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Desafiando o Discurso Autorizado de Patrimônio *
Challenging the Authorised Heritage Discourse
Desafiando el Discurso Patrimonial Autorizado
Caderno Virtual de Turismo, vol. 21, núm. 2, 2021
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Dossiê


Recepción: 02 Junio 2021

Aprobación: 29 Julio 2021

DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.21n2.2021.1957

Resumo: O artigo, elaborado como Aula Inaugural para o Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), discute as implicações da noção de “Discurso Autorizado de Patrimônio”, cunhada pela autora, para a prática profissional da gestão do patrimônio. Nesse sentido, apresenta inicialmente o conceito de patrimônio, definindo também o Discurso Autorizado de Patrimônio. Traz em seguida as consequências deste discurso para a gestão do patrimônio, destaca as críticas apresentadas à noção, chegando, enfim, à importância de questionar e desafiar o Discurso Autorizado de Patrimônio e o papel dos especialistas, ao afirmar sua perspectiva política.

Palavras-chave: Discurso Autorizado de Patrimônio, especialistas, gestão do patrimônio.

Abstract: The article, originally presented as the inaugural class for the Profissional Master Degree on the Preservation of Cultural Heritage, at the Institute of National Historical and Artistic Heritage (IPHAN), discusses the impacts of the Authorized Heritage Discourse (AHD) for the professional practices encompassed in managing heritage. For that matter, it initially presents heritage as a concept, also defining the AHD, as proposed by the author. It also pinpoints the consequence of the AHD and highlights critiques posed to such notion. At the end, tha author focuses on the importance of questioning and challenging the AHD and the role specialists play in heritage managing, stressing it political perspective.

Keywords: Authorizes Heritage Discourse, specialists, heritage management.

Resumen: En el artículo, elaborado en el formato de Clase Inaugural del Máster Profesional en Preservación del Patrimonio Cultural, del Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN), se discuten las implicaciones de la noción de “Discurso Patrimonial Autorizado”, acuñada por la autora, para la práctica profesional de la gestión del patrimonio. En ese sentido, se presenta el concepto de patrimonio para enseguida definirse el de “Discurso del Patrimonio Autorizado”. A continuación se abordan las consecuencias de dicho discurso para la gestión del patrimonio y se destacan las críticas dirigidas a dicha noción, hasta llegarse a la importancia de cuestionarse y desafiarse el “Discurso Autorizado del Patrimonio” y el rol de los expertos, desde una perspectiva política.

Palabras clave: Discurso Patrimonial Autorizado, expertos, gestión del patrimonio.

1. Introdução

Pediram que hoje eu falasse sobre aquilo que chamei de “Discurso Autorizado de Patrimônio” (AHD) e suas implicações para a prática profissional da gestão do patrimônio. O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) é um discurso que, conforme meus argumentos, molda a prática profissional da gestão e conservação do patrimônio. Há mais de uma versão desse discurso, com uma gama de variações nacionais. No entanto, há um Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) internacional que é continuamente autorizado por agências intergovernamentais, como a UNESCO, e por organizações profissionais internacionais, como o ICOMOS e a UICN. As características fundamentais desse discurso profissional internacional tendem a ser reproduzidas em vários contextos nacionais. O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) é um discurso altamente contestado e que também está sempre se deslocando e alterando.

Para discutir esse discurso e suas implicações, primeiramente eu preciso explicar como estou definindo patrimônio. Defendo que todo patrimônio é intangível, no sentido de que patrimônio é uma prática ou uma performance. Discutirei a história e a natureza do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), por que ele é contestado, e identificarei outros discursos concorrentes. Também passarei em revista as críticas à minha posição, respondendo a elas. Ao final, irei analisar a representatividade do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) e apresentar as implicações que este discurso tem para a prática profissional.

Meu objetivo principal, porém, é identificar as implicações políticas da prática profissional com patrimônio. Por política, refiro-me aqui ao exercício do poder – pois uma das coisas que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) faz é privilegiar os entendimentos e os valores profissionais ou especializados referentes ao patrimônio. Entender as relações de poder que sustentam as práticas de patrimônio sempre foi importante, mas tal importância tem se apresentado de forma cada vez mais urgente dada a instrumentalização tanto do patrimônio como da nostalgia para o desenvolvimento de um populismo de direita no mundo inteiro. Apesar de patrimônio ter sempre sido algo político, o fato de seu uso político estar se tornando cada vez mais declarado – como ilustram os conflitos a respeito do destino de estátuas comemorativas não apenas nos EUA, mas também na África, Europa, Austrália e América do Sul – faz com que a forma como definimos e entendemos a relevância do passado para o presente tenha consequências significativas sobre as experiências vividas pelas pessoas.

2. O que é patrimônio?

No contexto anglófono, há três definições abrangentes de patrimônio. Um aspecto constituinte dessas definições é a ideia de que os especialistas devem agir como condutores da conservação e gestão do patrimônio material cultural e natural, ao mesmo tempo que devem facilitar a salvaguarda do patrimônio imaterial.

Tenho, porém, contestado a ideia de que patrimônio seja apenas um objeto material, um sítio ou um lugar (Smith, 2006). É mais profícuo entender patrimônio como uma negociação política subjetiva de identidade, lugar e memória. Todo patrimônio é intangível, na medida em que patrimônio é um momento ou um processo de (re)construção cultural e social de valores e sentidos. É algo que acontece em sítios e lugares que, em linhas gerais, podemos definir como sítios patrimoniais, mas que não pode ser reduzido a coisas materiais. É um processo, ou de fato uma performance, em que identificamos valores e sentidos culturais e sociais que nos ajudam a dar sentido ao presente, às nossas identidades e aos sentidos de lugar físico e social. Patrimônio é um processo de negociação de sentidos e valores históricos e culturais que ocorrem no âmbito das decisões que tomamos para preservar ou não preservar determinados lugares ou objetos físicos e elementos intangíveis, assim como no âmbito das formas como estes objetos e elementos são então geridos, exibidos ou salvaguardados. Também ocorrem na forma como visitantes ou o público se vincula ou se distingue dessas coisas – patrimônio é o que é feito com eles e como eles são usados. Aos lugares e aos elementos intangíveis são atribuídos valores por meio da ação de nomeá-los patrimônio e por meio dos processos de negociação e (re)criação do patrimônio que ocorrem em tais lugares e em relação a tais elementos.

