Entrevista

Entrevista com Marta Irving

Flávia Mattos
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil

Entrevista com Marta Irving

Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 1, 2021

Universidade Federal do Rio de Janeiro

ENTREVISTA COM MARTA DE AZEVEDO IRVING

Marta de Azevedo Irving – Praia Vermelha, Urca, Rio de Janeiro. Fevereiro de 2021.
Marta de Azevedo Irving – Praia Vermelha, Urca, Rio de Janeiro. Fevereiro de 2021.
Foto por Flávia Mattos.

Primeiras palavras...

Nesse período ainda atípico atravessado pelo contexto da Pandemia da Covid-19, o encontro presencial com a professora Marta Irving (com os devidos cuidados que o momento exige) foi de valor inestimável. A potência do diálogo face-a-face nos contagia e nos nutre de sensibilidades e sentidos, que caminham com as palavras, gestos, olhares, pausas – memórias, tempo e presença. Ouvir diretamente suas vivências e perceber os desdobramentos do seu percurso profissional, suas inquietações e visões de mundo nos traz um convite à reflexão crítica sobre a vida, sobretudo, com relação ao papel do pesquisador na produção de conhecimento na área das ciências humanas e sociais, no mundo contemporâneo. A partir de uma postura engajada, Marta nos brinda com a possibilidade de construção de uma tessitura plural e diversa capaz de considerar a complexidade dos fenômenos e a necessidade de enfrentamento dos inúmeros desafios que tensionam o mundo e, em particular, o contexto brasileiro. Nos induz à crença na possibilidade de se repensar e criar caminhos mais promissores para a formação acadêmica, o desenvolvimento do país e a própria vida no planeta. Foi com essa vibração que revivi muitos dos aprendizados que tive durante a graduação no Instituto de Psicologia da UFRJ e, posteriormente, no GAPIS (à época registrado no Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq como Grupo de Pesquisa sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social), fortemente marcados por sua orientação e os diversos encontros que me inspiraram posteriormente. Espero, assim, que muitos, como eu, possam também ser tocados por esse registro.



Flávia Mattos

1. Para início de conversa, gostaria que você contasse um pouco da sua trajetória de vida e inserção profissional. Quais os caminhos que você trilhou até ser professora titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)?

