Dossiê
Patrimônio e presente: o "discurso autorizado" e os diversos sentidos do patrimônio cultural
Patrimônio e presente: o "discurso autorizado" e os diversos sentidos do patrimônio cultural
Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 2, 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro
O dossiê proposto nesta edição da revista CVT visa discutir patrimônio cultural como uma prática social, cultural e política do presente (Smith, 2006, p. 1), ainda que frequentemente mobilize as noções de passado e de gerações futuras em sua conceituação e prática. Isso porque entendemos patrimônio conforme descrito por Laurajane Smith: como um processo de engajamento, um ato de comunicação e um ato de significação no e para o presente (Smith, 2006, p. 1, grifos nossos)[1].
Para a pesquisadora australiana, com quem temos a alegria de contar neste dossiê, patrimônio não diz respeito apenas ao passado nem somente a objetos materiais – ainda que diga também respeito a tais aspectos; mas principalmente se apresenta como recurso e arena para a construção, reconstrução e negociação de uma série de identidades e de valores e significados de ordem social e cultural no presente (idem, p. 3).[2] Marcia Chuva, por sua vez, afirma também que as políticas de patrimônio estão, hoje, “enraizadas na vida, no presente.” (Chuva, 2017, p. 101). É principalmente esta temporalidade e seus conflitos que marcam as ações efetivadas no âmbito dessas políticas, como na patrimonialização de bens culturais: conforme Marcia Sant’Anna, “é sempre o presente – suas demandas, disputas e questões – o que orienta a identificação e a escolha do que deve ser preservado.” E completa: “Essa escolha é sempre um momento sensível, em que é preciso enumerar as razões que a justificam e, muitas vezes, especialmente nos processos grupais, constitui um foco de tensões, conflitos e de explicitação de relações de poder.” (Sant’Anna, 2015).
O entendimento defendido por Smith, Sant’anna e Chuva e reiterado neste dossiê implica que a noção de patrimônio é muito mais ampla do que a ideia de um acervo constituído por bens e práticas culturais reconhecidos e acautelados pelo poder público e que remontam ou remetem a um passado que se quer legar a gerações futuras. Patrimônio mobiliza bens e manifestações culturais, é certo, mas mobiliza também valores, sentidos, memórias, identidades, ações, políticas e, principalmente, pessoas que se relacionam, no presente, a tais valores, sentidos, memórias, identidades, ações e políticas. E no que diz respeito às políticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil, notadamente a partir dos anos 1980, mobiliza cada vez mais pessoas e uma maior diversidade de referências.
Nessa perspectiva, partimos também da ideia de deslocamento de matriz, descrita por Ulpiano Bezerra de Meneses (2012) a partir de sua leitura do art. 216 da Constituição Brasileira de 1988. Para esse autor, houve então uma importante revisão e ampliação da própria noção dos agentes ou sujeitos das políticas de patrimônio. Por um lado, o deslocamento indicado por Meneses tirou do poder público a exclusividade da definição do valor cultural – que se dava então por meio do tombamento – e reforçou a participação da sociedade nesse processo, identificada como os “grupos formadores da sociedade” e “comunidade”, termos citados no artigo em questão (Brasil, 1988). Por outro, previu a participação ativa de uma diversidade de agentes que não poderia mais se restringir aos arquitetos e intelectuais modernistas consagrados nos primeiros anos de atuação do IPHAN, e que atuariam na própria definição daquilo que compõe o patrimônio – os “bens de natureza material e imaterial (...) portadores de referência à identidade, à ação, à memória” desses grupos – e na promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, junto ao Poder Público (idem).
Ao prever a participação de novos sujeitos ou agentes culturais na definição, promoção e proteção do patrimônio cultural brasileiro, as políticas de patrimônio passaram definitivamente a incluir novos problemas, novas abordagens e novos objetos, nos termos propostos por Marcia Chuva (2017). Daí a vinculação mais evidente do patrimônio com direitos e reparação; a revisão de conceitos centrais do campo do patrimônio; a proposição de novas abordagens de leitura e identificação dos bens em sua relação com o espaço, com as pessoas e com o presente; assim como a variedade de novos objetos e manifestações incluídos no rol do patrimônio cultural brasileiro.
Partindo das discussões de Meneses (2012) e Chuva (2017) para pensar as políticas de patrimônio no presente e o papel dos novos sujeitos ou agentes dessas políticas, reforça-se, neste dossiê, por um lado, os diversos sentidos possíveis do patrimônio. Patrimônio diz respeito “à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (Brasil, 1988) e tem sido mobilizado como recurso social, cultural e político em contextos variados. Não se trata mais, como afirmou Chuva (2017, p. 101), “propriamente [de] evitar a destruição do passado” ou de construir uma narrativa de identidade única, de inventar uma única tradição. Antes, diz respeito a pensar “a temática do patrimônio como direito e como instrumentos de reparação” (Chuva, 2017, p.96) ; ou, conforme discute Smith (2006, p.4), entender patrimônio como recurso para grupos subalternizados desafiarem e redefinirem valores e identidades impostos; para retrabalhar os sentidos do passado diante das mudanças e desenvolvimentos das necessidades culturais, sociais e políticas do presente; para desafiar as formas como grupos e comunidades são percebidas e classificadas por outros.[3]
Nesse sentido, o presente dossiê buscou trazer artigos que apresentem parte da variedade de debates que patrimônio permite e dos contextos em que é debatido atualmente. Os autores que aqui escrevem mostram também diversos sentidos que patrimônio pode assumir para os diferentes grupos que mobilizam a noção, as políticas, os instrumentos, os bens.
