Artigo Especial
A REIFICAÇÃO DO INFINITO
Recepção: 16 Novembro 2020
Aprovação: 11 Dezembro 2020
a Perspectiva
como condição de possibilidade
para a apreensão existencial
da noção de Infinito
mediante a Linha–do–Horizonte
Não ouviram falar daquele homem louco, que acendeu uma lanterna pela manhã às claras, correu para o mercado e gritava sem cessar: «Procuro deus!» […] «Para onde foi deus?» gritava ele, «Quero dizer–vos isto! Nós matamo–lo – vocês e eu! Somos todos os seus assassinos! Mas como o fizemos? Como conseguimos beber todo o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro?[...]» [2]
Friedrich Nietzsche – A Gaia Ciência (1882)
Há, na costa sul do Mar Cantábrico, duas magnificas esculturas: dedos grossos, de aço e ferro, que gentilmente procuram agarrar – a–preender – a linha–do–horizonte. O autor, Eduardo Chillida, disse a esse respeito:
“Todas as obras de arte, na realidade são perguntas. Quero pôr o homem diante de um espectáculo tão impressionante como é o horizonte inatingível, mas necessário. Porque se bem se pensa, o horizonte é inatingível, ninguém o pode negar. Se tu avanças, ele afasta-se. Cheguei a pensar que o horizonte é, talvez, a pátria comum de todos os homens.”[3]
Chillida fala com transparência do valor existencial e metafísico do horizonte. Explicita assim algo que, contudo, – segundo creio – não é senão uma experiência humana corrente. Mas como terá o horizonte adquirido esse poder sobre nós? Como se instituiu esse seu valor...?
É provável que tenha sido a Pintura a nos pôr em contacto com o significado do horizonte[4]; e é provável que isso tenha acontecido graças à invenção da Perspectiva Linear (exploraremos estes assuntos mais à frente). E no entanto a Perspectiva realiza, de algum modo, uma secularização do visível: o artifício humano substitui a realidade por um sucedâneo, o artista substitui Deus; a Perspectiva implica como que uma expulsão do transcendente (simétrica, de algum modo, à expulsão de Adão do Paraíso)...[5] Como pode o horizonte tomar parte num espaço geometrizado cartesiano e, ao mesmo tempo, pôr em acção uma interrogação metafísica?; como pode a Perspectiva realizar este efeito que parece o de uma síntese de contrários?!
A Perspectiva Linear, como sistema geométrico de representação terá, muito provavelmente, sido descoberta em Florença, por Bruneleschi, em data anterior a 1413 (segundo Kemp [6] ). O sistema foi depois desenvolvido e estruturado por Alberti (Della Pittura, 1434/1436), Piero della Francesca (De Prospectiva pingenti, c. 1474[7]) e Leonardo da Vinci, entre outros. (Não é importante, para o sentido deste artigo, especificar quais os contributos técnicos que cada um destes personagens deu ao sistema de representação em questão[8].)
É Panofsky quem inaugura[9] o entendimento da Perspectiva Linear como forma simbólica, ou seja, não apenas com um papel instrumental, funcional, de efeito circunscrito à sua área cultural de aplicação – a Geometria e a Pintura – mas com capacidade para gerar uma mundividência e explicar a cultura de uma época[10]. Damisch acompanha e acrescenta esta concepção, reconhecendo à Perspectiva um valor “paradigmático” e “um domínio de pertinência que extravasa o campo artístico”[11]. Será com estas irradiações culturais da Perspectiva que principalmente aqui nos iremos comparar.
Panofsky constrói a sua reflexão sobre a Perspectiva a partir da teoria de Cassirer sobre as formas simbólicas. Este, por seu turno, desenvolve o seu pensamento partindo da noção kantiana de forma (ou talvez dito de uma maneira mais precisa, da noção neokantiana de forma), enquanto esquema mental que permite a percepção dos fenómenos. De uma maneira simplificada poder–se–á dizer que, para Kant, o ser humano está dotado de um sistema de categorias (esquemas mentais) que filtram a percepção dos fenómenos, adquirindo consciência apenas daqueles que se podem inscrever nessas categorias. O mesmo se pode dizer acerca do pensamento, em que podem ser formulados apenas os conceitos de algum modo compatíveis com os esquemas mentais pré‑existentes. Cassirer investigou depois as manifestações destas “formas”, notando que se organizam segundo determinados âmbitos que vão desde o pensamento mítico à linguagem matemática. Por meio destas “formas simbólicas” ele pretendia porventura compreender o desenvolvimento do pensamento humano, o aparecimento da linguagem, etc.[12]
Panofsky (e essa é a principal crítica que lhe faz Damisch[13]) entende este desenvolvimento do pensamento humano retratado por Cassirer num sentido histórico e não no sentido categórico de Kant. Considera, por conseguinte, que o aparecimento da Perspectiva interveio activamente na geração da mundividência do período temporal que acompanha; e que a história desse tempo não se consegue explicar sem considerar a Perspectiva como factor informante e sintoma. Ao sistema geométrico da Perspectiva Linear, enquanto instrumento, são, assim, reconhecidos efeitos precursores essencialmente semelhantes aos do telescópio de Galileu [14] .
[15]O telescópio induzirá a discorrer que a realidade é mais bem compreendida através de instrumentos. Ora isso irá perniciosamente infectar com dúvida todas as observações anteriormente feitas e, mais dramático ainda, todas as observações que são feitas sem o auxílio de instrumentos. Assim, de uma assentada, se destitui de validade o património anterior de conhecimento da realidade física – e, por contágio, a História e a Tradição – e o próprio senso–comum (eu já não posso confiar no conhecimento legado pelas gerações anteriores; eu não posso sequer confiar nos meus próprios órgãos dos sentidos; doravante poderei apenas confiar num selecto conjunto de indivíduos: aqueles que manejam os modernos instrumentos). Assim se cria o terreno propício para o germinar da dúvida sistemática cartesiana, que se generalizou ao pensamento moderno, científico ou não.
Por outro lado, a difusão do telescópio fomentou também uma redução da realidade[16]. Até à implementação do telescópio, da observação do mundo retiravam–se implicações qualitativas, existenciais, poéticas, metafísicas; tornando os astros como que mais acessíveis, tocáveis pela mão, o telescópio subtrai–lhes o mistério que a distância lhes concedia; e subtraindo–lhes o mistério subtrai–lhes a significância, a interferência num mundo puramente humano. Com o telescópio, as estrelas já não são contempladas; são medidas e analisadas nos seus componentes físicos e químicos. Este movimento de aproximação e redução é possivelmente o cunho fundamental da Época Moderna, na medida em que a aproximação dos objectos observados os coloca sob o domínio do homem, sobre o seu controlo, facilitando e acompanhando tendências como o antropocentrismo, primeiro e depois, pela contaminação da dúvida, o egocentrismo[17] e o niilismo[18].
De forma menos espectacular, mas não menos efectiva, a Perspectiva Linear assiste e mimetiza todo este turbilhão de acontecimentos.
