por causa disso, de seu entrelaçamento na vida e na identidade do Rio que ela se fez e se faz patrimônio cultural e, também, atração turística. Mas esse enraizamento é um bem perecível, pode ser perdido, inclusive por práticas turísticas predatórias. Ou seja: patrimônios culturais não possuem garantia de perenidade.

Este artigo tem como objetivo testar a lógica de ação Effectuation a serviço de empreendimentos artístico-culturais efetivados fora do eixo da grande indústria cultural. Para este trabalho, será analisado o caso de empreendedorismo do Semente. Para a análise do caso, apoia-se na abordagem sobre empreendedorismo desenvolvida por Saras Sarasvathy[2]. A lógica da Effectuation foi apresentada pela primeira vez por Saras Sarasvathy em 2001, em seu doutorado nos EUA, orientada por Herbert Simon, prêmio Nobel de Economia em 1978. Sarasvathy percebeu que os empreendedores effectuation tem uma relação particular com o futuro: eles abandonam a lógica de previsão do futuro (Causation) e focam a ação empreendedora a partir de seus recursos disponíveis (Effectuation). Para o Effectuation, o empreendedor é a figura chave: a ação humana com base nos recursos disponíveis (quem eu sou; o que sei fazer; e quem eu conheço) e a capacidade de estabelecer parcerias estratégicas para criar um novo mercado é a central para a inovação. Trata-se de criar um futuro e não tentar prevê-lo. Na lógica Effectuation, a ideia é conviver e lidar com a incerteza e um futuro imprevisível, a partir disponibilidade de recursos escassos.

O esforço de pesquisa, ainda que em fase inicial, pode ajudar a elucidar sobre as lógicas empreendedoras envolvidas num espaço tão intensamente rico culturalmente como a região da Lapa no Rio de Janeiro e, talvez, permita repensar o contraponto entre empreendedorismo e gestão de um patrimônio artístico (imaterial) e relacional, no caso da música independente na cidade do Rio de Janeiro.

O artigo é estruturado nas seguintes etapas: além desta introdução, apresenta-se o marco teórico na seção 2, que está subdividida em dois tópicos: 2.1, a origem da lógica Effectuation, e 2.2, os princípios da Effectuation; na seção 3, descreve-se a metodologia de pesquisa utilizada; na seção 4 expõe-se o caso da empresa estudada; na seção 5, analisa-se o caso à luz do referencial teórico; e, por fim, na seção 6 são feitas as considerações finais.

2 MARCO TEÓRICO

Para descrever o caso de empreendedorismo do Semente no coração da Lapa, optou-se por utilizar a lógica da Effectuation, contribuição de Saras Sarasvathy para as contemporâneas teorias do empreendedorismo. A perspectiva teórica enfatiza a importância estratégica da incerteza, imprevisibilidade e enraizamento nas verdades e práticas locais do território para a atividade empreendedora.

2.1. A origem da lógica Effectuation

De forma sucinta, a lógica Effectuation, criada por Saras Sarasvathy, fundamenta-se em dois autores principais: Herbert Simon e a teoria da racionalidade limitada; e Joseph Schumpeter e a teoria evolucionária do desenvolvimento econômico centrado na figura do empreendedor.

Herbert Simon, em Reason in Human Affairs (1983), explorou a relação entre os limites da razão e o uso das capacidades do raciocínio humano no processo de tomada de decisão, considerando o processo de tomada de decisões como algo complexo. Tal complexidade se dá pelas incertezas do ambiente, pelos elementos de natureza objetiva e subjetiva e pelos modos cognitivos dos tomadores de decisão. Essa contribuição de Herbert Simon para a teoria sobre as limitações da racionalidade humana nas escolhas econômicas lhe rendeu o Prêmio Nobel de Economia em 1978.

Joseph Schumpeter, em The theory of Economic Developement (1934), aborda a inovação como base da transformação econômica e como um processo ubíquo que se caracteriza pela mudança gradual e cumulativa da combinação (criativa) de conhecimentos adquiridos e acumulados pela firma para solucionar problemas. A dinâmica do processo de inovação tem a incerteza como fundamento. A incerteza reside na inabilidade de prever os resultados ou, sequer, pré-determinar onde se pode chegar com a inovação. A característica de incerteza implica que o caminho da atividade não pode ser planejado pelo empreendedor. E que o processo de inovação tem alternativas de soluções de problemas técnicos ou econômicos desconhecidos pela firma. Além disso, há incerteza quanto ao sucesso ou fracasso, uma vez que é o mercado quem seleciona.