Minha história é muito atípica. Eu me formei na UFRJ em 1978 em biologia. E as áreas da biologia que mais me interessaram à época foram a biologia marinha e a ecologia. Eram as duas áreas da biologia que lidavam com a dinâmica dos sistemas ecológicos. Mais do que conhecer uma determinada espécie, eu tinha muito interesse em entender como os sistemas funcionavam e isso foi muito intuitivo, nada planejado. E desde muito tempo eu me interessava em estudar a questão marinha e costeira. Fiz vários cursos na Fundação de Estudos do Mar, da Marinha. Sempre fui fascinada pelo mar, acho que como todo carioca. Mas o que eu percebia na biologia era que nunca se estudava ou se discutia a questão do ser humano nessa complexa cadeia trófica de matéria e energia. Apenas a disciplina de Etnobiologia era uma das raras que tratava dessa questão da relação da sociedade com a natureza. Foi quando percebi que a biologia não estava atendendo àquilo que eu buscava. Era muito jovem na época, e como todo jovem havia criado inúmeras expectativas e fantasias com relação à universidade. Foi quando resolvi fazer um curso na área de humanas e sociais. Estava ainda cursando biologia, mas busquei um novo vestibular. Na época, tive as opções de sociologia e psicologia. Mas como o curso de sociologia só era oferecido em período diurno, optei por cursar psicologia, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), à noite. Isso foi já no final da década de 1970 e início da década de 1980. E para mim foi uma grande surpresa quando entrei na UERJ porque o curso era fascinante, por lidar com temas completamente diferentes dos da biologia. E praticamente metade da minha turma já era de formandos de outras áreas do conhecimento. Eu me lembro que havia graduados em administração, em educação física, muitos engenheiros da Petrobras que estavam buscando formação na área de humanas, entre outros campos. Essa foi uma turma brilhante porque nela todos liam muito, discutiam e problematizavam tudo e isso não era comum, especialmente após a ditadura militar. Uma turma extremamente pulsante. Assim passei a fazer as duas faculdades simultaneamente por algum tempo. E era muito engraçado pois em cada um desses cursos era claro o estranhamento com relação à minha outra opção de graduação. Era como se eu estivesse permanentemente em um “não lugar”. Era estranho também porque, para mim, os dois cursos eram complementares. E sem saber, procurei integrá-los, quando comecei um estágio na Fundação Oswaldo Cruz, no Departamento de Comportamento Animal. Lá estudava os ciclos circadianos da Biomphalaria glabrata, o vetor da esquistossomose. Trabalhava com muitos biólogos, com o pessoal da saúde e com psicólogos e publicava artigos nesta área. Mas nessa trajetória não tão linear a vida pessoal interferiu na vida profissional: me casei e fui morar na Inglaterra. E lá, na Southampton University fiz um mestrado em Biologia Marinha, com foco em gestão costeira. Importante contextualizar que na época os cursos de mestrado no Brasil nessa área não eram reconhecidos e era possível fazer um mestrado no exterior com bolsa da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) ou do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Pensei então: o que vou estudar? Eu queria estudar a zona costeira. E como o meu fascínio sempre foi o mar, fui estudar a dinâmica da zona estuarina, buscando entender como esse sistema funcionava com relação à poluição. E é claro que quando se trabalha com poluição costeira, lida-se diretamente com a questão da origem da poluição, de como isso se reflete na cadeia trófica. E, evidentemente, passa-se a observar diretamente a relação entre a dinâmica socioeconômica e a dinâmica ecológica. E fiz esse estudo em outro país, outra língua e conhecendo gente do mundo inteiro, o que me abriu outras portas. Na sequência, terminei o curso de mestrado na Inglaterra e quando voltei para o Brasil, ainda na década de 80, estava sendo iniciado um megaprograma de zoneamento costeiro, coordenado pela Comissão Interministerial de Recursos do Mar, da Marinha. Naquela ocasião estavam procurando pesquisadores com o meu perfil para implantar esse programa fora do eixo Rio-São Paulo. Fui então para o Ceará, montar o Programa de Zoneamento Costeiro junto ao Laboratório de Ciências do Mar. Essa foi uma experiência muito interessante que me mostrou claramente na pesquisa o efeito da poluição sobre a pesca artesanal e a dinâmica costeira. E como pesquisadores tínhamos que trabalhar com inúmeras outras questões como a exploração mineral e seus efeitos na zona costeira, a da erosão costeira em resposta à exploração de areia, as mudanças ecológicas em resposta à poluição orgânica, etc. Assim, sem mesmo perceber, passei a trabalhar com a dinâmica socioeconômica da região costeira. Contava na época com uma bolsa de Desenvolvimento Regional e foi também a partir daquele momento que me inseri no debate sobre o turismo, uma vez que a Universidade Federal do Ceará passou a assumir um papel inovador no desenvolvimento de programas sociais de pesquisa e na formação em turismo, já que, na época, não havia cursos de turismo em outras universidades públicas e somente as universidades privadas formavam profissionais de gestão do turismo para o mercado. Mas no final da década de 80, entre Fortaleza e o Rio de Janeiro, iniciei também, em paralelo, o meu doutorado em Ciências na Universidade de São Paulo (USP), finalizado em 1991, que teve como foco a dinâmica ecológica da Baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro. Logo após esse período intenso entre viagens de campo, publicações e elaboração de tese, voltei ao Rio e fui imediatamente contratada pela World Wildlife Fund (WWF) internacional, sediada em Washington, para coordenar, no Brasil, o “Projeto para a Definição de Prioridades para a Conservação da Zona Costeira Brasileira”. Fui contratada como consultora e tinha a missão de viajar por toda a costa brasileira para identificar as áreas críticas para a conservação da biodiversidade e mapear os principais atores sociais, a legislação e as institucionalidades envolvidas e os problemas a serem enfrentados com esse objetivo. E uma vez mais, turismo, pesca, exploração mineral, poluição industrial e agrícola e tantas outras questões “não biológicas em sentido estrito”, mas de cunho socioambiental, passaram a incorporar o meu foco de trabalho. Nesse desafio precisava ter reuniões permanentes com organizações não governamentais, com lideranças da pesca, quilombolas (que ainda nem eram reconhecidos como tal...), indígenas e tantos outros grupos envolvidos nos inúmeros conflitos na zona costeira. Assim comecei a entender, na prática, que a gestão costeira não era somente uma questão da ecologia strictu sensu e que não podia prescindir da compreensão das questões sociais envolvidas. Naquela época eu não sabia e nem se discutia na universidade o que era Ecologia Social ou Ecologia Política. Esses campos foram surgindo em um debate de contracultura na década de 60, mas só se consolidaram posteriormente no rastro da Rio-92. Assim, comecei a trabalhar na prática com conceitos que só muito tempo depois foram assimilados pela academia. As questões ecológicas até então estavam circunscritas ao campo da Ecologia e não eram sequer discutidas no âmbito das Ciências Humanas e Sociais. Por todas essas razões, esse período vivido no WWF foi riquíssimo para a minha formação profissional. E logo após passei no concurso para professora de Biologia da Universidade do Ceará, ministrando disciplinas ainda voltadas para a Ecologia stricto sensu e, também, passei a dar aulas em um curso de Especialização em Ciência Ambiental na Engenharia. Naquele momento, o Pró-Reitor de extensão, que a meu ver era um visionário, havia criado o Transtec-Bureau de Geração de Tecnologia e me convidou para assumir a coordenação, exatamente pelo meu perfil, uma vez que buscava integrar as diversas áreas de conhecimento para