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A FESTA DAS TURMAS DE FANTASIA COMO PATRIMÔNIO TERRITORIAL
The festivity of Fantasy Groups as territorial heritage
La fiesta de los grupos de disfraces como patrimonio territorial
Caderno Virtual de Turismo, vol. 20, núm. 3, 2020
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Artigos Originais


Recepção: 10 Junho 2020

Aprovação: 11 Setembro 2020

DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.20n3.2020.1830

Resumo: Apesar dos estigmas de violência que ainda marcam a tradição das turmas de fantasia, essa importante manifestação obteve o singelo reconhecimento da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro ao declará-las Patrimônio Cultural Carioca. Porém, como relatam as próprias lideranças das turmas, o decreto pouco representou no sentido de proporcionar melhores condições para o fazer e o exibir de suas artes carnavalescas. Isso significa que titulações honrosas não necessariamente impulsionam políticas públicas que contribuam, de fato, para efetivar patrimônios culturais em seu sentido mais pleno. Desse modo, o presente artigo tem por finalidade contribuir com a construção de uma reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades de tratamento de festas populares como patrimônios da cultura, exemplificadas nas turmas de fantasia das periferias e subúrbios cariocas. O recurso principal da análise da questão proposta será o conceito de território patrimonial, aqui concebido como uma marcação corpóreo-simbólica dos saberes e fazeres de sujeitos brincantes da cultura.

Palavras-chave: Turmas de Fantasia, Patrimônio Territorial, Festa.

Abstract: Despite the stigmas that characterize the tradition of costume gangs, this important demonstration obtained the simple recognition from the municipal government of Rio de Janeiro declaring them a cultural heritage of the city. However, as the groups leaders themselves report, this title represented little in the sense of providing better conditions for the making and displaying of their carnival arts. This means that honourable titles do not necessarily encourage public policies that contribute to implement cultural heritage in its full sense. Therefore, this article aims to contribute to the construction of a critical reflection on the limits and possibilities of popular festivities as cultural heritage, exemplified in costume gangs of Rio's peripheries and suburbs. The main resource of the analysis will be territorial heritage, here conceived as a corporeal-symbolic marking of the knowledge and actions of the playing subjects of culture.

Keywords: Fantasy Groups, Territorial Heritage, Festivity.

Resumen: A pesar de los estigmas de violencia que aún marcan la tradición de los grupos de disfraces, esa importante manifestación obtuvo el sencillo reconocimiento de la Alcaldía de la Ciudad de Río de Janeiro al declararlos Patrimonio Cultural Carioca. Pero, como relatan los proprios liderazgos de los grupos, ese decreto poco ha representado en el sentido de proporcionar mejores condiciones para el hacer y el exhibir de sus artes carnavalescas. Esto significa que las titulaciones honrosas no necesariamente impulsan políticas públicas que contribuyan, de hecho, para efectivizar patrimonios culturales en su sentido más pleno. De esa manera, el presente artículo trabajo tiene por objetivo contribuir con la construcción de una reflexión crítica sobre los límites y las posibilidades de tratamiento de las fiestas populares como patrimonios de la cultura, ejemplificadas en los grupos de disfraces de periferias y suburbios de Río de Janeiro. El recurso principal de análisis de la proposición será el concepto de territorio patrimonial, aquí concebido como una marcación corpóreo-simbólica de los saberes y haceres de los sujetos culturales que juguetean.

Palabras clave: Grupos de Disfraces, Territorio Patrimonial, Fiestas.

1. Introdução

Considerado o maior do mundo, o Carnaval carioca é também a principal festa do calendário fluminense. Nas ruas, foliões aproveitam os blocos espalhados pela cidade para celebrar a alegria da festa do Rei Momo. Na Avenida Marquês de Sapucaí, os suntuosos desfiles das escolas de samba atraem vibrantes multidões de apreciadores e turistas de origens diversas. Porém, são em territórios periféricos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro que se encontra um carnaval não midiático e não valorizado para o consumo mercantil de bens simbólicos, mas que mobiliza milhares de pessoas a cada ano. São as turmas de fantasia. Grupos compostos, sobretudo, pelos famosos Bate-bolas e Mascarados, Pierrôs e “Clóvis” (adaptação do termo Clown, palhaço, em inglês) a inventar e reinventar a tradição carnavalesca em praças e ruas de subúrbios e periferias urbanas.

