Artigos originais
Recepción: 18 Abril 2021
Aprobación: 18 Abril 2022
DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.22n1.2022.1928
Resumo: O artigo apresenta uma experiência a partir do estudo do meio com os alunos do ensino técnico em turismo do Colégio Estadual João de Oliveira Botas, em Búzios (RJ). A ideia surgiu da constatação do pouco conhecimento que estes possuíam dos atrativos turísticos, evidenciando um distanciamento dos bens patrimoniais buzianos. O objetivo foi entender as causas de seu desconhecimento e como essas aulas poderiam contribuir para a criação de laços de identificação com esses lugares de memória. Nos roteiros, considerou-se as categorias tempo, espaço e tematização, a dialética da apropriação e leitura dos espaços e o Paradigma da Complexidade para entender suas dinâmicas através da lógica dos fixos e fluxos. A metodologia se baseou no estudo de caso, apoiado nas pesquisas bibliográfica, documental e de base etnográfica. Para a coleta e análise dos dados utilizou-se o questionário, relatório de visitação e ata dos estudos de grupo focal, compreendendo e compreendeu cinco turmas no período de 2015 a 2017. Os resultados demonstraram que os bens patrimoniais mais conhecidos estavam localizados na área turística da cidade e que a falta de sinalização dificultava sua identificação e localização pelos alunos.
Palavras-chave: Estudo do meio, Patrimônio natural, Patrimônio cultural, Identidade, Armação dos Búzios.
Abstract: The article presents an experience from the Milieu study with students of technical education in tourism of the Colégio Estadual João de Oliveira Botas, in Búzios (RJ). The idea arose from the verification of the little knowledge they had about tourist attractions, showing a distance from Buziano's patrimonial assets. The objective was to understand the causes of their lack of knowledge and how these classes could contribute to the creation of ties of identification with these places of memory. The scripts considered the categories time, space and thematization, the dialectic of appropriation and reading of spaces and the Paradigm of Complexity to understand its dynamics through the logic of fixed and flows. The methodology was based on the case study, supported by bibliographic, documentary and ethnographic research. For data collection and analysis, the questionnaire, visitation report and minutes of the focus group studies were used and comprised five classes from 2015 to 2017. The results showed that the most well-known heritage assets were located in the tourist area of the city and that the lack of signs made it difficult for students to identify and locate them.
Keywords: Milieu study, Natural heritage, Cultural heritage, Identity, Armação dos Búzios.
Resumen: El artículo presenta una experiencia del estudio del medio con estudiantes de educación técnica en turismo del Colégio Estadual João de Oliveira Botas, en Búzios (RJ). La idea surgió de la Verificación del poco conocimiento que tenían sobre los atractivos turísticos, mostrando una distancia con los bienes patrimoniales de buziano. El objetivo fue comprender las causas de su desconocimiento y cómo estas clases podrían contribuir a la creación de vínculos de identificación con estos lugares de memoria. Los guiones consideraron las categorías tiempo, espacio y tematización, la dialéctica de apropiación y lectura de espacios y el Paradigma de Complejidad para comprender su dinámica a través de la lógica de lo fijo y los flujos. La metodología se basó en el estudio de caso, sustentado en investigaciones bibliográficas, documentales y etnográficas. Para la recolección y análisis de datos, se utilizó el cuestionario, el informe de visitación y las actas de los estudios de los grupos focales, que comprendieron cinco clases de 2015 a 2017. Los resultados mostraron que los bienes patrimoniales más conocidos se ubicaron en el ciudad y que la falta de señales dificultaba que los estudiantes los identificaran y localizaran.
Palabras clave: Estudio del medio, Patrimonio natural, Patrimonio cultural, Identidad, Armação dos Búzios.
1. Introdução
A cidade de Armação dos Búzios/RJ, ou simplesmente Búzios, localiza-se numa pequena península na região da Costa do Sol, a aproximadamente 165 quilômetros da capital fluminense. Sua geografia bastante recortada favoreceu a formação de enseadas que abrigam 23 praias, sendo o principal direcionador de fluxos turísticos para o balneário. Além disso, seus ventos fortes tornam propícia a prática de esportes como parapente, iatismo e voo livre. Búzios possui clima tropical com temperatura média anual de 24°C e baixo índice pluviométrico, configurando-se como um dos destinos turísticos de sol e praia mais procurados do Brasil. A cidade também concentra um patrimônio cultural bastante rico, porém é desconhecido de moradores e turistas, razão pela qual não gera fluxos turísticos estáveis e exclusivos, sendo necessário entremeá-lo com roteiros praianos.