que a UFCE pudesse liderar um movimento de inovação para o desenvolvimento regional e nele o tema ambiental era central. Naquela ocasião, a Universidade Federal do Ceará estava começando a trabalhar com projetos de extensão e um deles era exatamente dirigido à questão ambiental. Foi também quando o turismo começou a ser discutido na zona costeira cearense como importante elemento para a economia local, mas, também, como um grande vetor de impacto, tanto na dinâmica ecológica como socioambiental, como resultado de sua versão mais usual e perversa de “sol e praia” que se implantava ferozmente naquela região, excluindo os pescadores artesanais de seus territórios ancestrais. Assim vivi na pele aquele momento não apenas como pesquisadora, mas como cidadã brasileira inconformada com o que estava vivenciando. Naquele momento, início da década de 1990 e como recém doutora, pude conceber e implementar o Programa de Meio Ambiente da extensão universitária. E nessa experiência comecei também a trabalhar em paralelo com pesquisadores da Comunicação da UFRJ, organizando eventos e publicações sobre as temáticas envolvidas. As questões do turismo e da sustentabilidade eram discutidas na prática, ainda que teoricamente não estivessem na ordem do dia do debate acadêmico. Por essa razão, a universidade passou a coordenar cursos de turismo na Região Nordeste e foram inúmeros os cursos de especialização em turismo que pudemos coordenar nesse contexto, nos quais os alunos eram avaliados por meio de projetos aplicados às suas regiões de origem. Continuava a morar em Fortaleza como professora da UFCE quando surgiu a oportunidade de participar de um grande edital internacional das Nações Unidas, intermediado pelo Banco Mundial, com o objetivo de implantar e formar uma equipe interdisciplinar para coordenar a implementação do componente de meio ambiente do Programa de Desenvolvimento Agroambiental do Estado do Mato Grosso (PRODEAGRO). Esse programa envolveu milhões de dólares e tinha como objetivo o desenvolvimento sustentável do Estado, como uma forma de compensação pelos impactos socioambientais causados pela BR-364 (Pólo Noroeste). Assim, com o apoio dos meus colegas da UFCE me candidatei ao edital e fui selecionada para coordenar a equipe de meio ambiente. Interessante notar que esse programa foi anterior à Rio-92, em um momento em que o conceito de desenvolvimento sustentável praticamente ainda não compunha a pauta do debate internacional e essa foi exatamente uma das dificuldades para a sua implementação, como foi reconhecido algum tempo depois no processo de avaliação dos resultados alcançados. Fui morar em Cuiabá e vivenciei uma experiência surreal e intensa, entre reuniões com pesquisadores do mundo inteiro e interlocutores do movimento social e da esfera governamental e aventuras de campo inenarráveis. Essa experiência de projeto internacional na Amazônia foi central na minha formação como pesquisadora e como cidadã pois entendi como nunca havia entendido antes, o sentido do conflito e a verdadeira face da exclusão social de povos e populações tradicionais. E entendi, na prática, os pressupostos da Ecologia Social e Política. Mas nessa narrativa alguns parêntesis são essenciais. Por exemplo, no início da década de 1980 quando eu era uma jovem bióloga e ainda estava concluindo o curso de Psicologia, eu trabalhei durante alguns anos em diversas empresas de engenharia como consultora na área ambiental, entre as quais, uma grande empresa de referência na época, a EngeRio. E por incrível que pareça, já naquele momento nós éramos mais de 100 profissionais de diversas áreas de conhecimento no Departamento de Meio Ambiente, entre biólogos, antropólogos, administradores, sociólogos, engenheiros, engenheiros florestais, entre outras formações e trabalhávamos em uma perspectiva interdisciplinar quando isso sequer era discutido nas universidades. Assim fomos formados, na prática, na complexa temática ambiental e não na universidade. Isso porque vivíamos permanentemente um caleidoscópio de experiências no campo de projetos com esse objetivo em todo o país. E dali saiu uma geração de profissionais que passaram a trabalhar em megaprojetos de desenvolvimento, ou passaram a ocupar cargos gerenciais em empresas, no movimento social ou na esfera governamental. Também por essa razão e pela experiência em projetos internacionais, quando estava em Mato Grosso, licenciada da Universidade do Ceará para o Prodeagro, fui convidada para integrar o Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ e ali fortalecer as ações de geração e transferência de tecnologia e criar o Programa de Meio Ambiente (CFCH). Esse convite coincidiu com o momento subsequente à realização da Rio-92 que passou a influenciar esse debate também nas universidades brasileiras. O período de transição entre Cuiabá e o retorno ao Rio de Janeiro para a UFRJ coincidiu também com uma assessoria que realizei para um jornal alemão na cobertura da Rio-92, onde tive a oportunidade de ter acesso direto a todos os eventos e debates no plano internacional. E a Rio-92 foi realmente um marco, um divisor de águas nessa pauta e um primeiro esforço de integração das agendas social e ambiental, embora a universidade funcionasse ainda predominantemente, na fragmentação entre as Ciências da Natureza e as Ciências Humanas e Sociais. O fato é que a Rio-92 representou um “caldeirão” de debates e propostas de contracultura (tendo a questão ambiental como inspiração...) e coroou tudo aquilo que eu já vivenciava na experiência de projetos. Mas na universidade a cartilha disciplinar não permitia muitas aventuras acadêmicas. E uma vez na UFRJ, quando precisei me situar em uma instância acadêmica, conheci a professora Maria Inácia, do Instituto de Psicologia e por ela fui convidada a trabalhar no Programa de Despoluição da Baía de Guanabara, coordenando uma equipe interdisciplinar e formando professores e alunos da psicologia para trabalharem no mapeamento e na formação de mais de 800 lideranças dos municípios do entorno da Baía de Guanabara. Começou, então, a minha participação no Programa de Pós-Graduação em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social (EICOS) [1] do Instituto de Psicologia em 1996, e toda a minha trajetória na Ecologia Social, no plano acadêmico, que está na origem de inúmeras teses e dissertações que pude orientar desde então, ancoradas teoricamente na Ecologia Social. Assim, academicamente, fui “autorizada” a trabalhar na indissociabilidade entre natureza e sociedade e entre natureza e cultura. Mas o interessante é que só mergulhei na Ecologia Social no plano teórico muito tempo depois de ter entendido o seu significado na prática de projetos. E, também na UFRJ, a partir de 2009, passei a integrar também o Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (PPED), do Instituto de Economia (IE) da UFRJ e passei a pesquisar de maneira mais sistêmica as políticas públicas com as quais havia trabalhado desde os primeiros projetos no campo. Na sequência fiz alguns pós-doutorados na França, trabalhei com professora convidada em algumas universidades europeias e, atualmente tenho a oportunidade ímpar de coordenar o Programa de Meio Ambiente do Colégio Brasileiro de Altos Estudos do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ e trabalhar com a agenda socioambiental interdisciplinarmente e transversalmente como sempre desejei. Mas essa trajetória não foi linear e teve muitos percalços, muitas “pedras no caminho” e apenas em 2014 me liberei dessa sensação desconfortável de “nadar contra a corrente” quando obtive a minha titularidade exatamente a partir do reconhecimento desse “não lugar”. E foi nesse “não lugar” que eu pude me constituir e afirmar, academicamente. Assim, hoje tenho uma clara sensação de “missão cumprida” quando percebo tantos alunos e ex-alunos alçando voos orientados pelos mesmos valores éticos que busquei transmitir durante o meu percurso acadêmico.