Antes de mais a Perspectiva reduz a realidade, porquanto produz um simulacro de realidade, que se lhe assemelha sem lhe corresponder verdadeiramente. A Perspectiva Linear pressupõe uma visão estática e monocular (quando a visão humana é binocular – o que é decisivo para a percepção da profundidade – e constituída a partir de movimentos muito rápidos dos olhos – movimentos sacádicos – a que se somam os movimentos do pescoço e do andar); por outro lado, a Perspectiva Linear assume também que a superfície terrestre é plana. A opção pela representação em Perspectiva pressupõe, portanto, a preferência pela subserviência à aparente eficácia de um mecanismo racional, prescindindo da relação não mediatizada por esquemas (fenomenológica) com a realidade. Neste sentido ela antecipa o espírito cientifico emergente do século XVII, na medida em que também este não aspira essencialmente à verdade, mas ao modelo racional que melhor explica as aparências[19]. A Perspectiva Linear, por meio da geometrização do espaço, realiza a “integração da linha e do número”[20]; e (sobretudo na concepção de Alberti) “oferece–se como figura do método cartesiano, a pintura em Perspectiva como figura de representação científica da Natureza”[21]. Assim também a Perspectiva participa na passagem do “Mundo fechado ao Universo infinito” de que fala Koyré[22]. Depois de Panofsky vários são os autores que reconhecem à Perspectiva esse lugar de charneira entre duas épocas: “o limiar que separa a modernidade antropocêntrica da Idade Média teocêntrica”[23]. A Perspectiva dará inequívocos contributos em vários dos aspectos que Koyré considera distintivos entre a Idade Média e a Idade Moderna[24]. Em primeiro lugar a preferência por modos de pensar menos contemplativos e mais funcionais – o que é manifesto na preferência por uma aparência virtual mas verosimilhante (“a ilusão é preferida à realidade”[25]) e na consequente despreocupação com o carácter inadequado do esquema da pirâmide visual[26] à descrição da percepção visual, bem como na eliminação do plano da pintura de elementos de significado codificado, como por exemplo as superfícies em ouro (que procuram representar o transcendente). Depois, a Perspectiva participa na “secularização da consciência”[27] (“a arte centrada em Deus dá lugar à arte centrada no homem”[28]) e consequentes “destruição do cosmos [enquanto território em harmonia com o Homem] e geometrização do espaço”[29] – o que se verifica na homogeneização do espaço representado pela Perspectiva, tornado isótropo e coerente, sem lugar para realidades extra–mundanas. (A Perspectiva, de modo semelhante ao telescópio, torna essencialmente semelhantes os espaços próximo, onde se desenvolve o quotidiano, e o longínquo, que contém mistério e é objecto de contemplação; actua–se assim também uma dessacralização do espaço). Finalmente, a Perspectiva introduz o recrudescimento, concomitante, de um certo “objectivismo” e de um certo “subjectivismo” [30](só existe o que eu vejo e toco), que aumenta a distância e corta o nexo de significado entre a realidade e o eu – aspecto sensível, para além de no pendor “fotográfico” da representação, na opção pelo ponto de vista único, dominante de toda a realidade, mas de que, por seu turno, resultará uma imagem do sujeito isolada e solitária e decorrentes disposições saturnina e melancólica, daqueles que se sacrificam ao domínio do instrumento da Perspectiva.
O complexo destas implicações negativas da Perspectiva – não obstante a máscara de inocência que lhe advém da aparente inoperatividade no quotidiano dos campos onde se aplica (Geometria e Arte) – leva alguns a considerar que a Pintura, depois da Perspectiva, adquiriu uma feição de ídolo (no sentido que lhe dá Platão), na medida em que procura, mentindo, substituir-se às realidades representadas[31]. E, contudo, dela brotam também possibilidades que parecem fazer reverter o materialismo que tende a trazer ao mundo.
A mudança de época que se inicia com o Renascimento e se desenvolve com o Iluminismo teve traços antropologicamente dramáticos de que provavelmente só hoje – esgotados o paradigma racionalista e positivista – nos damos verdadeiramente conta[32]. Mas nela foram descobertas dimensões do humano sem as quais já não admitiríamos possível a vida de hoje: a consciência de si, que emergiu no Renascimento, e, com o Iluminismo e a Revolução Francesa, a da liberdade, são bem exemplo disso. A Perspectiva, tal como a Ciência, participou decisivamente na construção desta nova época e também ela comportou infelizes reduções do humano (que foram atrás descritas). Todavia ela transportava em si factores inimaginados de redenção dessas mesmas reduções. Imperceptivelmente a Perspectiva veiculava uma abertura ao metafísico, dentro da própria antropologia que o parecia negar.
É, ainda outra vez, como dizia Panofski:
“[A concepção perspectivista], que muda a ousía [coisa em e por si mesmo] em phainómenon [fenómeno], parece contrair o divino num mero conteúdo da consciência humana, contudo, para isso [suceder], reciprocamente, expande a consciência humana num recipiente do divino.”[33]
Não obstante, o factor de redenção veiculado pela Perspectiva, de que atrás falávamos, não é conseguido por uma demissão e absorção inermes no espaço cartesiano, matemático da Ciência: não é exactamente verdade – e aqui temos que discordar de Panofsky – que a invenção da Perspectiva tenha facultado a construção de “um espaço inteiramente racional, ou seja, infinito contínuo e homogéneo”[34].
A Perspectiva Linear permite dar representação concreta a elementos situados a uma distância infinita do observador.
Se eu considerar uma linha recta, infinita, que passa pelos meus pés e se dispõe de topo para mim, o ponto do infinito dessa recta é facilmente visto por mim: está exactamente à frente dos meus olhos (esta é a experiência que fazemos quando estamos perante os carris de comboio que se afastam do observador em linha recta, numa planície extensa). Se eu fizer uma representação “em alçado” dessa mesma linha, não consigo “ver” o seu ponto no infinito. O mesmo se passa se eu considerar o plano horizontal infinito onde apoio os meus pés – o plano do chão – : dele eu posso ver a sua linha do infinito: é a linha–do–horizonte. Outra vez, num alçado, numa planta, ou em qualquer outro modo de representação, esse plano não produz nenhum elemento desenhável. A Perspectiva Linear dá ainda representação real, determinada, a outros aspectos paradoxais: por exemplo, sabemos da Geometria Euclidiana que planos paralelos não se intersectam no espaço finito, que só se intersectam no infinito. Ora a intersecção de planos paralelos, em Perspectiva Linear, gera uma linha recta concreta: podemos constatar isso mesmo ao repararmos que os planos verticais das fachadas das ruas da Baixa lisboeta, se prolongados indefinidamente, intersectar–se–iam segundo uma recta vertical situada mesmo em frente do observador (essa intersecção não é visível se tomarmos um alçado dessas ruas); e olhando para um horizonte de mar num dia de céu carregado, não é difícil admitir que a linha–do–horizonte é a intersecção, no infinito, do plano do mar com o plano do céu, a intersecção, no infinito, da terra com o céu.
