Resumo: Fundamentado nos referentes materiais e imateriais associados à imigração, o território no qual se encontram instituições culturais e religiosas, estabelecimentos comerciais e manifestações culturais de distintas etnias que ali se fixaram ao longo do tempo, foi objeto de um programa de orientalização instituído em 1974, e que perpetua desde então no bairro da Liberdade, localizado na cidade de São Paulo/SP. De natureza qualitativa com relação ao objetivo, o artigo centra-se na ressignificação do espaço e de expressões culturais de etnicidade. Propõe-se a historicizar o processo de adequação do bairro para o lazer e o turismo por meio de ajustes de representação das etnicidades e de sua paisagem cultural. Problematiza os ocultamentos e apagamentos desencadeados por esse processo, a partir de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, construída por meio da observação, realização de entrevistas e registros fotográficos. Constata-se a longevidade do programa protagonizado pelos japoneses, apesar da vitalidade econômica chinesa, e a reivindicação de narrativa do movimento negro, fortalecida com a aprovação da lei de criação do Memorial dos Aflitos.
Palavras-chave:Patrimônio CulturalPatrimônio Cultural,Legado étnicoLegado étnico,TurismoTurismo,MemóriaMemória,Liberdade/São Paulo/SPLiberdade/São Paulo/SP.
Abstract: Based on material and immaterial referents associated with immigration, the territory where, over time, were found cultural and religious institutions, commercial establishments and cultural events starred by different ethnic groups, was the subject of an orientalization program instituted in 1974, which has been perpetuated ever since in the district of Liberdade, located in São Paulo’s capital. Qualitative in nature, regarded to its aim, the paper focuses on the redefinition of ethnicity’s space and cultural expressions. It is proposed to historicize the process of adapting this district to leisure and tourism through adjustments made to represent ethnicities and their cultural landscape. It problematizes the concealments and erasures triggered by this process, based on bibliographic, documentary and field researches, built through observation, interviews and photographic records. The program's longevity and a possible destabilization of the dominant oriental identity monopoly in the district were evidenced, due to the narrative claimed by the black movement, strengthened by the approval of the law which created the Memorial dos Aflitos.
Keywords: Cultural heritage, Ethnic legacy, Tourism, Memory, Liberdade/São Paulo/SP.
Resumen: Fundamentado en los referentes materiales e inmateriales asociados a la inmigración, el territorio en el que se encuentran instituciones culturales y religiosas, establecimientos comerciales y manifestaciones culturales de distintas etnias que allí se establecieron a lo largo del tiempo, fue objeto de un programa de orientalización instituido en 1974, y que se perpetuó desde entonces en el barrio Liberdade, localizado en la ciudad de Sao Paulo/SP. De naturaleza cualitativa en relación con el objetivo, el artículo se centra en la resignificación del espacio y de las expresiones culturales de etnicidad. Se propone historizar el proceso de adecuación del barrio para la recreación y el turismo, por medio de ajustes en la representación de las etnicidades y de su paisaje cultural. Problematiza los ocultamientos y supresiones desencadenados por ese proceso, a partir de la investigación bibliográfica, documental y de campo, construida por medio de la observación, realización de entrevistas y registros fotográficos. Se constata la longevidad del programa protagonizado por los japoneses, a pesar de la vitalidad económica china, y la reivindicacion de la narrativa del movimiento negro, fortalecida con la aprovación de la ley de creación del Memorial de los Afligidos.
Palabras clave: Patrimonio Cultural, Legado étnico, Turismo, Memoria, Liberdade/Sao Paulo/SP.
Dossiê Temático
RESSIGNIFICAÇÃO DE EXPRESSÕES CULTURAIS DE ETNICIDADE PARA A CONSTITUIÇÃO DE UM DESTINO DE LAZER E TURISMO NA CIDADE DE SÃO PAULO*
Reassignment of ethnicity’s cultural expressions in the constitution of a leisure and tourism destination in the city of São Paulo
Resignificación de las expresiones culturales de etnicidad para la constitución de un destino de recreación y turismo en la ciudad de Sao Paulo
Recepção: 15 Agosto 2020
Aprovação: 31 Agosto 2020
Huyssen (2004, 2004b) acentua a importância atribuída à memória na sociedade contemporânea. Crucial para a coesão social e cultural, constitui substrato para a definição de uma identidade. Iniciativas destinadas a perpetuá-la são materializadas por intermédio da instalação de marcos comemorativos, criação de museus, definição de toponímia, produções artísticas, cinematográfica, editorial entre outros. Com o mesmo propósito, situa-se a restauração historicizante de áreas, paisagens e patrimônios de interesse histórico.
Esse processo comporta a produção de narrativas e, consequentemente, a manipulação da memória em uma dinâmica de seleção e ocultação de referentes históricos para a definição de sentidos previamente determinados e que se encontram, por vezes, associados a um propósito como, por exemplo, o turismo.
Da formação histórico-social do bairro paulistano da Liberdade acentua-se a presença de nacionais, africanos e imigrantes de origem portuguesa, italiana, japonesa, taiwanesa, chinesa (China Continental), coreana entre outras, cujos referentes materiais e imateriais encontram-se presentes nesse território. Apesar dessa diversidade, constituiu-se uma representação identitária oriental dominante com o propósito de potencializar o comércio e o turismo.