Isso inevitavelmente coloca desafios à classificação profissional tripartida de patrimônio estabelecida pela UNESCO – patrimônio cultural, patrimônio natural e patrimônio intangível –, e especificamente à divisão entre patrimônio material e imaterial, pois essas “coisas”, enfatizadas pela definição de patrimônio material, tornam-se – nos termos de James Wertsch (2002) – “ferramentas culturais” nos processos de rememoração e de constituição do patrimônio, não sendo um fim em si mesmas. De fato, lançando mão do argumento de Raphael Samuel (1994) – para quem aquilo que é frequentemente chamado de “sítios patrimoniais” poderia ser entendido como teatros da memória –, aquelas coisas tradicionalmente demarcadas como lugares e objetos de patrimônio foram definidas por mim como localização e suporte – ou ferramentas culturais – das práticas que dão destaque ou legitimidade aos atos de lembrar/esquecer e comemorar, os quais podem ocorrer, como performance, nesses lugares e em relação a esses objetos (Smith, 2006, p.66). Objetos materiais reconhecidos como patrimônio são meros elementos que nos ajudam a efetivar a constituição do patrimônio – a dar sentido.

Remetendo a meus trabalhos anteriores,[3] quero destacar que considero essencial desprivilegiar a ênfase que constantemente se dá aos objetos materiais nas definições de patrimônio. Não estou de forma algum dizendo que as coisas materiais não importam. Estou apenas dizendo que o que importa é como elas são usadas, e não o simples fato de existirem! Patrimônio apenas se torna patrimônio quando é usado, quando se transforma em uma ferramenta cultural na negociação do significado que o passado tem no presente. Algo trancado em um cofre de um museu, ou uma partitura musical jamais cantada não é patrimônio – eles são patrimônio apenas quando usados ou cantados para ajudar a mediar o significado do passado no presente.

Patrimônio é uma performance. É um momento de ação, não algo congelado em uma forma material. Embora patrimônio seja algo constituído, não há uma única ação característica, mas antes uma gama de atividades que incluem lembrar, comemorar, comunicar e transmitir conhecimento e memórias, assim como assegurar e expressar identidade, valores e significados sociais e culturais. Incluem também as atividades de listar, colecionar, conservar e interpretar – todas atividades que tendem a ficar a cargo dos profissionais do patrimônio. As performances para a constituição do patrimônio podem ter resultados conservadores ou socialmente progressistas. O produto ou as consequências das atividades relativas ao patrimônio são as emoções, experiências e memórias que temos de tais atividades e que estas produzem. Embora estas atividades ajam então de forma a promover um sentido de identidade e pertencimento, isso não é tudo que elas fazem.

Como já destaquei anteriormente (Smith, 2006, 2011), aquilo que é também criado e continuamente recriado são redes e relações sociais, as quais por si só vinculam e criam um sentido de pertencimento e identidade. Essas redes e relações são viabilizadas por meio de atividades nas quais valores, significados e entendimentos sociais e culturais sobre o passado e o presente são calculados, inspecionados, considerados, rejeitados, aceitos ou transformados - algumas vezes explicitamente, outras vezes implicitamente. Identidade não é algo simplesmente “produzido” ou representado por sítios e monumentos patrimoniais, mas é algo ativa e continuamente recriado e negociado na medida em que pessoas, comunidades e instituições reinterpretam, lembram, esquecem e reexaminam os significados do passado nos termos das necessidades sociais, culturais e políticas do presente. A constituição do patrimônio, por sua vez, não se dá por capricho, mas porque atende necessidades do presente. Isso nos ajuda não apenas a definir nosso sentido de identidade, pertencimento e sentido de lugar, mas a negociar e entender os problemas sociais que enfrentamos no presente, ao mesmo tempo em que nos ajuda a analisar os valores sociais e políticos que consideramos importantes para sustentar nossas aspirações quanto ao futuro.

Dessa forma, pode-se entender que “todo patrimônio é intangível”. Sendo uma prática, patrimônio é também uma performance corporificada – patrimônio é a interação entre ações e discursos que agem para criar ou recriar significados para o patrimônio que ajudam a validar a utilidade do passado para atender as necessidades do presente.

Ao identificar patrimônio como uma performance, lanço mão dos trabalhos de Judith Butler (1990, 2010) e Diane Taylor (2003), entre outros, para argumentar que nas ações, nas práticas em que nos engajamos, estamos corporificando e construindo significados. Patrimônio, como performance, não apenas constrói e corporifica abstrações como identidade, sentido de lugar e assim por diante; patrimônio como performance pode também ser entendido como a corporificação de formas particulares de conhecer e entender o mundo.

Patrimônio é uma performance que ocorre em uma variedade de escalas e contextos diferentes. Trarei três para a discussão. A primeira ocorre em nível institucional. Instituições e governos estão envolvidos na constituição do patrimônio não apenas por meio do desenvolvimento e implementação de políticas públicas culturais e de financiamento, mas também por meio das escolhas feitas por museus e profissionais do patrimônio na formação de coleções museológicas, nas decisões tomadas para montar ou não montar exposições, na conservação ou preservação de certos sítios e edificações, e em como nós escolhemos interpretá-los ou não interpretá-los. Uma lista nacional ou internacional de sítios patrimoniais é uma ação do patrimônio, uma vez que apresenta certas mensagens e ideias sobre o que constitui o passado e o presente. A Lista do Patrimônio Mundial é uma ação performativa da constituição do patrimônio – ela constrói certos significados ou formas de conhecer a história da humanidade. Uma coleção museológica diz respeito, da mesma forma, à constituição do patrimônio. Sítios e objetos não são “encontrados”, mas identificados como representativos das narrativas patrimoniais que os profissionais do patrimônio e dos museus querem compor.