Podemos compreender esta peculiaridade da Perspectiva Linear se fizermos uma analogia com uma máquina fotográfica ou com o próprio funcionamento do olho humano. Os raios visuais que vão até aos objectos vistos convergem todos num ponto, pelo efeito duma lente (o cristalino no olho humano, ou a lente da máquina fotográfica). Quando esses raios intersectam uma superfície de projecção (a retina no olho e a película na máquina fotográfica) geram uma imagem do objecto. Em qualquer dos processos descritos – Perspectiva Linear, olho humano, máquina fotográfica – estamos perante o que se denomina um Sistema de Projecção Cónico ou Central, nome que advém da convergência dos raios visuais num ponto. Quando pelo contrário os raios visuais são paralelos entre si temos um Sistema de Projecção Cilíndrico ou Paralelo (de que a Múltipla Projecção Ortogonal, com as plantas, cortes e alçados a que estamos habituados em arquitectura, é um exemplo). Este último não permite a representação de elementos do infinito.
A Perspectiva Linear serve-se de um dispositivo denominado perspectógrafo que convém examinar.
O perspectógrafo é um instrumento conceptual que se usa em Geometria Descritiva quando se estuda Perspectiva Linear: é composto por quatro planos: o plano do horizonte, o plano de terra (ou geometral) e, depois, por mais dois planos, perpendiculares aos primeiros e paralelos entre si: o plano do quadro, onde se fazem os desenhos, e o plano neutro, onde está o observador; a intersecção do plano do quadro com o plano do geometral denomina-se linha–de–terra, e a do plano do quadro com o plano do horizonte denomina–se linha–do–horizonte. Quaisquer elementos geométricos oblíquos ao quadro e infinitos – rectas, planos, etc. – podem ter no quadro a representação dos seus elementos no infinito, num grau hierárquico mais baixo: o infinito de um plano representa-se como uma recta; o infinito de uma recta representa-se como um ponto. Tal acontece porque o raio visual que vai buscar o elemento no infinito de uma recta é paralelo relativamente a essa recta e vai gerar uma imagem desse elemento quando intersecta o quadro, num ponto; os raios visuais que vão buscar os elementos no infinito de um plano geram um plano paralelo ao primeiro, que vai intersectar o quadro segundo uma recta. Esses elementos do infinito adquirem o sugestivo nome de pontos–de–fuga e linhas–de–fuga; a linha–do–horizonte é uma destas.
É esta possibilidade de representação de elementos no infinito que contraria a descrição que Panofsky faz do espaço que a Perspectiva Linear constrói, na medida em que os pontos–de–fuga e as linhas–de–fuga implicam descontinuidades e heterogeneidades no espaço, as quais, não são, de modo algum, desprezáveis. Efectivamente esses elementos estão no infinito e são percebidos como tal. Qualquer ponto desenhado no quadro a uma distância real infinitamente próxima de um destes elementos está ainda a uma distância, na realidade, infinitamente grande desse elemento, porquanto o primeiro está no espaço finito e o segundo no infinito. Se nos gráficos cartesianos a aproximação ao infinito positivo e ao infinito negativo podem apenas ser representadas por uma codificação algébrica, como limites – “+∞, -∞” – aqui, a esses limites, é-lhes dada visibilidade real, por meio de rectas e de pontos.
Convém notar que a Perspectiva Linear, não só nos permite visualizar elementos no infinito, como, operando também uma redução de elementos de maior complexidade a elementos de menor complexidade – o infinito de um plano representa-se como uma recta e o infinito de uma recta representa-se como um ponto – permite que esses elementos do infinito se tornem projectáveis no quadro, adquirindo uma existência mais próxima e apreensível. Eles tornam-se desenháveis – e este aspecto não é de somenos importância. (Se a existência de um plano no infinito continuasse a ser um plano ela não seria projectável no quadro, não seria desenhável, porquanto os planos são, digamos assim, transparentes e ilimitados.) Assim, em suma, a Perspectiva Linear 1) torna o infinito visível, 2) o infinito aparece sob uma forma reduzida e apreensível, 3) esse infinito reduzido pode projectar-se no quadro adquirindo uma realidade dupla numa situação mais próxima, 4) isto implica que o infinito se pode desenhar, o que significa, de algum modo, a possibilidade de nos apossarmos do infinito, sem lhe retirar o mistério.
O Desenho está essencialmente ligado ao uso da linha ou do traço. Damisch, refere que o instrumento original do desenho é o estilete, que risca, que abre uma incisão num plano mais macio[35]. Daqui decorre também o seu carácter essencialmente “gráfico”, ou seja, relativo às artes gráficas, à gravura, especialmente à xilogravura e depois à litografia e às águas–fortes. No seu desenvolvimento histórico posterior, vários são os autores que reconhecem no desenho a “predominância do elemento linear”[36], e que “o traço é, por excelência, a forma de expressão do desenho”[37].
Esta sua dependência da linha – e do traço como modo de representação desta – acarreta consequências significativas. De facto “não há linhas na Natureza”[38], donde produzir uma representação do visível por meio delas implica de algum modo, uma “violência” sobre essa[39], implica forçar a realidade. Por conseguinte desenhar não é um mecanismo de transposição directa do visível – o desenho não é “fotográfico” e não é possível transformar, por um qualquer meio informático automático, uma fotografia em desenho (não é possível pré–determinar o que, da fotografia, se transformaria em linha). O olho humano é impressionado pela luz nas células fotossensíveis da retina – a visão, encarada nas suas determinantes anatómicas, acontece, portanto, por pontos, ou por manchas (enquanto aglomeração de pontos), mas não por linhas. Isto significa, então, que desenhar pressupõe uma operação crítica sobre a realidade visível – uma semi–abstractização[40]: a linha é abstracta, mas salvaguarda a capacidade de representar, de forma natural, independentemente de qualquer conjunto de signos pré–determinado, a natureza visível. Enfatizam–se certos aspectos da realidade, excluem–se outros[41], gerando um todo verosímil, que é imagem–de–algo real. Logo, o processo de desenho, apesar da manualidade da sua produção, integra processos de conceptualização: pressupõe encontrar o traço ideal que re–presenta a forma percebida[42]. Há como que uma redução – o termo é de Valery[43] – redução, porventura, fenomenológica[44] – o que significa que o desenho realiza algo como uma pré–digestão do panorama dado ao observador, percebendo desse aquilo que ele pode absorver a si e como o pode absorver. São encontradas na realidade formas – no sentido cunhado por Cassirer, (veja-se aqui o subcapítulo b. Formas Simbólicas). Para essas formas significantes, descobertas na realidade, são procuradas linhas que as re–presentam num plano, bidimensionalmente (outra “redução”). É frequente – note-se o paradoxo – desenharem–se “linhas invisíveis” de modo a se traduzir com maior evidência o que se vê.
Não obstante a “redução” e conceptualização que o desenho opera, não seria correcto considerar que o desenho pressupõe um código, como a escrita ou a matemática, porquanto quer a sua execução quer, sobretudo, a sua interpretação não subentendem a aprendizagem de qualquer tipo de linguagem tipificada pré–estabelecida, como um alfabeto para a transcrição fonética da língua, ou a nomenclatura da matemática[45]. Quem desenha produz de cada vez, no próprio acto de desenhar, o léxico que traduzirá as formas vistas[46]. E contudo esta representação peculiar, pessoal, é legível intersubjectivamente – a representação tem um “sentido universalizante evidente”[47] – de algum modo, o desenho consegue preservar uma semelhança com o referente real que representa, garantindo a sua legibilidade por todos.