O programa de orientalização colocado em curso nesse território de inegável influência asiática conta com o aporte nos monumentos, restaurantes étnicos, comércio especializado em produtos orientais, manifestações culturais realizadas ao longo do ano no espaço público etc.
O texto apresenta estudos realizados sobre bairros étnicos nos Estados Unidos da América e na Europa Central, discorre sobre memória e patrimônio e se centra na ressignificação do espaço e de expressões culturais de etnicidade implementadas no bairro paulistano da Liberdade. De natureza qualitativa com relação ao objetivo, historiciza o processo de adequação do bairro para o lazer e o turismo por meio de ajustes de representação das etnicidades e de sua paisagem cultural. Problematiza os ocultamentos e apagamentos desencadeados por esse processo, a partir de pesquisa bibliográfica, documental e de campo, construída por meio da observação, realização de entrevistas e registros fotográficos.
Crucial para a coesão social e cultural de uma sociedade (Huyssen, 2004a), a memória é polifônica, apoia-se em lugares, personagens, eventos, celebrações, marcos desaparecidos e diferentes atores sociais. Essa dependência da memória de suportes exteriores e referenciais tangíveis associa-se à sua inserção na prática social. O lugar de memória é simultaneamente matricial, simbólico e funcional, “constitui o seu próprio referente, é fechado sobre sua identidade” (Nora, 1993, p. 27).
O lugar de memória é um lugar vivo, presente no conjunto das práticas sociais dos sujeitos. Nesse sentido, trata-se de uma “reconstrução continuamente atualizada do passado, mais do que uma reconstituição fiel do mesmo” (Candau, 2011, p. 9). Afetivo e fundamentado na tradição, apresenta continuidade, mas o rompimento dessa continuidade ou sua desritualização resultam na perda do sentido de ancestralidade, transformam o lugar de memória em lugar de história, embora permaneça a denominação anterior. (Nora, 1993)
O território é denso de memórias, o que requer vários níveis de sinalização interpretativa indicativo do entorno, com a identificação de edificações importantes, mas não necessariamente tombadas, para garantir sua perpetuidade por meio desse expediente jurídico. Pormenores, indícios, resíduos e dados marginais constituem partes de uma totalidade que necessita ser reconstruída para dotar-se de sentido. Nos anos 1970, ocorreu uma cultura da memória expressa por “restauração historicizante de velhos centros urbanos, cidades-museus e paisagens inteiras, empreendimentos patrimoniais e heranças nacionais” nos Estados Unidos e na Europa, fenômeno acompanhado do incremento literário associado à memória, autobiografias e abordagem psicanalítica sobre o trauma, presença temática nas artes visuais, documentários e canal de história na televisão (Huyssen, 2004b, p. 14).
Passível de ser manipulada, a depender do propósito daquele que a manuseia, a narrativa relacionada à memória é seletiva e comporta certo grau de esquecimento, ao passo que uma política de esquecimento público associa-se à construção de um “discurso memorialista politicamente desejável”, enquanto a constituição de uma memória pública nacional compreende configurações de esquecimento compatíveis ao projeto em curso e consequentes implicações, a ponto de distorcê-la e erosioná-la ou precisá-la em razão de sua complexidade (Huyssen, 2004a).
A tematização da memória implica em refletir sobre como o passado é montado e como é usado, bem como sobre como o patrimônio é construído e mobilizado, tendo em vista a sua ligação com o território e a memória (e, consequentemente, com a identidade), sua importância na cultura e nas políticas públicas (Hartog, 2006).
A origem das práticas de preservação do patrimônio cultural no mundo moderno coincide com o processo de formação dos Estados Nacionais, no século XIX. Bens arquitetônicos e monumentais foram consagrados como patrimônio nacional, “cujos atributos o tornam prova da existência da nação e de suas origens em tempos imemoriais, configurando uma identidade própria, isso é, apropriadamente nacional” (Chuva, 2012, p. 14).
Atualmente, constata-se a proliferação de memórias, ampliação e mudanças significativas do campo do patrimônio cultural que requer abordagens com interpretações em diacronia, ao comportar diferentes temporalidades em um mesmo contexto de espaço-tempo, fontes documentais de distintas naturezas, valorização da diversidade cultural brasileira e uma noção que integre as categorias material e imaterial (Chuva, 2012).
A valorização social do patrimônio “conduziu ao desenvolvimento de múltiplas ações no sentido do resgate e ativação patrimonial [...] associada ao desenvolvimento de uma estratégia de proteção centrada na conservação de identidades e de referentes culturais de estabilidade” (Anico, 2005, p. 75). Por vezes, a representação de passado associada ao patrimônio encontra-se saneada para não apresentar vestígios de conflitos e se desconhece o seu contexto de patrimonialização, aspecto relevante para a compreensão do processo de construção de seu sentido e significado.
A exploração comercial do patrimônio cultural o inscreve na lógica do espetáculo e do consumo, o processo requer sua adaptação a essas demandas, necessidades expositivas e à pressão turística cada vez mais intensa e brutal que compromete sua conservação. A ativação patrimonial motivada pelo turismo provoca confrontações entre a lógica turística-comercial e a lógica identitária. A imagem veiculada se converte na própria identidade do grupo, em sua memória coletiva, que a assimila por meio de discursos hegemônicos veiculados nos meios de comunicação e no sistema educativo (Prats, 1998).