Partindo do artigo de Fernando Martins dos Santos e Yussef Campos, ainda que estes apresentem bens e instrumentos consagrados e bastante tradicionais na trajetória das políticas de patrimônio – a saber, o tombamento pelo IPHAN do patrimônio religioso colonial de matriz católica da Cidade de Goiás e, com menos destaque, a Lista do Patrimônio Mundial –, seu artigo permite discutir os sentidos políticos acionados numa conjuntura de perda de prestígio do município. Para além dos esforços de proteção e manutenção das edificações e da imagem tombadas, a inscrição de tais bens nos Livros do Tombo do IPHAN significou um processo de engajamento, um ato de comunicação e um ato de significação (nos termos de Smith, 2006, p.1) que não remetia especificamente ao passado colonial da Cidade, ao processo bandeirante de ocupação do território, mas a um dado problema político e a um dado momento da história da Cidade de Goiás, coincidente com o período do tombamento. Além disso, permite observar o tema do patrimônio a partir de uma discussão acadêmica e disciplinar, tratada no âmbito de um programa de pós-graduação em História de uma Universidade Pública Federal.
O artigo de Giorge Bessoni da Silva sobre a patrimonialização do Maracatu de Baque Solto, em Pernambuco, por sua vez, permite acesso à multiplicidade de aspectos referentes a uma única brincadeira inscrita no Livro de Registro das Formas de Expressão – destacando, portanto, a complexidade da manifestação e problematizando as categorias e ações disponíveis no campo do patrimônio para identifica-la, reconhecê-la e salvaguardá-la. A descrição da brincadeira, que tem por base o Inventário Nacional de Referências Culturais elaborado no processo de sua patrimonialização, permite dar acesso não somente aos aspectos que compõem o bem registrado, mas também aos diferentes sentidos atribuídos ao Maracatu nos diversos contextos em que transita e pelos variados grupos que dele participam. O estudo, fruto da dissertação do Mestrado do autor, elaborado no Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, do IPHAN, traz também sua experiência como técnico dessa instituição, trabalhando na salvaguarda do bem e em contato direto com os brincantes e folgazões do Maracatu, com entendimentos bastante próprios das características e necessidades da brincadeira.
Já o artigo de Sandra Schimitt Soster, Pedro Gonçalves e Ariane Magda Borges traz um interessante debate sobre o patrimônio no âmbito das alterações sociais acarretadas pelas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) e pelas expressões da Cultura Digital. Os autores destacam as possibilidades das TDIC, tais como o georreferenciamento, a fotogrametria, a realidade aumentada e a gamificação, para a educação patrimonial e para o turismo cultural, a partir de suas experiências junto ao projeto iPatrimônio e ao Laboratório do Ambiente – LabAm, da Universidade Federal de Goiás. Com tal discussão, é possível pensar nas diferentes experiências possibilitadas pelo patrimônio, e também problematizar em que medida formas diversas de engajamento, comunicação e significação – para remeter, mais uma vez, a Smith (2006, p. 1) – podem contribuir para a democratização do acesso ao patrimônio, para o fortalecimento da cidadania e para a afirmação e valorização da diversidade cultural.
Por fim, é com grande satisfação que este dossiê apresenta a tradução, para o português, de um texto da professora Laurajane Smith, da Universidade Nacional da Austrália, originalmente apresentado em Aula Inaugural do Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Cultural (IPHAN). Nessa comunicação, Laurajane Smith discute especificamente o papel dos especialistas – exatamente o público de mestrandos e mestrandas a quem a comunicação se dirigia, assim como ao corpo técnico do IPHAN que também acompanhou a aula – na prática profissional da gestão do patrimônio. A autora apresenta de forma detalhada aquilo que definiu como “Discurso Autorizado de Patrimônio” e suas implicações sociais, culturais e políticas para a preservação do patrimônio, propondo que desafiemos esse discurso na perspectiva de deslocar o foco do conceito de patrimônio das coisas para as pessoas; revisar o papel dos especialistas à luz de outros, entendimentos, interesses e perspectivas; e principalmente reforçar os aspectos políticos do patrimônio, com vistas a construir práticas mais inclusivas e democráticas para o patrimônio.
Sendo um pequeno recorte de discussões sobre os sentidos políticos e presentes do patrimônio, este dossiê visa principalmente reforçar a importância dos múltiplos espaços de debate sobre o tema, assim como do entendimento do patrimônio como relevante recurso político para cidadania, para a legitimação de novos atores políticos, para a valorização dos diversos “modos de criar, fazer e viver” (Brasil, 1988) e para a democracia. Esperamos que sua leitura contribua com novos e mais debates.
Referências
Brasil (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out.
Chuva, Marcia (2017). Possíveis narrativas sobre duas décadas de patrimônio: de 1982 a 2002. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, nº 35. Brasília, pp. 79-103.
Meneses, Ulpiano. T. Bezerra de (2012). O campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de premissas. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural: desafios, estratégias e experiências para uma nova gestão. Brasília: Iphan, tomo 1, pp. 25-39.
Santanna, Márcia (2015). Preservação como prática: sujeitos, objetos, concepções e instrumentos. In: Rezende, Maria Beatriz; Grieco, Bettina; Teixeira, Luciano; Thompson, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 1. ed. Rio de Janeiro; Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, (termo chave Preservação). ´
Smith, Laurajane (2006). Uses of Heritage. Nova York: Routledge.
Notas