Orientado neste sentido, o Colégio Estadual João de Oliveira Botas (CEJOB) vem desenvolvendo vários projetos junto à comunidade, procurando fomentar ações que aproximem o morador do patrimônio cultural local, levando-o a reconhecer seus lugares de memória. O colégio, com sua história de mais de 60 anos, tornou-se um lugar de referência da cultura e da memória buziana e, por ser o único da rede estadual na cidade, foi local de estudos da maioria dos moradores que cursaram o ensino médio. Além disso, manteve até o ano de 2017 o ensino profissionalizante pós-médio em turismo. E é justamente sobre as aulas práticas desse curso que trataremos na pesquisa, buscando entender o uso da metodologia do estudo do meio como forma de gerar interações e articular saberes na apresentação do patrimônio local, e se possível, despertar nos alunos sentimentos de pertencimento à cidade.
A metodologia adotada baseou-se no estudo de caso, numa abordagem exploratória e descritiva, sendo seu objeto de análise as aulas práticas do Curso Técnico em Turismo do CEJOB, em Búzios (RJ). Os procedimentos metodológicos pautaram-se nas pesquisas bibliográfica, documental e de base etnográfica, cuja realidade foi verbalizada de forma bastante subjetiva, razão pela qual os dados receberam um tratamento mais interpretativo. Para a coleta dos dados foi utilizado o questionário de profundidade de conhecimento, além do relatório de visitação de campo e da ata de registro dos estudos de grupo focal, caracterizando-se por uma pesquisa essencialmente qualitativa, porém, com suporte quantitativo.
A elaboração das atividades foi inspirada nos elementos de referência do patrimônio natural e cultural buziano, privilegiando os lugares que marcaram a história da cidade. Esta escolha envolveu os bens considerados turísticos e aqueles esquecidos pelo turismo e poder público, mas igualmente alusivos à memória social de seus moradores. Por meio desses roteiros, os alunos puderam (re)conhecer os lugares que reportam à memória e à identidade buziana, participando ativamente de todas as fases da visitação, explicitadas mais adiante. Esta construção coletiva entre alunos e professores baseou-se em uma metodologia que tem como pilar principal o diálogo entre as partes interessadas, conhecida como roteirização dialogal[1], “cuja metodologia vem se mostrando especialmente adaptada para experiências de turismo situado[2]” (Egrejas; Paz; & Bartholo, 2015, p. 242). O aluno ao vivenciar este tipo de roteiro tem a chance de entender o sentido desses lugares e suas histórias, além de se sentir pertencente a eles. É válido lembrar que mesmo que esses espaços sejam extremamente globalizados e culturalmente híbridos, ainda assim se constituem em espaços de referência da memória local.
2. A roteirização e o Paradigma da Complexidade
Roteiro turístico é a descrição pormenorizada do itinerário por onde os turistas passarão para atingir cada um dos atrativos. Segundo o Ministério do Turismo (Brasil, 2007, p. 15), “a roteirização confere realidade turística aos atrativos que estão dispersos através de sua integração e organização”. Nele estão contidos elementos do planejamento, gestão, promoção e comercialização de variados produtos e serviços turísticos de uma localidade. Portanto, um roteiro turístico
[...] resume todo um processo de ordenação de elementos intervenientes na efetivação de uma viagem. Um roteiro pode estabelecer as diretrizes para desencadear a posterior circulação turística, seguindo determinados trajetos, criando fluxos e possibilitando um aproveitamento racional dos atrativos a visitar (Bahl, 2004, p. 31).