A partir do conceito de racionalidade limitada nas escolhas econômicas e nos microfundamentos do papel da firma e do empreendedor no processo de solução de problemas, Saras Sarasvathy desenvolveu a lógica da Effectuation em seu doutorado nos EUA, sob orientação de Herbert Simon. A Effectuation é um método de resolução de problemas pesquisado a partir de processos de tomada de decisões utilizados por empresários experientes, os quais são considerados os melhores solucionadores de problemas do mundo (SARASVATHY, 2008). E por que estudar empreendedores experientes que possuíam empresas de sucesso? Porque a fase de ideação ou início de um novo empreendimento é uma das situações mais “incertas” e imprevisíveis. O futuro é desconhecido e a incerto.

Em sua pesquisa, Sarasvathy (2008) procurou quais eram os microfundamentos válidos para uma economia, na qual as perspectivas schumpeterianas sobre inovação, competição e crescimento são essenciais, e consistentes com a economia evolucionária sobre a dinâmica de mercados e indústrias, bem como com desenvolvimentos recentes da economia comportamental quanto ao processo de tomada de decisões de seres humanos. As evidências empíricas para a microfundação da pesquisa basearam-se nos estudos de ciência cognitiva de Herbert Simon e aplicados à experiência empreendedora. A base empírica consistiu em 27 empresas americanas de diferentes setores da economia e com faturamento anual entre U$300M e U$6,5B e para a pesquisa foram utilizados protocolos de pensar em voz alta com 27 empresários com mais de 15 anos de experiência. Para compreender o processo de decisão dos empreendedores no momento de criação da empresa, Sarasvathy (2008) tinha duas perguntas principais, a saber:

(1) Quais as semelhanças e diferenças no processo de tomada de decisão de um grupo de empreendedores experientes que começaram uma ideia para criar um novo empreendimento e enfrentam exatamente o mesmo conjunto de decisões ao construí-lo?

(2) Diante de mercados inexistentes ou ainda não existentes, que crenças subjacentes sobre a previsibilidade do futuro influenciam as decisões que os empreendedores experientes tomam quando constroem um novo empreendimento?

Como resultado de sua pesquisa, Sarasvathy (2008) identificou elementos norteadores de empresários experientes no processo de decisão na fase de criação de um novo empreendimento. Esses são:

· Empreendedores experientes começam com quem eles são o que sabem e quem conhecem e, imediatamente, começam a agir e interagir com pessoas.

· Eles se concentram no que podem fazer e fazem, sem se preocupar muito sobre o que eles deveriam fazer.

· Algumas das pessoas com quem interagem emergem no processo, assumindo compromissos com o empreendimento

· Cada compromisso resulta em novos significados, caminhos e objetivos para o negócio

· À medida que a rede de pessoas acumula conhecimento, começam a surgir restrições. As restrições reduzem possíveis alterações em objetivos futuros e restringem quem pode ou não ser admitido pela rede.

· Supondo que o processo de acumulação dentro da rede não seja abortado, objetivos e rede convergem simultaneamente para a criação de uma nova empresa e/ou um novo mercado.

Ao final da pesquisa, descobriu que eles eram ótimos de improviso, sabiam lidar com surpresas, tinham objetivos que permitiam flexibilidade e estavam sempre usando seus recursos de maneira criativa. Basicamente, sabiam fazer as coisas acontecerem. Trata-se de criar um futuro e não tentar prevê-lo, afirma Sarasvathy (2001a).

2.2. Os princípios da Effectuation

De forma simplificada, a estrutura da teoria da Effectuation aponta que é preciso usar o que está sob seu controle (quem é você; o que você sabe; quem você conhece; e que recursos possui) para transformar ideias em negócios e mercados. Assim, a lógica da Effectuation se apóia em cinco princípios:

1. Bird-in-hand (Pássaro na mão) - É possível começar um negócio com seus próprios meios, com o pássaro que você tem nas mãos. O ponto de partida são três perguntas-chave: Quem eu sou? O que eu sei? Quem eu conheço? Esse é um princípio de ação orientada por meios (em oposição à orientada por objetivos). A ênfase está em criar algo novo com os meios existentes, em vez descobrir novas maneiras de atingir determinados objetivos.