2. Nesse seu percurso, quais foram os seus referenciais teóricos inspiradores?

Como expliquei, o meu mergulho profissional veio de uma prática extremamente intensa e diversificada em projetos nacionais e internacionais. Mas veio também de uma inquietação acadêmica pessoal que surgiu e se consolidou com a leitura do pensador francês Edgar Morin. Por que o Morin é tão importante na minha história acadêmica? Porque quando eu estava me formando em biologia e vivia o estranhamento do “porque eu estou aqui (na biologia)?” e do “por que eu estou lá (na psicologia)?” por acaso realizei a leitura de um de seus livros, escrito em 1972, intitulado “Le Paradigme Perdu: la nature humaine”, no qual ele comenta exatamente a necessidade de articulação entre as Ciências da Natureza e as Ciências Humanas e Sociais na decodificação da realidade. E assim, inesperadamente encontrei um eco na literatura que parecia sintonizado com as minhas próprias inquietações. Em razão desse livro busquei outras de suas obras como “Ciência com Consciência”, escrito na década de 80, no qual ele problematiza a ciência cartesiana e sugere novos caminhos para a compreensão da realidade, traçando as bases para uma obra posterior, “Introdução ao Pensamento Complexo”, que me inspira até hoje. Nutri uma grande admiração pelo Morin mesmo antes de tê-lo conhecido pessoalmente e dividido com ele algumas importantes discussões e projetos. O impacto que ele teve nessa minha visão de mundo, de que natureza e cultura são indissociáveis, tornou-se irreversível a partir da leitura de sua obra. Acredito que a cisão entre natureza e cultura resulta da engrenagem industrial das sociedades ocidentalizadas que destitui a natureza de seu valor intrínseco e a traduz como recurso, em uma perspectiva utilitária e de dominação e essa tendência tem se consolidado desde então pelo próprio pensamento cartesiano e pela Ciência Moderna. Assim, para Morin, um dos maiores desafios para o enfrentamento da crise civilizatória (que se materializa como nunca nesse contexto da Pandemia da Covid-19) é exatamente o “religare” com a natureza e com o próprio sentido de humanidade, ideia que compartilho integralmente. Na verdade, nós somos parte da natureza. Serge Moscovici[2] menciona que “a natureza nos fabrica tanto quanto nós a fabricamos” e eu compartilho o seu pensamento. Assim, a sociedade moderna, pós-moderna e “líquida”, (segundo a expressão de Zygmunt Bauman[3]) precisará se reinventar por meio do resgate do sentido de pertencimento à natureza. Se não tivermos a capacidade de caminharmos nessa direção, muito provavelmente, pouco avançaremos, tanto na construção de um novo mundo ou de uma nova civilização (Morin advoga uma “metamorfose civilizacional”) quanto na própria ciência. E sendo assim, por que a ciência insiste em operar apenas pela fragmentação e a redução da realidade? Precisamos construir novos paradigmas e o “Pensamento Complexo” representa uma alternativa. Atualmente as minhas inspirações são os pensadores latino-americanos como Enrique Leff[4], Arturo Escobar[5] e Ailton Krenak[6], entre outros. Temos muito a dizer para o mundo.

3. E uma vez na universidade, como foi possível superar ou conviver com essa dissonância?

Sempre acreditei que a universidade teria que se reinventar. Ela não tem que servir ao mercado, não tem que funcionar como uma empresa de consultoria. Ao contrário. Mas ela tem que estar conectada com a realidade na qual se insere e com as demandas da própria sociedade. E eu acho que eu estava certa na minha percepção. Sabe por quê? Porque, em 2012, durante a Rio+20, os reitores de todas as universidades públicas assinaram um acordo para assegurar o compromisso da extensão universitária. A partir de então, todas as universidades públicas passaram a valorizar a extensão universitária (até então entendida como ação acadêmica secundária e irrelevante...), sendo um dos eixos desse pacto, o desenvolvimento sustentável. Mas cada instituição tem o seu tempo. E eu, como indivíduo e como profissional, não queria esperar. Talvez estivesse na frente do tempo institucional pela minha inquietação. Assim, desde muito cedo em minha inserção acadêmica busquei estimular os meus alunos nessa direção, fazendo-os entender que além da pesquisa, a prática e a ação de campo são fundamentais para a decodificação da realidade. Pelo trabalho de campo, o pesquisador se forma e se informa sobre a realidade. E muito da minha formação resultou exatamente da prática interdisciplinar. Na psicologia esse foi um real desafio, mas a busca e a crença na potência de uma ciência engajada sempre me fizeram caminhar e enfrentar as inúmeras adversidades no processo. Hoje em uma leitura retrospectiva de minha trajetória acho que fiz a escolha certa.