Comunidades também apresentam outro nível ou contexto da constituição do patrimônio. Projetos sobre o patrimônio de comunidades estão, é claro, muito bem documentados na literatura sobre patrimônio. Assim como está bem documentada a observação de que as expressões das comunidades sobre patrimônio frequentemente entram em conflito com os entendimentos profissionais sobre patrimônio e/ou com as performances para constituição de um patrimônio nacional. Equipes de museus e especialistas do patrimônio podem eles mesmo serem tomados como uma comunidade de interesse sobre assuntos de patrimônio, mesmo que isso nos deixe desconfortáveis. Nós somos uma comunidade tanto quanto o são outros grupos comunitários igualmente envolvidos na constituição do patrimônio – todos voltados para seus próprios sentidos de comunidade ao empreender a constituição do patrimônio com vistas à nação ou a outros grupos.

A constituição do patrimônio também se dá no nível da família e do indivíduo – e isso se dá de muitas maneiras diferentes: ao escutarmos narrativas familiares transmitidas pelas gerações anteriores; ao olharmos fotografias de família, ao contarmos histórias entre nós nas mídias sociais; ao acessarmos programas de genealogia, como ancestry.com; ao guardarmos relíquias de família com as histórias que elas representam; e assim por diante. A constituição do patrimônio pode também ocorrer quando indivíduos visitam sítios e lugares patrimoniais ou museus.

Em suma, patrimônio é uma prática performativa que negocia o significado do passado ao remeter a problemas sociais no presente. Práticas não são aleatórias, mas estruturadas e guiadas por normais sociais – são informadas por discursos e elas mesmas informam discursos.

As práticas e performances do patrimônio são estruturadas por discursos e ideologia (Smith, 2021). As diferentes consequências que o patrimônio pode ter nos problemas e debates sociais contemporâneos serão influenciadas pelos diferentes discursos que estruturam e informam as práticas. Discurso não é apenas uma forma de pensar e falar sobre o mundo ao nosso redor – quer dizer, não está apenas em nossas cabeças – é também uma forma de estruturar o que fazemos. Isto é, ele tanto influencia quanto é influenciado pelas práticas. Constrói o sentido do mundo para nós, o qual nós então colocamos em prática. Essa definição é baseada no método da análise crítica do discurso e da filosofia do realismo crítico. Ela salienta que existe um mundo real, mas a forma como o conhecemos e como reagimos a ele é estruturado pelo discurso.

3. O Discurso Autorizado de Patrimônio [ou Authorized Heritage Discourse (AHD)]

A ideia de patrimônio como um discurso nos permite entender como certos discursos e entendimentos de patrimônio enquadram a forma como pensamos e agimos em relação ao passado e ao presente. Há muitos discursos sobre patrimônio. Mas há um discurso dominante.

O Discurso Autorizado de Patrimônio ou AHD desenvolveu-se na Europa Ocidental no século XIX e flui diretamente da mobilização de arqueólogos, arquitetos e historiadores da arte pela proteção da cultura material que eles consideravam ter valor inato e hereditário. Tais debates ocorreram simultaneamente à ascensão do nacionalismo em toda Europa, na medida em que os poderes europeus buscaram assegurar suas identidades nacionais.

Como argumentei em Uses of Heritage [Usos do Patrimônio] (Smith, 2006), o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) foca sua atenção em objetos materiais, sítios, lugares e/ou paisagens esteticamente agradáveis que as gerações presentes devem cuidar, proteger e reverenciar para que possam ser transmitidos para nebulosas gerações futuras com vistas a “educá-las” e a forjar um sentido de identidade comum baseada no passado. A ideia de que o valor da cultura material é inato ao invés de atribuído está seguramente incrustado nesse discurso. Patrimônio como algo frágil, finito e não renovável é assim visto no contexto desse discurso como estando corretamente sob os cuidados daqueles especialistas, que teriam um lugar privilegiado para se apresentarem como condutores para o passado e para entender e comunicar o valor do patrimônio para a nação.

A ideia de herança também é destacada e assegura que as gerações presentes sejam desvinculadas de um uso ativo do patrimônio. Patrimônio, argumenta-se, deve ser transmitido e preservado inalterado, e assim nós, no presente, somos dissuadidos de reescrever ativamente o significado do passado e, consequentemente, do presente.

Um dos princípios fundantes do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) deriva de debates arquitetônicos ingleses conduzidos por John Ruskin ([1849] 1899) e William Morris (1877) que promoveram a ideia de “conservar como encontrado no presente”. Encapsulados nessa ética de conservação, encontram-se não apenas a ideia do valor inerente do patrimônio material, mas também o papel importante que este assume na representação social e cultural dos valores de seus tempos. No âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), a materialidade é tão enfatizada que os monumentos são confundidos com os valores culturais e sociais que são usados para interpretá-los e dar sentido a eles. Subsequentemente, no âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), patrimônio torna-se o monumento ou outra coisa material ou lugar, ao invés de representar os valores e significados culturais que dão um significado ao monumento ou sítio.

Autenticidade é um conceito particularmente importante no âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). O valor atribuído à materialidade e o pressuposto de que valor é de alguma forma inerente ao objeto – ao invés de dependente do contexto social ou cultural do objeto – significou essa ênfase à estrutura física dos monumentos e lugares. Tal entendimento de autenticidade tende a agir no sentido de desvincular as pessoas de um engajamento ou uso ativo do patrimônio. A autenticidade material do lugar torna-se tão importante que nada pode ser modificado ou alterado sem que que o significado ou valor do lugar, dados como inatos, seja alterado. As pessoas e as formas como elas usam ou se vinculam com sítios ou lugares patrimoniais, especificamente as ditas não especialistas em patrimônio, tornam-se menos importantes nas práticas de patrimônio do que a preocupação pelo material.