2. Affordable-loss (Perda acessível) - Primeiro, o empreendedor deve pensar no quanto pode perder, antes de começar a calcular os retornos esperados com o projeto. O empreendedor eficaz não investe tudo o que tem, mas sim a quantia que pode perder.

3. Crazy-quilt (Colcha de retalhos) - O princípio envolve negociar com todos os apoiadores e parceiros que podem participar assumindo compromissos com o projeto. Sem se preocupar com os custos da oportunidade ou realizar análises competitivas. Quem o empreendedor chama para fazer parte é quem define os objetivos da empresa. E não o contrário.

4. Lemonade (Limonada) - O empreendedor deve se apropriar das contingências e surpresas como oportunidades criadoras de valor. As coisas podem dar errado. E as surpresas não são necessariamente coisas ruins. Podem e devem ser exploradas para se descobrir novas oportunidades e mercados. O empreendedor vai encontrar rejeição, fracasso, e seu principal desafio é transformar a restrição em valor.

5. Pilot-in-the-plane (Piloto do avião) - O futuro não pode ser previsto, mas empreendedores podem controlar alguns fatores que são determinantes. Esse princípio recomenda confiar e trabalhar com a capacidade humana como principal fator direcionador de oportunidades, em vez de limitar os esforços para explorar fatores exógenos, como tendências das trajetórias tecnológicas e condições socioeconômicas.

Cada um dos cinco princípios incorpora técnicas de controle de previsão não preditiva, ou seja, reduzindo o uso de estratégias preditivas para controlar situações de incertezas. Juntos, esses princípios apontam para uma lógica de ação chamada Effectuation. A lógica de ação Effectuation é o inverso da Causation, o modelo padrão do mundo dos negócios para a criação de novas empresas e novos mercados (SARASVATHY, 2008). Na lógica Causation, uma trajetória de sucesso exige ter uma ideia brilhante, mostrar que há um mercado, criar um ótimo plano de negócios, captar investimento, fazer o negócio crescer e prosperar e, por fim, vendê-lo ou abrir o capital.

Empiricamente, os empreendedores usam abordagens Causation e Effectuation, em uma variedade de combinações. O uso e a preferência estão relacionados à experiência do empreendedor e ao momento do ciclo da vida da empresa. Teoricamente, no entanto, faz sentido analisar as causas e abordagens eficazes como uma dicotomia (SARASVATHY, 2008). Nesse sentido, a lógica Effectuation é um processo de racionalidade alternativo aos modelos tradicionais de planos de negócios e análise de concorrência e mercados, pois, de fato, os empreendedores e suas decisões baseiam-se na perspectiva da incerteza e em contingências, as quais criam oportunidades e valor para o negócio, a partir da dinâmica de relações humanas (SARASVATHY, 2004).

Por fim, é uma abordagem que considera que os padrões relacionais humanos do empreendedor com o ambiente externo (território e incertezas), os recursos disponíveis, a disponibilidade ao risco e a racionalidade limitada dos empreendedores caracterizam-se por um processo não-linear de aproveitamento de oportunidades e de tentativas de criação de valor. (SARASVATHY, 2001a; SARASVATHY; DEW, 2005). Na lógica da Effectuation, a ideia é conviver com as incertezas e lidar com o futuro imprevisível.

3 METODOLOGIA

Este artigo tem como objetivo testar a lógica de ação Effectuation a serviço de empreendimentos artístico-culturais efetivados fora do eixo da grande indústria cultural. Para este trabalho, de cunho exploratório, optou-se pela metodologia qualitativa, por meio de estudo de caso descritivo do Semente.

A escolha de um estudo de caso único deu-se pela peculiaridade que a empresa analisada possui: as relações entre o empreendedorismo na área artístico-cultural, no segmento da música, com o território da Lapa, onde suas iniciativas se inserem, possibilitaram a ressignificação do território, seja por meio de sua revitalização, e do sucesso do empreendimento para além das fronteiras nacionais (YIN, 2005). A proposta de analisar um empreendimento na música, com relevância internacional que nasceu enraizado em um território, a Lapa, pode apontar discussões importantes e cruciais para se pensar o empreendedorismo local, a imagem e a identidade de uma cidade para políticas públicas de turismo.

