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Patrimônio Relacional: Identidade e Alteridade no Universo das Imagens Técnicas
Felipe Loureiro
Felipe Loureiro
Patrimônio Relacional: Identidade e Alteridade no Universo das Imagens Técnicas
Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 1, 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Dossiê Tematico

Patrimônio Relacional: Identidade e Alteridade no Universo das Imagens Técnicas

Felipe Loureiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, Brasil
Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 1, 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Apresentação

“Eu não vivo no passado. O passado vive em mim”.

Paulinho da Viola

Os artigos que compõem este dossiê tratam de temas muito diferentes, e o fazem a partir de abordagens aparentemente muito diversas. No entanto, os textos aqui reunidos expressam, cada um à sua maneira, uma disposição comum que move esta nova fase do CVT, e que está ancorada em alguns conceitos fundamentais.

O primeiro destes conceitos compreende algo que temos chamado, em textos produzidos e publicados recentemente[1], de “patrimônio relacional”, ou de “uma abordagem relacional do patrimônio”. Em síntese, partimos da ideia de que o valor patrimonial de qualquer artefato, saber ou processo reside na relação que diferentes indivíduos construíram, seguem construindo e seguirão a construir com este “objeto”. O valor patrimonial não reside, portanto, no objeto em si, mas – literalmente – na relação entre o sujeito e o objeto. Logo, ao eliminar ou modificar substancialmente um destes atores, se estará modificando – e arriscando destruir – este valor, que é necessariamente uma “obra conjunta”.

Esta ideia está ancorada principalmente nas reflexões de Martin Buber acerca das relações Eu-Tu e Eu-Isso, que têm servido como uma das principais lentes interpretativas para as discussões promovidas no âmbito da atuação do Laboratório Tecnologias, Diálogos e Sítios (LTDS)[2] – incluindo esta nova fase do CVT. Em textos e discussões anteriores, esta referência central foi relacionada e cruzada com conceitos desenvolvidos por outros autores, como a distinção entre efeitos de sentido e efeitos de presença - proposta por Hans Ulrich Gumbrecht - e os textos de Hans Belting acerca da experiência de diferentes tipos de imagens. No entanto, para além das referências teóricas e da tentativa de sistematização destes debates e reflexões através da produção de artigos “científicos” – e de uma futura tese de doutorado -, confesso que até o momento sigo retornando constantemente a uma fonte não muito acadêmica. Esta declaração do compositor Paulinho da Viola ainda me parece ser a melhor síntese da abordagem acerca do patrimônio que temos desenvolvido ao longo dos últimos anos:

"Eu tenho a sensação de que tudo o que eu vivi, tudo o que eu experimentei, está vivo em mim. Eu não vivo no passado, é o passado que vive em mim. Quando você se sensibiliza com uma obra feita há 300 anos, se ela lhe toca, lhe emociona, é porque ainda está viva. Tudo para mim é hoje e agora. Eu ouço obras do Pixinguinha e sei que elas foram feitas no século passado. Eu vivo aquilo. Ela não só me emociona, mas é como se fizesse parte do meu ser. Esse tempo é o tempo da minha vida” (Paulinho da Viola in Dávila, 2004).

Para Paulinho da Viola, a música de Pixinguinha estão tão viva hoje quanto estava antes da morte do compositor – talvez esteja inclusive ainda mais viva, já que vem acumulando “valor patrimonial” não só a cada novo ouvinte, mas a cada nova audição. Uma obra como esta não está acabada simplesmente porque seu autor morreu; ela segue viva, dinâmica, em constante transformação. É desta forma que o Prof. Antonio Capestro compreende as cidades, e sua contribuição para este dossiê aponta para a necessidade de se compreender o caráter dinâmico destes lugares, argumentando que qualquer intervenção que busque “congelar” a forma e os usos de uma cidade estará indo de encontro à sua essência. Para realmente preservar, é preciso intervir e modificar. Mesmo que repleta de boas intenções, uma preservação que busque isolar o objeto de seu contexto não o estará protegendo, mas sim destruindo o valor patrimonial que reside na relação entre este objeto e os sujeitos que o valorizam - “Quando uma coisa não me interessa, não me toca, pra mim ela morreu." (Paulinho da Viola in Dávila, 2004). Assim, o Prof. Capestro defende uma valorização não só do patrimônio em si, mas também do “patrimônio do projeto”, ou seja, dos processos dinâmicos, abertos e muitas vezes imprevisíveis e inconclusivos que levaram à configuração de artefatos e sítios que identificamos como “patrimônio”.