Por outro lado a tradução das formas em linhas é um processo de pesquisa que usa o movimento da mão[48] – o traço não é senão o registo do movimento da mão que segura o instrumento riscador. Há algo de táctil[49] e físico no desenhar. Esse movimento pode ser feito coincidir, em alguns tipos de desenho, com os movimentos dos olhos, quase como se o braço fosse um pantógrafo – quer acelerando o movimento da mão, quer procurando desacelerar o dos olhos. Em qualquer dos casos este aspecto de gestualização da percepção conceptualizada da realidade é importante para justificar o grau de apreensão da realidade e assimilação desta pelo sujeito, que decorre do desenho.
O desenho, correspondendo “à representação de imagens visuais de uma maneira muito imediata e por meios extremamente simples”[50] realiza uma complexa síntese entre o objectivo e o subjectivo[51]: quando se desenha não se representa apenas o que se vê – o que já não seria pouco, porquanto não se vê tudo aquilo para onde se olha – mas também, mediante a qualidade do traço, o que se sente; o que se pergunta sobre o que se vê e a resposta pessoal da realidade. O desenho, enquanto “redução” do visível a linhas realiza um apossamento do real (no sentido que Levinas dá à palavra): o real é captado, capturado com a mão, a–preendido; e trazido para dentro do eu, assimilado, encaixado nele, num vazio até então desconhecido. Por este processo o eu cresce. Meios de conhecimento que não realizem este encaixe entre a realidade e o eu não produzem mais–valias pessoais.
Uma representação desenhada do infinito – reduzindo–o a linhas, como a linha–do–horizonte e a pontos, como os pontos–de–fuga – significa, portanto, a assimilação existencial deste.
A redução a linha ou a ponto do infinito opera aquilo que Heidegger designa por de–separação (Ent–fernung) – a abolição da distância. O acto de reconhecer o carácter longínquo de algo como que o aproxima, sem, contudo, lhe alterar a identidade que é longínqua[52]. Como se momentaneamente me fossem concedidos olhos de águia que permitem trazer para debaixo da minha atenção isso que está lá longe – o mistério e a distância não se eclipsam, mas eu posso meditar sobre eles.
A Perspectiva Linear dá ao Infinito uma dupla realidade: infinita, lá ao longe, e finita, próxima, no quadro, onde se faz o desenho. Assim, de algum modo, na Perspectiva Linear o Infinito é desabstracticizado, deixa de ser uma entidade matemática, transfigura-se num Infinito–em–acto. Encontrar o Infinito como linhas e como pontos, desenháveis[53], descobre–lhe uma identidade com–preensível, assimilável ao eu; as linhas- e os pontos–de–fuga tornam-se formas simbólicas do Infinito, transcendentais (no sentido de Kant e Cassirer)[54], ou seja, condições de possibilidade de apreensão do Infinito. Realiza–se então a energeia apeiron (ενεργεια απειρον) que Aristóteles pensava impossível[55] – torna-se presente uma realidade metafísica.
De entre estes transcendentais de Infinito – as linhas e os pontos–de–fuga – a linha–do–horizonte adquire uma particular saliência.
A linha–do–horizonte resulta, como vimos, da intersecção entre o plano do geometral e o plano do horizonte (veja–se de novo a Figura 2). O plano do horizonte corresponde ao plano horizontal onde estão situados os olhos do observador; o plano do geometral corresponde ao plano horizontal onde estão situados os pés do observador, ou seja, é de algum modo, o plano da Terra. A intersecção entre estes dois planos acontece no infinito, sob a forma de uma recta, disposta numa posição de frente para o observador. Essa recta é depois passível de projecção no quadro, numa situação próxima.
A referência ao geometral é importante. O plano horizontal tem um carácter fundamental na estruturação da compreensão do espaço para todos os seres vivos multicelulares terrestres, mesmo para as plantas. Por razões estáticas, de modo a que os corpos se possam dispor numa posição de máximo equilíbrio e mínimo dispêndio de energia, é indispensável conhecer a orientação no espaço do vector da Força da Gravidade. O sistema perceptivo que realiza esta função chama-se Sistema de Orientação Básico[56]. É operado, nos seres humanos, pelos órgãos do equilíbrio, localizados no ouvido interno. O plano horizontal, situando-se perpendicularmente à força da gravidade, adquire, então, um papel privilegiado no pensamento sobre a organização do espaço e acaba por se estabelecer como estrutura básica para a compreensão e projectação das actividades humanas no espaço. A capacidade, aparentemente inata de desenhar mapas e de descrever caminhos por um sistema de direcções e sentidos horizontais (frente, trás, direita, esquerda), é disso prova: o ser humano orienta-se e pensa as suas deslocações no espaço predominantemente em função do plano horizontal.
O geometral é também o espaço de movimentação típico do ser humano – não sendo ave nem arborícola –, espaço compreendido como à–frente e atrás, em função da motricidade normal do corpo humano[57]. O infinito como linha–do–horizonte aparece assim na continuidade de uma trajectória provável do ser humano: não por cima (no céu), nem por baixo (nos infernos), em âmbitos inalcançáveis; não à direita ou à esquerda, em âmbitos que só para serem apontados implicariam consideráveis torções a respeito da orientação actual; mas, simplesmente, à frente. A linha–do–horizonte tem, portanto, o carácter paradoxal, surpreendente, de um infinito à–minha–frente: um inadvertido levantar de olhos e deparo-me com ele.
Ora esse levantar dos olhos é necessariamente frequente. Há como que um ângulo intranquilizante de visão, um ângulo que aponta para uma distância intermédia e que gera inquietação. Se nos reportarmos outra vez à experiência habitual de caminhar constatamos que a mirada normal não se fixa no ponto onde os pés vão sucessivamente caindo, a não ser que o terreno seja irregular e pressuponha algum tipo de perigo. Mesmo nessas circunstâncias, levantar os olhos será sempre necessário de modo a se verificar se se está a seguir a rota desejada. Considerando um terreno regular e horizontal, o ângulo vertical corrente da visão humana situa–se cinco graus abaixo da linha de nível, apontando para uma distância no chão a cerca de 21 metros. A uma velocidade de andar típica, de aproximadamente 5 quilómetros por hora, 21 metros demoram sensivelmente 15 segundos a serem percorridos. Significa que se está a olhar para um espaço de que só se pode ter experiência no futuro. Se olho para meio metro à frente dos meus pés, chego lá quase instantaneamente. É um espaço e um tempo, portanto, que eu controlo, e, salvo ocasiões peculiares, é um espaço e um tempo que não causa inquietude; é o instante, e se vivo o instante sem futurar, sem procrastinar, não sofrerei de ansiedade. Pelo contrário, o olhar sobre a distância intermédia é um olhar sobre algo que eu não posso controlar e que, contudo, me poderá afectar, uma vez que está a meio da trajectória que eu quero seguir. Essa consciência é, no contexto de uma existência estritamente humana (que não tem domínio sobre o futuro), forçosamente angustiante. Daí a alternativa, tornada indispensável à defesa relativa ao ângulo intranquilizante de visão: ou baixar o olhar, disciplinando-se a olhar apenas para o que se pode controlar – o que é de algum modo pouco natural, ou pelo menos pouco frequente, além de que é impossível de manter constantemente, na medida em que será sempre necessário levantar os olhos para se verificar se está a seguir o trajecto desejado –; a outra alternativa será levantar o olhar acima desse ângulo intranquilizante, fixando o horizonte e o infinito.