A pesquisa qualitativa caracteriza-se como pesquisa-ação, metodologia participativa em que o saber empírico é valorizado e os implicados com a problemática a ser modificada participam ativamente de todos os seus processos de resolução (Thiollent, 2005). A coleta de dados apóia-se na bagagem da experiência pessoal da autora principal, empreendedora do Semente durante quase 14 anos. Apoiada no acervo de sua memória pessoal situada, a coleta de dados é a memória viva e tem caráter único, uma vez que há o entrelaçamento de uma história de vida com o caso de empreendedorismo a ser estudado. A perspectiva teórica a ser trabalhada é uma situação peculiar, na qual a biografia exemplificará com riqueza a reflexão teórica da bibliografia.

A pesquisa está em fase inicial e, portanto, as limitações desse artigo são inerentes ao estágio em que se encontra a pesquisa.

4 RESULTADOS

Os princípios de Effectuation são cinco – pássaro na mão (bird-in-hand), perda acessível (affordable-loss), colcha de retalhos (patchwork quilt), limonada (lemonade) e piloto do avião (pilot-in-the-plane) e servem para guiar o pensamento do empreendedor. A seguir, apresenta-se a aplicabilidade dos princípios às fases da trajetória do empreendimento, a partir do olhar de sua principal empreendedora.

1. Pássaro na mão: comece com o que tem

“Comece com o que está na sua mão: quem é você, o que você sabe, quem você conhece? O que aprendeu, que recursos tem, qual é sua rede de contatos”?

Fase 1: O acaso em 1998 a 2003

O Semente foi fundado em junho de 1998 por Regina Weissmann, professora de estatística da UERJ. A música começa nessa fase. Antes de 1998, era um restaurante de comida natural e chamava-se Semente. Nessa época, a relação da autora começou como frequentadora do Semente. Nascida em Porto Alegre (RS), a autora veio para o Rio de Janeiro, em 1997, fazer mestrado na Coppe/UFRJ. Em 1999, se torna sócia de uma consultoria para empresas de base tecnológica, fato que a obrigava a viajar muito na época. No entanto, se esforçava para ir ao Semente, onde podia ouvir o choro e o samba em um pedacinho do Rio que considerava quase como um segredo.

A liberdade do lugar permitia criar e fortalecer laços afetivos entre músicos, público e pessoas que lá trabalhavam. Essa marca perpassa grande parte da história do Semente, em particular o esforço fundador da Regina, que é socorrido logo em um momento inicial pelo novo sócio, Osvaldo da Costa Rego, psiquiatra e pai de um dos primeiros músicos que começou a tocar no Semente, o pandeirista Sergio Krakowski, que hoje vive em Nova Iorque. Teresa Cristina e o Grupo Semente, que tem esse nome por causa do bar, foram lançados lá. O Semente fechou suas as portas em junho de 2003 e a autora estava lá no último dia.

2. Perda acessível: gaste só o que puder

“Não perca mais do que pode perder e pergunte-se: o que eu posso fazer”?

Fase 2: Verão de 2004 (janeiro a março)

Após alguns meses do fechamento do Semente, surge o esforço coletivo da Comuna, do qual a autora assume papel central da orquestração de reabertura, em 8 de janeiro de 2004. A Comuna do Semente foi um movimento coletivo de músicos, frequentadores e amigos que foi fundamental para a refundação e a transformação do Semente. As despesas foram cotizadas para que reabrisse um espaço de criação. A Comuna abria suas portas uma ou duas vezes por semana e foi quando começou a segunda-feira instrumental do Rio, liderada pelo violonista Zé Paulo Becker. A Comuna deu tão certo, a dedicação de todos foi tão intensa, que em três meses, de janeiro a março de 2004, ficou claro que as responsabilidades para se continuar seriam outras e era preciso transformar o Semente em um negócio viável e torná-lo uma marca de referência na música brasileira.

É importante ressaltar que não houve plano de negócios e nem estudo de mercado ou algo parecido. O que aconteceu foi uma reunião no dia 28 de dezembro de 2003 com a presença dos antigos sócios - Regina e Oswaldo, a autora principal, amigos e o músico violonista Luis Filipe de Lima. Nessa reunião foram tomadas duas decisões: 1) O lançamento da Comuna do Semente seria dia 8 de janeiro de 2004. 2) Esse pequeno grupo se comprometeu a chamar pessoas da sua rede de relacionamento que gostariam de contribuir com trabalho ou uma cota em dinheiro para o projeto acontecer.

