Artigos originais
Turismo étnico-afro: uma possível alternativa para empreendedorismo e empoderamento negro no Brasil
Ethnic-Afro tourism: a possible alternative to entrepreneurship and black empowerment in Brazil
Turismo étnico-afro: una posible alternativa al emprendimiento y al empoderamiento de los negros en Brasil
Turismo étnico-afro: uma possível alternativa para empreendedorismo e empoderamento negro no Brasil
Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 2, 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Recepción: 05 Octubre 2020
Aprobación: 03 Mayo 2021
Resumo: Este primeiro ensaio versa sobre o preconceito racial enfrentado pela população negra no Brasil e o turismo étnico-afro como um segmento do turismo cultural capaz de empoderar os empreendedores negros. O objetivo do presente estudo tenciona elucidar o legado cultural dos negros no Brasil e contribuir para a desconstrução da imagem do negro atrelada à escravidão, visando assim, demonstrar que o turismo étnico-afro-mediante a comercialização de roteiros étnico-afros-, além de valorizar a cultura negra, propicia a abertura de postos de trabalho voltados ao empreendedor negro. Para o transcorrer da pesquisa, pautamo-nos na metodologia qualitativa de caráter exploratório como maneira de compreendermos a forma como o turismo étnico-afro propicia o resgate da memória dos negros e transforma em um atrativo que valoriza a cultura negra. Mediante dados estatísticos e referenciais teóricos que abordam a temática em tela, podemos concluir que o turismo étnico-afro também atua, mesmo que de forma indireta, em questões que envolvem aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais dos negros, transformando-se, assim, em uma atividade capaz de empoderar o empreendedor negro e valorizar a cultura negra e afrodescendente.
Palavras-chave: Turismo étnico-afro, Empoderamento, Empreendedorismo negro.
Abstract: This study deals with the racial prejudices faced by the black population in Brazil and ethno-Afro tourism as a segment of cultural tourism capable of empowering black entrepreneurs. The objective of this study is to demonstrate the cultural legacy of blacks in Brazil and contribute to the deconstruction of the image of blacks linked to slavery, pointing to ethno-Afro tourism as the opening of jobs aimed at black entrepreneurs. Its methodological realization was based on the qualitative methodology of an exploratory nature, looking for ways to understand how ethno-Afro tourism provides in the rescue of the memory of blacks and is transformed into an attraction that values black culture, in addition to statistical data and theoretical references that address the subject. It can be concluded that ethno-Afro tourism also acts, even indirectly, in matters related to political, social, economic and cultural aspects of blacks, thus becoming an activity capable of empowering the black entrepreneur and valuing black and Afro-descendant culture.
Keywords: Ethnic-Afro tourism, Empowerment, Black entrepreneurship.
Resumen: Este estudio trata sobre los prejuicios raciales que enfrenta la población negra en Brasil y el turismo étnico-afro como un segmento del turismo cultural capaz de empoderar a los empresarios negros. El objetivo de este estudio es demostrar el legado cultural de los negros en Brasil y contribuir a la deconstrucción de la imagen de los negros vinculados a la esclavitud, señalando al turismo étnico-afro como la apertura de empleos dirigidos al empresario negro. Su realización metodológica se basó en la metodología cualitativa de carácter exploratorio, buscando formas de entender cómo el turismo étnico-afro proporciona en el rescate de la memoria de los negros y se transforma en una atracción que valora la cultura negra, además de datos estadísticos y referencias teóricas que abordan el tema. Se puede concluir que el turismo étnico-afro también actúa, incluso indirectamente, en cuestiones relacionadas con aspectos políticos, sociales, económicos y culturales de los negros, convirtiéndose así en una actividad capaz de empoderar al empresario negro y valorar la cultura negra y afrodescendiente.
Palabras clave: Turismo étnico-afro, Empoderamiento, Emprendimiento negro.
1. Introdução
O turismo é uma atividade econômica que produz considerável fluxo de bens em diferentes setores do trade turístico de forma a gerar emprego, renda e receitas públicas que o transformam em mecanismo de desenvolvimento econômico, social e cultural para uma determinada região. Pode-se considerar que essa atividade precisa ser gerida de forma sustentável, visando o respeito mútuo entre visitantes e visitados.
Como os demais setores econômicos, o turismo não está isento de situações e comportamentos que possam trazer consequências negativas tanto ao turista quanto à comunidade receptora. Nesse caso, Trigo (1998) atenta para a necessidade de se qualificar os profissionais da área do turismo sob pena de os projetos ficarem comprometidos e com sua operacionalidade prejudicada em virtude da ausência de profissionais capacitados para trabalhar com as adversidades (sobretudo, culturais e sociais), tanto da comunidade receptora quanto dos turistas.
Sobre essa questão, Badaró (2005) nos invita a refletir sobre a relevância da aplicabilidade de um turismo responsável, isto é, pautado em preceitos e normas éticas que conduzam a promoção do respeito à alteridade.
A compreensão e a promoção dos valores éticos comuns à humanidade, num espírito de tolerância e de respeito pela diversidade das crenças religiosas, filosóficas e morais, são ao mesmo tempo, fundamentos e consequências de um turismo responsável. Os agentes de desenvolvimento e os próprios turistas devem levar em conta as tradições, práticas sociais e culturais de todos os povos, incluindo as das minorias e populações autóctones, reconhecendo sua riqueza (Badaró, 2005, p.135).