As cidades expressam de forma muito clara o dinamismo do patrimônio, que pode ser ainda mais significativo no caso do patrimônio imaterial. No artigo escrito por Luis Torres-Yepez e pelo Prof. Khaldoun Zreik, podemos ver como esta fluidez permite que práticas e conhecimentos tradicionais, cultivados e aperfeiçoados ao longo de séculos, possam ser reapropriados – e em alguns casos literalmente apropriados – por companhias que “consolidam” estas tradições na forma de patentes. Assim, um bem imaterial, dinâmico e vivo é transformado em algo concreto e legalmente limitado, para que possa então ser explorado comercialmente. Neste caso específico, o artigo também mostra como as tecnologias digitais podem ser úteis não só na pesquisa acerca da apropriação destes conhecimentos tradicionais mas também no mapeamento e interpretação das interações entre os diversos atores envolvidos neste processo. O uso destas ferramentas aponta para outra referência central nos debates promovidos pelo LTDS: os conceitos de aparelho e imagem técnica, desenvolvidos por Vilém Flusser[3]. Os gráficos apresentados no artigo são imagens técnicas produzidas automaticamente através do processamento dos dados coletados – neste caso, debates sobre o tema do uso e apropriação de medicamentos tradicionais no Twitter –, e oferecem portando uma visualização de um fenômeno essencialmente intangível, possibilitando novas formas de análise. Esta visualização permite, por exemplo, registrar de forma tangível as discussões que expressam e alimentam o caráter dinâmico deste tipo de patrimônio, além de identificar tentativas de manipulação deste dinamismo aparentemente orgânico – como o uso de bots que geram publicações automáticas a fim de influenciar o rumo do debate. Neste caso, podemos dizer que um aparelho nos permite desmascarar a atuação de outros aparelhos – um tipo de atuação já consolidado em praticamente todas as interações que permeiam aquilo que Flusser chamou de “universo das imagens técnicas”.

Como também já discutimos em textos anteriores, a transição de uma cultura moldada por textos – e pelo senso histórico derivado da forma da escrita linear – para uma nova cultura baseada em imagens técnicas compreende uma revolução ontológica que afeta todas as dimensões da vida contemporânea. No entanto, em meu artigo, busquei traçar um paralelo entre o momento atual e um período razoavelmente distante, a fim de reforçar a noção – incluída no modelo da história cultural apresentado por Flusser – de que este tipo de transformação é recorrente e que a transição para uma nova era não “apaga” a anterior, mas a reinterpreta a partir de uma nova mídia predominante. Assim, a partir de um paralelo proposto por Victor Buchli, analiso os ícones bizantinos à luz dos conceitos flusserianos de aparelho e imagem técnica, compreendendo que o problema enfrentado por artistas e teólogos dos séculos IX e X é similar ao que enfrentamos hoje: como compreender e expressar uma nova forma de estar no mundo, diante da qual os meios de expressão consagrados parecem inssuficientes? Esta reflexão leva, inevitavelmente, a uma discussão acerca do sujeito que busca esta expressão – quem é o Eu que habita o universo das imagens técnicas? Até que ponto os aparelhos – do notebook que estou usando para escrever este texto aos bots que influenciam eleições – são também habitantes deste novo mundo? Voltamos assim à nossa referência inicial: quase 100 anos depois da publicação da obra fundamental de Buber, ainda podemos usar as palavras Eu, Tu e Isso da mesma forma?

Espero que este dossiê possa contribuir para a construção de um espaço no qual esta discussão possa se desenvolver, permanecendo viva nos próximos números do CVT - e não só aqui. Agradeço a disponibilidade e as contribuições dos professores Antonio Capestro e Khaldoun Zreik, de Luis Torres-Yepez e também do Prof. Pedro Marques de Abreu, cujo artigo, publicado no número anterior, antecipa alguns dos temas e, principalmente, o “tom” da discussão que este dossiê busca estimular.

Material suplementar
Referências
Dávila, M. (2004, 09 de dezembro). “É tempo de viver: Percepção acelerada do tempo exige reflexão sobre os valores e os vícios da vida”. Folha de São Paulo, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0912200410.htm
Notas
Notas
[1] Ver LOUREIRO, FELIPE; BARTHOLO, ROBERTO; MATTOS, F.; SANCHEZ, E.. “Da intangibilidade do tangível: por uma abordagem relacional do patrimônio”. PAPERS DO NAEA (UFPA), v. 29, p. 321-335, 2020.
[2] Ver LOUREIRO, FELIPE; BARTHOLO, ROBERTO. “Tropical and Eastern Paris: architecture, representation and tourism in Brazil and China”. Journal of Tourism and Cultural Change, v. 17, p. 1-13, 2019; LOUREIRO, FELIPE; BARTHOLO, ROBERTO; MATTOS, F.; BARCELOS, F. T.. “Visitar/Acolher: Arquitetura, Turismo e Encontros”. REVISTA HOSPITALIDADE, v. 17, p. 95-108, 2020;
[3] Ver LOUREIRO, FELIPE; BARTHOLO, ROBERTO; BURSZTYN, GABRIEL; RIBEIRO, LUIZ. “BIM and Beyond: Architecture and Presence in the Universe of Technical Images”. Architectural Theory Review, 2021.
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