Autores Clássicos

POR UMA FENOMENOLOGIA DO TURISMO

Vilém Flusser

POR UMA FENOMENOLOGIA DO TURISMO

Caderno Virtual de Turismo, vol. 20, núm. 3, 2020

Universidade Federal do Rio de Janeiro

POR UMA FENOMENOLOGIA DO TURISMO

Vilém Flusser - Tradução por Roberto Bartholo ( Editor-Chefe do CVT)

Sendo “turismo” viajar como um fim em si, portanto um “puro” viajar, que seja então defendida a tese que o turismo no presente assume um papel que aproximadamente corresponde ao que a “teoria” desempenhou na Antiguidade Clássica. “Teoria” significa algo como “sight seeing” (contemplar o que tem valor de ser visto). E a teoria clássica se diferencia da moderna fundamentalmente por sua pureza, isto significa, que ela não se propõe a ser aplicada. Uma gratuidade não-intencional como catarse é, portanto, algo que o turismo moderno e a teoria clássica têm em comum, e não se pode compreender o presente nem se fazer ideia do futuro sem levar a sério o fenômeno do turismo. Uma fenomenologia do turismo ainda está por ser escrita. O presente artigo se propõe a apresentar possíveis contornos de um tal trabalho ainda por ser feito.

Pontos de vista extra turísticos serão para isso desconsiderados. Por exemplo, o ponto de vista da indústria do turismo (de que alguns países europeus em parte dependem), o da administração pública (segundo a imprensa o contingente de turistas foi a maior preocupação do governo francês no começo do mês de julho), o da política internacional (a porosidade das fronteiras dos estados e sua degeneração em obstáculo aos fluxos de veículos pode implicar numa decadência primeiro do nacionalismo e depois da nacionalidade), o etnológico (a modificação do folclore, por exemplo nos vales dos Alpes, onde americanos vestem calças de couro e nativos bermudas), o linguístico (a osmose entre línguas sem qualquer parentesco, lembrando o caso japonês, como os snack bars no catalão e datchas no dialeto bávaro), etc. Todos estes pontos de vista são aqui desconsiderados em favor do ponto de vista do turista em si mesmo. E este ponto de vista é considerado como se fosse o do distanciamento de uma pessoa tomada de surpresa e vinda de um sítio subdesenvolvido. Pois “é com a surpresa que se começou aqui e agora a filosofar” (Aristóteles).

O turismo tem três fases: a partida, a viagem e o regresso. Nos primórdios a partida acontecia numa atmosfera quase mística e festiva. Uma atmosfera de cíclico retorno anual, mas, ainda assim, também de aventura. Mapas eram estudados, roteiros de viagem comparados, hotel reservado e roupas compradas. Em poucas palavras: planos eram feitos. As férias articulavam festivamente o ano. Como na Idade Média as peregrinações. E na Antiguidade os mistérios e os jogos. Quem permanecia acompanhava o turista até à estação de trem. Um cortejo festivo com conselhos, lágrimas, risos e lenços agitados. Hoje as coisas são de alguma maneira arrumadas no porta-malas do carro no último dia de trabalho ou de aula (nem é preciso dizer que estudantes também já têm carro), e se alguma coisa é esquecida, pode ser comprada por quase o mesmo preço e mesma qualidade em praticamente toda parte. Com formalidades para compra de divisas, emissão de passaporte e obtenção de vistos de entrada e saída reduzidas a quase zero, o obstáculo a ser transposto quase se reduz apenas à decisão de viajar. Depois disso a partida pode vir rapidamente. Mas ainda assim, ela é festiva, porque deixa o cotidiano afundar na névoa cinzenta de um passado que se deixa para trás. A partida transforma a própria cidade numa circunstância superada. As obrigações se dissolvem. Mesmo a moradia deixa de ser habitual. A partida é libertação do hábito. Decidir partir é agarrar uma liberdade fundamental: a de movimento. Sem ela não valeria mais a pena viver. Recentemente um jovem de Berlim Ocidental me disse que pior que as restrições impostas pelo muro, era ter que viajar durante horas antes de poder viajar sem itinerário ou plano. A falta de plano, o acte gratuite é o característico da liberdade de movimento. E é a essência do turismo. Mas com certeza temos que levar em consideração que, dialeticamente, essa liberdade sem plano é agora pré-planejada pelo capitalismo liberal triunfante na Europa. Isto é um fato inquietante.