3. Colcha de retalhos: forme parcerias

“Trabalhe com todo mundo que quiser vir”.

Fase 3: Abril 2004 a 2010 – Esquina da Joaquim Silva, Lapa – Rio de Janeiro

Deixar uma carreira consolidada em um mercado de muitas oportunidades para empreender no setor cultural foi o primeiro passo. Talvez tenha sido o mais difícil: a dedicação empreendedora à música. O Semente é um lugar para se fazer a música que se quer. “Música Viva”, como diz sua logomarca. Para isso se tornar realidade, era necessário criar as condições para que o Semente fosse um espaço experimental para a música nova, autoral, independente, bem executada tecnicamente e de alta qualidade. Era para ter samba, canção e música instrumental. Para torná-lo um selo de qualidade, também era preciso estimular a criação de plateia.

O esforço de articulação e curadoria buscava dar uma personalidade ao Semente, uma alma. As conexões internacionais, que anos depois contribuíram para a internacionalização da marca, foram acontecendo a partir da escuta da sua música. Em 2005, o primeiro jornalista do New York Times esteve no Semente e foi a primeira vez que o Semente saiu nesse jornal. A partir daí, colocar o Semente nos guias internacionais de viagem e revistas estava entre as metas.

Centenas de músicos tocaram no Semente, mas alguns foram decisivos para criar a identidade do lugar, entre os quais destacam-se: Yamandú Costa, Zé Paulo Becker, Edu Krieger, Carlos Malta e Nicolas Krassik. Eles foram importantes tanto para divulgar o Semente quanto para estabelecê-lo como um lugar que, embora diverso, tinha na música instrumental sua identidade. É claro que isso também implicou investimentos, dedicação das pessoas e de recursos financeiros e não financeiros para manter um espaço de criação.

4. Limonada: lide com contingências

“É como diz o ditado: quando a vida te dá limões, faça limonada. Você terá muitas surpresas, então trabalhe com elas”.

Fase 4: Abril 2004 a 2010 – Projeto Semente da Música Brasileira no Democráticos

Em termos da viabilização do negócio, ficou claro desde o início que o palco da Joaquim Silva era pequeno demais e era preciso expandir e divulgar a sua marca e sua música. A primeira iniciativa foi aproveitar as sextas-feiras do Clube dos Democráticos, que estavam vazias, e criar o projeto e selo musical “Semente da Música Brasileira”. Um palco maior, em que cabiam quase mil pessoas, na mesma região. Os dois palcos funcionaram conjuntamente: o pequeno da Joaquim Silva e o grande no Democráticos. O novo era criado no pequeno e depois levado para o grande. Isso tornou rentável economicamente produzir a música que caracterizou o Semente. De novembro de 2004 a 2010, grandes artistas dividiram os palcos com a nova geração: Elza Soares, Moraes Moreira, Arlindo Cruz, Monarco, Walter Alfaiate, entre outros. A banda residente das sextas-feiras no Democráticos era formada por Zé da Velha, Silvério, Zé Paulo, Semente Choro Jazz, Zé Renato e Roberta Sá. Foi uma época de ouro da Lapa.

5. Piloto do avião: controle, não preveja

“Foque em atividades sob seu controle e cocrie o futuro”.

Fase 5: De 2010 a outubro de 2017

A dualidade de palcos foi resolvida em 2010, quando foi alugada uma casa ao lado do pequeno imóvel original que abrigava Semente, com mais espaço e estrutura. A partir daí, muita coisa aconteceu.

Semente ganhou o prêmio Prime Finep. Algumas canjas, tais como as do Chico Buarque, João Bosco, do Ney Matogrosso e artistas internacionais, ficaram famosas. O Semente foi convidado para ser um dos palcos do festival Vila Lobos, um dos mais antigos festivais de música no Brasil. Durante alguns anos a programação do festival acontecia no palco Semente e em equipamentos culturais de grande porte: o Teatro do BNDES, a Sala Cecília Meireles e o Teatro Tom Jobim.