4. E como o turismo se tornou um dos seus campos de pesquisa?

O turismo como campo de investigação surgiu na minha vida enquanto eu estava trabalhando na UFCE no início da década de 90. Não fui buscá-lo. A minha atuação inicial em turismo teve origem em uma demanda da sociedade cearense para a Universidade Federal do Ceará. O turismo à época era uma questão fundamental para o desenvolvimento do Estado e do Nordeste, em geral, em um momento em que avançava brutalmente na zona costeira de toda a região e não havia pessoal capacitado, com formação interdisciplinar para pensar criticamente o seu desenvolvimento. Da mesma maneira havia na época o Prodetur NE, intermediado pelo Banco do Nordeste e fui convidada pela universidade para apoiar a equipe do projeto naquela instituição, formando o seu corpo técnico nos aspectos relativos à dinâmica socioambiental e contribuindo para a análise de projetos de todos os estados do nordeste. Ao mesmo tempo, várias instituições da região solicitaram à UFCE que criasse cursos interdisciplinares que pudessem abordar o tema, não apenas como atividade de mercado, e sim, de uma maneira mais abrangente. Começa aí, evidentemente, a minha trajetória nesse campo, sendo o principal desafio nesses cursos que coordenei, assegurar a interpretação do turismo enquanto fenômeno global e prática social, apesar de um contexto claramente dominado pelos interesses do mercado. Vale lembrar que os cursos existentes até o final da década de 1980 eram praticamente todos, atrelados às universidades privadas, voltados para o mercado, para a gestão do turismo. E na UFCE iniciamos então uma série de cursos em nível de especialização com esse novo viés interpretativo, que também foram realizados em capitais como São Luís e Teresina, além de Fortaleza. E retornando ao Rio de Janeiro, esse passou a ser também um dos meus principais focos de pesquisa na UFRJ. Mas é importante mencionar que esses primeiros cursos tiveram uma importância muito grande para o país no momento em que eles foram criados. Isso porque a universidade pública ainda não entendia, à época, o turismo como um objeto nobre de pesquisa ou como campo de investigação. O turismo era interpretado, predominantemente, como uma atividade de mercado, sem importância acadêmica. Assim, nessa fase inicial, pelas razões mencionadas, o turismo não merecia atenção das universidades públicas. Também por essa razão e pela conexão com o mercado, entendendo a demanda pela formação de profissionais na área, as universidades privadas começaram então a criar os cursos de turismo, mas o foco prioritário era a gestão turística: gestão de hotelaria, gestão de agências de viagem etc., o que era absolutamente necessário no contexto de um país em desenvolvimento com significativo potencial turístico. Assim, esses cursos responderam a demandas operacionais muito importantes naquele momento. Mas apenas aquele tipo de formação não era mais suficiente para interpretar o turismo em suas inúmeras dimensões e a Rio-92 deixou isso muito claro. Os cursos existentes passaram a abordar temas mais amplos e, progressivamente, também as universidades públicas passaram a entender o turismo como tema relevante para a formação em nível de graduação e pós-graduação e como campo de investigação acadêmica. Afinal, o turismo é um fenômeno contemporâneo complexo, com inúmeras implicações éticas, socioambientais, políticas e geopolíticas que transcendem a sua dimensão econômica. E são inúmeras as vertentes atuais que influenciam o estudo do turismo, sendo a questão do patrimônio em todas as suas nuances um foco essencial no contexto atual, assim como o tema da hospitalidade e tantos outros vinculados às subjetividades envolvidas no processo. Eu tenho trabalhado intensamente com a questão do patrimônio, principalmente no plano de políticas públicas de proteção da natureza e de cultura, na articulação com o turismo. Esse tema é prioritário no caso brasileiro e precisaria de um foco cada vez maior da pesquisa acadêmica. Mas o interessante nesse debate é que a UFRJ até o momento não tem um curso de turismo na graduação. Essa discussão vem de longa data e por muito tempo foi capitaneada pelo Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (atualmente Laboratório Tecnologias, Diálogos e Sítios) (LTDS) do Programa de Engenharia de Produção (PEP) da COPPE/UFRJ mas o processo foi interrompido pelas inúmeras “resistências”, seja no plano acadêmico, seja pelas prioridades e interesses conflitantes das diversas instâncias acadêmicas. No entanto, são inúmeras as dissertações e teses de referência nesse campo que vêm sendo produzidas no Eicos/IP, no PPED/IE, no PEP/COPPE, na Geografia, entre outras instâncias acadêmicas da UFRJ. Esses campos de conhecimento incorporaram o turismo como objeto de investigação e tem gerado uma importante contribuição em termos de produção de conhecimento, assim como tem acontecido em várias outras instituições públicas como a USP, a UNICAMP, a UNB, a UNIVALE, A UFRN, a UFCE, a UFPA, a UFAM, entre tantas outras. Mas os cursos de pós-graduação em turismo nas universidades públicas são ainda poucos no país, considerando as demandas de formação e a complexidade do planejamento turístico em um país de dimensões continentais, caracterizado por uma condição de mega sociobiodiversidade e confrontado com um grave passivo de exclusão social. Da mesma forma, a produção de conhecimento nesse campo é também relativamente recente no Brasil. Uma importante questão de reflexão nesse caso é que, talvez, a universidade ainda não esteja preparada para essa aventura acadêmica pois, pelas razões expostas, um curso de turismo deve ser, em tese, interdisciplinar na graduação. Simples assim. Um curso que se construa com professores de várias áreas de conhecimento, que forme profissionais engajados na interpretação crítica desse fenômeno complexo e que possam ocupar posições de liderança tanto na academia como nos demais setores da sociedade. Por que não fomentar na universidade pública cursos de graduação e pós-graduação interdisciplinares? Muitas das universidades de referência do mundo abdicaram e/ou reformularam a estrutura fragmentada clássica e hermética dos departamentos e passaram a priorizar núcleos ou programas transversais e estratégicos de pesquisa e formação acadêmica. Também, no caso do turismo, é preciso quebrar essas barreiras e criar novas arquiteturas institucionais. E isso nem sempre é muito bem aceito considerando o status quo. Há, portanto, um longo caminho ainda a ser trilhado. Na atual conjuntura, por exemplo, e no contexto do pós-pandemia da Covid 19 como estudar o turismo sem entender a complexa teia das relações internacionais e da diplomacia contemporânea, sem decodificar a questão migratória, do terrorismo, da segurança hídrica e alimentar, da perda da biodiversidade, da emergência climática, das barreiras sanitárias impostas pelas epidemias, entre tantos outros temas que estão na ordem do dia? Para mim, esses mitos acadêmicos que se constroem com base em campos segmentados e quase feudais de conhecimento representam um sério problema a ser enfrentado nos próximos anos se quisermos avançar na leitura do turismo. Os campos do turismo e da sustentabilidade só poderão avançar a partir de uma leitura interdisciplinar e transversal. Assim, porque não a UFRJ iniciar um curso transversal e interdisciplinar de graduação ou pós-graduação em turismo e sustentabilidade?

5. Quais os reflexos da Pandemia na pesquisa acadêmica em turismo?

Estamos vivendo momentos difíceis, mas temos uma bela oportunidade para mudar o foco na academia no que se refere à pesquisa em turismo. Primeiro porque estamos vivendo com muitas incertezas sobre o futuro; segundo, na produção de conhecimento, novos temas e questões surgirão nos próximos anos. Quais os comportamentos e motivações que orientarão as escolhas dos turistas no pós-pandemia da Covid-19 , por exemplo? O que vai significar a restrição sanitária? E o preconceito? Como lidar com as questões migratórias versus o turismo? Como interpretar o turismo enquanto fenômeno que afeta simultaneamente a dinâmica socioeconômica e ambiental não só dos países emissores, como também dos países receptores? Quais as questões geopolíticas envolvidas? Como valorar patrimônio na dinâmica turística? Como quantificar os impactos naturais e culturais decorrentes do processo na conexão local-global? São inúmeras as questões que precisam ser debatidas seriamente na pesquisa do turismo no Brasil. Hoje, por exemplo, o brasileiro está impedido de aceder aos principais países do mundo em razão da Pandemia da Covid 19 e sua imagem está seriamente afetada pelo histórico recente de “irresponsabilidade socioambiental deliberada”, como veiculado em diversos veículos de comunicação em todo o mundo. Mas o que isso significa, por exemplo, para o desenvolvimento do país? Como a imagem do país está sendo assimilada nesse contexto no resto do mundo e o que isso representa para o turismo no futuro? Essas são questões concretas que implicam leituras das subjetividades envolvidas e não apenas cálculos de fluxos e receitas turísticas. Isso representa também uma grande oportunidade para que, no Brasil, sejam repensadas novas estratégias de promoção turística. O que o Brasil quer mostrar quando ainda precisa reconstruir sua imagem diante do mundo no processo de retomada do turismo? Qual é o diferencial a ser considerado? Seria prudente a insistência no turismo “de sol e praia”? A meu ver essa aposta está condenada ao fracasso, especialmente no pós-pandemia da Covid-19. O fato é que todas essas questões alimentam a inquietação e a curiosidade do pesquisador. A meu ver, o Brasil sempre errou na insistência em divulgar a sua imagem vinculada prioritariamente às suas paisagens naturais pois o principal diferencial do país se expressa na relação natureza, cultura e hospitalidade. E isso não tem sido considerado em políticas públicas. Todas as pesquisas que temos desenvolvido, nos últimos anos, têm mostrado, por exemplo, que os turistas que vêm para o Rio de Janeiro retornam não apenas pela natureza exuberante da cidade, mas motivados pela experiência vivenciada na relação natureza e cultura, ancorada na hospitalidade carioca. Esse é um eixo de pesquisa interessante para os próximos anos. E interpretar essa dinâmica e complexa realidade sociocultural e ambiental do país e o seu diferencial, certamente tenderá a ser essencial para a reconstrução da imagem do país para o turismo no futuro.