Convite à rememoração, o patrimônio requer políticas de conservação, reabilitação e comemoração para dotar e manter sua visibilidade (Hartog, 2006, p. 266). Indexador do passado, o patrimônio converte-se à evocação nostálgica conservada no ambiente material que nos circunda, indexada aos monumentos, esculturas, obeliscos etc. (Santiago Júnior, 2018).
A ausência de referentes patrimoniais não impede a construção de uma identidade fundamentada em uma história, essa é inventada e passa a organizar o passado e a conferir-lhe legitimidade. Por sua vez, verifica-se a valorização memorial em detrimento ao monumento, cujo princípio é o de manter viva e transmitir determinada memória (Hartog, 2006).
Anico (2005, p. 93) assinala o desenvolvimento de uma indústria da nostalgia que resgata, idealiza, romantiza e, por vezes, inventa o passado, além de contemplar nesse processo a “patrimonialização da cultura”. Nesse sentido, a construção de referentes simbólicos resulta da valorização dessas memórias e do patrimônio local com o propósito de evitar o esquecimento ou de o colocar a serviço do desenvolvimento econômico. O êxito requer a observância aos critérios de autenticidade e de tradição, valorizados pelos protagonistas do consumo cultural.
Os investimentos econômicos no patrimônio, em virtude de sua importância para o turismo e o lazer, são situados por Hartog (2006, p. 270) “diretamente, nos ritmos e temporalidades rápidas da economia de mercado de hoje”. Assinala a sua imposição como dominante da vida cultural e das políticas públicas. Ligado ao território e à memória, constitui um convite à rememoração, ao regresso da memória de forma coletiva, embora esse passado seduza “mais do que a história” (Hartog, 2006, p. 272).
Apesar dos custos envolvidos e do distanciamento em relação ao passado histórico e às especificidades culturais locais, ocorre a multiplicação do patrimônio (cultural, natural, vivo/genético e técnico), sua transmissão alcança caráter obsessivo e se dissemina para o mundo todo, reproduzindo os preceitos da cultura contemporânea, ou seja, desterritorializado e padronizado, converte-se em mercadoria a ser consumido em escala global (Anico, 2005; Reis, 2012).
O patrimônio possui valor plural, aspecto por vezes banalizado na construção do programa de visitação turística, processo que compreende desde a seleção dos monumentos à mediação estabelecida entre o visitante e o bem cultural durante a visitação e, consequentemente, no direcionamento de seu significado: “vê-se aquilo que o guia declara que se está vendo” (Meneses, 2009, p. 28).
Além de possíveis alterações nas manifestações culturais assimiladas ao turismo, Chuva (2012, p. 23) aponta a ambivalência dos efeitos da patrimonialização em relação a sua mercantilização: a valorização do patrimônio imobiliário apropriado pelo turismo ou “a desvalorização do valor econômico da propriedade privada, impedida de se transformar ou de ser demolida pela especulação imobiliária urbana”.
Ao ser mercantilizado, o patrimônio corre o risco de banalização, pois ao ser instrumentalizado para a obtenção do lucro, por vezes opera-se a oposição entre a lógica da cultura, guiada pela produção do sentido e da comunicação, e a lógica do mercado. Todavia, existe “uma dimensão econômica no bem cultural, assim como uma dimensão cultural no bem econômico.” (Meneses, 2009, p. 38).
Objeto de consumo globalizado, o turismo valoriza a memória, a tradição, a identidade e suas particularidades locais. Opera a reconstrução ou invenção do passado para associá-lo ao local como uma característica, um diferencial a ser mercantilizado como objeto turístico.
O turismo apoia os discursos de preservação e de sustentabilidade, apropria-se do capital simbólico e cultural associados à imigração, opera a valorização mercadológica dos remanescentes das culturas do passado e os divulga. Os impactos decorrentes dessa atividade econômica expressam-se desde a alteração de significado do lugar, mediante a instalação de meios de hospedagem e restaurantes, padronização das características naturais, sociais e culturais, à melhoria da infraestrutura urbana. Acrescenta-se a construção de uma imagem da produção espacial e reprodução social destituída de contradições (Matheus e Silva, 2008).
A preocupação estética com o patrimônio e a constituição de cenografias, de acordo com os propósitos dos empreendedores que atuam nessa localidade, concomitantemente à sua ativação como atrativo turístico reproduz modelos internacionais, como os que valorizam regiões associadas à imigração, mediante adaptação de suas especificidades.
Conforti (1996) salienta as implicações da preservação associada ao turismo para a sociedade americana. Alerta para os efeitos negativos dessa modalidade de preservação quer ao reforçar a associação de determinado estereótipo ao local, quer ao operacionalizar uma reconstrução seletiva do passado. Ford, Klevisser e Carli (2008) problematizam esse modelo para a realidade da Europa Central, assinalando os procedimentos necessários para a celebração da identidade étnica na promoção dos distritos centrais das cidades.