Nos últimos anos do Semente, a empreendedora do Semente, além da curadoria dos shows diários em seu palco, realizou projetos importantes que visavam registrar a sua trajetória na música: 2014 - Semente é contemplado para a produção do Livro Memória Afetiva do Botequim Carioca[3]. 2015 - Semente ganhou o Prêmio Funarte de Programação Continuada, que contemplou 22 espaços musicais independentes com mais de 10 anos de criação que, no Brasil, fossem considerados referência na sua cidade por investir em música independente e autoral. 2016 - Lançamento do DVD Geração Semente do Canal Brasil. Realização do Festival Semente da Música Brasileira – 1ª Edição com participação de artistas, tais como Yamandú Costa, Zé Paulo Becker, Guinga, Ney Matogrosso, Roberta Sá, Zé da Velha e Silvério Pontes, Arismar do Espírito Santo entre outros. 2017 - Festival Contemporâneos no Semente - 2ª Edição.

O ocaso em outubro de 2017, após quase 14 anos dedicados ao Semente, a marca e sua identidade estão vivas. No entanto, não foi possível escapar da crise que abateu o Brasil, em particular o Rio de Janeiro, e do descuido urbano (degradação) com a região da Lapa, o que tornou inviável manter a estrutura física do Semente[4].

A realidade local, a cena musical da Lapa, apesar da fama internacional, gerou pouco interesse nas esferas estaduais e municipais do poder público em dar suporte ao seu desenvolvimento continuado, mesmo em época de grandes investimentos na cidade, provenientes dos eventos mundiais Copa do Mundo em 2014 e Olimpíadas em 2016. Os investimentos realizados aconteceram de forma descolada e divorciada da dinâmica cultural e dos atos cotidianos da forma do empreender cultural da Lapa, contribuindo para a sua crise e consequente degradação, abandono da região e ocaso do Semente. Aqui, ressalta-se que o enraizamento é um bem perecível, o qual pode ser destruído e/ou perdido, inclusive por práticas turísticas predatórias. Ou seja: patrimônios culturais não possuem garantia de perenidade. Não basta ser um atrativo turístico para que um bem patrimonial seja afirmado, conservado e atualizado. Pois isso depende de que práticas turísticas incidam, condicionem e (re) configurem sua existência.

Após uma semana após fechamento, a marca Semente foi convidada para fazer parte da curadoria Blue Note Rio[5], uma das maiores marcas internacionais de clube de jazz do mundo, abriu uma sede em agosto no Rio, sendo a primeira da América Latina. Em novembro de 2018, o documentário “Semente da Música Brasileira”, do Canal Brasil, foi finalizado. Em 2019, o documentário foi exibido em três festivais de cinema, um nacional e dois internacionais na Índia e na Espanha, exportando e divulgando a música feita no coração da Lapa, bem como sua identidade.

A percepção é de que a história do Semente é também uma história da nossa dificuldade com o desenvolvimento. E isso não se trata de um lamento, mas da certeza de que só nos resta continuar tentando[6].

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de analisar de um empreendimento na música com relevância internacional que nasceu enraizado em um território, a Lapa, a partir lógica de ação Effectuation, implica em discussões fecundas sobre o empreendedorismo cultural situado. Pode-se afirmar que o Semente geriu um patrimônio relacional e artístico (imaterial) que projeta a imagem e a identidade de uma cidade para o mundo, inclusive em roteiros turístico-culturais.

Além disso, analisar esse caso de empreendedorismo cultural pode trazer contribuições relevantes para as políticas públicas que, frequentemente, negligenciam o território e a geração de externalidades (benefícios sociais e econômicos que não são passíveis de ser internalizados financeiramente no negócio privado) na forma, por exemplo, de reputação, imagem ou riqueza que a música produzida cria para o bairro, a cidade e o país.

A pesquisa, mesmo em sua fase inicial, inova ao desenvolver o estudo de caso, a partir de uma experiência que prioriza as dimensões meta-econômicas, o que permitirá lançar luz sobre como essas fontes de motivação se alavancam e se limitam mutuamente. Em que medida as motivações meta-econômicas atrapalham o sucesso financeiro do negócio - por exemplo, bloqueando medidas saneadoras - e em que medida elas permitem a realização de um negócio de alto impacto cultural, que alavanca a produção artística, ainda que deixe o negócio mais exposto aos efeitos de crises econômicas? Como a criação de uma marca de reputação artística (global-local) permite que outros negócios culturais venham a se recriar?

Nesse sentido, refletir sobre essa forma de empreender na cultura, que contraria alguns padrões clássicos da atuação empresarial e da estrita racionalidade econômica, é um ato coletivo e que o meio, suas redes e as relações econômicas e não-econômicas específicas do negócio contêm a fonte de motivação do empreendedor cultural e da diferenciação do desenvolvimento e dos resultados da criação de valor e gestão do patrimônio artístico.