Aliás: não existe nenhuma decisão totalmente sem plano. Assim, basta olhar para os tetos dos carros para se tirar algumas conclusões sobre as intenções de seus ocupantes: carrinhos de bebês, tendas, esquis, botes (tetos de carros como uma contribuição à dialética hegeliana da liberdade). E embora a rede de estradas que cobre a Europa e seu entorno seja extraordinariamente densa, ela regula o movimento (se a “liberdade” for definida pelo número de alternativas disponíveis, a densidade do sistema de estradas é um indicador de liberdade). Por toda parte se planeja o não intencional. Para um sul-americano a densidade do sistema de estradas tem um efeito ainda maior, dada a diversidade de paisagens que abrange. Se você por alguns quilômetros apenas, o cenário já pode mudar completamente. Astúrias é por natureza e cultura completamente diferente da Galícia e do País Basco. Languedoc difere de Roussillon e Provence, Oberammergau de Pinzgau, ainda que para a América do Sul sejam distâncias ridiculamente pequenas. Existencialmente uma viagem de 50 quilômetros na Europa corresponde a 500 quilômetros no Brasil, dada a escala do país. As ondas de turistas que atingem a Europa obscurecem todos os regionalismos, ainda que o turismo tenha servido de catalisador para que emerja um regionalismo artificial (outra vez, uma dialética). Um provençal pode viajar para a Noruega ou a Turquia – o que certamente não reforça seu provincianismo – e ele pode comer bacalhau e kebab em casa, mas ele vai servir para um visitante escocês trutas com amêndoas e vinho branco, enquanto fala de suas impressões de Cádiz durante a refeição.

Para um visitante do Novo Mundo as estradas são surpreendentemente livres de outdoors de propaganda e deixam a vista aberta para a paisagem. Mas passam por muitas placas indicando “Chambres, Rooms, Zimmer, Stanze” e coisas parecidas. Os preços podem até variar consideravelmente, mas a qualidade é quase uniformemente boa, e os turistas não seguem apenas critérios de preço para estabelecer suas hierarquias nas escolhas de alojamento. Proletários recém ingressos nas classes médias e arrivistas das classes mais altas podem fazer escolhas com base em critérios que opacos para os outsiders, espelhando na escolha de acomodações gradações de classes sociais vias de superação. É, no geral, mais difícil discernir as diferenças sociais em meio aos turistas. Usam as mesmas roupas, dirigem os mesmos carros; apenas os rostos e alguns hábitos e costumes dão pistas para isso. Os próprios europeus são mais aptos a fazer diferenciações observando que ex-proletários são mais gastadores do que antigos membros das classes médias. Por exemplo os últimos parecem preferir as poltronas de trás nos teatros. Não são mais critérios estritamente econômicos que separam essas classes e no futuro pode não mais ser interessante ou necessário diferenciá-las desta maneira.

O que motiva turistas a escolherem este ou aquele lugar é indeterminado; o fator decisivo na escolha é aleatório. Este elemento probabilístico dá ao turismo uma qualidade de jogo, de modo que o turista pode representar o mais recente ancestral do futuro homo ludens (a entropia negativa aleatória no mundo entropicamente planejado do neocapitalismo como habitat absurdo, ou do homem como jogador). Ainda que o movimento browniano do turismo seja dirigido pelo acaso, existe nele uma meta discernível: solidão e comunidade. A ninguém da América precisa ser dito que comunidade só pode florescer com um contraponto de solidão e que as massas amorfas bloqueiam as relações humanas. Mesmo que a massificação na Europa não tenha ainda atingido proporções americanas, o turismo é um fenômeno enraizado na massificação e busca superar isso. E assim pequenas comunidades temporárias emergem nas hospedagens e campings em localidades isoladas nos topos das montanhas, praias, lagos e lagoas, compostas aleatoriamente por elementos multinacionais e heterogêneos. Nelas os primeiros fios de uma nova tecedura de critérios extra-econômicos estão sendo tramados e conectados. Está é uma nova polis que espera por seu Platão para se tornar utopia. O caráter de “estrutura aberta” dessas comunidades de jogo é reforçado pelo deslocamento nômade dos turistas, que torna comunidades tão mutáveis como oásis, assim sua forma (parking lots) permanece constante, enquanto os camelos mudam (motor homes). A teoria da comunicação tem muito a fazer no campo do turismo.