Ao atrelarmos o campo ético às questões resultantes das relações sociais travadas entre gestores, comunidade receptora e turistas, todos devem estar preparados para atuar dentro de condutas éticas que visem um desempenho comportamental que preze pela melhoria das prestações de serviços galgados em valores e padrões éticos, como forma de garantir o bem-estar de todos os envolvidos na atividade turística.
[…] la ética es la reflexión racional de lo que se considera bueno o malo, justo e injusto; por eso, se cree que tiene una pretensión universal, se sustenta, principalmente, sobre valores de libertad, responsabilidad, justicia y conciencia. Es normativa, vinculante y obligatoria para con las pautas sociales establecidas que hacen posible la convivencia de grupos sociales (Fuentes Valderrama, 2018, p.4).
No que concerne ao desenvolvimento de relações harmoniosas entre os grupos sociais, Badaró (2005, p. 128) considera que o “Código de Ética do Turismo transformou-se em um marco para o desenvolvimento responsável e sustentável do turismo mundial no início do novo milênio”. Ainda para o mesmo autor, o Código de Ética do Turismo tenciona a promoção e o desenvolvimento do turismo:
[...] visando contribuir para a expansão econômica, a compreensão internacional da paz e a prosperidade dos países, bem como para o respeito universal e a observância dos direitos dos homens e das liberdades fundamentais, sem distinção de raça, sexo, línguas ou religião. Trata-se de um documento, cujo o propósito foi usado ao buscar uma linha mestra a ser seguida pelos Estados que verificam no turismo uma atividade social, política e cultural (Badaró, 2005, p. 128).
Considerando que um dos objetivos do Código de Ética do Turismo é promover o respeito universal entre os âmbitos político, cultural e social – sobretudo no que concerne às línguas, ao sexo, à religião e à raça, pode-se verificar no turismo étnico-afro um subsegmento do turismo cultural com vistas a contribuir para o resgate e valorização da identidade da população negra no Brasil, dessa forma, coadunando com o que prevê o Código de Ética do Turismo, mencionado por Badaró (2005).
Nesse sentido, a organização do presente trabalho estrutura-se em duas partes. A primeira refere-se a luta dos movimentos negros frente às diferentes formas de preconceito racial vivenciado pelos afrodescendentes no Brasil e a tentativa de desvincular a construção da sua identidade atrelada à escravidão.
Na segunda parte, ser a relevância do turismo étnico-afro como um símbolo de empoderamento e resistência da identidade do negro. Atualmente, empresas turísticas ofertam roteiros étnico-afros como forma de valorizar e dar visibilidade à cultura negra a partir do resgate da memória histórica e cultural dos negros; além disso, criam oportunidades de postos de trabalho que permitem o empreendedorismo de pessoas negras, realocando-as, assim, no mercado de trabalho.
Para o desenvolvimento da pesquisa, pautamo-nos na metodologia de caráter exploratório. Segundo Gil (1987, p. 41), trabalhos exploratórios “proporcionam maior familiaridade com a questão, o problema, com vistas a torná-lo mais explícito ou a construir hipóteses”, o que permite aprimorar o conhecimento sobre a temática em análise. Por considerarmos que o assunto demanda maiores pesquisas e que não se esgota na presente reflexão, optamos por essa metodologia pela vantagem de suscitar sugestões para futuros estudos (Kates, 1998).
Destarte, a pesquisa foi produzida a partir de pesquisas bibliográficas que buscaram dar respaldos aos seguintes temas: preconceito racial, turismo étnico e turismo étnico-afro. Utilizou-se livros, artigos científicos, revistas científicas e teses como suporte teórico.
2. Dimensionamento e construção do negro contemporâneo no Brasil
A partir da tomada das ruas pelos movimentos negros nos Estados Unidos e a propagação da reivindicação representada pelos slogans “vidas negras importam” na Europa e no Brasil no ano de 2020, verifica-se que ainda em pleno século XXI muitas questões atinentes aos problemas enfrentados pela população negra não foram solucionadas.
Em relação às demandas atinentes às reinvindicações desempenhadas pelos manifestantes negros, faz-se notória a tentativa de expressarem coletivamente a identidade que outrora lhes foi usurpada e que ainda lhes é negada. Nessa perspectiva, podemos questionar: quantos personagens e heróis negros existem nas histórias em quadrinhos? Quão numerosos são os produtos de beleza voltados às mulheres negras em mercados e revistas? Como se dá a proporção da oferta de bonecas brancas em detrimento das negras para representar o universo infantil das meninas negras? Qual a dimensão real entre o abismo social entre brancos e negros? Diante desses questionamentos, dentre tantos outros, de que maneira é possível que a identidade do negro seja construída e respeitada mediante sua história, língua e etnia, se tudo isso foi suprimido pelos colonizadores?
A partir dessas indagações levantadas por nós, encontramos justificativas plausíveis para compreender a realidade enfrentada pelo negro, a partir dos estudos realizados pelo congolês Kabengele Munanga. Esse professor de antropologia e especialista em população negra, em seu livro “Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Identidade nacional versus identidade negra” (1999) discute acerca dos obstáculos enfrentados pelos negros referentes ao processo da construção da sua identidade e ou da personalidade coletiva. Sobre isso, o autor aponta que a identidade construída pelo negro está arraigada no discurso da ideologia racial produzida pela elite brasileira no fim do século XIX e meados do século XX (Munanga, 1999).