Apesar dos estigmas de violência que ainda marcam as turmas de fantasia e seus eventos festivos, essa importante manifestação sociocultural obteve o singelo reconhecimento da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro ao declará-los patrimônio Patrimônio Cultural Carioca[1]. Essa comenda, como relatam as próprias lideranças das turmas, pouco representou no sentido de proporcionar melhores condições para o fazer e o exibir de suas artes carnavalescas. Ou seja, titulações honrosas não necessariamente impulsionam políticas públicas que contribuam para efetivar patrimônios culturais em seu sentido mais pleno para a sociedade.

É na construção de uma reflexão crítica sobre os limites e as possibilidades de tratamento de festas populares, como patrimônios da cultura, exemplificadas nas turmas de fantasia dos subúrbios cariocas, que o nosso singelo artigo ganha composição. Seu recurso principal da análise da questão proposta será o conceito de território patrimonial, aqui concebido como uma marcação corpóreo-simbólica dos saberes e fazeres de sujeitos brincantes da cultura.

2. O patrimônio histórico, as culturas identitárias e o território usado

O significado do patrimônio histórico-cultural de uma sociedade é uma das vertentes particulares do que denominamos de instituição da memória social. Como sabemos, o debate sobre as escolhas e as definições daquilo que deve ser oficialmente considerado como patrimônio de uma sociedade serão sempre amplos e questionáveis, uma vez que configuram disputas de imaginários e de práticas sobre aquilo que deve ser ou não estabelecido como registro a ser cuidado, bem como herança a ser preservada. O patrimônio instituído seria algo consagrado para toda a sociedade e dever do Estado para estabelecer as garantias de identificações culturais e salvaguarda de legados sociais. Então, podemos entender, e ao mesmo tempo desconfiar, de como e por que culturas materiais e imateriais podem ser - ou não ser - estabelecidas no pódio das escolhas de preservação, de recuperação e de difusão como patrimônio histórico-cultural.

De modo igualmente abrangente, parece-nos ser o ingresso do território na construção de significado do patrimônio histórico-cultural de uma sociedade. A concepção de patrimônio territorial viria a contribuir para o entendimento que tanto os recursos materiais (inclusive os da natureza e não somente das obras humanas) como os recursos simbólicos (culturais e artísticos) estão em relação e não podem ser tratados separadamente, em conformidade com a Declaração da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais da Unesco (MÉXICO, 1985). Como aludem documentos seguintes sobre o tema, o território ganha importância em conjunto com o caráter social e temporal da manifestação a ser considerada como patrimônio “recriado permanentemente pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história” (UNESCO, 2003, art. 2)

As assertivas evidenciadas se combinam para pavimentar o caminho de nossa contribuição, pois é justamente nesse campo complexo de relações de poder que se inscreve a cultura popular em suas mais diferentes contribuições à sociedade e, evidentemente, as suas possibilidades de instituição de uma memória implicada no fazer das vidas de sujeitos sociais.

É igualmente importante resgatar a Constituição Federal de 1988, em especial o seu art. 216, que define o patrimônio cultural brasileiro como “bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Então, devemos considerar que habitar, viver e reconhecer são atos cada vez mais valorizados para a definição do patrimônio.

Embora o Estado e suas agências ainda permaneçam com os poderes declaratórios e operacionais, a memória implicada das práticas e afetos trazem a exigência da abordagem territorial, sobretudo para se conceber e afirmar o patrimônio como um construto relacional entre sujeitos em seus diferentes agenciamentos no mundo da vida. Assim entendendo, o território não deve ser resumido às localizações de recursos e às distribuições de bens simbólicos dispostos para nossas ações individuais e coletivas. É o território uma configuração de usos socialmente construídos em um feixe de relações intersubjetivas, configurando uma complexa experiência de exercício da vida e, como explica Milton Santos:

O território não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e um conjunto de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como território usado, não o território em si. O território usado é o chão e mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é o fundamento do trabalho, da residencia, das trocas materiais e espirituais da vida (SANTOS, 2006, p. 14).

Acreditamos que o emprego do referido conceito de território abre uma senda para o diálogo dos horizontes de sentido do patrimônio histórico-cultural instituído, especialmente quando se trata da relação com os saberes e as práticas de grupos populares em seus territórios de existência. Nesse percurso anunciado se faz possível dialogar mais amplamente com a concepção de patrimônio territorial como um “conjunto de ativos e recursos, materiais e imateriais, que se acumularam ao longo da história num determinado território” (Dallabrida, 2020, p.13). Pretende-se, portanto, localizar as celebrações carnavalescas das turmas de fantasia dos bairros suburbanos e das periferias cariocas como patrimônio territorial da cultura urbana contemporânea.