Acerca da linha–do–horizonte convém ainda notar que raras ou nulas são as linhas–de–fuga que têm uma ocorrência na Natureza. Os pontos e as linhas–de–fuga com que habitualmente convivemos, encontram–se em paisagens artificiais, criadas pelo homem, geralmente em tecidos urbanos, organizados ortogonalmente. Havendo como que uma homogeneidade dessas paisagens relativamente ao próprio homem (pois é isso a cidade: o espaço antropizado), o carácter interpelador dessas ocorrências de infinito aparece bastante apagada. Aqui a proximidade é tal que a alteridade, relativamente ao eu, usualmente passa desapercebida, ocorrendo o inverso da de–separação (Ent–fernung) heidegeriana, atrás mencionada, e anulando, assim, a provocação e a possibilidade de consideração destes infinitos.
Todas estas razões contribuem para que a linha–do–horizonte, quando encontrada no quotidiano, constitua uma provocação. Esta ocorrência de infinito no espaço concreto coloca-a como uma presença existencial forte. Mas qual o seu teor?
A ideia de infinito está habitualmente ligada a algo indeterminado e difuso, se meditarmos sobre ela prescindindo da sua dimensão matemática. (Esta dimensão é existencialmente pouco significativa na medida em que decorre de uma abstracção, ou seja, de uma separação da vivência comum.) A ideia de infinito é, contudo, existencialmente presente, o que constitui um paradoxo, na medida em que essa ideia parece não pertencer ao sensível. A qualidade simultaneamente inalcançável e existencialmente presente do infinito coloca-o na esfera do meta‑físico; ele é um aspecto do transcendente. Há nele um carácter negativo (uma ausência que é uma presença) relativamente ao olhar corrente que temos sobre as coisas e sobre o mundo; ele extravasa a consciência vulgar que temos na experiência. Cremos que a analítica existencial de Heidegger, condensada especialmente em O Ser e o Tempo, enquanto percebe o homem como continuamente pré‑ocupado com um haver–de–ser–de–si, possa esclarecer a ocorrência existencialmente frequente da ideia de transcendente, na medida em que o ser humano, por causa dessa pré–ocupação com o haver–de–ser–de–si, está constantemente focado em algo para–além–de: algo que de per si pertence à categoria do transcendente (está fora do presente) – embora geralmente essa consciência permaneça velada; mas quando o para–além–de é meditado, ainda que regionalmente – por exemplo, por força da consideração da vida como caminho (para onde...?) e/ou do destino de si – necessariamente se põe diante e é trazida à cogitação a ideia de transcendência.
Por outro lado, poder–se–á também notar que a presentificação das ideias de metafísico ou de transcendência pertence à dinâmica religiosa, na medida em que é propósito desta o estabelecimento de conexões com o ser do para–além–de. Assim, a contemplação do infinito é não só paradoxalmente frequente, mas efectivamente natural no homem (na exacta medida em que o sentimento religioso o é) e reveste–se, além do mais, de um carácter estruturante e grave para o sujeito (como o documentam as inúmeras ocorrências na história das religiões[58] ou na produção poética).
Mas, pensemos então, que imagens, símbolos, representações temos do infinito no nosso quotidiano? Ou, por outras palavras, qual é o valor da linha–de–horizonte relativamente à noção, à consciência sentida, de infinito?
Há o infinito matemático, que, por ser abstracto, não tem muita eficácia existencial.
O céu é também uma imagem de infinito, pela sua lonjura e inalcançabilidade. Um claustro, em arquitectura, existe exactamente para nos focar no céu, sobre o infinito, sobre aquilo que está para–além e por–cima–de, induzindo uma atitude potencialmente religiosa. Mas o céu não é uma coisa que se desenhe. O céu de, per si, a não ser que seja dado com algum acento particular (como um céu nublado, um céu de tempestade, ou um céu estrelado) é indefinido, é uma massa homogénea e intangível que não se consegue reduzir a linhas (vimo–lo antes), não se lhe vislumbram traços, pelo que dificilmente é passível de decomposição analítica, o que significa que não se o consegue compreender nos seus elementos constituintes – não tem concretude.
O céu estrelado é já uma eficaz imagem de infinito, já tem qualquer coisa de concreto – pontos luminosos: uma infinidade deles –; e são inúmeras as pinturas de céus estrelados. Contudo é uma imagem carente de dinamismo, na medida em que não suscita um movimento, antes um parar. Nas noites estreladas de Verão, contemplamos as estrelas e, quando olhamos para elas, pensamos no infinito. Mas não é naturalmente que consideraremos o nosso destino, porquanto esta é uma noção com um dinamismo ínsito que não encontra eco na estaticidade do céu estrelado. O céu estrelado, ainda que sendo uma eficaz imagem de infinito, é carente de eficácia existencial. (O horizonte de mar, ao pôr–do–sol, pelo contrário, faz perguntas.)
As montanhas, os cumes – tantas vezes associados a lugares de culto ou de meditação – são concretos, desenháveis, mas não são propriamente infinitos. São longínquos, mas pode-se lá chegar. Teremos de um cume uma perspectiva do mundo do ponto de vista de Deus – como no crucificado de Dali –; é uma experiência de domínio, pode comportar um sentimento religioso, mas que não contém necessariamente interrogativos sobre o haver–de–ser–de–si heideggeriano, sobre o destino existencial.
A linha–de–horizonte, apresenta, na experiência quotidiana, uma noção de infinito densa de consequências existenciais. E só a linha–de–horizonte apresenta o infinito – aspecto não despiciendo – dentro de uma trajectória humana normal, ou seja, quando eu estou a andar em frente (naquilo que eu entendo ser a minha trajectória humana normal): na minha trajectória humana normal, põe-se à minha frente, no meu campo de visão, qualquer coisa de que eu digo: “é o infinito” – com todas as consequências ontológicas e religiosas que mencionámos: por meio da linha–do–horizonte o metafísico intersecta o existencial.