No que diz respeito aos movimentos negros contemporâneos, eles tentam construir uma identidade a partir das peculiaridades do seu grupo: seu passado histórico como herdeiros dos escravizados africanos, sua situação como membros de grupos estigmatizados, racializados e excluídos das posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu trabalho gratuito, como membro de grupo étnico racial que teve sua humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente. A tarefa não é fácil, justamente por causa dos obstáculos acima evocados (Munanga, 1999, p.14).
No que tange ao Brasil, a identidade do negro foi circunscrita, ao longo da história, à escravidão. A identidade do negro e dos afrodescendentes foi-lhes usurpada por volta do século XVI, quando o continente africano foi colonizado pelos portugueses e estes passaram a mercantilizar os africanos, mediante o tráfico negreiro, iniciando, assim, um longo e doloroso processo de escravidão no Brasil. Mesmo com o decreto da Lei Áurea de 1888, que passou a abolir a escravidão, não houve políticas assertivas destinadas à população negra com vistas a aniquilar o preconceito racial, possibilitar acesso à educação e integrá-la economicamente à sociedade (Filho, 2018).
É nesse contexto histórico que devemos entender a chamada identidade negra no Brasil, num país onde quase não se houve um discurso ideológico articulado sobre a identidade “amarela” e a identidade “branca”, justamente porque os que coletivamente são portadores das cores da pele branca e amarela não passaram por uma história semelhante à dos brasileiros coletivamente portadores da pigmentação escura. Essa história a conhecemos bem: esses povos foram sequestrados, capturados, arrancados de suas raízes e trazidos amarrados aos países do continente americano, o Brasil incluído, sem saber por onde estavam sendo levados e por que motivo estavam sendo levados (Munanga, 2005, n.p).
Diante dessa assertiva e fazendo uma analogia aos dias atuais, podemos verificar ainda uma justaposição do discurso ideológico da democracia racial concernente à questões de raça e classe, assinalando, assim, um processo de marginalização e exclusão do negro do Estado democrático de direito. O abismo socioeconômico existente entre brancos e negros fica nítido quando analisado sob o prisma de dados publicados por institutos de pesquisas, conforme podemos verificar a seguir.
No que concerne às desigualdades sociais entre negros e brancos, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – DIEESE publicou um estudo em novembro de 2018, a partir do Sistema de Pesquisa de Emprego e Desemprego intitulado: “Os negros no mercado de trabalho da região metropolitana de São Paulo”[1]. A pesquisa demonstrou que a crise econômica iniciada em 2014 refletiu, sobremaneira, no aumento da taxa de desemprego da população negra entre os anos de 2016 e 2017, como pode ser observado na figura 1:
Para Oshiro e Marques (2012), o conceito de desemprego é subjetivo para cada região ou país com sistema econômico hegemônico, uma vez que a situação vivida pelos trabalhadores não pode ser captada totalmente pelas estatísticas do trabalho. Por esse motivo, os institutos investigam quais são as condições de trabalho em que a população se insere, diagnosticando-a para buscar melhorar o processo de geração de emprego e renda.
Como maneira de classificar as formas de desemprego, o DIEESE considera em sua pesquisa que os desempregados podem ser categorizados em: aberto, oculto por trabalho precário e por desalento:
Desemprego aberto: pessoas que procuraram trabalho nos 30 dias anteriores à entrevista e que não exerceram nenhum trabalho nos sete últimos dias anteriores à pesquisa. Desemprego oculto: pessoas que realizam trabalhos precários, como um trabalho remunerado ocasional, um trabalho não remunerado em ajuda a negócios de parentes, procuraram mudar de trabalho nos 30 dias anteriores ao da entrevista ou procuraram trabalho sem êxito até 12 meses anteriores à pesquisa. Desemprego oculto pelo desalento: pessoas que não possuem trabalho e nem procuraram nos últimos 30 dias anteriores ao da entrevista, mas apresentaram procura efetiva de trabalho nos últimos 12 meses anteriores à pesquisa (Oshiro; Marques, 2012, p. 304 – 305).
Conforme consta a figura 1, no período de 2016 a 2017, a taxa do desemprego dos negros ampliou-se de 19,4% para 20,8%, enquanto a dos não negros avançou de 15,2% para 15,9%. Os dados do estudo ainda apontam que a inserção do negro no mercado de trabalho se atrela a “em segmentos, onde, tradicionalmente, os rendimentos são mais baixos”, como setores de serviços domésticos e comerciais (DIEESE, 2018).
Um informativo produzido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2019), denominado “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, traz um panorama da vulnerabilidade em que se encontra a população negra no Brasil. A pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD (2019) aborda as desvantagens em que a população negra se encontra e várias instâncias da vida social em relação aos brancos. Temas como mercado de trabalho, distribuição de rendimento, condições de moradia, educação, violência e representação política são analisados como forma de desenvolver políticas públicas que viabilizem a redução da disparidade por cor ou raça no Brasil.