Este mesmo autor assevera que os principais aspectos contemplados em um roteiro estão ligados aos fatos histórico-culturais e àqueles associados à natureza e às questões ambientais como sendo os mais explorados comercialmente. No entanto, para uma melhor aceitação e direcionamento dos visitantes, minimizando possíveis frustrações, um roteiro pode e deve ser tematizado, já que atrai públicos específicos e otimiza seu tempo ao direcioná-los para aquilo que realmente buscam encontrar nos destinos. Bahl (2004, p. 52) entende a tematização como sendo uma “gama de criação de roteiros e programações turísticas, baseando-se na criatividade para a proposição de novos produtos”. Ele complementa, dizendo que o objetivo da tematização é diversificar a oferta local com novos roteiros visando à comercialização e ampliação do tempo de permanência do visitante no lugar.
Para o Ministério do Turismo, o ato de tematizar é “o processo de ressaltar a identidade cultural de determinados produtos, a partir de aspectos que mereçam destaque e facilitem o reconhecimento pelo público” (Brasil, 2010, p. 71). O imaginário torna-se o cerne da tematização do roteiro, valorizando os sentimentos construídos em relação aos locais, objetos e até mesmo pessoas no intuito de deixá-lo mais atrativo. Deste modo, os roteiros formatados por temas histórico-culturais deixam de ser interpretados apenas como um conjunto sequenciado de paisagens que se deseja apresentar, passando a ser entendidos como uma relação social de contemplação mediada pelos lugares de memória. Esta é a inspiração para a elaboração dos roteiros das aulas práticas do Curso Técnico em Turismo e sua construção considera as categorias tempo, espaço e tematização (Cisne, 2010) e também a dialética da apropriação e leitura dos espaços turistificados. A compreensão destes conceitos faz emergir sua análise por meio da lógica dos fluxos e fixos (Santos, 2006), além de entender as relações que se estabelecem nestes espaços.
Quanto à execução dos roteiros e para compor o pensamento filosófico, buscou-se inspiração no Paradigma da Complexidade (Morin, 2008), calcado na ordem, desordem e organização, incluindo as dimensões do sujeito complexo e da tecnologia. Estes conceitos foram utilizados para entender a dinâmica e os contratempos a que um roteiro está sujeito durante sua execução, de modo que raramente se consegue cumprir fielmente o planejamento preestabelecido. A complexidade de um roteiro se explica pelas próprias características intangíveis do turismo, que o coloca como um sistema aberto e flexível, permitindo a convivência de diversos elementos relacionados à ordem, desordem e organização. Para Morin (2008), essa relação surge quando verificamos empiricamente que certos fenômenos desordenados são necessários em determinadas ocasiões, como forma de contribuir para o aumento da ordem de produção e da reorganização dos eventos. O que significa dizer que a complexidade moriniana está onde não se pode vencer uma contradição e, deste modo, ela se impõe naturalmente às singularidades do turismo e de maneira específica aos roteiros turísticos.
A compreensão do roteiro à luz do Paradigma da Complexidade estrutura-se no entendimento daqueles elementos que o compõem e o condicionam e que não podem ser vencidos como as intempéries do tempo, o clima e o comportamento das pessoas. Um roteiro ao ser planejado evidencia uma ordem na elaboração do itinerário e que está sujeita à desordem ante aos imprevistos em sua execução, exigindo do guia de turismo nova (re)organização do roteiro. Analisando o roteiro através da complexidade, é possível identificar a desordem e reconhecer os prováveis imprevistos, o que contribui para lidar com mais facilidade com as incertezas que o habitam. Soma-se a este jogo dialético de contraposição e rejeição sua intangibilidade, que faz dele um serviço que é refém das circunstâncias que pairam sobre sua execução e organização. A desordem surge das incertezas imanentes ao turismo enquanto fenômeno e atividade, já sua organização é fruto da superação dessas incertezas/imprevistos no restabelecimento da ordem, motivo pelo qual estes conceitos se tornam complementares.
O modelo de roteirização predominante no mercado alude à descrição pormenorizada do itinerário ou à indicação de uma “sequência de atrativos existentes em uma localidade merecedores de serem visitados” (Bahl, 2004, p. 42). Vistos apenas desta forma, os roteiros estão fadados a uma constante desordem, principalmente quando se consideram as dimensões da tecnologia (QR Code presente nos atrativos, playlist das atrações turísticas, consultas ao smartphone sobre dados históricos, previsão do tempo e condições dos itinerários) e do sujeito complexo, que torna o roteiro mais interativo justamente por conta do uso destas tecnologias. Nos roteiros pós-modernos as funções mentais do sujeito passam a ser consideradas em sua execução e tornam-se o centro do processo, minimizando a desordem e fomentando a construção de experiências mais significativas pela maior interação com o espaço físico mediado pelas tecnologias.