Os conteúdos existenciais da linha–do–horizonte são complexos e paradoxais: por um lado ela é um infinito, mas por outro é uma linha atravessada à minha frente, logo um limite. Quando se contempla a linha–do–horizonte sabe-se que se se continuar a andar em frente, toda a vida, nunca se a atingirá. Mas isso significa que nada mais se poderá saber e experimentar para além disto que já é dado naquela contemplação. Daqui resulta um fastio: há como que uma sensação de aprisionamento ainda que numa prisão com paredes muito amplas. Mas é verdade também que essa linha é uma separação: ela pressupõe um espaço misterioso para lá do alcançável pela vista. No comentário de Heidegger, um limite, (peras, em grego, de onde resulta perímetro) é um limiar, para lá do qual outras coisas começam a existir[59]. Assim, a consciência daquele encerramento, torna–se fautor de uma abertura, de uma abertura ao que é essencialmente misterioso, porquanto está para lá do humanamente apreensível. Contudo, por meio da experiência desse limiar – do horizonte –, ainda que inadvertida, entra-se na consideração do para–lá–de: do destino metafísico do homem; “destino”, pois esse é o cúlmine do andar em frente; “metafísico”, pois essa é a substância, confusa e percebida apenas negativamente, do para–lá–de. Nessa consideração rompe-se o perímetro aprisionador e pode-se experimentar a liberdade: liberdade de não se estar limitado ao que se vê, o romper do âmbito materialista. Porventura é possível admitir uma analogia entre a acção da linha–do–horizonte no espaço e a morte no tempo: ambas se apresentam como limites ou limiares, ambas são experiência de opressão ou possibilidade de libertação, ambas se colocam como poderosíssimas (as mais poderosas) questões à existência humana.
Panofsky observa perspicazmente, que antes da invenção da Perspectiva Linear, nos períodos Bizantino, Românico, Gótico e mesmo no início do Renascimento, o espaço da representação pictórica tinha um carácter fechado, de profundidade limitada e reduzida[60] – havia sempre como que um pano de fundo que abruptamente cortava o desenvolver da profundidade de campo, e a linha–do–horizonte não era habitualmente representada. Já esclarecemos que só a Perspectiva Linear fornece as ferramentas para uma representação verosímil de um espaço que se prolonga até ao infinito. Contudo isso não é, aparentemente, justificação suficiente – tendo presente o que atrás foi dito sobre o poder interpelador da linha–do–horizonte – para que a profundidade não seja de algum modo sugerida e a representação da linha–do–horizonte não seja pelo menos tentada. Se a linha–do–horizonte está lá, é visível, é importante, por que é que não é representada? Pois, porventura, porque não consegue ou não merece ser considerada – faltariam ainda as categorias mentais, as formas simbólicas, que o permitiriam; ou então os significados que ela veiculava seriam redundantes relativamente a outros mais vulgarizados ou frequentes: na prática poucos notariam a presença da linha–do–horizonte, seguramente nunca em número suficiente para que se pudesse dialogar sobre ela, gerando cultura. Se a arte, enquanto quintessência de uma cultura[61] se abstém de representar um elemento que descobrimos ser tão existencialmente impositivo, ou nos enganámos na análise precedente sobre o valor desse elemento, ou ainda não fora tomada consciência do seu carácter existencialmente provocador, ou o conteúdo humano que se concretiza na linha–do–horizonte estaria mais disponível noutras formas.
Quando Petrarca sobe ao Monte Ventoux, em 1336, menos de um século antes da invenção de Bruneleschi, o carácter existencialmente interpelador do horizonte não está ainda interiorizado.
Francesco Petrarca terá escrito aquela que ficou conhecida como a carta do Monte Ventoux, ao seu amigo, o monge agostinho Dionigi Roberti de Borgo San Sepolcro. O autor narrou a escalada realizada com o seu irmão ao monte mais alto da região, movido pelo simples desejo de gozar a vista a partir do cume. Ao subir são avistados por um velho pastor que lhes confessa ter levado a cabo a mesma empresa, cinquenta anos antes, e dela não ter retirado senão “desilusão e cansaço”. A advertência apenas espicaça a curiosidade de Petrarca. Por fim chegam ao cume, e deslumbram-se com a sublime visão: as nuvens abaixo deles, os rios e as outras montanhas ao longe. Ali, no topo, Petrarca toma consciência de que, naquele dia, se completavam dez anos desde que abandonara os estudos em Bolonha, pela morte do seu pai. Sobrevém-lhe então o desejo de se aconselhar com Santo Agostinho. Abre ao acaso as Confissões (na pequena edição de bolso que sempre trazia consigo e que fora um presente do próprio Dionigi da Borgo, destinatário da carta) e lê:
“Deslocam-se os homens para admirar as alturas dos montes, e as ondas alterosas do mar, e os cursos larguíssimos dos rios, e a imensidão do oceano, e as órbitas dos astros, e não prestam atenção a si mesmos[...].”[62]
A reacção de Petrarca, do ponto de vista da mundividência contemporânea, para a qual a paisagem e o horizonte são tão apelativos, é motivo de perplexidade: recolhido num silêncio grave, não disse mais palavra até ao final da viagem.
“Fiquei espantado, confesso-o, [escreve ao amigo]e tendo pedido ao meu irmão para não me incomodar, fechei o livro, indignado comigo mesmo pela admiração que ainda sentia pelas coisas terrenas, quando há muito tempo, dos próprios filósofos pagãos, devia ter aprendido que nada há para admirar senão a alma, diante de cuja grandeza não há nada maior.”[63]
Não obstante a novidade que Petrarca introduz na cultura europeia, não obstante a sua modernidade e a afinidade com a mentalidade dos nossos tempos, não obstante a sua repetidamente comprovada sensibilidade, e apesar do prazer que retira da contemplação do magnifico panorama, a crítica de Agostinho morde-o ainda – o que significa que à experiência da paisagem, e do horizonte, não são ainda reconhecidas conotações existenciais.
Esta ocorrência sustenta a hipótese acima apresentada, de que é a Pintura quem entrega o significado do horizonte à cultura[64]; terá acontecido, relativamente ao horizonte, aquilo que Alain Roger denomina “artialização”, a saber:
“[...S]ão os modelos e os esquemas perceptivos peculiares à arte de cada época que não só criam a paisagem, como também definem as suas respectivas categorias e tipos. [...] Tal equivale a dizer que ‘em si’ a ‘paisagem’ é [...] um lugar no espaço natural desprovido de qualquer valor estético, que só o adquire – isto é, que só se torna verdadeira e propriamente naquilo que designamos por paisagem – quando é ‘artializada’ pela arte e pela cultura humanas.”[65]
A representação pictórica do horizonte, tornada possível pela Perspectiva Linear, alertou o ser humano para a sua ocorrência na própria realidade dos lugares. O carácter transfigurador da representação artística, onde as significâncias se tornam mais nítidas e mais transparentes, facilita o acesso aos efeitos existencialmente provocadores da linha–do–horizonte. Reconhecendo-se essa sua valência, até então insuspeitada – como se percebe pela reacção de Petrarca – ela pode depois ser descoberta na paisagem. É a representação artística, como formulação perceptivamente perfeita, que alerta o ser humano para os valores de acontecimentos semelhantes na Natureza – no aforisma de Óscar Wilde “A vida imita a arte mais do que a arte imita a vida”[66]. Também Cézanne notava acerca do olhar dos seus contemporâneos sobre Sainte-Victoire algo que podemos transportar para a linha–do–horizonte – “eles nem sequer a viam”. Tal como Cézanne nos deu a beleza e o valor de Sainte-Victoire foi a descoberta da Perspectiva Linear e a divulgação da sua presença pela Pintura que a introduziu no campo perceptivo e existencial das pessoas, alertando-as para o seu capital cultural e existencial[67]. Pouco depois de se pôr em marcha este processo, não só as linhas–do–horizonte naturais são apreciadas (como se constata nas pinturas de Leonardo e Friedrich) como são construídas outras, artificiais, de modo a que a convivência com ela se torne mais frequente. Por outro lado, a contemplação dos e nos lugares onde o horizonte se manifesta mais agudamente vai adquirindo importância, tornando estes lugares, a seu tempo, apetecíveis para a arquitectura. Progressivamente, o carácter espiritual da paisagem vai sendo cada vez mais claramente percebido[68]
Não poderemos aqui examinar circunstanciadamente este desenvolvimento, conforme mereceria. Contudo uma inspecção sumária da arte e, nomeadamente, da pintura, antes e depois da Perspectiva Linear, e a seguir, até aos nossos dias, bem como um exame sucinto de manifestações de criação e fruição de horizontes no território físico, servirá para sustentar esta leitura.