Figura 1
Turma Rebeldes
Fonte: Facebook da Turma Rebeldes.

As turmas de fantasia em seus modos de circulação e de produção

Turma de fantasia é, para nós, uma denominação sintética que abriga grupos derivados dos popularmente conhecidos como bate-bolas, bate-boletes (turmas femininas), turmas de originalidades (palhaços, macacos, gorilas etc.)[2], Clóvis, pierrôs[3], pai joão[4] (...) e demais denominações locais e regionais, demonstrando em suas variadas nomeações os estilos plurais encarnados pelos brincantes. Todavia, sua indumentária pode ser reconhecida por elementos constitutivos particulares: máscara, macacão, casaco, bolero e acessórios como bola e/ou sombrinha. Há, portanto, um aparato estético expresso em signos, imagens e gestos a conferir identidade, uma cultura híbrida de pertencimentos.

É possível dizer que há controvérsias em relação ao surgimento desses brincantes. Em relação aos bate-bolas, há relatos de que a tradição surgiu a partir da apropriação por parte dos grupos populares do redesenho do carnaval promovido pela burguesia carioca no início do século XX, inspirado nos famosos bailes de máscara europeus e no uso de roupas de clowns (palhaços) usadas para “afrancesar” o carnaval.

Uma das versões mais populares é a influência dos alemães que construíram o Hangar do Zeppelin, situado no bairro de Santa Cruz, na Zona Oeste da cidade, na década de 1930. Os alemães se vestiam de palhaços e colocavam máscaras de tela de arame com cabelos de algodão. O nome clóvis teria relação direta com a palavra clown - como os ingleses e alemães chamavam as fantasias.

A indumentária acabou se popularizando e influenciando os festejos locais do subúrbio carioca, sobretudo com a ajuda do Matadouro de Santa Cruz, pois atuava como fornecedor das bolas usadas como adereço dos brincantes. Na época, eram utilizadas bexigas de boi, secas ao sol e ensebadas antes de serem utilizadas. Vale relatar que, a partir do encerramento das atividades do Matadouro, as bolas de plástico entraram em cena para compor a fantasia.

Há registros sobre os bate-bolas em ilustrações, crônicas e canções desde a década de 1920, ou seja, bem antes do Hangar do Zeppelin ser construído em 1934. Portanto, é possível dizer que a primeira versão aqui citada seria a mais provável, sobretudo em relação a influência do carnaval português.

O Carnaval de Portugal alcança suas colônias, incluindo o Brasil, por volta de 1723. A característica principal da festa de além-mar era a presença de mascarados, que se aproveitavam do momento de anonimato para zombar das pessoas que transitavam pelas ruas. Com isso, percebe-se uma semelhança em relação à gestualidade e performance, apresentando, portanto, uma outra possibilidade de origem e de herança apropriada. Outras narrativas informam que escravos libertos e alforriados, perseguidos pela polícia, vestiam as fantasias para brincar livremente o carnaval e fazer do bater das bolas um protesto contra a opressão nas ruas da cidade.

Por outro lado, temos o pierrot (ou pierrô) – personagem da Commedia dell’Arte que sofreu suas adaptações regionais e é popularmente chamado de “pierrô”. Segundo o responsável da página e Facebook “Memórias dos Pierrôs”[5], a tradição deriva dos Antigos Carnavais, da época dos Corsos[6], com forte influência francesa. Ao contrário dos bate-bolas, os Pierrôs nunca usaram bola, seu adereço marcante sempre foi a sombrinha. Assim como os bate-bolas, pierrôs também possuem diversos estilos[7], dependendo da região em que atuam.


Figura 2
Década de 30 – Corsos da Avenida Rio Branco
Fonte: Acervo pessoal Facebook Memória dos Pierrôs.


Figura 3
Primeira referência da tradição dos pierrôs
Fonte: Revista Careta. Acervo pessoal Facebook Memória dos Pierrôs


Figuras 4 e 5
Rodado de Lã e Perro de Quadro
Fonte: Acervo - Memória dos Pierrôs.