A valorização da arquitetura, da estética e da vida urbana dos distritos étnicos constituem os elementos centrais de sua ambientação e diferenciação, cujos ajustes de representação se adequam à atividade turística. A generalização dessa estratégia resulta na preservação histórica e celebração tanto da etnia real quanto de uma identidade romantizada. Nesse sentido, assinala-se o esforço necessário para conversão e promoção de distritos associados a um passado de pobreza, discriminação, exclusão e violência vivenciados originalmente nessas localidades, bem como o risco da manutenção dessa associação na proposta de turistificação da localidade (Conforti, 1996). Convencionam que até mesmo pequenas áreas possuem potencialidade para desempenhar importante papel na imagem de uma cidade, mas sequer a ausência de um enclave étnico[1] constitui entrave ao seu desenvolvimento e a literatura comporta estratégias de invenção de paisagens étnicas, com variações de identidade italiana, chinesa, coreana, japonesa e grega (Ford et al, 2008).
Destaca-se a estratégia de valorização de uma ou mais ruas dominantes, nas quais se concentram restaurantes étnicos, cafés, mercearias, lojas de presentes, cabelereiros, edificações religiosas, empresas, decoração externa (texturização e pintura colorida de calçadas, murais e iluminação) e mobiliário urbano (portais, placas, lixeiras etc.). Nessa área também é comum a celebração de festas tradicionais de rua e realização de eventos associados à referida identidade. O plano de revitalização destinado à fomentar o turismo comporta mudanças na infraestrutura destinada a favorecer a acessibilidade, tais como alargamento de calçadas e estabelecimento de transporte público para estimular o visitante a caminhar pelo local e visitá-lo sem carro, definição de área para estacionamento, bem como criação de site oficial com informações sobre atividades e realização de eventos. (Ford et al, 2008; Conforti, 1996).
A manutenção desses programas em distritos nos quais se verifica a redução do número de moradores associados à referida etnia e seus descendentes e a fixação de imigrantes de outras nacionalidades na mesma área é problematizada por Conforti (1996). Exemplifica-o com o avanço da imigração chinesa sobre a Little Italy de Manhattan (Nova Iorque) e a sua revitalização na década de 1970, liderada por comerciantes e donos de restaurantes mediante a criação de uma associação (Little Italy Restoration Association – LIRA). Salienta a importância da proximidade a outras atrações turísticas para o sucesso de destinos de cunho étnico, ou seja, a presença de um território turístico composto por teatros, museus e outros atrativos. Para esse autor, a motivação para a visitação advém da identidade promovida pelo local, ou seja, atrai sobretudo descendentes em busca de suas raízes ancestrais, a curiosidade por conhecer o ambiente étnico nostálgico e desfrutar dos sabores disponíveis nos estabelecimentos de alimentação.
Rath (2007) salienta as perspectivas teóricas e desafios resultantes de pesquisas que relacionam turismo, migração, diversidade étnica e lugar. Instiga o desenvolvimento de análises das manifestações de diversidade étnica mercantilizada por imigrantes e a transformação dessas expressões culturais em veículo de desenvolvimento sócioeconômico, tanto para os imigrantes quanto para a cidade, mediante perspectivas interdisciplinares e comparativas.
Elemento de diferenciação, o recurso etnocultural apresenta viabilidade econômica, potencializá-lo implica em dotá-lo de visibilidade, torná-lo disponível, integrá-lo à atividade turística maior da cidade (Rath, 2007). A distribuição dos grupos étnicos que preservam suas identidades culturais no meio urbano variam: existem pequenas concentrações associadas a igrejas, escolas, clubes ou instituições, bem como grandes concentrações ou ainda pequenas “ilhas” distribuídas por toda a cidade. Sua coesão é mantida por meio da criação e manutenção de instituições culturais, redes de apoio, manutenção do idioma etc. Essa presença cria uma paisagem cultural que expressa o simbolismo, estilo e iconografia do grupo, dota-a de odores, sons e sensibilidades que lhe são associadas (Rath, 2007; Timothy, 2002).
A mercantilização dos aspectos culturais e representações simbólicas de determinadas localidades, individualizadas nas cenografias urbanas por meio das fachadas das edificações, plasticidade dos logradouros, decoração e atendimento dos estabelecimentos que comercializam serviços ou bens que lhes são característicos em lojas, restaurantes, cafés, mercearias e bares, ajudam a preservar as tradições e valores comuns ao grupo. Festivais e eventos culturais comumente realizados com o intuito de fortalecimento da comunidade étnica, são incluídos no calendário de eventos da localidade, associados às campanhas de marketing para promovê-los, visam atrair pessoas externas às redes sociais dos grupos imigrantes, estimulando a sociabilidade nas ruas e o consumo cultural (Rath, 2007; Collins, 2007; Gomes, 2002; Timothy, 2002).
O envolvimento dos imigrantes na economia do turismo é destacada por Rath (2007), quer como trabalhador pouco qualificado, empregado nas empresas relacionadas ao turismo, quer como empresário proprietário dessas empresas, quer mediante a integração de suas expressões culturais e/ou imaginário cultural na política de turismo. Indaga a propensão de determinados grupos étnicos para o empreendedorismo, tanto em razão das dificuldades de inserção no mercado de trabalho, decorrente da exclusão ou bloqueio da mobilidade de cargos e salários, bem como por seu enraizamento social facilitar a redução dos custos de transação ou permitir o acesso privilegiado aos recursos econômicos (Rath, 2007).