No quesito mercado de trabalho, os dados demonstram que em 2018 os cargos gerenciais ocupados por brancos eram de 68,6% e por negros 29,9%. Com relação à distribuição de renda e condições de moradia, as pessoas abaixo da linha de pobreza com renda inferior a US$5,50/dia (aproximadamente R$30) correspondiam a 15,4% dos brancos; e pretos e pardos a 32,9%. Pessoas com renda inferior a US$1,90 (aproximadamente R$10) referiam-se a 3,6% de brancos em relação a 8,8% de negros.
No que concerne à educação, a taxa de analfabetismo entre brancos é de 3,9%; e entre pretos e pardos é de 9,1%. Quanto à violência, a taxa de homicídios por 100 mil jovens entre 15 e 29 anos é de 34,0% entre brancos; e de 98,5% entre pardos e negros. E, por fim, em relação à representação política relacionada aos deputados federais, 75,6% são brancos (ou outros) contra 24,4% pretos ou pardos (IBGE, 2019).
As informações sobre as condições de vida da população brasileira pelo enfoque de cor ou raça aqui descritas podem ser visualizadas graficamente na figura 2.
Ao analisar os dados das pesquisas realizadas pelo DIEESE (2018) e IBGE (2019), fazem-se notórias as disparidades socioeconômicas enfrentadas pela população negra. O contexto histórico para se compreender o racismo estrutural entre brancos e negros, vigente ainda no Brasil, parte do princípio da ideologia racista criada desde o processo colonizador e que ainda se perpetua da forma mais perversa entre a população negra.
Nesse raciocínio, Munanga (1988) aponta que o racismo estrutural enfrentado pela população negra não parte, estritamente, de problemas de ordem econômica, mas atrela-se às práticas racistas que impedem o acesso do negro ao exercício da sua cidadania.
Nesse contexto, Florestan Fernandes (1989, n.p.), ao ser questionado a respeito de o negro ser marginalizado porque é pobre ou porque é negro, responde: “pelas duas coisas. São duas barreiras simultâneas. Uma racial e outra econômica. Quando ele consegue vencer uma delas, a social, ele tem a racial”.
Uma das alternativas mitigadoras para a coibição da marginalização do negro e do preconceito racial seria a aplicabilidade de políticas assertivas, tais como a Lei 10.639/03, que prevê o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana no ensino fundamental e médio. A aplicação dessa lei faz-se imprescindível para a construção de uma consciência antirracista.
Nos livros de história, trabalhados no âmbito escolar quase não são mencionados os reinados africanos, muito menos que os negros antes de serem traficados para o Brasil, possuíam técnicas avançadas de plantio, metalurgia, siderurgia e um complexo sistema de comércio. Os negros contribuíram incomensuravelmente para o processo de formação do Brasil e colaboraram vigorosamente no processo de desenvolvimento da economia, indústria, arte, religião, gastronomia, língua e cultura no Brasil. Sua mão de obra esteve presente na defesa do território nacional, no desenvolvimento da agricultura e mineração, além de proporcionar o enriquecimento dos senhores de engenho durante o Brasil Colonial (Fonseca, 2009).
Os escravos africanos e seus descendentes influenciaram na formação cultural do povo brasileiro e “conhecer histórias africanas promove outra construção da subjetividade de pessoas negras, além de romper com a visão hierarquizada que pessoas brancas têm da cultura negra” (Ribeiro, 2019, p. 16).
Sobre a recuperação da identidade negra, podemos apontar que o turismo étnico-afro se tornou uma vertente do segmento do turismo cultural, capaz de promover o empoderamento do negro a partir dos roteiros turísticos voltados para o conhecimento e recognição da cultura africana.
Graças à busca de sua identidade, que funciona como uma terapia do grupo, o negro poderá despojar-se do seu complexo de inferioridade e colocar-se em pé de igualdade com outros oprimidos, o que é uma condição preliminar para uma luta coletiva. A recuperação da identidade começa pela aceitação dos atributos físicos de sua negritude antes de atingir os atributos culturais, mentais, intelectuais, morais e psicológicos, pois o corpo constituí a sede material de todos os aspectos da identidade (Munanga, 1988, p. 07).
Dessarte, o turismo étnico-afro possibilita o resgate dos processos históricos vivenciados pelos negros no Brasil, mediante o enaltecimento da sua cultura, religião, história, gastronomia e resistência política. Nesse tocante, os roteiros em comunidades quilombolas podem evidenciar a história de luta e resistência dos negros, que tanto participaram do processo de construção da identidade brasileira.
Os quilombos são definidos por Kabengele Munanga como “uma cópia do quilombo africano reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estrutura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual se encontravam todos os oprimidos” (Munanga 1995, p. 57-63). Assim, mediante o cenário vigente, em que movimentos negros se mobilizam para, de fato, serem representados pelo Estado de direito democrático, o turismo étnico-afro pode transformar-se em um setor da economia capaz de gerar oportunidades de empreendedorismo aos negros em várias vertentes que abrangem o trade turístico.
Em vista disso, o incentivo ao afroempreendedorismo culmina no empoderamento do negro, principalmente no que tange ao resgate da sua identidade histórica e, sobretudo, da sua identidade cultural.
3. O que o Turismo étnico-afro pode alcançar?
O aumento do turismo é uma prática decorrente da sociedade atual e é inegável que sua atividade esteja associada ao contato entre culturas. Sob essa perspectiva, Banducci e Barreto (2001, p.7- 8) conceituam o turismo como um fenômeno social que faz parte “das necessidades criadas pelo mundo moderno”. Os autores consideram ainda que “não há como negar que diferentes culturas estão se pondo em contato, propiciando que turistas e residentes vivenciem a alteridade” (Banducci & Barreto, 2001, p.8).