Podemos notar, com o exemplo das turmas de fantasia, que as tradições inventadas[8] expressam a circularidade de imaginários e de práticas culturais em tempos/espaços múltiplos de acontecimentos, estabelecendo relações de intersubjetividade em geografias inesperadas. Como afirma a geógrafa Aureanice Correa, “o conceito de circularidade é explicitado pelas influências culturais entre diferentes classes sociais, num processo de mão dupla (...) que viabiliza a troca de experiências e a incorporação destas por culturas distintas” (Correa, 2004, p. 21).

Na perspectiva delineada, as turmas de fantasia são esse compósito de tradições em movimento que, embora tenham suas referências nas “culturas de elites”, é retraduzida e assegurada pelos grupos populares em seus territórios próprios de invenção e compartilhamento de experiências sensíveis, ganhando materialidade a partir de regiões periféricas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

As tessituras prático-simbólicas que envolvem a arte das turmas de fantasia elaboram pertenças socioculturais coletivas que respondem pelas escolhas de referenciais simbólicos, tais como o nome, os hinos, os lemas, as bandeiras e a indumentária como suporte de imagens e signos estéticos próprios na textura complexa da cultura urbana de massas (Silva, 2019).

Os enredos e as fantasias das turmas em estudo são cada vez mais articulados com modas, narrativas e ícones da cultura urbana contemporânea em negociação com as tradições. Portanto, não é sem motivo que determinados personagens como Harry Porter, Alice no País das Maravilhas e IT - A coisa, ou filmes como o Cisne Negro e o Código Da Vinci apareçam entre os motivos emblemáticos de turmas de fantasia. Merecem também destaque as cores florescentes, fazendo as casacas brilharem no escuro, os efeitos espelhados nas roupas, o uso cada vez maior de nylon, espumas plásticas, entre outros objetos e materiais industrializados que tornam as fantasias cada vez mais imponentes e luxuosas. É necessário, pois, superar a noção ainda corrente do popular (e da cultura popular) como expressão da tradição ou de identidade essencialista de grupos e de classes subalternizadas (Hall, 2006) para qualificá-lo como uma relação de intersubjetividade que produz um modo de mobilizar e utilizar imagens, objetos e linguagens que circulam na sociedade como um todo, mas que são recebidos e elaborados em processos diversamente criativos (Chartier, 1995).


Figura 6
Casaca de um brincante na saída da Turma Animação Jpa – Alice no País das Maravilha
Fonte: Jorge Luiz Barbosa, Carnaval de 2018.

As turmas de fantasia possuem modos particulares de organização assemelhados a famílias de pertencimento. Cada turma geralmente possui seus líderes, considerados como os “cabeças da turma”. A função principal das lideranças é escolher os temas para os enredos anuais, as fantasias, assim como a organização da brincadeira coletiva. E, sobretudo, soma-se a tudo isso, manter a coesão da família, a fim de garantir o complexo processo de produção das saídas, envolvendo o financiamento de confecção das peças de vestuário, de bandeiras, como também de adereços.

É indispensável destacar que a tradição das turmas de fantasia possui um caráter intergeracional, onde é possível observar inúmeros relatos de foliões que herdaram a brincadeira de tios, avós ou pais. Hoje é possível ver famílias inteiras envolvidas, sobretudo crianças e mulheres.

É importante salientar que, para a manutenção da tradição, as turmas usam táticas de mobilização de recursos a partir da promoção de eventos, mais conhecidos entre eles como “resenhas”, assim como a realização de festas, de bailes, de churrascos e de torneios de futebol. Além de arrecadar fundos para fomentar o carnaval, esses eventos também promovem uma maior interação entre os componentes e, ainda, recrutam novos foliões. Nesses eventos, geralmente mensais, é realizado o pagamento de um carnê que custeia a fantasia e os adereços. Toda a divulgação é realizada online, sobretudo em sites de redes sociais e em aplicativo de mensagem instantânea.

É justamente nessa perspectiva que Di Méo (2001) propõe que uma leitura das funções sociais da festa que, para além do destaque de seu papel político acrescida de sua expressão ideológica (assim como sagrada, cultural ou cosmológica), faz-se necessário incluir o seu papel de produção de valores socioeconômicos.