Contradições na relação turismo e migração são apontadas por Collins (2007) para garantir a manutenção das particularidades dessas localidades e a preservação de sua representação simbólica. Também, acentua a presença de esteriótipos etnoculturais ultrapassados, apoiados em uma homogeneidade étnica, apesar da diversidade e dinâmica que caracteriza as cidades contemporâneas, cujos bairros comportam sucessão de etnias ao longo do tempo. Salienta operações cosméticas destinadas a criar fachadas e monumentos para se adequar às expectativas imaginárias do potencial consumidor e incrementar a visitação, causando impactos de legitimação entre os co-étnicos e na sua frequência. Questiona a autenticidade dessas manifestações destinadas a dotar de credibilidade a experiência turística, indaga sobre o controle de sua representação simbólica, bem como acerca da seleção dos lugares mercantilizados em uma cidade.
As cidades brasileiras receberam contingentes imigratórios significativos e apresentam legados étnicos mercantilizados pelo turismo. Em estudo precursor em Curitiba, Bahl (2004) propôs um tratamento inicial desses legados e a constituição de propostas em conjunto com a comunidade para melhorar a compreensão de seu significado, estimular a preservação das manifestações culturais e das edificações, valorizar a memória dos imigrantes e de seus descendentes.
A presente pesquisa pauta-se no pressuposto da coincidência entre fluxos de turismo e de migração no bairro paulistano Liberdade, instituída por meio da mercantilização de expressões culturais de etnicidade. A acepção de etnicidade desse programa funda-se no princípio de que há comportamentos, representações e sentimentos de pertencimento dos partícipes do referido grupo étnico que os distingue dos não membros, os outsiders (Poutignat, Streiff-Fenart, 2011). Acrescenta-se o processo de territorialização, materializado por meio de evidências materiais no espaço público como, por exemplo, instituições culturais e religiosas, estabelecimentos comerciais, iconografias nas fachadas das edificações e manifestações culturais, expressas nos festivais, sonoridades (música e conversação), odores, entre outros.
A primeira fase da pesquisa destinou-se à compreensão do processo de ocupação e urbanização do bairro, o que abrangeu a identificação das etnias que se estabeleceram no local, instituições culturais, marcos arquitetônicos etc. Para tanto foram realizadas pesquisas bibliográficas, documentais e de campo, o que compreendeu levantamentos em arquivos, bibliotecas e instituições culturais, bem como de instituições culturais e religiosas, estabelecimentos comerciais e demais espaços criados no processo de enraizamentos dos grupos étnicos. O perímetro de estudo, circunscrito à Avenida da Liberdade, Praça Dr. João Mendes e pelas ruas Conselheiro Furtado e São Joaquim, foi estabelecido mediante realização de pesquisa exploratória e a observação direta.
A segunda fase centrou-se na problematização da representação simbólica e celebração da etnicidade, bem como em detectar os lugares associados às comunidades étnicas, o que inclui manifestações culturais, monumentos, dentre outros., por meio de pesquisas bibliográficas, documentais e realização de entrevistas.
A terceira fase concentrou em compreender o turismo, o que inclui as proposições urbanísticas para adaptação e atualização dos logradouros (decoração, mobiliário urbano, acessibilidade etc.), fachadas e empreendimentos, além da interlocução dos empreendedores com o poder público municipal. Pesquisas bibliográficas, documentais, realização de registros fotográficos e entrevistas destinaram-se a atender essa etapa. Instituiu-se o acompanhamento do calendário oficial de eventos da Prefeitura do Município de São Paulo, instituições culturais (Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e Associação Cultural e Assistencial da Liberdade), Guia da cidade (2017) e mídias sociais para identificar os eventos e, na medida do possível, visitá-los e registrá-los.
Acordos firmados com o governo japonês no início do século XX, tiveram como foco a fixação dos imigrantes nas áreas agrícolas, sobretudo, do Estado de São Paulo (Paiva, 1980). Parte dessa comunidade direcionou-se para a capital e se estabeleceu em área pouco valorizada economicamente, nas proximidades do centro (Mori et al., 2010).
Casas de moradia, escola (nível primário), quadra de tênis, meios de hospedagem (hotel e pensão), estabelecimentos comerciais da área de alimentação (doceria, casa de shoyo, udon e manju), lojas e outras modalidades de negócios (como o Jornal Brasil Jiho) foram assinalados por Handa (1987) em um mapa ilustrativo da rua Conde de Sazerdas e adjacências, e publicado no livro no qual descreve as experiências vivenciadas pelos japoneses no Brasil. O conjunto identificado expressa a agregação do grupo em um território específico e o estabelecimento de referentes culturais do repertório de consumo do imigrante, disponibilizados no seu idioma e passível de ser compartilhado entre pares.