No que concerne à cultura, Cuche (1999) aponta que seu estudo é essencial para fornecer respostas plausíveis às questões concernentes à diferença entre os povos. Nesse sentido, o turismo cultural e, sobretudo, o turismo étnico-afro, pode contribuir amplamente para a valorização da cultura africana e afrodescendente no Brasil.
Para Greg Richards (2000) o turismo cultural pode ser compreendido mediante ao modo como os turistas consomem a cultura. Desse modo, o turismo cultural possibilita ao visitante a experiência do contato com aspectos simbólicos inerentes à comunidade visitada, pois envolvem aspectos simbólicos: hábitos tradicionais, ritos, crenças, conhecimento, artes, língua, regras sociais e econômicas, ou seja, elementos que exprimem as vivências e diferenças de diversos povos e, no caso da presente discussão, da população negra.
No que tange aos aspectos simbólicos que caracterizam e diferenciam cada cultura, podemos verificar no turismo étnico a ênfase dada aos múltiplos hábitos culturais que permeiam as culturas que se encontram em distintas localidades. Para Cardozo (2003), o turismo étnico denota hábitos tradicionais diferentes daqueles contidos nas culturas centrais ocidentais.
Segundo o Caderno Cultural do Ministério do Turismo, o turismo étnico “constitui-se de atividades turísticas envolvendo a vivência de experiências autênticas e o contato direto com os modos de vida e a identidade de grupos étnicos” (2010, p. 20). No que tange à Organização Mundial do Turismo - OMT (2003), o turismo étnico atrela-se aos saberes e fazeres peculiares a cada cultura. O Ministério do Turismo enuncia que o turismo étnico:
[...] constitui-se das atividades turísticas decorrentes da vivência de experiências em contatos diretos com os modos de vida e a identidade de grupos étnicos. Busca-se estabelecer um contato próximo com a comunidade anfitriã, participar de suas atividades tradicionais, observar e aprender sobre suas expressões culturais, estilos de vida e costumes singulares. Muitas vezes, tais atividades podem articular-se como uma busca pelas próprias origens do turista, em um retorno às tradições de seus antepassados (Brasil, 2006, p. 13).
Ao refletirmos sobre o legado cultural africano, podemos verificar a influência dos seus hábitos tradicionais em diferentes aspectos da vida cotidiana dos brasileiros; participação expressiva nos principais ciclos econômicos do Brasil, gastronomia, música, religião, artes, literatura, língua, entre outros, que perfazem a herança cultural vivenciada de forma direta ou indireta por todos os brasileiros.
Portanto, a valorização dos processos históricos e culturais dos negros pode ganhar notoriedade por meio do turismo étnico, já que este promove a interação entre diferentes culturas, permitindo ao turista experiência e vivência com a alteridade. Segundo Bahl (2009), o turismo étnico está associado aos aspectos socioculturais de uma localidade, sendo a identidade e diferenciação suas balizas; além disso, promove a divulgação de etnias ou grupos, visando seu reconhecimento e inserção em âmbito nacional e internacional.
No entanto, é no turismo étnico-afro que se pode verificar ofertas turísticas estritamente voltadas para o resgate da cultura africana e afrodescendente. Os roteiros turísticos permitem aos visitantes experiências gastronômicas, em terreiros de candomblé, comunidades quilombolas, museus, igrejas barrocas, circuitos em rotas do ciclo do ouro, entre tantos outros atrativos que enaltecem a cultura africana. Segundo Trigo e Panosso Netto (2011, p.7), o turismo étnico-afro se define como:
[...]uma vertente histórica e em um espaço econômico, cultural e social que exige cuidados e atenções para uma população que foi, durante séculos, submetida a um tratamento desigual provocado pelo racismo sistêmico do regime escravocrata. Esse sistema deixou marcas visíveis e sensíveis na sociedade brasileira. Por causa da estabilização democrática e das conquistas no âmbito da cidadania, do pluralismo e da diversidade, juntamente com outros segmentos excluídos ou marginalizados da sociedade as culturas de origem negra ganharam espaço e visibilidade, participando cada vez mais da vida nacional em todos os níveis (Trigo & Panosso Netto , 2011, p.7).
Diante desse contexto mencionado por Trigo e Panosso Netto (2011), mesmo sendo um tema emergente e considerado como um segmento do turismo cultural, faz-se necessário que o turismo étnico-afro seja difundido amplamente no âmbito acadêmico, para que novas pesquisas possam evidenciar sua relevância científica e econômica, voltada à população negra.
A abertura mercadológica para o empreendedor negro, bem como a ampliação de roteiros que ofertem a experiência voltada para o contexto histórico e a valorização da identidade do negro e dos afrodescendentes no Brasil podem ser potencializados pelo turismo étnico-afro.