A presença majoritariamente masculina entre os líderes e no conjunto dos componentes sempre foi notória nas turmas de fantasia. Entretanto, correspondendo ao próprio avanço da afirmação das mulheres como sujeitos de direitos, desejos e paixões, emergem as bate-boletes na cena cultural das turmas de fantasia. Essa é questão mais significativa das mudanças em curso nas turmas de fantasia, uma vez que a posição subalterna, coadjuvante e, na maioria dos casos, invisível, das mulheres nas turmas começa a ser rompida

De acordo com Andrade, Formiga e Gamba Junior (2019), as turmas começam a ganhar maior expressão na década de 1980, momento em que os componentes eram exclusivamente masculinos e majoritariamente adultos. Para os autores, o que justifica tal afirmativa é o preço elevado da fantasia – cada vez mais elaborada e, consequentemente, menos acessível, limitando também a participação de crianças e de adolescentes, considerando se tratar de uma parcela da população com menor poder aquisitivo. Vale dizer que apenas um chefe de família conseguia financiar apenas a sua própria fantasia, não podendo arcar com os custos de uma fantasia para seus filhos. Além do mais, por conta dos episódios violentos que ocorriam derivados das rivalidades entre as turmas, muitos homens não permitiam a participação de mulheres e de crianças em suas turmas.

Com o advento das novas tecnologias, vêm se constituindo relações entre os brincantes, tornando acessível a convivência entre eles. As plataformas digitais/redes sociais potencializam a interação, como também contribuem para a diminuição de episódios violentos entre as turmas. Isso é possível também em decorrência da crescente popularidade da manifestação. Com isso, mesmo que em quantidade menor, atribui-se também a essa transformação importante a presença feminina nesse festejo. O que vemos atualmente são poucas mulheres participando de turmas tradicionais, com a mesma indumentária masculina, e muitas mulheres formando suas próprias turmas (Andrade et al, 2019).


Figuras 7 e 8
Turma de bate-boletes Bem Feito (Campo Grande) e Turma do Beco (Santíssimo)
Fonte: Laboratório de Design de Histórias – PUC-Rio.

3. A festa das turmas de fantasia: território usado como patrimônio cultural

Foliões mascarados, vestidos de macacão, com boleros, usando luvas e meias, e empunhando bexigas e sombrinhas, se empenham durante um ano inteiro na produção carnavalesca para exibir sua magia em algumas horas de desfiles em ruas, em praças, em viadutos dos subúrbios e em periferias urbanas da metrópole do Rio de Janeiro. Evento plástico de imenso impacto performativo-estético, os desfiles festivos das turmas de fantasia são montados como rituais para as suas famosas saídas.

A saída das turmas ocorre, geralmente, no sábado ou no domingo de carnaval, quase sempre no fim do dia, com direito a show de fogos de artifício. Antigamente, as turmas saíam ao som de marchas carnavalescas. Hoje, a sonoridade, bem como a gestualidade do funk vêm sendo incorporada à performance de seus componentes. Por outro lado, o samba de pagode e o axé são ritmos igualmente absorvidos pelas novas gerações de turmas bate-boleiras. Abrem-se portões e portas de clubes, quadras, quintais e garages para o saltar dos brincantes. Aglomeração de moradores do bairro os aguardam ansiosos para ver as fantasias confeccionadas em absoluto sigilo durante um ano inteiro. Perfumes exalam dos próprios componentes das turmas de brincantes para mobilizar o olfato da pequena multidão reunida, além da visão e da audição provocados pelos bailados e das cores arrebatadoras das fantasias e dos adereços. Os sentidos corpóreos são mobilizados em toda a performance da exibição, sobretudo para contagiar o público de uma alegre euforia e compor a cena estética em ruas, em praças, em avenidas, em quadras esportivas e até mesmo em estações de trem em bairros, como Campo Grande, Bangu, Santa Cruz, Marechal Hermes, Realengo, Deodoro, Madureira, Cascadura, Vila Valqueire, Curicica e tantos outros que compõem a periferia urbana carioca.


Figura 9
Saída Turma Animação Jpa
Fonte: Bira Carvalho, Carnaval de 2018.

A ritualística de celebração no percurso da produção da festa vai desde os espaços mais recônditos ao grupo (montagem, guarda e incorporação da vestimenta) aos de aparição para a audiência pública. A surpresa é um dos elementos-chaves para a saída, primeiro e mais decisivo momento da exibição das turmas de fantasia, uma vez que aí está o evento disparador da festa pública.


Figura 10
Guarda e montagem reservada das fantasias
Fonte: Foto Jorge Barbosa, Carnaval de 2018.