Pressupostos sobre o valor inato do patrimônio também reforçam a ideia de que patrimônio representa tudo que há de bom e importante sobre o passado e que contribuiu para o desenvolvimento das características culturais do presente. Outro dado evidente nesse discurso é a “identidade” – patrimônio diz respeito à construção de identidade, especificamente identidade nacional. No entanto, esse é um pressuposto que quase nunca é verdadeiramente analisado no âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), de forma que há muito pouco sentido sobre como a identidade é construída por meio de ou a partir de sítios e lugares patrimoniais. Essa falta de compreensão contribui para viabilizar a aceitação de valores e identidades culturais e sociais consagrados e legitimados. Assim, identidade torna-se um dado imutável inerentemente incrustado nos monumentos e sítios patrimoniais. O que então age no sentido de reforçar, como historicamente legitimados, valores e práticas culturais e sociais existentes. Esse discurso também falha ao se vincular à emoção, uma vez que, supostamente, especialistas devem ser emocionalmente neutros. As únicas emoções que tendem a ser admitidas são o nacionalismo e a nostalgia – o nacionalismo é frequentemente aceito, mas nunca realmente analisado, ao passo que se ridiculariza a nostalgia, tida como inapropriada.

O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) constrói não apenas uma definição particular de patrimônio, mas também uma mentalidade autorizada, a qual é acionada para entender e lidar com certos problemas sociais centrados em reivindicações identitárias. O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não é monolítico. Ele está sujeito a variação e contestação. Há muitos outros discursos de patrimônio – alguns dos quais existem em oposição direta ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). No entanto, o este discurso é “real” no sentido de que existe um entendimento internacional de patrimônio autorizado ou dominante e de que isso tem consequências. Uma dessas consequências é a exclusão daqueles entendimentos de patrimônio que se encontram fora desse discurso ou situam-se opostamente a ele. Outra consequência é que ele continuamente valida formas de conhecimento e valores que colaboram com esse discurso.

Meu trabalho desenvolveu-se a partir de uma crítica do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) inglês, mas meu país – Austrália – tem sua própria versão desse discurso, e pesquisadores realizando trabalhos na China, Estados Unidos, Tailândia, Indonésia, América do Sul e outras regiões e países demostraram que esse discurso marcadamente europeu teve e continua tendo influência sobre a legislação, políticas e práticas locais e nacionais. Como esse discurso europeu é tão influente internacionalmente? Tal influência repousa nas instituições que autorizaram o discurso. Particularmente, defendo que o discurso foi autorizado pelos documentos e práticas profissionais sancionados pelo ICOMOS, incrustados na Convenção do Patrimônio Mundial e numa gama de outras convenções, diretrizes e recomendações elaboradas pela UNESCO (Smith, 2006; ver também Lixinski, 2011, 2019). Se é verdade que a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (ICHC), de 2003, oferece uma espécie de desafio ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), defendo também que essa convenção mais recente esteve e continua a ser constrangida em muitos contextos ocidentais por esse mesmo discurso (Smith, 2015).

De fato, a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial notou algumas mudanças no Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), de maneira que ao patrimônio imaterial agora é dado muito mais reconhecimento internacional. No entanto, o patrimônio imaterial ainda tende a ser menos valorizado do que lugares de patrimônio material. Algo interessante aconteceu na expressão anglófona do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) em resposta à Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (ICHC). Não tenho tempo de discutir isso em detalhes e já publiquei essa análise – mas em muitos documentos orientadores que remetem à existência de patrimônio imaterial, nós vemos a adoção de duas expressões – “valor tangível” e “valor intangível”. Em inglês, nenhuma das duas expressões faz o menor sentido gramático ou lógico, mas ainda assim você as encontra por toda parte em documentos da UNESCO, ICOMOS ou em nível nacional (ver Smith & Campbell, 2017). Por exemplo:

A proteção dos valores associados ao patrimônio cultural imaterial, porém, coloca mais problemas do que, por exemplo, a proteção dos valores arquitetônicos intimamente associados ao tecido material, ou os valores da biodiversidade associados a um habitat particular da vida selvagem, dada a mutabilidade inerente desses valores intangíveis (Beazley, 2009, p. 12, grifos meus).

O valor intangível é usado para discutir o patrimônio intangível e/ou a ideia de que sítios materiais podem ser valorizados pelos ditos não especialistas ou por grupos comunitários como parte das narrativas que contam. Tais valores são mutáveis, aparentemente na contramão dos valores tangíveis de objetos materiais e sítios. A expressão “valor tangível” é inteiramente usada para falar do valor especializado que um sítio, artefato, edificação ou lugar tem. Em inglês, valor intangível é uma tautologia – valores são, por definição, intangíveis; e valor tangível é uma contradição – como podem valores serem tangíveis? Trata-se do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) defendendo-se dos desafios apresentados pela Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial (Smith & Campbell, 2017). Ao tornar os valores especializados tangíveis, o discurso está invocando a ideia de que valor é inerente, de que as coisas são patrimônio simplesmente porque o são, porque existem e porque foram assim identificadas por um especialista. A ideia menos autoritária e também mais fraca de valores intangíveis – em que os valores se tornam efêmeros, imperceptíveis, insubstanciais, e outros sinônimos de intangível – é usada para descrever os ditos valores não especializados, que se tornam então mais fracos e com menos consequências do que os valores especializados (Smith & Campbell, 2017). Assim, o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não apenas afirma os ditos valores inatos do patrimônio material, mas também reitera o privilégio dos valores e práticas especializados sobre valores e práticas comunitárias. A agência humana é novamente subestimada, uma vez que a fala diz respeito aos valores dos sítios e lugares e não ao fato de que eles são valorizados. Valores ficam congelados no tempo, e patrimônio novamente falha em ser entendido como algo dinâmico, mutável e construído para o uso no presente para atender a questões e necessidades sociais do tempo presente.

4. Consequências do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD)

O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) privilegia especialistas como as pessoas mais apropriadas para se vincular e salvaguardar o patrimônio. Ele constrói o patrimônio nacional de formas que privilegiam leituras consensuais da história e da memória nacional. Por exemplo, em meu país – Austrália –, o que tende a ser reconhecido como patrimônio são sítios que se referem a narrativas nacionais recebidas. O que está faltando? Sítios de patrimônio indígena para além de lindas pinturas rupestres; sítios de invasões coloniais, tal como sítios de massacres; sítios que reflitam o patrimônio multicultural – o patrimônio de imigrantes não anglo-saxões – e sítios que narrem as histórias de mulheres, crianças, comunidades LGBTQIA+, entre outras.