Na pintura medieval linha–do–horizonte está praticamente ausente. Embora por vezes ela seja representada é-o sem conexão com a profundidade de campo e é por isso entendida, gestalticamente, como parte do fundo, apagando-se perante o protagonismo dos personagens retratados, não fazendo parte da intriga descrita. Normalmente, como é evidente nas figuras a seguir apresentadas, existe um corte nítido entre o primeiro plano e o fundo. Mesmo quando existe um segundo plano, e até um terceiro plano, não há continuidade entre estes e destes para o horizonte, produzindo-se como que um anulamento da profundidade de campo, quase como se sempre se tratassem de encenações num palco de teatro, com um dois ou três panos de cenário.
Na pintura do Renascimento, pelo contrário, há continuidade na figuração da profundidade e, gradualmente, os pintores renascentistas vão-se dando conta do importante papel que a linha–do–horizonte pode ter na composição da intriga do quadro.
Notável é por exemplo o caso de Leonardo em que parece quase haver uma predilecção por este elemento, representando-o, quase a despropósito, em cenas normalmente interpretadas como sendo de interior – como na Anunciação e na Última Ceia – ou mesmo tornando-a quase protagonista – como na Mona Lisa.
Aqui o intrigante sorriso depende exactamente do trabalho sobre a linha do horizonte. Esta apresenta-se descontínua – numa parte do quadro é horizontal e noutra está ligeiramente inclinada – o que faz com que os cantos da boca e dos olhos sejam percebidos de duas maneiras diferentes relativamente às duas posições da linha do horizonte, gerando como que uma movimentação imperceptível, de que resulta a peculiaridade da expressão retratada.
Esta inovação renascentista irá conduzir, na história sucessiva e até ao século XX, a que o horizonte possa vir a assumir o papel principal, como nos quadros de Caspar David Friedrich onde a sua interpelação é vigorosa e evidente.
(Perturbante é o caso de a linha–do–horizonte praticamente ter desaparecido das composições contemporâneas, embora porventura seja possível dizer que ela é a figuração exclusiva dos quadros de Rothko. De facto, considerando a dimensão real destes quadros e a posição do observador relativamente a eles é fácil imaginar que estamos perante grandes horizontes, “infinitos campos de cor” [69] , cujo carácter – às vezes azul e sereno, às vezes amarelo e vibrante, às vezes vermelho e infernal – é comunicado pela cor. O reiterado testemunho da comoção religiosa que estas obras causam parece não renegar esta interpretação[70].)
Ora, como a pintura do Renascimento em diante confere sério destaque à linha–do–horizonte, cremos que seja possível afirmar que foi a invenção da Perspectiva Linear que trouxe à cogitação cultural a linha–do–horizonte, e que foi também a Perspectiva Linear que facultou à moderna Weltanschauung a provocação metafísica do infinito, num período em que outros veículos de provocação metafísica se apagaram.
A provocação do horizonte foi depois assumida e desenvolvida noutros campos artísticos e na própria mundividência social.
Fenómeno muito elucidativo da evolução da penetração cultural da linha-do-horizonte é o aparecimento do “jardim italiano” e depois do “jardim francês”.
Os jardins da Antiguidade e da Idade Média eram interiores a um recinto, ordenados segundo uma regra geométrica e com frequente participação de elementos arquitectónicos (lagos, fontes, pérgulas, bancos, estatuária...) – eles participam da casa, numa altura em que a Natureza era considerada desumana. Os jardins ditos italianos, que se sucedem cronologicamente aos primeiros, aparecem normalmente em posição contígua à casa mas já abertos, pelo lado oposto – lançados como um balcão à paisagem e ao horizonte, procurando criar uma ponte com esta, se bem que numa posição ainda resguardada. O jardim francês irradiando longinquamente perímetros sucessivos a partir da casa, demonstra a pretensão do domínio humano da paisagem, espraiando até ao infinito uma ordem artificial; quase se separa da casa – quer criar uma paisagem e um horizonte, conformados à ordem e estrutura humanas, patentes na arquitectura e na cidade, dominados por uma regra geométrica[71]. O jardim francês não aceita a provocação do horizonte natural, mas compreendendo já o seu poder, constrói para si um horizonte, à imagem e semelhança da mentalidade do tempo: uma paisagem ordenada e previsível, para contemplação de um infinito domesticado. Desenha-se o território entre os 300 metros – em que se perde a noção de profundidade através da visão binocular – e os 3000 metros – aproximadamente a distância a que, por causa da curvatura de terra, parece estar a linha do horizonte[72]. Os casos exemplares são, evidentemente, aqueles que saem da régua de Le Nôtre, na segunda metade do século XVIII: Vaux, Versalles, Saint–Germain, Chantilly e vários outros parques na periferia de Paris. Mas, ao longo do século XVIII este modo de “corrigir a natureza para obter verdadeira beleza”[73] difunde-se pelo resto da Europa: os casos de Badmington, na Inglaterra e Nymphenburg em Munique na Alemanha, são bem exemplo disso.
Além destes jardins e parques convém atentar noutros fenómenos da mesma espécie: já não a projectação do território em extensão que desenha a vista até à linha–do–horizonte, mas a construção de grandes alinhamentos rectilíneos, onde o ponto de fuga central é entronizado. Em Kassel, na Alemanha, uma extensão de 7,5 km é pontuada rectilinearmente, tirando partido de um ponto de vista sobrelevado a cerca de 410m; em Turim constrói-se uma via rectilínea de 12 km, usando a planície do Pó, e que Juvara sublinhará magnificamente com o santuário de Superga, a 675m de altitude; em Caserta, ao pé de Nápoles, é também construído um longo alinhamento, de cerca de 5,5km, que se serve do jogo entre a planície e alguns pontos de maior cota (mas aqui o terminus não é o infinito, mas uma grande gruta na encosta de uma colina). Impressionantes operações de desenho do território, todas elas, onde quer o ponto de fuga principal (à frente dos olhos do observador), quer a linha–do–horizonte campeiam, oferecendo-se à contemplação e interrogação das sociedades – Benevolo chama-lhes, sugestivamente, “capturas de infinito”.