6. Nesses últimos 30 anos, quais avanços e retrocessos que você identifica nesse modo de pensar no campo socioambiental? E em políticas públicas?

Os avanços vêm pelos movimentos da sociedade que partem principalmente dos povos e populações tradicionais do mundo todo, que reconhecem o sagrado da natureza, a ancestralidade, o direito à terra, o direito a um modo de existir distinto do que prega o capitalismo radical e a sociedade de consumo. Esses grupos sobreviveram a toda uma pressão de uma sociedade ocidentalizada contemporânea, que, na verdade, desvitaliza esse tipo de sociedade e a transforma em uma sociedade marginal. Mas o que se observa nos últimos anos é que esses grupos vão entender que eles têm direitos em viver em conexão com a natureza e a vivenciar outros modos de vida que não são obrigatoriamente os mesmos legitimados pela sociedade ocidental. Essa perspectiva começou a adquirir uma força muito grande a partir da Rio-92, e de todo o debate socioambiental que vem na esteira desse evento, que representou um marco global. Assim, essa questão começa a ganhar corpo no debate acadêmico, e, também, nas políticas públicas, entre idas e vindas, entre avanços e retrocessos. E a meu ver esse é um caminho sem volta por uma razão muito simples: porque a própria sociedade contemporânea está em xeque e a Pandemia nos mostrou de uma forma muito clara que não é mais possível viver segundo os mesmos parâmetros que nos orientavam até aqui. Não é mais possível viver segundo essa visão capitalista-utilitária da natureza, que transforma a cultura em atrativo, transforma a natureza em recurso e as populações tradicionais em meros ícones exóticos para o deleite de uma cultura ocidental que está perdendo o seu próprio sentido. Acho que hoje admitimos viver em uma sociedade que está em crise e a busca de seu próprio sentido de existir passa por essa reconexão com a natureza e pela aceitação de que outros modos de vida são possíveis e desejáveis. Tanto que uma tendência em todo o mundo na Pandemia foi o êxodo das cidades e a revalorização das áreas rurais. Novas ruralidades estão em movimento. As grandes cidades foram subitamente esvaziadas, o que era impensável antes da Pandemia. A mesma coisa aconteceu com o turismo. As grandes cidades passaram a viver uma grande crise e, de uma maneira bastante emblemática, todos os ambientes fora das cidades (ambientes costeiros, montanhas, colinas, serras) que eram ambientes periféricos, passaram a ocupar o foco em planejamento turístico e a atrair a especulação imobiliária. Claro que esse movimento talvez não seja permanente. Mas começamos a questionar os nossos modos de vida. Muitos pesquisadores dizem, inclusive, que é provável que esse movimento de êxodo das cidades não seja apenas transitório, e que isso gere uma demanda cada vez maior por residências no meio rural. Além disso, a fauna urbana vem se recuperando como resultado dos confinamentos e praticamente no resto do mundo (à exceção do Brasil pelas razões que conhecemos...) houve redução das emissões de CO2. Isso tudo mostra que outro mundo é possível, mas vivemos nesse ambiente de incertezas. Nessa incerteza, a única certeza que se tem é a impossibilidade de se controlar tudo. O mundo não pode continuar como está e os caminhos têm que ser reconstruídos. No Brasil estamos vivendo uma grave crise e retrocessos significativos tanto nas políticas de proteção da natureza, como de cultura, como de turismo. E se em anos da Pandemia já enfrentávamos um problema crônico de fragmentação de políticas públicas, nos últimos três anos podemos dizer que houve uma deliberada “interrupção de fluxo”, o que vai gerar retrocessos difíceis de serem enfrentados a curto e médio prazos. Além disso, todas essas políticas muito antes da Pandemia já eram orientadas por ideologias muito distintas e conflitantes. Eu costumo dizer que sou do “pré-cambriano” pois me formei em Biologia no final da década de 1970 e trabalho diretamente com a agenda socioambiental desde o início da década de 1980 e vivi de perto a dificuldade que precisamos enfrentar nos últimos 40 anos para construir o arcabouço legal e as institucionalidades nesse campo porque esse era um movimento de contracultura. E de dois anos para cá estamos vivendo quase um sentimento de luto pelas perdas sucessivas com as quais temos que lidar diariamente. E com a Pandemia outros problemas virão. Mas apesar disso parece haver uma luz no fim do túnel pois a pauta socioambiental que era marginal nas décadas de 1980 e 1990, nos últimos anos, no mundo todo, vem ampliando a sua potência em razão do reconhecimento dos riscos desse modelo perverso de crescimento econômico que desumaniza e destitui a natureza de sua natureza. E com a Pandemia ela se tornou central também para a economia. Assim, a meu ver, o Brasil vai precisar repensar as suas escolhas. No caso de políticas públicas o momento é incerto. Eu acho que o arcabouço de políticas públicas de meio ambiente no Brasil, no sentido mais amplo, é muito evoluído. Nas narrativas, também é extremamente avançado. Por sua vez, o arcabouço de políticas públicas para cultura também é de vanguarda, e isso tudo é reconhecido internacionalmente. O arcabouço de políticas públicas para o turismo, por sua vez, é muito orientado pela leitura de mercado. Os dois últimos Planos de Turismo têm alguns elementos sobre sustentabilidade, mencionam o Turismo de Base Comunitária e/ou Turismo de Base Local. Ou seja, as políticas públicas de turismo têm algumas indicações sobre os caminhos a alcançar. Qual o grande problema? É que cada um desses eixos de política é orientado por um tipo de ideologia. É como se cada eixo estivesse levando o país para uma direção diferente, quando na verdade poderiam estar integrados. Não tenho grandes expectativas a curto prazo, mas tenho a esperança de que o arcabouço construído até agora nos dê sustentação para nos manter firmes para os avanços que teremos que construir daqui para frente. Pode ser que os avanços não venham das narrativas de políticas públicas, mas venham da academia e do movimento social que estão mobilizados, construindo essas inovações. Mas a ironia é que em políticas públicas éramos liderança consensual global nas agendas do clima e da biodiversidade, o nosso arcabouço legal era mencionado nos fóruns internacionais como modelo, tínhamos (e espero que ainda tenhamos...) uma diplomacia brilhante reconhecida no mundo todo e uma excelência inquestionável na área socioambiental… Em termos de políticas públicas de proteção da natureza, a nossa constituição, decretos e leis sobre a matéria eram citados como exemplos… Em outras palavras…se o país não perceber que aí está a chave para a mudança paradigmática de desenvolvimento e para a liderança global, estará absolutamente isolado na cena global. E o contexto pós Pandemia será ainda mais grave, pois a economia global já entendeu isso. A Lei do Clima acaba de ser aprovada na União Europeia, os Estados Unidos, a China, a Rússia e a Índia já se comprometeram a reduzir as emissões de CO2 a níveis consideráveis e a ampliar esforços para a conservação da biodiversidade e as empresas de ponta do mundo todo definem as suas políticas de sustentabilidade. Outro ponto relevante é que todos os países do mundo estão direcionando - apesar de todas as urgências da Pandemia - os seus esforços e os seus orçamentos públicos para a Agenda 2030, uma agenda global para o desenvolvimento sustentável, com 17 objetivos prioritários e que envolvem não só biodiversidade e clima, agendas emblemáticas no caso brasileiro, mas também a agenda da água, de gênero, de educação, de redução das desigualdades sociais, de combate à pobreza, de segurança alimentar, de desenvolvimento das cidades, e tantos outros temas que estão na pauta internacional. Nesse horizonte o que restará ao Brasil se não mudar de rumo? Da mesma maneira, o turismo. Nos últimos anos parecia evidente um aprimoramento das narrativas de políticas públicas e o último Plano de Turismo, como mencionado, tem sustentabilidade como um de seus eixos. E por mais que se possa discutir o significado atribuído à sustentabilidade, esse movimento estava claro na intencionalidade da política pública. Mas, recentemente, as discussões se dirigem apenas à abertura de cassinos e à transformação de áreas protegidas em mega resorts, e a cultura se tornou um “subproduto” do turismo. Às vezes tenho a sensação de que estou apenas vivendo um “parêntesis” na história das políticas públicas no país, mas para manter o meu otimismo digo a mim mesma que o pós Pandemia vai fazer o país acordar. Resiliência é o termo da vez. Mas vivemos de fato um período de incertezas em termos de políticas públicas. O que se advoga é que em algum momento haja uma parceria maior entre a gestão pública e a academia para avaliar criticamente os caminhos que foram trilhados até aqui, o que deu certo e o que perdeu o sentido, e quais os caminhos que precisarão ser trilhados no contexto pós Pandemia, que certamente vai ser mais complexo e difícil do que foi até agora. Por quê? Porque houve uma desmobilização internacional do turismo e há uma grande incerteza sobre a questão das barreiras sanitárias. Portanto, o planejamento turístico vai precisar desenvolver estratégias muito bem elaboradas e competitivas no sentido de retomada. A ironia de tudo isso é que a pauta socioambiental não é mais periférica. Está no “mainstream”.