Tomando a Inglaterra como outro exemplo, o patrimônio reconhecido é dominado pelos castelos, pelas casas da aristocracia, pela arqueologia romana e monumentos pré-históricos, sítios industriais que narram a história dos ditos grandes homens que eram seus proprietários. O que é deixado de fora? Histórias das classes trabalhadoras, histórias da imigração, expansão colonial, histórias da escravidão, entre outras.

Não conheço as especificidades do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) no Brasil. Mas um exercício útil é olhar para sua lista de patrimônio nacional reconhecido, contar os diferentes tipos de patrimônio que ali constam e com que frequência eles aparecem – e então se perguntar o que foi deixado de fora e o que é relativamente pouco frequente. O que é privilegiado e o que é tratado de forma meramente simbólica ou simplesmente deixado de fora e esquecido pela história nacional. Então pergunte-se quais experiências históricas são assim legitimadas, quais não o são, e quais as consequências disso para a equidade social.

Assim, o patrimônio autorizado tende a reforçar a legitimidade de narrativas históricas consensuais ou recebidas. Como Stuart Hall observa, isso tem consequências:

O Patrimônio Nacional é uma poderosa fonte de significados [culturais]. Disso decorre que aqueles que não se enxergam refletidos nesse espelho não “pertencem” adequadamente. (Hall, 1999, p.4)

A habilidade de se enxergar refletido na narrativa nacional não diz respeito apenas a sentir-se bem em relação a políticas identitárias; isso tem consequências materiais para aqueles que são deixados de fora. Assim, o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) acaba sendo contestado. Os conceitos de patrimônio e de práticas patrimoniais que se opõem a esse discurso são construídos e defendidos no sentido de que as pessoas possam reivindicar que sua história e sua experiência contemporânea importam também. Isso significa que, como especialistas, nós nos encontraremos engajados em conflitos sobre o significado e a importância de patrimônio. Além disso, há discursos de patrimônio que simplesmente encontram-se fora do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) e não apresentam nenhuma interseção com ele. Nesses casos, especialistas e comunidades de interesse no patrimônio podem frequentemente se ver em um diálogo de surdos e simplesmente não entender a perspectiva do outro.

5. Críticas ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD)

Houve, é claro, críticas à ideia do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) por aqueles que têm um interesse investido em negá-lo e, dessa forma, mantê-lo. Aqueles que defendem a objetividade e a neutralidade do especialista e aqueles que defendem que patrimônio tem de fato um valor inerente e que é algo que encontramos. Não tenho muito interesse nessas críticas.

Outros leram meu trabalho erroneamente e destacaram os outros discursos de patrimônio e o fato de que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não é monolítico – ao que respondo: sim, efetivamente, há, é claro, outros discursos de patrimônio e o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não é estático ou imutável, algo que eu identifico claramente em Uses of Heritage (Smith, 2006). Meu objetivo ao identificar esse discurso é precisamente chamar atenção para o fato de que há outros discursos de patrimônio. De que várias comunidades ou outros grupos têm seu próprio conhecimento e entendimento especializados de patrimônio e que nós precisamos escutar e nos vincular a essas experiências e conhecimento diferentes. Se não somos explícitos ao fazê-lo e trabalhamos acriticamente nos limites do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), nós estaremos apenas trabalhando para continuar a excluir a diversidade.

Se o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) fosse monolítico e imutável, então não haveria esperança – esse discurso não apenas muda de nação para nação e ao longo do tempo: nós devemos nos engajar ativamente para muda-lo. Sim, o que nós produziremos pode constituir outro discurso dominante, mas, com sorte, será um mais inclusivo, democrático e examinado criticamente. Espero que aquilo que produzimos reconheça a diversidade dos discursos de patrimônio e inclua os desenvolvimentos em curso desse discurso, ao invés de estagná-lo.

No entanto, há uma crítica mais recente nos estudos de patrimônio informada pelo Novo Materialismo e Pós-Humanismo.[4] Vários comentadores, em particular Rodney Harrison (2013), mostraram-se preocupados com o que esse autor chama de virada discursiva nos estudos de patrimônio, tendo ele se voltado para a “Teoria Ator-Rede” [ANT, em inglês] e para o Novo Materialismo com vistas a remediar tal tendência. Harrison afirma que “patrimônio não é a inscrição de significado em objetos em branco”, mas, ao contrário, o patrimônio é produzido “como resultado das possibilidades materiais e sociais, ou ‘oportunidades’ [‘acessibilidades’], de coletivos de agentes humanos e não humanos, entidades materiais e não materiais, no mundo” (2013, p. 217). Assim, para Harrisson, patrimônio não é “um esforço intelectual, algo que existe apenas na mente humana, mas algo que emerge do diálogo, ou das práticas entre pessoas e coisas.” (2013, p. 217, grifo no original). Nessa perspectiva, “coisas” patrimoniais são re-privilegiadas como agentes ativos no processo de constituição do patrimônio.

A ideia de uma virada discursiva invoca uma crítica do pós-modernismo na qual o discurso, da forma como é usado e definido em boa parte do debate pós-modernista e pós-estruturalista, valeu-se das ideias de Michel Foucault sobre discurso, tendo aquela ideia reduzido discurso simplesmente ao texto. Isto é, o discurso como texto (seja escrito ou oral) tornou-se o único foco de análise e então “tudo era discurso” – uma tendência que critiquei em artigo publicado na revista Antiquity, em 1994.

Essa crítica ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) é falha em dois sentidos. Primeiramente, não houve uma virada para o discurso – a análise do discurso continua sendo apenas uma das diversas metodologias de análises nos estudos de patrimônio e não é, de forma alguma, dominante. Em segundo lugar, e principalmente, não me valho da definição de discurso proposta por Foucault em minha construção do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). Eu explicitamente me valho das definições que fundamentam a Análise Crítica do Discurso, em que discurso está ligado a práticas sociais em termos realistas. Discurso é definido como tendo consequências materiais e como sendo influenciado por questões materiais. Por “material”, refiro-me a coisas tais como o impacto das práticas e dos discursos estruturantes de patrimônio sobre problemas, debates e questões sociais. Isto é, nas vidas e experiências das pessoas.