Em que medida, dimensões meta-econômicas predominaram na decisão de empreender, na criação e no desenvolvimento do Semente, garantindo como resultado o sucesso do empreendimento, a criação de um capital cultural e criativo, a partir de articulações local-global? Não se trata em absoluto de desprendimento econômico ou negação do lucro, mas de um tipo de negócio e gestão do patrimônio imaterial e turístico em que há um balanço distinto do usual entre as perseguições de rentabilidade financeira e recompensa afetiva para cultura de uma cidade.

Por fim, os patrimônios culturais são escolhas da própria cidade e seu povo, que demandam compromisso e empenho dessa população que com eles estabelecem relações vinculantes e identitárias (patrimônio relacional). Isso implica contemporaneamente a ações políticas da cidadania e dos poderes públicos zelando por sua afirmação, sua conservação e sua atualização.

Referências

BARTHOLO,R.; SANSOLO, D. G.; BURSZTYN,I. Turismo de base comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras. Rio de Janeiro: Letra e Imagem, 2009. Disponível em: http://www.turismo.gov.br/sites/default/turismo/o_ministerio/publicacoes/downloads_publicacoes/TURISMO_DE_BASE_COMUNITxRIA.pdf. (Acesso em 18/11/2019).

JULIEN, P. A theory of local entrepreneurship in the knowledge economy. Edward Elgar Publishing, 2008. 336p.

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Notas

[1] “Os bares morrem numa quarta-feira”, crônica antológica de Paulo Mendes Campos, publicada em 1977. No texto, o escritor mineiro remonta o ciclo de apogeu e morte dos bares que marcaram época no Rio de Janeiro. A propósito, a expressão “os bares morrem numa quarta-feira” é do poeta paulista Mário de Andrade, citado por Paulo Mendes na crônica.
[2] Saras Sarasvathy é professora da Darden School of Business da Universidade da Virgínia (EUA). Autora do livro Effectuation: Elements of Entrepreneurial Expertise que, em 2009, foi selecionado para o Terry Book Award. Entre outros prêmios, em 2007, Sarasvathy foi selecionada, com outros 17 acadêmicos da área de empreendedorismo, para compor a lista da Fortune Small Business. Em 2012, ganhou a Gold Medal do Axiom Business Book Awards pela coautoria no livro Effectual Entrepreneurship. Sarasvathy também atua no conselho da Lending Tree da Nasdaq, em conselhos consultivos para instituições acadêmicas na Europa e na Ásia, além de ministrar inúmeras conferências e aulas de MBA e doutorado em universidades dos EUA, Europa, América Latina e África, sobre seu método Effectuation para a criação de negócios. Em 2020, Sarasvathy estará lançando o livro The Ask que trata a relação entre empreendedores e stakeholders.
[3] Nos anos de 2014 e 2015, o Semente produziu o livro “Memória afetiva do botequim carioca” de Paulo Thiago de Mello e Zé Octávio Sebadelle. 1ªed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015. É um dos 20 livros selecionados para a Biblioteca Rio450, que trata do “estado de espírito” carioca como patrimônio imaterial da cidade. O livro conta a história de mais de 30 bares fechados (alguns reabertos), sua boemia, seus personagens e produção musical. Tem prefácio de Sergio Cabral e apresentação de Aldir Blanc.
[4] https://oglobo.globo.com/rio/depois-de-florescer-na-lapa-no-fim-dos-anos-1990-bar-semente-fecha-as-portas-21920264

https://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,rio-de-janeiro-perde-patrimonios-de-sua-cultura-com-o-fechamento-do-semente-e-gafieira-estudantina,70002055383

https://jornalggn.com.br/blog/augusto-diniz/a-crise-atrapalhou-mas-a-lapa-nao-e-mais-a-lapa-faz-tempo-por-augusto-diniz

[5] Atualmente fechado desde junho de 2019.
[6] Algumas das matérias nos jornais internacionais (The Guardian e NYTimes) meses após o fechamento do Semente:

https://www.theguardian.com/world/2018/jun/26/more-dead-than-alive-rios-closure-of-legendary-club-reflects-cultural-crisis

http://riotimesonline.com/brazil-news/rio-entertainment/new-yorker-band-snarky-puppy-performs-tonight-in-rios-lapa/

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