Segundo Domingos (2019, p. 27), em seu trabalho de conclusão de curso denominado ‘Diáspora. Black: o fortalecimento do turismo étnico-afro’, aponta que esse segmento “surge com o objetivo de valorizar a história do povo negro, através de elementos que incorporam a sua cultura e que fizeram parte da história de seus antepassados”. Nessa pesquisa, o autor investiga sobre as motivações empresariais que fizeram com que os idealizadores da startup Diáspora.Black ofertassem produtos voltados para o segmento do turismo étnico-afro e busca identificar a comercialização dos serviços ofertados pelos empreendedores. O autor ainda enfatiza que:
[...] o turismo étnico-afro vai além da valorização da cultura afrodescendente, ele também se torna um movimento político, no qual os negros passam a ser protagonistas de sua própria história. Esse movimento político surge uma vez que a população negra não é vista como parte da sociedade brasileira pelo Estado, dessa forma os negros se apropriam da sua história e de sua ancestralidade, criando sua identidade negra. A partir disso, procuram formas de ocuparem lugares na sociedade que possam dar visibilidade a suas vozes que em muitas vezes são silenciadas, um exemplo disso são os afroempreendedores que buscam unir conscientização com geração de renda, como é a Diáspora.Black (Domingos, 2019, p. 28).
A partir desse excerto, podemos verificar a preponderância que o turismo étnico-afro exerce sobre a inserção do negro como empreendedor no setor turístico. Além da valorização da cultura e identidade do negro, o turismo étnico-afro também pode ser compreendido como um símbolo de resistência do negro ou até, de forma indireta, como um movimento político capaz de dar visibilidade à cultura negra de forma a trazer dignidade e empoderamento aos negros mediante o resgate de sua memória. Podemos associar esse asserto quanto à forma que Badaró (2005), como mencionado no início do texto, aborda o turismo, isto é, como uma atividade social, cultural e política. Assim, os roteiros étnico-afro transformam-se em experiências para os turistas e para os empreendedores, como lugares da memória, da identidade, da luta e dos aspectos simbólicos que perfazem a comunidade receptora. Sobre os lugares de memória, Nora (1984) observa que:
[...] diferente de todos os objetos da história, os lugares de memória não têm referentes na realidade. Ou melhor, eles são, eles mesmos, seu próprio referente, sinais que devolvem a si mesmos, sinais em estado puro [...] o lugar de memória é um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade; e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações (Nora, 1984, p. 27).
Referente aos lugares de memória, as startups como a Diáspora.Black, a ‘plataforma de turismo e representatividade’ Black Bird e a agência de Afroturismo Brafrika, que trabalham exatamente nessa perspectiva no âmbito do turismo, promovem o resgate histórico e cultural do negro alicerçadas em roteiros étnico-afro pelo Brasil e pelo mundo. Dentro dessa perspectiva, o Ministério do Turismo (2019), em celebração à semana da consciência negra, publicou a seguinte matéria ‘Turismo destaca destinos que contam histórias do negro no Brasil. Manifestada em diversos segmentos do país, a cultura afro realça a diversidade do Brasil e marca presença nos destinos e atrativos turísticos’. Publicado no site do governo federal, o conteúdo menciona as principais rotas do turismo étnico-afro no Brasil, conforme podemos verificar:
“[...] a cultura negra está presente na maioria dos atrativos e destinos turísticos do país como igrejas construídas pelos escravos, museus e centros culturais. Entre os estados mais influenciados pela cultura africana estão Maranhão, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. Tanto que as capitais paulista, fluminense e baiana criaram roteiros turísticos que resgatam a história dos afrodescendentes por meio do incentivo à visitação de atrativos turísticos com referência a esta vasta cultura (Brasil, 2019).
Desse modo, fundamentados na publicação do Ministério do Turismo (2019), realizamos uma breve pesquisa, visando conhecer e destacar os principais roteiros étnico-afro que são ofertados nos estados citados[2], no intento de traçar um panorama, mesmo que sucinto, com vistas a elucidar a importância desse segmento para a valorização da memória do negro no Brasil.
A secretaria do turismo da Bahia, em 2009, publicou um material em que constam os roteiros étnico-afro que são realizados em todo o estado. A capital, Salvador (BA), se destaca por seus circuitos e roteiros étnico-afro, como podemos verificar no quadro 1:
Nome | Idealizador | Objetivo |
Circuito Centro Antigo – Pelourinho – Cidade Baixa | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | Focado na parte religiosa e no patrimônio arquitetônico. |
Circuito Curuzu-Liberdade | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | Representa e retrata a vivência dos afrodescendentes e das comunidades de matriz africana. |
Circuito Subúrbio Ferroviário | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | Traz uma experiência de contato com a beleza natural, perpassa a maioria dos terreiros de candomblé da cidade, também se destaca por sua gastronomia. |
Circuito Religioso | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | O destaque é a religião e suas festividades pela Irmandade de Boa Morte. |
Circuito Quilombola | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | Realiza um retrospecto da escravidão e a vivência nos quilombos. |
Bahia-afro: A cultura que resiste – Viver Afro em Salvador | Secretaria do Turismo do Estado (Setur) | Voltado para que o turista entenda e vivencie os costumes baianos. |
Passeio de Barco no minipantanal – Chapada da Diamantina (BA) | Diáspora.Black | Fornece diversas vivências no minipantanal, em Chapada da Diamantina (BA), onde há visitação e uma comunidade quilombola. |
No que concerne ao Maranhão, mesmo sendo um dos estados destacados, não há a presença de roteiros realizados pela prefeitura, como os que ocorrem na Bahia, por exemplo. Todavia, apesar de não possuir roteiros ou circuitos turísticos étnico-afro, mesmo assim, a cultura do negro é bastante valorizada por meio das manifestações populares e festejos; como exemplo, podemos citar o Tambor de Crioula que tem por definição:
[...] uma forma de expressão de matriz afro-brasileira que envolve dança circular, canto e percussão de tambores, apresentando alguns traços que a aproximam do gênero samba: a polirritmia dos tambores, a síncope (frase rítmica característica do samba), os principais movimentos coreográficos e a umbigada (IPHAN, p. 13; 2007).