Na perspectiva do Novo Materialismo, arqueólogos querem afirmar que as coisas têm agência e que, no desenvolvimento da minha definição de patrimônio e do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), eu teria negligenciado a agências das coisas (ver, por exemplo, Solli, 2011; Pétursdóttir, 2012; Harrison, 2013). Que essa seja uma crítica promovida nos estudos de patrimônio por arqueólogos não surpreende – as coisas são, afinal, seus dados e razão da existência da disciplina. No entanto, eu não trato ou tratei objetos como insignificantes – mas efetivamente os desprivilegio, uma vez que os privilegiar é fazer o que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) faz; é ignorar as pessoas. Pessoas importam e não me desculpo por dar ênfase a isso – as formas como as pessoas usam e se vinculam aos objetos patrimoniais têm implicações políticas, emocionais e sociais que importam. As formas como nós, estudiosos e profissionais do patrimônio, gerimos, interpretamos e conservamos patrimônio têm consequências nas experiências vividas das pessoas. Não me digam que coisas tais como vasos e edifícios antigos têm agência e ocupam uma posição moral, como os adeptos do Novo Materialismo reivindicam nos debates sobre patrimônio.

Esta posição a respeito de objetos ou coisas resulta das preocupações pós-humanistas relativas às mudanças climáticas e aos impactos antrópicos no planeta, assim como nossos impactos sobre os animais e a ecologia. As formas como interagimos com o planeta e os seres vivos é, com certeza, vital, mas não estendamos isso à matéria inerte. Além do mais, a maneira como o debate sobre os impactos antrópicos está estruturada no âmbito do pós-humanismo apenas absolve os seres humanos da responsabilidade sobre as mudanças – uma vez que a responsabilidade migrou para pós- ou não-humanos. O pós-humanismo torna-se um exercício de egocentrismo enquanto o mundo se incendeia. Esse, no entanto, é um outro assunto. Retorno à perspectiva do Novo Materialismo nos estudos de patrimônio.

Descrever coisas (tais como sítios, edificações, vasos, pedaços de madeira trazidas às costas pelas correntes etc.) como tendo uma agência inerente é simplesmente reinvocar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) e seu sentido de valor inerente é potencializado com a ideia de agência inerente. O Novo Materialismo cria um argumento circular e uma série de práticas que continuamente asseguram que os estudos de patrimônio fiquem restrito a conversas nas quais os profissionais e intelectuais tenham papel preponderante. A situação também é facilitada pela linguagem obscurantista e o abuso de analogias poéticas e metáforas – o que é uma estratégica deliberada de evocação das pretensões dos debates pós-modernistas/ pós-estruturalistas dos anos 1970 a 1990.

A atribuição de agência ao universo material das “coisas” é teoricamente indefensável, e uma importação vitalista implausível para os estudos do patrimônio e museus, a qual trivializa e marginaliza a agência social, humana e pessoal. Trata-se uma inversão irônica – essa atribuição, ao invés de subestimar o humano, é de fato antropomórfica, ao erroneamente projetar uma espécie de agência humana ao universo material (Žižek, 2014, citado em Till, 2015). Falando francamente, desenhar rostos sorridentes em coisas e imaginar que atores não humanos do universo material têm alguma forma espiritual de agência é uma proposta teórica pobre. Há aqui uma espécie de auto abnegação falsa, em que os seres humanos são ostensivamente subestimados, ainda que retornem de forma irônica como modelos para um universo material ao qual é atribuído agência. Isso é antropomorfismo, o que explica porque devemos buscar a agência humana ou social como primeiro ponto de partida.

Assim, não sou uma entusiasta do Novo Materialismo não apenas porque ele mantém o descaso do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) em relação às pessoas, mas também porque ele ativamente ofusca o poder político nos estudos de patrimônio, especialmente na medida em que especialistas são novamente vistos como as pessoas mais bem situadas para interpretar a agência dos objetos e coisas e para entender a inter-relação e diálogo entre coisas e pessoas. De várias maneiras, essa virada para o Novo Materialismo consiste no Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) afirmando-se mais uma vez, porém informado por novas perspectivas teóricas. De maneira tortuosa, esse discurso vem sendo reforçado em resposta a crescentes convocações feitas por pesquisadores dos estudos críticos em patrimônio a um maior engajamento com as comunidades e outros grupos de interesse. É também uma reação contra a ascensão do patrimônio imaterial, o que tem sempre destacado a agência das pessoas como detentores e criadores do patrimônio. Sou originalmente formada na área de arqueologia, e posso ver que a ascensão internacional do conceito de patrimônio imaterial e o apoio dado pela UNESCO a essa ascensão agem no sentido de questionar a utilidade universal da arqueologia no espaço de patrimônio. Não me entendam mal: arqueologia ainda é importante – mas não é tão influente no espaço do patrimônio como já foi e me pergunto se o Novo Materialismo não é simplesmente uma resistência aos desafios postos ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) e aos valores e práticas que ele estrutura. Desafios que ao longo dos últimos 20 anos ou mais têm crescido a partir do reconhecimento do patrimônio imaterial e da ênfase crescente na validação do engajamento das comunidades nas políticas e práticas de patrimônio.

6. Por que é importante questionar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD)?

A crítica inspirada pelo Novo Materialismo e pela “Teoria Ator-Rede” [ANT] – assim como o século XIX inspirou o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) que está incrustado em muitas Convenções da UNESCO – entende erroneamente a diversidade das maneiras pelas quais patrimônio é experienciado, conhecido e entendido. O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) e as práticas de patrimônio que ele estrutura simplesmente não são representativos de como as pessoas que se encontram fora da gestão do patrimônio ou fora de outras práticas profissionais entendem ou se vinculam ao patrimônio.

Para ilustrar, quero lançar mão de uma pesquisa que publiquei recentemente no livro Emotional Heritage (2021). O Quadro 1 registra respostas abertas de 2.632 pessoas na Inglaterra, Austrália e nos Estados Unidos, a quem foi feita a pergunta “o que a palavra patrimônio significa para você?”