7. Qual o papel da academia nesses novos tempos? Como você considera que a universidade pode contribuir efetivamente em projetos e políticas públicas?

O primeiro grande desafio é conhecer o que é a academia. São muitas “academias” na academia. É entender que a academia é feita de pessoas. Os cientistas são pessoas que vivem também a realidade. Eles estão submetidos a todas as incertezas da realidade e lidam com esse risco inclusive para desenvolver as suas pesquisas. Um outro ponto é que essa “academia no plural” foi formada e orientada por uma visão eurocêntrica do mundo e da ciência. Assim ela se cristalizou em uma leitura universalista de mundo. Mas na América Latina isso tudo está sendo questionado por um movimento crescente de cientistas que advoga uma “epistemologia do sul”, com as impressões digitais da América Latina, no nosso caso. Mas para isso a universidade precisa se reinventar e reconhecer outros saberes não acadêmicos e saber construir pontes com os demais segmentos da sociedade. E para contribuir para a necessária transformação da sociedade brasileira não há outro caminho a não ser operar a partir de uma visão estratégica, entre a pesquisa pura e aplicada, entre ensino, pesquisa e extensão. E nessa trajetória a interdisciplinaridade constitui uma premissa essencial. Nesse caso não será possível avançar se a própria arquitetura acadêmica em termos de estrutura não for revista. A estrutura departamental monolítica e a burocracia excessiva impedem a fluidez necessária e, também, os novos arranjos, em termos de parcerias intra e interinstitucionais, fundamentais para a pesquisa em temas estratégicos para o desenvolvimento do país. Vale mencionar que, como dito anteriormente, todas as universidades públicas, a partir de 2012 assinaram um pacto de extensão universitária a partir da Rio+20. Isso significa que toda universidade pública tem o compromisso formalmente legitimado de trabalhar com e para a sociedade. Durante muito tempo isso ficou no limbo, mas hoje os alunos de uma universidade pública têm que ter horas de extensão em sua grade, os professores são avaliados pela extensão universitária. De maneira direta na extensão a academia tem muito a oferecer em termos de projetos inovadores articulando ensino-pesquisa e extensão e graduação e pós graduação, na parceria com outros segmentos da sociedade, seja do movimento social, seja da gestão pública, ou mesmo do setor empresarial. Mas as diferentes instâncias da sociedade precisam ter maior acesso à academia. Nós trabalhamos há muitos anos nessa direção. Podemos citar alguns exemplos como o “Projeto de Mapeamento e Formação de Lideranças”, atrelado ao “Programa de Despoluição da Baía de Guanabara” ao final da década de 1990, o “Projeto Sana Sustentável”, no final dos anos 90 e início de 2000 e mais recentemente, o “Projeto Favela-Parque[7]. O primeiro objetivou a formação socioambiental das lideranças dos municípios do entorno da Baía de Guanabara, o segundo, a construção de um projeto participativo junto às lideranças locais para a conservação da biodiversidade e o desenvolvimento do turismo sustentável e, o último, o mapeamento participativo da dinâmica socioeconômica e ambiental de quatro favelas no entorno do Parque Nacional da Tijuca (RJ) e, a construção de um “Programa de Educação Socioambiental”. Nesses projetos são construídos pactos sociais e, sendo assim, o resultado não é apenas acadêmico, mas um instrumento de planejamento e projeção de cenários para as próprias comunidades envolvidas e que, por sua vez, geram subsídios para as políticas públicas. No entanto, muitas vezes projetos como esses são pouco valorizados internamente, porque não são projetos convencionais de pesquisa, principalmente quando na área de Ciências Humanas e Sociais. Além disso, a questão interdisciplinar emerge no discurso e nas narrativas de quase todos, mas a prática da ação interdisciplinar é muito mais complexa e difícil de ser empreendida. Um outro caminho são os eventos abertos de formação e divulgação do conhecimento científico como, por exemplo, o “Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social” (SAPIS), que iniciamos em 2005, com pouquíssimos recursos e se tornou um evento de referência e já está em sua décima edição a ser realizada em 2021[8] em Manaus, em articulação ao “Encontro Latino-Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social” (ELAPIS). Esses são movimentos criados na academia, que geram conhecimento e pontes de diálogo com a sociedade. Outra iniciativa que criamos foi a formação da Rede de Turismo, Patrimônio e Políticas Públicas (Rede TP3) que faz conexão com uma rede francesa (ASTRES) e que envolve pesquisadores dos dois países e, também, interlocutores de outros segmentos da sociedade. No entanto, muitas vezes projetos como esses são pouco valorizados internamente, porque não são projetos convencionais de pesquisa, principalmente quando se incluem entre projetos na área de ciências humanas e sociais. Um outro caminho é entender que existem inúmeras questões da sociedade que não poderão ser explicadas nem pela base teórica convencional, nem pelo arcabouço metodológico disponível. Isso tudo precisa ser ainda construído. Na verdade, está na hora de construirmos a nossa própria referência e autores latino-americanos como Leff e Krenak nos dão algumas pistas nessa direção. A Pandemia nos mostrou que não podemos mais nos basear nas mesmas hipóteses de antes e que não podemos nos enrijecer pelos métodos que temos utilizado até agora. Precisamos ser criativos e nos reinventar como cidadãos, como pesquisadores e como cientistas. A ciência vive eternamente pelo questionamento e durante muito tempo nos acomodamos a determinado modus operandi que hoje não funciona mais. A grande questão é: como vamos agir daqui para frente como pesquisadores e como acadêmicos? E quais serão os nossos grandes desafios que já vislumbrávamos, de alguma maneira, mas que a Pandemia nos trouxe com maior clareza?