Em 2016, a Secretaria de Turismo e Lazer de Recife (PE) publicou roteiros e destinos étnico-afro voltados aos turistas. O quadro 2 demonstra os roteiros planejados para os dias 18, 19 e 20 de novembro de 2016. A fim de celebrar o Dia da Consciência Negra ocorreu o seguinte roteiro turístico:
Nome | Organização | Local | Objetivo |
Circuito Afro | Secretaria de Turismo e Lazer de Recife | Praça do Arsenal – Posto de Informações Turísticas | Homenagear e disseminar as histórias e curiosidades da cultura de matriz africana, sendo esta essencial para a construção da identidade do povo brasileiro. |
Folhas e Solos Sagrados | Secretaria de Turismo e Lazer de Recife | Praça da República (em frente ao Palácio do Campo das Princesas). | |
Recife Afro: Poesias, Lutas e Canções | Secretaria de Turismo e Lazer de Recife | Praça do Arsenal – Posto de Informações Turísticas | |
Rainhas, Santos e Maracatus | Secretaria de Turismo e Lazer de Recife | Praça do Arsenal – Posto de Informações Turísticas |
Referente ao estado de Alagoas, verificamos que o território possui diversos quilombos e o mais importante deles foi transformado no Parque Memorial Quilombo dos Palmares, tombado em 1985 pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
Nome | Organizador | Objetivo |
Civilização do Açúcar - Caminhos do Engenho | Ministério do Turismo | Roteiro interestadual que engloba Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Este é “inspirado na importância da cana-de-açúcar e seus derivados na formação do Brasil - agrupa e transforma em atrativos turísticos a influência social, política e econômica da sociedade de senhores e escravos [...]” (Clickfoz, 2009). |
Quilombo dos Palmares | Luck Receptivos | A finalidade deste roteiro não é apenas contar as histórias dos quilombos, mas também apresentar a culinária indígena e africana e apresentar as religiões de matrizes africanas. |
Desta vez, no quadro 4, os roteiros são em Minas Gerais, por mais que não tenhamos encontrado roteiros fornecidos pela secretaria do turismo, verificamos que a Diáspora.Black (2019) ofertou os seguintes roteiros étnicos-afros:
Nome | Organizador | Objetivo |
Caminhada Chico Rei | Diáspora.Black | A finalidade é apresentar e resgatar a história do “Monarca Congolês que foi trazido ao Brasil e escravizado.” |
A Descoberta do Eldorado | Diáspora.Black | “nesse roteiro, [...] é possível observar as ruínas de algumas construções técnicas da extração do ouro trazidas do continente africano”. |
A capital Rio de Janeiro apresenta também alguns roteiros; porém, esses não são fornecidos pela prefeitura, mas sim pela Diáspora.Black (2020). Confira o quadro 5:
Nome | Organizador | Objetivo |
Tour Pequena África | Diáspora.Black | Nosso roteiro irá visitar uma das regiões mais importantes da história do Brasil, onde no século XIX, desembarcaram milhares de africanos que seriam vendidos como escravos.” |
Herança Afro XP | Diáspora.Black | Herança Afro XP - Conhecendo “a rica herança cultural africana no movimentado Centro do Rio.” |
Influência Negra | Diáspora.Black | Passeio histórico e cultural, em média 4 horas de duração. Enfoque na construção da identidade negra no Rio e no Brasil. Estilo “local”, ou seja, a pé, tour de caminhada.” |
No que se refere a São Paulo, a capital paulista oferta uma vasta opção de roteiros a serem vivenciados pelos turistas. Os roteiros são fornecidos por agências como a Diáspora.Black e também pela empresa São Paulo Turismo que, juntamente com a prefeitura de São Paulo, organiza eventos turísticos, como podemos verificar no quadro 6.
Nome | Organizador | Objetivo |
Roteiro Afro | SPTuris | “visa resgatar a história dos afrodescendentes na cidade por meio do incentivo à visitação de atrativos turísticos com referência a esta vasta e admirável cultura” (São Paulo, 2012). |
Histórias negras de SP | Diáspora.Black | “um roteiro pelas ruas emblemáticas para recontar nossa história, reverenciar figuras e personalidades que marcaram a cidade de São Paulo” (Diáspora.Black, 2020). |
Caminhada São Paulo Negra | Diáspora.Black | Roteiro que aborda as histórias dos negros de São Paulo (Diáspora.Black, 2020). |
Roteiro Resistência e Superação | Diáspora.Black | Além de passar por pontos importantes da cidade, o roteiro é apresentado por um personagem, Carlos Gomes (Diáspora.Black, 2020). |
No Rio Grande do Sul, por mais que não haja a presença de roteiros étnico-afro fornecidos pela prefeitura ou pela Diáspora.Black, foram encontradas duas pesquisas que apresentam essa possibilidade:
● Afrotour: “dar visibilidade a tradição afro brasileira através de um roteiro turístico na cidade de Jaguarão a fim de divulgar e preservar os traços da etnia afro brasileira existentes no local” (Tavares, 2017, p. 33).