Quadro 1
Respostas dos entrevistados

Fonte: Smith, 2021

A pergunta foi feita a essas pessoas enquanto visitavam ou depois que haviam visitado um sítio ou museu histórico. Há diversas respostas que representam exemplos do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD): a resposta “coisas materiais” reflete a definição do especialista ou orientada pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) que denomina tais coisas como casas históricas, sítios arqueológicos, e artefatos museológicos, entre outros. Patrimônio como “ação de preservação” é também uma definição influenciada pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), na medida em que patrimônio foi definido nessas respostas como algo protegido, ou que deveria ser protegido; e protegido por especialistas na maior parte das vezes. “Educação” refere-se a definições que ligam patrimônio a valores educacionais, valores promovidos pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). Já a resposta pouco frequente que remeteu a um mito de origem, tal como “patrimônio refere-se ao estabelecimento das fronteiras” é também estruturada pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). A resposta “história ou o passado” representa um vago “Não saberia definir” e apareceu várias vezes simplesmente como “história” ou “passado” e, dessa maneira, não fica muito claro se estão especificamente definidas pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). No entanto, quando somadas, todas as definições estruturadas pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) representam apenas 19% das respostas.

Tenho que admitir que a primeira palavra que veio à minha mente foi edifício, um edifício antigo. (IMM64: mulher, 45-54 anos, editora, Anglo-Australiana)[5]

A ideia de que patrimônio é intangível, familiar, parte da identidade étnica de alguém, ou mais frequentemente parte de um sentido nebuloso, porém intenso das experiências pretéritas de alguém, ou mais especificamente uma experiência cultural pretérita não faz parte do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) orientado por especialistas e representa o resto do total das respostas. Em resumo, o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não é uma definição compartilhada pela maioria dos não profissionais – mesmo aqueles que estavam visitando sítios nacionais perfeitamente ajustados ao Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). Quero destacar isso – trata-se de exemplos de respostas dadas por pessoas visitando sítios autorizados de patrimônio, onde podíamos esperar encontrar pessoas que estruturassem suas respostas no âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). No entanto, a maioria não o fez. Poderíamos esperar uma diversidade ainda maior de respostas se eu tivesse feito a pergunta em contextos distintos.

O que fica evidente nas demais definições são questões referentes a emoção e sentimentos. Os visitantes frequentemente tiveram dificuldade em responder à pergunta não porque não a entendessem, mas porque achavam difícil expressar o sentimento ou emoção que associavam à palavra. Se alguns dos sentimentos e valores expressos encaixam-se facilmente em narrativas nacionalizantes e autorizadas de nação, a questão aqui é que, nas definições não identificadas com o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), as pessoas estão se referindo a entendimentos de base emocional e não material a respeito da natureza do patrimônio. Patrimônio não é percebido como uma coisa, mas como um sentimento de pertencimento Exemplos de respostas referentes a experiências culturais pretéritas incluem:

Patrimônio? Patrimônio para mim é a história que se dá desde nossos antepassados e que nos trouxe ao ponto que estamos hoje. Tudo que ocorreu no passado, se é nossa cultura, nossos familiares no passado, esse patrimônio é o que, ou a história nos faz como somos. Como nós sentimos e como nós pensamos. (NCRM29: homem, 55-64 anos, militar aposentado, Honkey Cat (Americano)

Eu acho que quer dizer experiências do passado. Eu penso - na verdade, é uma palavra complicada de descrever, mas eu acho que significa de onde você veio, algo maior do que a história. Mais do que fatos, talvez algo como um sentimento. (TM65: mulher, 25-34, desempregada, americana de ascendência alemã e inglesa)

A ideia de “experiências pretéritas” está firmemente incorporada em definições mais específicas que rementem a família e etnicidade. Exemplos de definições que enfatizam a família incluem:

Patrimônio significa meus antecedentes, meus ancestrais, de onde eu vim. (NCRM16: mulher, acima de 65, professora aposentada, Afro-Americana, 2012, grifos da visitante)

Minha linhagem familiar, o que é meu patrimônio, significa voltar até minha avó, até a mãe dela e assim por diante. E acho que seriam os valores nos quais fui criada. (NCRM53: mulher, 45-54, funcionária dos Correios, americana negra)

Definições que destacam a família contradizem diretamente o destaque dado à nação no âmbito do Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD). Esse sentido de “experiências pretéritas” e sua influência são transferidos para as definições que enfatizam etnicidade, por exemplo:

Provavelmente meu contexto étnico e geográfico. (NCRM27: homem, 25-44, publicitário, americano branco)

Eu sempre penso na África, os negros – isso é que o significa para mim. Sou afro-americano – de alguma maneira, queria que isso fosse descrito apenas como americano, mas eu venho da África. Minha ancestralidade, nós viemos – nós provavelmente viemos como escravos. (NCRM31: homem, 45-54 anos, militar aposentado, afro-americano)

O sentido de pertencimento ou “experiências pretéritas” identificado nas respostas está também fortemente refletido nas respostas que remetem ao sentimento de pertencimento nacional, da mesma forma que as definições que se referiram especificamente ao imaterial. Elas remeteram não apenas a um sentido de tradição, mas a formas de vida, valores e experiências sociais e culturais:

As experiências comuns de um grupo de pessoas. (NCRM49: homem, 40-59 anos, funcionário público local, Galês, 2004)

Patrimônio é, hum, tudo aquilo que eu viajei ao redor do mundo para ver, todos os diferentes tipos, e eu gosto de simplesmente conhecer outras pessoas e onde eles vivem, como eles lidam com o que acontece nas suas rotinas. (NCWMH76: mulher, mais de 65 anos, americana caucasiana, 2011)

O que fica evidente nessas respostas é que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) orientado por especialistas e o Novo Materialismo inspiraram definições que não são representativas de entendimentos não especializados de patrimônio. A ideia de que identidade e conexões a pertencimento e bem-estar estão implícitas nas definições tradicionais de patrimônio postas pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), assim como a ideia de que patrimônio está ligado a expressões de identidade estão muito bem ensaiadas na literatura e nas políticas públicas. No entanto, a falta de um reconhecimento explícito dos aspectos emocionais do patrimônio age no sentido de obscurecer e, no limite, negar a legitimidade desses sentimentos e, assim, falha na incorporação de um entendimento específico da emotividade do patrimônio nas práticas de curadoria e gestão. Definições materiais de patrimônio privilegiadas pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) não apenas deslegitimam a validade da amplitude da diversidade de entendimentos de “patrimônio”, mas também desperdiçam a força do sentimento e da utilidade que as pessoas identificam no conceito.