8. Quais os temas de pesquisa que sugere na área de patrimônio e que mensagens você deseja transmitir para os pesquisadores que trabalham na interface turismo e patrimônio como membro do Conselho Editorial da Revista Caderno Virtual de Turismo – Tempespaço?

O que está me interessando muito e que eu tenho visto como um tema emergente em algumas das teses que estamos desenvolvendo é a questão de como o turismo ou a viagem são decodificados nas redes sociais. Todo o simbolismo e a subjetividade sobre turismo e os lugares visitados é perpassado por meio desses influenciadores digitais, dessas redes digitais que, na verdade, não só influenciam, mas determinam escolhas. São blogs, sites, ou mesmo vídeos sobre viagens que são divulgados nessas plataformas digitais. Um dos temas emergentes de pesquisa nesse caso é: como as viagens e o próprio turismo se configuram por meio dessas redes digitais. Qual o significado disso? Quem são os atores? Quem determina os conteúdos que são veiculados? Como esse turista é influenciado? Como as suas escolhas acontecem por meio dessas plataformas? Essas são questões ainda pouco estudadas. Uma outra questão de investigação conectada com o significado de hospitalidade e que tem me inspirado e que se estuda muito pouco é: quem são os residentes das destinações turísticas? O que pensam sobre o turismo e o turista? Como se situam nesse processo? Um outro tema de grande relevância no caso brasileiro se refere à questão do patrimônio. Como ressignificar essa noção não apenas para a pesquisa, mas também para políticas públicas. E como integrar as políticas públicas de proteção da natureza, cultura e turismo. No contexto pós Pandemia estaria interessada em investigar quem é esse novo turista? O que ele vai querer? O que vai querer e o que pretende evitar? O que irá influenciar as suas escolhas? Muitas questões sem resposta para investigação. A mensagem para os pesquisadores é ousar e inventar. Construir o que não está construído ainda, avançar no que nós não conhecemos e interagir com vários campos do conhecimento permanentemente. A matéria prima do turismo são os imaginários, as subjetividades construídas sobre o que se quer conhecer e os sonhos atrelados à viagem. Isso implica novos referenciais teóricos, a construção de arcabouços metodológicos inovadores e a construção de pontes de diálogo com outros saberes e fazeres. Que a aventura continue!


Notas

[1] Para saber mais acesse: <http://pos.eicos.pscicologia.ufrj.br/pt/>. Acesso em 27 de fevereiro de 2021.
[2] Serge Moscovici - psicólogo social de origem Romena, radicado na França (1925 – 2014). Uma entrevista com esse autor, realizada em 2008, pelas professoras Tânia Maciel e Maria Inácia D’Ávila (in memorian), do Programa EICOS – Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social, encontra-se disponível em <https://youtu.be/Jsxjcc1Zbl9>. Acesso em 27 de fevereiro de 2021.
[3] Zygmunt Bauman – sociólogo e filósofo de origem polonesa (1925 – 2017).
[4] Enrique Leff – sociólogo ambientalista de origem mexicana, nascido em 1946.
[5] Arturo Escobar - antropólogo colombiano-americaso, nascido em 1952.
[6] Ailton Alves Lacerda Krenak – líder indígena e ambientalista brasileiro, nascido em Minas Gerais em 1953.
[7] Para saber mais sobre o Projeto Favela-Parque, acesse <https://www.youtube.com/watch?v=AuSi4yOu4XI> . Acesso em 27 de fevereiro de 2021.
[8] Para maiores informações: <https://doity.com.bt/x-sapis> . Acesso em 27 de fevereiro de 2021.
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