● Territórios Negros: afro-brasileiros em Porto Alegre – “constitui-se em um espaço de compartilhamento de narrativas, histórias e experiências” (Ruppenthal, 2015, p.14). O foco deste roteiro é o público escolar e enfatiza a importância da Lei Federal 10.639/03 que torna obrigatório o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira.
Ao pesquisar, mesmo que de forma breve, quais são os roteiros ofertados nos estados citados pelo Ministério do Turismo (2019), pudemos verificar a riqueza do legado cultural perpetuado pelos negros ao longo do processo de formação histórica e econômica do Brasil. Esses roteiros étnico-afro estão imbuídos de diferentes aspectos simbólicos que remetem à cultura e religião, às igrejas construídas pelos negros e às vivências em quilombos, às festividades e aos personagens que marcaram o contexto histórico do ciclo do ouro no Brasil; portos onde os navios negreiros eram atracados, manifestações populares, músicas, poesias, entre outros. A junção de todos esses elementos denota, dessa forma, a grande contribuição do turismo étnico-afro para a valorização e visibilidade da cultura negra no país.
O turismo étnico-afro precisa ser refletido para além da oferta de destinos e roteiros voltados para turistas que estejam motivados a conhecer o legado cultural africano em vários territórios do país. Mesmo que de forma indireta, o turismo étnico-afro valoriza a cultura negra e empodera os negros em diferentes aspectos da vida social. Para, além disso, elucida e resgata a identidade do negro possibilitando aos mesmos o empreendedorismo, já que muitos roteiros são ofertados por negros, como é o caso da startup Diáspora.Black, da “plataforma de turismo e representatividade”, da Black Bird e da agência de Afro Turismo Brafrik.
4. Considerações finais
Sendo o turismo uma atividade econômica que atua em várias instâncias da sociedade, faz-se necessário refletir sobre a pertinência da execução de um turismo responsável e ético, sobretudo no que tange ao respeito à alteridade. Por isso faz-se necessário o planejamento e a aplicabilidade de um turismo responsável com o intuito de promover a equidade da diversidade cultural, através da inclusão das minorias étnicas e a promoção dos aspectos simbólicos que permeiam as comunidades receptoras, reconhecendo, dessa forma, a riqueza cultural inerente a cada povo.
No entanto, a realidade condizente à situação social dos negros no Brasil está longe de ser vista dentro de uma equidade entre negros e brancos, pois o abismo social ainda entre os mesmos se faz acentuado. A história do negro no Brasil foi narrada pelo prisma do colonizador, que subjugou toda riqueza cultural dos africanos que chegaram ao Brasil no período colonial e, ainda atualmente, sua história está atrelada ao negro escravo, gerando, assim, diferentes formas de preconceito racial vivenciadas por esse povo.
Ao considerarmos as matrizes relacionadas ao mercado de trabalho, à distribuição de rendimento, a condições de moradia, educação, violência e representação política, dados do IBGE e DIEESE apontam que os negros como um todo ainda apresentam índices que os colocam em situação de desvantagem em relação aos brancos. Por esse motivo, o racismo ultrapassa o preconceito em relação à cor da pele, impedindo, assim, o negro de exercer plenamente o seu direito à cidadania.
O turismo é uma ferramenta capaz de trazer infinitas mudanças por onde passa e em todas as instâncias: social, econômica, política, cultural e ambiental. No contexto brasileiro, onde um número expressivo de cidadãos encontra-se desempregado, uma alternativa para garantir renda é “reimaginar” passados e implantá-los no presente, através do empreendedorismo na área turística. Diante dessa realidade, o turismo étnico-afro transformou-se em uma oportunidade de empreendedorismo, como forma de realocar os negros no mercado de trabalho.
Mediante a oferta de roteiros étnico-afro, o turismo possibilita maior visibilidade da cultura africana. O turismo étnico-afro ressalta a contribuição do negro para o processo de formação da identidade brasileira, ressaltando sua participação em termos de cultura, religião, língua, música, arquitetura de igrejas, ciclos econômicos, entre outros. Nessa acepção, o turismo étnico-afro também pode ser apreendido dentro da perspectiva de um símbolo de luta e resistência do negro, já que possibilita o empreendedorismo e o empoderamento do negro a partir do resgate da sua memória.
A cultura afro-brasileira é rica e pode transformar-se em um valioso atrativo turístico. Os roteiros étnico-afro conforme apresentados são capazes de disseminar o conhecimento, valorizar a cultura a partir do resgate histórico da identidade do negro. Todavia, faz-se necessário que esse tipo de turismo seja executado de forma consciente, ética e responsável para que a cultura do negro não seja relegada apenas à comercialização; mas, sim, valorizada e enaltecida pelo seu valioso patrimônio cultural. Nesse sentido a presente discussão, especificamente, o turismo étnico-afro requer um aprofundamento em suas discussões e demanda maior difusão no âmbito acadêmico, já que sua temática é diversa e pode ser analisada sob diferentes áreas que abarcam os estudos turísticos.
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Notas