Todavia, a preparação envolve um circuito territorial de práticas de trabalho onde são confeccionadas máscaras, adereços, casacas (galpões, oficinas e casas); de práticas de mobilização e de arrecadação de recursos para financiamento da produção da festa (clubes, quadras de blocos de carnaval e campos de futebol); de práticas de demarcação simbólica do território da turma (muros grafitados com hinos, lemas e insígnias); o local propriamente dito de montagem, vestimenta e saída; até chegar às ruas, às avenidas e às praças da realização do evento público carnavalesco mais abrangente da cultura popular em sua dimensão corpórea-territorial.


Figura 11
Marcações de territoriais simbólicas das turmas de fantasia
Fonte: Página da Turma Rebeldes – Facebook

O circuito territorial de perfomatização da cultura bate-boleira registra uma cartografia de afetos, de valores e de emoções que conquistam seu brilho estético em algumas horas de alguns dias que valem todo um ano de trabalho, de dedicação, com também de inventividade de seus componentes.

Podemos, assim, concluir que as festas das turmas de fantasia são fenômenos socioculturais com uma expressiva inscrição na produção e na organização de uma atuação marcada no território. São vivências, por meio dais quais, os grupos sociais se identificam, se reconhecem e se afirmam como sujeitos de afetos de pertencimento em seus territórios usados.

São por demais complexos os desafios assumidos pelas turmas de fantasia para a realização de suas festas como produção de imaginários e de memória social na cidade. Na verdade, as festas das turmas de fantasia explicitam como os grupos populares retraduzem suas tradições culturais em conflitos negociados com ícones e com práticas dominantes do mercado de produção e consumo de bens simbólicos de massa, especialmente se tratando de um evento carnavalesco com o intuito de manter vivo seu patrimônio histórico-cultural-territorial.

Retornado ao debate em torno do significado e das estratégias de concepção, bem como de identificação e de operacionalização de patrimônios, podemos colocar em questão o modelo orientado, exclusivamente voltado para a manifestação ou evento cultural em si. E, mesmo que a sua localização física seja observada e delineada em suas descrições e em definições como patrimônio “recriado permanentemente pelas comunidades e por grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história”, conforme preconiza a Unesco, será um ato de resultados práticos limitados para uma efetiva política de patrimônio, se não incluir a dimensão vital do território usado pelos sujeitos envolvidos no ato de criação e de fruição cultural.

É nesse sentido que consideramos o território como patrimônio cultural na justa medida em que se reconhecem práticas, atributos e criações identificados com una cultura implicada e vinculada à organização social e à invenção estética de sujeitos.

Para superar as limitações cada vez mais expressivas de efetivar a condição plena de patrimônio às culturas populares, acreditamos ser necessária a incorporação do território em suas dimensões tangíveis e intangíveis conferidas pelos usos elaborados pelos sujeitos afetados, como individualidades e coletivos sociais. Ressalte-se, por fim, que as práticas inventivas das turmas de fantasia nos bairros populares cariocas nos ajudam a vislumbrar horizontes inovadores para as políticas públicas de patrimônio histórico-cultural.

4. Considerações finais

Embora a uniformização da vida cultural em nossas cidades fragilize sociabilidades e inventividades nos modos relacionais de ver, como também de viver o mundo, atualmente surgem novas demandas de encontros em territórios de produção e de fruição cultural. Em outras palavras, há iniciativas e atividades protagonizadas por grupos populares com marcantes valores estéticos e vivências culturais compartilhadas.

As turmas de fantasia permitem-nos assegurar que as periferias urbanas abrigam repertórios culturais complexos. E, por isso, devem ser consideradas como geografias convidativas às experimentações estéticas em suas dinâmicas pulsantes de sociabilidades. Portanto, distanciam-se dos estereótipos de carência (simbólica e material) e estigmas de violência (perigo e criminalidade) que ainda as marcam e limitam o seu reconhecimento como patrimônio de expressões culturais da cidade do Rio de Janeiro.

As fábulas de origem da tradição da cultura dos bate-bolas se combinam com a pluralidade de suas cenas estéticas contemporâneas, traduzindo sua diferenciação de estilos, modos específicos de organização e realização de rituais com suas marcações territoriais relevantes, inclusive de caráter intergeracional presente na tradição carnavalesca, que corrobora com o sentido de patrimônio territorial aqui exposto. É justamente nesses circuitos de práticas e de afetos que as turmas de fantasias perfomatizam o carnaval fluminense em seu sentido mais expressivo de cultura popular urbana.