Mas a habitação do horizonte – no sentido da sua absoluta com–preensão e operativização existencial – só é definitivamente efectivada com a arquitectura. Se ao lugar não é concedido um acolhimento não se torna possível um recolhimento profundo e durável, a disponibilidade para se deixar permear pelo que se vê e sente[74]. E a experiência desse lugar não poderá senão ser episódica e fragmentária. Assim, quando lugares notáveis para a contemplação do horizonte, nomeadamente do horizonte marítimo – mais eficazmente provocador porquanto simultaneamente mais distinto (sobre a água, aonde não se pode chegar por meios normais) e mais nítido (é uma clara recta como não existe em ambiente terrestre) – quando esses lugares notáveis, especialmente promontórios, finisterras, começam a ser construídos para poderem ser habitados, e habitados na função contemplativa do horizonte, é então sinal de que se cumpriu a perfeita interiorização do valor existencial da linha–do–horizonte.
O Cabo Espichel é um dos mais belos exemplos destas arquitecturas de habitação do horizonte. A sua topografia elevada torna-o um lugar privilegiado para a contemplação do horizonte marítimo. Mas não só: o caminho até ele é plano, o que faz com que a linha–do–horizonte esteja presente em todo o percurso de aproximação sob uma forma consistentemente rectilínea; depois esse mesmo percurso está orientado de nascente para poente, o que leva a que em todo o caminho sejamos guiados e acompanhados pelo sol. À hora do poente temos a aparição do “[…d]o mar, que vê do sol a roxa entrada.”[75], como dizia Camões, ou seja, o sol que ao pôr-se lança sobre o mar, com o seu reflexo, um largo e convidativo tapete vermelho, perpendicular à linha–do–horizonte que parece querer perfurar o horizonte. É notável que este lugar privilegiado evidencie sinais de ocupação humana desde épocas pré–históricas, mas essa ocupação, que a julgar pelos achados arqueológicos seria de teor religioso – era esporádica (ia–se lá, mas não se ficava). O carácter invulgar desses lugares terá continuado a ser reconhecido durante o período protocristão, muçulmano e após a reconquista, mas, embora eventualmente possam ter existido construções com carácter permanente (pequenas ermidas, por exemplo), nunca tiveram, residência humana perene (o que parece ser contraditório relativamente à intensa atracção que esse lugar suscitava). Só quando se decidiu empreender uma obra de arquitectura de maior envergadura, que assinalava de maneira mais clara a tomada de posse humana desse lugar, ele ganhou a sua definitiva habitabilidade e, com ela, a sua plena leitura: a real possibilidade de uma experiência completa do significado do horizonte. E aqui a Perspectiva tem um papel estruturante, criando um recinto de marcada axialidade, com o cruzeiro, a igreja e a mãe d’água alinhados segundo o mesmo eixo, perpendicular à costa, e ladeados por duas alas de pórticos e casas que acolhem e protegem o peregrino. O protagonismo da Perspectiva no projecto arquitectónico parece de novo asseverar a nossa hipótese: de que só ela introduz o reconhecimento do horizonte. É digno de nota ainda o modo como se dispõem estas arquitecturas – virando as costas ao mar (a própria igreja inverte a orientação canónica, voltando a porta a Este) – como se a habitação do infinito, que ali se procurava, requeresse um quase total apartamento da influência dos elementos e do mar; com esse comunica-se apenas por pequenas frinchas: aquele infinito é ainda tão agressivamente distinto que só a espaços se pode conviver com ele.
(O tema do horizonte marítimo permanece, depois sintomaticamente, na arquitectura portuguesa contemporânea. Ele é tema privilegiado, por exemplo, em duas obras fundamentais de Siza Vieira: a Piscina das Marés de Leça da Palmeira e a Casa de Chá da Boa Nova.)
Ela está com a cabeça inclinada, apoiada num braço, triste, lassa, saturnina. Mas o olhar brilha ainda, luta para se levantar: os olhos como que empurram para cima, na direcção do céu, o sobrolho carregado. Ao fundo um horizonte de mar, feito brilhar por uma estrela...
Esta célebre representação de Dürer condensa em si os caracteres do homem paradigma do Renascimento: o artista, o génio, oscilante entre os momentos de fervilhante criatividade, que o assemelham quase a um deus, e os de profunda depressão, de esgotamento. Este personagem – excêntrico, às vezes solitário, outras boémio, às vezes misantropo, outras entregando-se à mais desbragada luxúria, quase patologicamente ciclotímico – é produto da ruptura civilizacional do final da Idade Média. Ruptura com um teocentrismo social e de Estado, onde a personalidade individual era pressionada a se anular, ruptura que abre caminho para uma visão antropocêntrica de si e do mundo, visão ultimamente, só e fechada sobre si. Já não é Mercúrio – patrono dos laboriosos e zelosos artesãos das guildas – que preside aos destinos do protótipo de homem desta nova idade, mas sim Saturno[76], deus do tempo, aquele que devora os seus filhos (nós?!). Dante, por primeiro, consegue salvar esta divindade tenebrosa, colocando no seu círculo – o sétimo céu – os contemplativos (onde, contudo, Beatriz não ri)[77]. Depois, Ficino, que considera a introspecção, consequente à melancolia, um reverso necessário ao rasgar de entranhas que é o esforço criativo do artista, e ao êxtase entusiasmado (en-theos, tal como os místicos) do parto feliz da criação[78].
A Perspectiva Linear participa desta febre de melancolia que assolou a Europa do século XVI[79]. Como vimos (1. c.) a ênfase subjectivista – isolando o ponto de vista – e objectivista (representação “como se vê”) que a Perspectiva Linear põe em marcha, bem como a redução racionalista da realidade (enquanto se considera apenas aquilo que a razão consegue compreender, e que é manifesto por exemplo no espírito geométrico), redução que culmina na expulsão de qualquer significado transcendente, todos estes factores, dizíamos, têm um papel de relevo no devir antropológico desta época, de que a melancolia é sintoma.
E, contudo, a Perspectiva Linear introduz também uma paradoxal possibilidade de redenção, dentro, e não fora, desta mesma mundividência apertada que a produziu. Há como que um refluxo da onda – um refluxo conceptual – em que, dentro da própria perspectiva secularizante da realidade vista, irrompe uma interrogação transcendental: a dádiva contraditória, paradoxal, da consciência da última fronteira do espaço – no infinito mas visível, quase tocável, a–preensível: a linha–do–horizonte, a intersecção (no infinito) da terra com o céu.
Aqui a dimensão transcendental irrompe de uma esfera imanente; é suscitada na experiência, a partir do interior da coisa (rei) concreta, desenhada, não podendo deixar de ser percebida de modo interpelativo, senão como um símbolo[80] que remete para além de si.
Desta experiência de infinito poder-se-á então dizer algo ao jeito de Sophia de Mello Breyner:
“Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível.”[81]