Essa aglutinação e as dificuldades de assimilação dos japoneses na sociedade de acolhimento foram atribuídas à origem étnica (não branca), dificuldades com o domínio do idioma, endogamia e especificidades culturais (Araújo, 1940). Com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial e o seu apoio aos Aliados, o governo determinou a saída dos japoneses das proximidades da área central da cidade de São Paulo em 1942 (Negawa, 2000; Mori et. al., 2010; Nakagawa et al., 2011). Ao serem autorizados a retornar, evitaram as íngremes ruas de sua ocupação inicial, instalando-se na rua Galvão Bueno e proximidades, onde desde o final da década de 1920 já se localizavam estabelecimentos de empreendedores japoneses (Museu, 2008).
Corresponde à década de 1950 a fixação de comércio destinado ao consumo de alimentos e de equipamentos associados ao entretenimento, como as salas de cinema que exibiam filmes produzidos no Japão e, dentre elas, o cine Niterói (1953), em cuja edificação também coexistia um hotel e espaço destinado à realização de eventos, além da valorização das tradições culturais nipônicas, a partir da fundação da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social, em 1955 (Kishimoto, 2013; Negawa, 2000; Nakagawa et al., 2011). Corroborará com a afirmação da identidade oriental desse território a celebração do quinquagésimo aniversário da imigração japonesa, que contou com a participação do irmão do imperador Hiroito, o príncipe Mikasa, em razão da importância dessa comunidade.
Obras relativas às construções da via de ligação Leste-Oeste (1968) e da linha do Metrô Norte-Sul (Azul) afetaram a representatividade oriental do bairro. Além da demolição do cine Niterói, considerado um ícone representativo do bairro, prejudicou o comércio aglomerado no seu entorno (composto por bares, restaurantes, loja de presentes, dentre outros) com a fragmentação das ruas Galvão Bueno e Conselheiro Furtado em duas partes. Infere-se que a divulgação desses projetos de intervenção urbana tenha mobilizado os comerciantes a criar a Associação de Confraternização dos Lojistas do Bairro da Liberdade (1965), precursora da Associação Cultural e Assistencial da Liberdade (ACAL), então presidida por Uoshikazu Tanaka, empresário do Cine Niterói, convertendo-a em porta voz do interesse coletivo desse grupo.
A degradação desencadeada pelas obras trouxe prejuízos ao comércio e ao setor de serviços, argumentos justificadores do programa de revitalização de conotação oriental financiado pelos comerciantes, com apoio da Prefeitura. A imprensa nipônica (Jornal Nippak, 11-12/09/2010) explorou ângulos distintos dessa iniciativa: em uma das matérias há o protagonismo do prefeito Paulo Maluf, que “pediu aos comerciantes que o bairro da Liberdade se transformasse para que pudesse ser chamado de Oriental” (História, 11-12/09/2010, p. 4), enquanto outra atribui ao jornalista Randolfo Marques Lobato a idealização do projeto (em apenas três minutos) e a sua coordenação, ao passo que uma terceira matéria aponta a apresentação do projeto ao Cônsul Geral do Japão e, consequentemente, a interação direta com a comunidade, por meio de Tsuiyochi Mizumoto, “líder dos comerciantes, empresários e o presidente de uma comissão de moradores que reunia, além dos japoneses, coreanos, chineses e vietnamitas no bairro japonês” (Antigo, 11-12/09/2010, p. 4). No depoimento cedido a Shiguti (2010, p. 4), o jornalista acentua a interlocução que estabeleceu com os comerciantes e com a Secretaria Municipal de Turismo:
Transmiti para o então Secretario Municipal de Turismo de São Paulo, Marcio Papa na gestão do Prefeito Paulo Maluf, que a Liberdade estava degradada e que deveria ser revitalizada através de um projeto urbanístico, o qual poderia torná-la um grande centro de atração turística. [...] quando o Tsuyoshi [responsável operacional do projeto] convocou uma reunião para que pudéssemos apresentar o projeto, disse que o exemplo deveria partir dos lojistas, que deveriam pintar as fachadas de seus estabelecimentos. Todos obedeceram e nunca houve qualquer crítica. O entrosamento foi espetacular.
A expressão “todos obedeceram” no depoimento do jornalista é indicativa de que inexistia a possibilidade de oposição, pois tal fato se inscreve no período da ditadura militar (1964-1985). Por sua vez, na versão do articulista, esse tom é minimizado, ao ponderar que ocorrera um “pedido” do prefeito.
Nesse depoimento Randolfo Marques Lobato afirma que sugeriu a denominação “oriental” em razão do bairro abrigar não apenas a comunidade japonesa, mas também a chinesa e a coreana. Para ele, o projeto tornara o bairro da Liberdade “um dos mais importantes centros turísticos e de negócios de São Paulo e do Brasil”, além de um dos principais cartões postais da cidade (Shiguti, 2010).
Como destacado pelo jornalista, durante a década de 1960, se intensificara a instalação de chineses (China Continental) e taiwaneses que, num primeiro momento, adaptaram-se à imagem pré-existente do bairro e não chamaram sobre si a atenção, e de coreanos, que reproduziram a trajetória de ocupação dos japoneses, ao se estabelecerem inicialmente na rua Conde de Sazerdas e com lojas, posteriormente, na rua Galvão Bueno (Choi, 1991; YIN, 2014). De acordo com o terceiro artigo, a diversidade de etnias ali reunidas designa uma representação, a japonesa (Antigo, 11-12/09/2010).