Então, o que isso nos mostra é que, em qualquer definição de patrimônio, é vital que nos vinculemos a emoções. As performances do patrimônio não dizem respeito apenas a criar significados; elas também dizem respeito especificamente a expressar certas emoções e sentimentos. Tais sentimentos então validam os sentidos que o passado tem para o presente. Isto é, se participamos de uma performance de constituição do patrimônio – seja contando histórias de família, seja visitando um sítio patrimonial ou museu, ou nos envolvendo em práticas profissionais de gestão do patrimônio ou de curadoria –, a forma como nos sentimos sobre isso e as emoções geradas por essas práticas são importantes. São importantes porque sentir é acreditar (Mercer, 2010; ver também Morton, 2002, 2013; Campbell, 2006). Se nossas emoções parecem boas, se parecem genuínas ou reais no momento, então os sentidos e valores construídos pela performance do patrimônio reforçam a legitimidade dos sentidos construídos ou reforçados. Se as emoções parecem erradas, clichés ou piegas, ou mesmo forçadas, então o sentido não foi criado para nós – a experiência do patrimônio será descartada como não genuína.

7. Conclusão

Eu observei no início que o patrimônio é político. Política diz respeito ao exercício de poder. O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), como discurso dominante, está incrustado nas políticas e legislações nacionais e internacionais e delega poder aos especialistas. No âmbito das práticas que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) estrutura, aos especialistas é reservada uma posição privilegiada e, com eles, os valores e conceitos de patrimônio que valorizam (sejam tais especialistas arqueólogos, curadores, arquitetos, antropólogos, ou profissionais de patrimônio de forma geral). Ao ocupar a posição de autoridade, especialistas têm responsabilidades políticas e éticas – não em relação às coisas que nós ostensivamente protegemos, interpretamos e colecionamos, mas em relação às pessoas e comunidades que utilizam tais objetos e lugares como patrimônio. A forma como objetos, lugares ou elementos intangíveis do patrimônio são usados não apenas define tais coisas e elementos como patrimônio, mas também tem consequências para os sentidos individuais e coletivos de identidade, de lugar e de bem-estar. Tem consequências concretas para as pessoas, e o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD), com sua ênfase nos objetos materiais, ofusca as pessoas, e a questão é e deve sempre ser que as pessoas importam.

Em suma, as implicações de se identificar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) para a prática profissional são:

Questionar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) exige que especialistas assumam um papel político, que estabeleçam agendas para a mudança. Não estou sugerindo que os especialistas abandonem seu lugar de poder, pois de forma geral isso teria poucas consequências; mas que se posicionem pela equidade e diálogo com outros interesses, com uma agenda clara que entenda as redes de poder no âmbito das quais praticamos a gestão do patrimônio e outras práticas profissionais. Não estou dizendo, nem jamais disse, que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) torna todos os especialistas poderosos; a economia e interesses de Estado frequentemente marginalizarão os especialistas de patrimônio, mas entender que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) simultaneamente viabiliza e limita as práticas dos especialistas é o ponto de partida para práticas mais inclusivas e embasadas criticamente.

  • Há um discurso nacional dominante (o Discurso Autorizado de Patrimônio – AHD) que privilegia valores especializados e nacionais de patrimônio. Isso resulta, de certa maneira, da influência das Convenções da UNESCO e de outros documentos orientadores.

  • O Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) exclui vários grupos e interesses em qualquer sociedade.

  • Isso torna inevitável o conflito entre especialistas e outros interesses (não apenas interesses econômicos, como de empreendedores, mas interesses das comunidades também).

  • Outros grupos de interesse nem sempre compartilham os entendimentos especializados sobre patrimônio.

  • Patrimônio como uma prática e uma performance para construir sentidos é sempre político, na medida que tanto inclui como exclui.

  • Práticas estruturadas pelo Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) tenderão a legitimar narrativas nacionais consensuais.

  • Se nós queremos nos engajar em práticas mais inclusivas, então temos que questionar e mudar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD).

Questionar o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) exige que especialistas assumam um papel político, que estabeleçam agendas para a mudança. Não estou sugerindo que os especialistas abandonem seu lugar de poder, pois de forma geral isso teria poucas consequências; mas que se posicionem pela equidade e diálogo com outros interesses, com uma agenda clara que entenda as redes de poder no âmbito das quais praticamos a gestão do patrimônio e outras práticas profissionais. Não estou dizendo, nem jamais disse, que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) torna todos os especialistas poderosos; a economia e interesses de Estado frequentemente marginalizarão os especialistas de patrimônio, mas entender que o Discurso Autorizado de Patrimônio (AHD) simultaneamente viabiliza e limita as práticas dos especialistas é o ponto de partida para práticas mais inclusivas e embasadas criticamente.

8. Referências

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Wertsch, J. (2002). Voices of Collective Remembering. Cambridge: Cambridge University Press.

Notas

* Tradução autorizada pela autora e realizada por Claudia Feierabend Baeta Leal.
** Laurajane Smith é Diretora da Escola de Arqueologia e Antropologia e do Centro de Estudos em Patrimônio e Museu na Australian National University. Bolsista da Academy of the Social Science in Australia; fundadora da Association of Critical Heritage Studies; editora do International Journal of Heritage Studies e co-editora do Routledge Series Key Issues in Cultural Heritage. É autora e editora de quatorze livros, entre eles Uses of Heritage (2006), Intangible Heritage (2009) e o recente Emotional Heritage: Visitor Engagement at Museums and Heritage Sites (2021).
[3] Esta seção resume particularmente os argumentos apresentados em Smith (2006) e Smith (2011).
[4] Meus argumentos nesta seção resumem aqueles apresentados na conferência de Campbell e Smith (2016) e no capítulo 1 de Smith (2021).
[5] Esta citação e as próximas são trechos das entrevistas feitas a visitantes como parte da pesquisa apresentada em Smith (2021) e Smith e Campbell (2021). A profissão e os descritores étnicos são aqueles definidos pelos próprios entrevistados.


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