Ao lado das comunidades abertas ainda permanece uma variedade de restos, tais como spas e hotéis de férias, que mantém um caráter vitoriano, como museus dos velhos tempos. A atmosfera de uma área de preservação (mais da cultura que da natureza) fica atestada pelo grande número de homens e mulheres europeus que não apenas se recusam a morrer, mas também querem ali desfrutar da vida na velhice. A presença de mutilados de guerra dentre eles reforça o caráter museal de tais sítios. É bom que tais pan-ópticos culturais sejam preservados para os jovens não esquecerem.

E então o aparato eletrônico soa avisando que chegou a hora do regresso para casa. Este toque de recolher que o mundo planejado toca para o futuro homo ludens tem o efeito de uma metamorfose. O carro do turista que era um veículo da liberdade se transforma em mero meio de transporte; sua esposa deixa de ser uma companheira para ser cozinheira e cuidadora de crianças; suas crianças deixam de ser parceiras de brincadeiras para entrarem na coluna dos “custos” do orçamento doméstico; e ele mesmo não é mais um quase-humano e volta a ser um produtor, consumidor e pagador de impostos. Com as seguintes circunstâncias agravantes: o ex-turista retorna ao encapsulamento depois de um estado de temporária transcendência, e assim enxerga este seu rebaixamento de fora e melhor. De pouco lhe serve saber que este período de vida de funcionário vai ser seguido outra vez por um período de turismo e que há uma tendência para diminuir a duração do período funcional. É preciso reconhecer que o funcionário está no cerne do turista. Os jovens que estão agora protestando podem talvez ser caracterizados assim: são turistas que querem negar os funcionários dentro e fora de si e se recusam a voltar para casa. Turismo é, portanto, uma realização do liberalismo planejado em que a perigosa dialética da liberdade se torna especialmente evidente.

No começo deste ensaio afirmei que o turismo de hoje desempenha aproximadamente o mesmo papel que a teoria na Antiguidade. Ambos – turista moderno e filósofo grego – dão as costas para a economia e a política para se dedicarem à pura contemplação e ao livre brincar. Após a catarse ambos submergem outra vez no interior da caverna platônica. Mas há diferenças importantes. Uma delas é que o filósofo grego tinha abaixo de si escravos e artesãos (ele é aristocrático) e o turista moderno tem dentro de si um funcionário e eleitor (ele é democrático). Outra diferença é que o filósofo viaja rumo ao sublime e o turista moderno rumo ao absurdo. Muito mais poderia ser listado aqui. O turismo talvez possa ser visualizado por seus paralelos com a filosofia, mas só isso não pode dar conta de compreendê-lo e explicá-lo. Ele é misterioso o bastante para, mesmo sendo tomado como indicativo do futuro, entregar o futuro à opacidade do mistério.

Sobre o autor

Vilém Flusser nasceu em Praga em 1920, emigrou primeiro para Londres e logo em seguida para o Brasil durante a 2ª Guerra, onde se estabeleceu e iniciou sua carreira intelectual, atuando como professor de filosofia, e publicando livros e artigos em jornais de circulação nacional. Retorna à Europa em 1972, tendo vivido na França e Alemanha, onde prosseguiu produzindo intensamente. Morreu num acidente de carro em 1991, ao visitar sua cidade natal após 50 anos.

Flusser foi um filósofo e pensador bastante singular. Em sua obra abordou temas bastante diversos (linguagem, cachimbos, fotografias etc.) sempre por um prisma muito próprio, tendo se tornado bastante conhecido e influente em estudos nas áreas de comunicação, fotografia e design.

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