Expressões visuais e mobiliário urbano foram inseridos nos logradouros para a sua caracterização como oriental, reforçando os elementos já presentes nas fachadas das edificações (como os letreiros em japonês) ou na oferta de bens e serviços, enquanto manifestações culturais passaram a ser praticadas na Praça da Liberdade, como a primeira edição do Festival Oriental (Toyo Matsuri, 1969). Sucedeu-se a denominação Osaka para o viaduto da Rua Galvão Bueno, fator indicativo do intercâmbio entre as duas cidades que acabou por resultar na titulação de ambas como cidades irmãs, criação de jardim japonês, implantação de calçamento padronizado, instalação do sistema de luminária Suzuran e do Torii: “com o Torii o bairro ganhou a aparência de uma região que tem mais a cara do Japão do que muitos bairros japoneses atuais” (Antigo, 2010, p. 4).
Concluída essa etapa de implantação, em 1974 ocorreu a inauguração do bairro oriental, cuja representação foi sendo gradativamente reforçada por intermédio da realização de manifestações culturais na Praça da Liberdade, como o Festival das Flores (Hana Matsuri, 1976), Festival do Bolinho das Prosperidade (Moti Tsuki Matsuri, 1976) e Festival das Estrelas (Tanabata Matsuri, 1979) (História, 11-12/09/2010, p. 4). Ao passo que a comemoração dos 70 anos da imigração japonesa no Brasil, marcada pela participação do casal imperial Akihito e Mishiko nas festividades, reforçará essa memória na cidade, enquanto uma narrativa histórica se instituirá a partir da inauguração do Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil, em 1978.
Um segundo programa de revitalização contextualizado ao Centenário da Imigração Japonesa é indicativo dos elementos por ele valorizados: marcos representativos das tradições japonesas. Financiado pela iniciativa privada, o “Caminho do Imperador” tem como área de abrangência a trajetória percorrida pelo casal imperial japonês Akihito e Michico, por ocasião de sua visita à Liberdade em 1997. Do conjunto projetado, as ações relativas à Praça da Liberdade e seu entorno foram concluídas em 2008, alterando significativamente as características desse conjunto ao atribuir ou enfatizar elementos orientais, proposta que também incidia sobre a rua Tomás Gonzaga, onde se concentravam restaurantes japoneses. Apesar desse direcionamento, o vereador Kamia assinalou a presença das comunidades chinesa e coreana no bairro, ao destacar o caráter multirracial e multicultural da sociedade de acolhimento (Shiguti, 2010b).
Idealizado pelo Consulado Geral do Japão em São Paulo, o Programa de Revitalização permanente da Liberdade - RevitaLiba apresenta como objetivos o resgate e criação de Legado da Cultura Japonesa, bem como o envolvimento da comunidade na limpeza do bairro da Liberdade. Na iniciativa realizada em 2018, a JCI Brasil Japão foi escolhida pelo Consulado para liderar o mutirão de limpeza com o apoio do Interkaikans e a Comissão de Jovens do Bunkyo, fator indicativo da unidade japonesa nessa iniciativa.
Apoiado pela Associação Cultural e Assistencial da Liberdade (ACAL), cuja correspondência em japonês é Bunka Fukushi Kyôkai, do ponto de vista simbólico, o programa subentende a valorização da memória japonesa no bairro, reforçada com a promoção da edição anual de festivais gratuitos (Tanabata Matsuri, Moti Tsuki Matsuri, Hanamatsuri e Toyo Matsuri), parte deles realizados na referida Praça da Liberdade, além do mobiliário urbano com a temática oriental (luminárias - suzurantô, portal xintoísta – torii, jardim japonês, esculturas etc.), letreiros em japonês na fachada das edificações etc. Presidida pelo empresário Hirofumi Ikesaki, o site da instituição acentua sua influência junto ao poder público, ao pontuar a alteração do nome da Praça da Liberdade para Liberdade – Japão; e da estação de Metrô Liberdade para Japão – Liberdade, bem como a instalação de monumento comemorativo aos 110 anos da imigração japonesa no Brasil. Tais alterações foram precedidas pelo comprometimento com a revitalização da respectiva Praça pela iniciativa privada e efetivadas com recursos pessoais do presidente da ACAL. O estreitamento com a gestão municipal (2017-2020) materializa-se com a presença do prefeito nos festivais organizados no bairro e reuniões promovidas pela ACAL, ou do subprefeito da Sé na inauguração de monumento alusivo aos 110 anos da imigração japonesa no Brasil, além do apoio advindo de representantes da comunidade japonesa na Câmara Municipal (vereadores George Hato, Aurélio Nomura e Masataka Ota).
Por sua vez, a narrativa chinesa na Liberdade constrói-se associada à versão de bairro oriental e segue o exemplo japonês, com a ocupação da Praça da Liberdade para a realização da confraternização do Ano Novo Chinês aberta pelo prefeito (2019, 2020) e inclusão da festividade no calendário oficial da cidade, além de sua expressão nas fachadas das edificações. Realizada desde 2006, a festividade gratuita do Ano Novo Chinês é coordenada pela Associação de Amizade Brasil-China juntamente com a Prefeitura do Município de São Paulo na edição 2020, compreendendo apresentações musicais, lutas marciais, danças, workshops, barracas de artesanato e de comidas típicas. O surto de Covid-19, no entanto, reduziu o número de visitantes e consequentemente, o movimento do comércio.