Como celebração de sujeitos encarnados, as festas são eventos em disputa em toda a sociedade, “(...) é coisa de quem tem muito a fazer, daqueles que desejam controlar ou pelo menos influenciar na promoção da identidade de um grupo social” (FERNANDES, 2001, p. 3). Assim, seguindo a linha interpretativa do geógrafo Nelson da Nóbrega Fernandes, o carnaval das turmas de fantasia traz à reflexão a questão da disputa de imaginário social colocado por sujeitos da periferia em seus repertórios estéticos e modos de invenção de seus territórios de pertença. Aqui, cumpre ressaltar, está a senda aberta para a reflexão sobre o papel do patrimônio territorial para uma política pública de memória social da cidade.

Referências

Andrade, P. Formiga, S. Gamba Junior, N. (2019). Mascaradas e “Des (mas) caradas”: Um estudo acerca das representações de gênero em manifestações carnavalescas em Portugal e no Brasil (p. 3427-3441). Anais do 13. Congresso Pesquisa e Desenvolvimento em Design (2018). São Paulo: Blucher. https://www.proceedings.blucher.com.br/download-pdf/314/30196

Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial.

Chartier, R. (1995). Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, v. 8, n. 1, Rio de Janeiro.

Correa, A. D. M. (2004). Irmandade da Boa Morte como manifestação cultural afro-brasileira: de cultura alternativa à inserção global. PPG-UFRJ (Tese de doutorado): Rio de Janeiro.

Dallabrida, V. R. (2020). Patrimônio Territorial: abordagens teóricas e indicativos metodológicos para estudos territoriais. Desenvolvimento em Questão, 18(52), 12-32.

Di Méo, G. (2001). La géographie en fêtes. Editions Ophrys.

Fernandes, N. D. N. (2001). Escolas de samba: sujeitos celebrantes e objetos celebrados. Rio de Janeiro: Coleção Memória da Cidade, Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

Hall, S. (1996). Identidade Cultural na pós-modernidade. 1. edição. São Paulo: DP&A Editora. 11. edição, 2006.

http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Conferencia%20de%20Nara%201994.pdfRETIRAR

Santos, M. (2006). O território e dinheiro. In:Território, Territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. (p.11-13). DP&A Editoria/ POSGEOUFF, Niterói.

Silva, M. B. (2019). As Espacialidades de Pertencimento e Existência das Turmas de Fantasia no Carnaval da Periferia Carioca (RJ). Anais do XVI Simpósio Nacional de Geografia Urbana – XVI SIMPURB, 1, 2864-2878. Vitória, ES, Brasil. http://www.periodicos.ufes.br/simpurb2019/article/view/26491

Unesco (2003). Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial. UNESCO, Paris.

UNESCO (1985). Declaração da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais. ICOMOS/ UNESCO, México.

Notas

[1] Decreto no 35134, de 16 de fevereiro de 2012. Disponível em: www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4368015/4108329/17DECRETO35134GruposdeFolioesCarnav alescosdenominadosClovisouBatebolas.pdf.
[2] Mais predominante na região da Ilha do Governador, porém é possível encontrar turmas em outras regiões.
[3] Conhecido como “Perro” (uma corruptela da palavra pierrô), são brincantes característicos dos municípios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Segundo um líder, a primeira referência dessa tradição apareceu no Carnaval de 1919, durante a Gripe Espanhola.
[4] Um estilo de indumentária para quem não tinha condições de comprar a fantasia de bate-bola.
[5] Entrevista concedida aos autores em junho de 2020.
[6] Corso carnavalesco foi um tipo de agremiação que promovia desfiles, utilizando carros, geralmente de luxo, abertos e ornamentados, com foliões fantasiados que jogavam confetes, serpentinas e esguichos de lança-perfume nos ocupantes dos outros veículos.
[7] Dependendo da região de atuação, os bate-bolas possuem os estilos: pirulito, rodado e saia, bujão, capa. Já em relação aos perrôs, temos: pierrô de quadro, rodado de lã, perro rodado e perro carnavalizado.
[8] O conceito “tradição inventada” aqui utilizado tem um sentido amplo, mas nunca indefinido, uma vez que remete às “tradições” construídas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar e um período limitado e determinado de tempo - às vezes coisa de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme rapidez. Ver Eric Hobsbawm & Terence Ranger (orgs.). A invenção das tradições. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 9-23.


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