A representatividade coreana na narrativa da Liberdade como bairro oriental é discreta, mas adquiriu nova expressão com o gênero musical Korean Pop ou Pop Coreano (K-Pop), ao atrair a visitação desse novo grupo e, consequentemente, influenciar a sonoridade dos logradouros e estabelecimentos comerciais.
A temática africana ganhou impulso na Liberdade com a demolição irregular do prédio contíguo à Capela dos Aflitos (1775-1858) em 2018, apesar do pedido encaminhado à PMSP ser relativo à reforma. A obra colocou em risco a estabilidade dos dois edifícios contíguos, requereu intervenção e, consequentemente, o revolvimento do solo para garantir a integridade dos referidos prédios. Essa ação resultou no descobrimento de alguns esqueletos e no embargo da obra para a prospecção do terreno do edifício demolido. Esse estudo comprovou a presença de nove ossadas do século XVIII, dois com contas de vidro azuis, evidenciando a religiosidade de matriz africana dessas pessoas.
Nesse mesmo ano ocorreu a criação da União dos Amigos da Capela dos Aflitos, o cortejo em memória do Chaguinhas, santo de origem popular, condenado à forca em 1821, e a mudança do nome da Estação de Metrô para Japão-Liberdade, ações que mobilizaram a comunidade negra acerca da invisibilidade de suas narrativas e da associação a referentes patrimoniais, tais como Igreja dos Aflitos, Igreja dos Remédios, Igreja de Santa Cruz dos Enforcados, Escola de Samba da Rua da Glória, sede da Frente Negra Brasileira na Av. Liberdade (terreno da Casa de Portugal), Santa Casa de Misericórdia (rua da Glória), dentre outros. Há uma música de Aloysio Letra (2006) que trata da rua da Glória e dos negros no bairro e os escritos e palestras de Abílio Ferreira (proferida na Jornada do Patrimônio, 2019) que registram essas temáticas. O achado arqueológico motivou a prefeitura a criar o Memorial dos Aflitos, oficializada em janeiro de 2020, medida que implicará na desapropriação do terreno.
A União dos Amigos da Capela dos Aflitos tem se mobilizado para requerer o registro do culto a Chaguinhas como patrimônio cultural intangível para reforçar a importância da preservação da edificação, também impactada em sua estrutura com a demolição da edificação contígua. Há dúvidas sobre o local do sepultamento de Chaguinhas, em razão de sua transferência de Santos para São Paulo, a fim de ser enforcado, cogitando-se, portanto, a transferência do corpo para a cidade de origem.
A reflexão proposta evidencia a longevidade do programa e a manutenção do protagonismo japonês fundamentado no argumento histórico, materializada no controle da narrativa predominante estabelecida pela ACAL, visibilizada na alteração do nome da estação de Metrô para Japão-Liberdade e da Praça para Liberdade–Japão, na revitalização do mobiliário urbano, instalação de monumentos e realização de festividades alusivos à imigração japonesa. Essa representação de passado associada ao patrimônio destituída de conflitos é assimilada pelos visitantes e veiculada nos meios de comunicação, reforçando uma memória do grupo. Convites à rememoração são anualmente repetidos e mantém sua visibilidade, apesar da redução de empreendedores e moradores de origem japonesa.
A evocação nostálgica do patrimônio está potencializada na Praça da Liberdade e ruas Galvão Bueno e Tomás Gonzaga, percurso principal traçado pelos visitantes, no qual monumentos, esculturas, obeliscos e fachadas, atraem sobretudo turistas e descendentes em busca de suas raízes ancestrais, a curiosidade por conhecer o ambiente étnico nostálgico e desfrutar dos sabores disponíveis nos estabelecimentos de alimentação
Esse modelo é reproduzido pelos chineses, ao ocupar a Praça da Liberdade com suas festividades culturais, dividir o protagonismo de sua realização com autoridades municipais e influenciar sua inclusão no calendário oficial da cidade, além de mesclar as fachadas de edificações notadamente japonesas com elementos chineses.
A contrapelo ergue-se a reivindicação de narrativa do movimento negro e a aprovação da lei de criação do Memorial dos Aflitos, alusivo à memória da população negra escravizada e sepultada no Cemitério dos Aflitos, evidenciando a sucessão de etnias existente nesse território.
Os resultados da pesquisa evidenciam a presença de negros, japoneses, coreanos, chineses (China Continental), taiwaneses e nacionais, mas o marco de origem da Liberdade não são as edificações remanescentes dos séculos XVIII e XIX, mas o estabelecimento do Cine Niterói (1953), uma referência japonesa, característica reiterada no segundo marco de origem, com a revitalização do bairro, apesar do proposição de torná-lo um bairro oriental. Evidencia-se a manipulação da memória do bairro, mediante valorização de referentes culturais associados à imigração japonesa, apesar da representação oriental que marca os discursos dos programas de revitalização estabelecidos. Reproduz experiências internacionais ao ser liderada por comerciantes (ACAL), valorizar um eixo dominante, composto pela Praça da Liberdade e ruas Galvão Bueno e Tomás Gonzaga.