O pensar complexo em um roteiro significa tentar compreendê-lo em sua totalidade e demanda lidar com ordem, desordem e organização. Essa nova atitude estimula a vivência das atividades, passando o visitante da condição de observador para a de protagonista, conforme demandam os produtos do pós-turismo (Cisne, 2010). O espaço deixa de ser percorrido simplesmente para ser vencido e começa a ser trilhado por um visitante mais aberto a novas experiências, que explora o uso das tecnologias para uma maior interatividade com esses lugares. O roteiro turístico histórico-cultural pós-moderno é então um itinerário impregnado de simbologias que reportam a emoções e, quando interpretado, leva as pessoas a perceberem esses lugares como referências de memória e identidade.
3. Memória e identidade
A memória, na perspectiva de Pollak (1992), é considerada como um fenômeno social construído coletivamente e submetido a transformações constantes, que transmite a cultura local (herdada e constituída) por meio de acontecimentos vividos socialmente. Três elementos servem de apoio à memória: os acontecimentos vividos, as pessoas e os lugares e são estes os responsáveis pelo estabelecimento dos laços de afetividade entre as pessoas. O autor explica que a memória é seletiva, pois nem todos os fatos ficam registrados e os indivíduos só têm recordações dos momentos que dão importância ou ficaram marcados subjetivamente. Ele alude ainda ao fato de a memória social aproximar-se do pensamento de identidade, afirmando que esta se dá em todos os níveis, colocando a memória como um fenômeno construído individual e coletivamente.
Para Bosi (2004), a memória não deve ter um caráter de restauração do passado, mas constituir-se de uma memória geradora do futuro (memória social, histórica e coletiva). A memória aparece como força subjetiva, profunda e ativa a cada nova história às quais somos apresentados ou quando vivemos a sensação do desconhecido. Segundo a autora, a memória não se tranca em si mesma, ela é compartilhada a todo momento quando seus conteúdos encontram ouvidos atentos e disponíveis ao ato de contar. Já Halbwachs (2006) concebe a memória como um fenômeno inteiramente coletivo, logo o indivíduo isoladamente não tem o controle rememorativo do passado. Ou seja, a memória é constituída por indivíduos em interação ou por grupos sociais, resultando as lembranças individuais desse processo. Portanto, a memória individual não pode ser distanciada das memórias coletivas, uma vez que essas ultrapassam o plano individual. Para ele, as lembranças podem ser reconstruídas ou simuladas, partindo-se da vivência em grupo, criando representações do passado baseadas na percepção de outras pessoas ou naquilo que imaginamos que aconteceu ou ainda internalizando representações de uma memória histórica.
Em Nora (1993), por sua vez, a memória não é totalmente coletiva, nem inteiramente individual, mas o resultado de um entrelaçamento entre estrutura e prática no processo de rememoração. Este autor aprimorou estes opostos numa relação dialética, sintetizando-os no que seria o conceito de lugares de memória. Esses lugares nascem e vivem do sentimento, pois para ele, não há memória espontânea e sim a necessidade de se criar arquivos rememorativos para mantê-las vivas. A memória como base da construção das identidades locais tem nos lugares de memória seu locus de registro identitário, reavivado a cada nova interação. Então, memória e identidade se juntam em narrativas históricas na medida em que ambas são construções discursivas, pautadas por relações de poder que ditam o que lembrar ou esquecer. Por outro lado, a teoria dos sítios simbólicos de pertencimento, sistematizada por Zaoual (2006), esclarece que os sítios são lugares não necessariamente geográficos que guardam relações com seus habitantes e aderentes, conferindo-lhes, tanto ontologia, como cultura e sentido social. São eles os próprios guardiões da memória social, dos saberes e fazeres coletivos, proporcionando à população local um sentido de pertencimento. Finalmente, Gondar (2016) explana que a memória seria o processo de adquirir, armazenar e recuperar informações que foram assimiladas pela mente. A memória social seria a coletivização desse processo, sendo a única condição imutável sua reconstrução constante.
A partir destes autores, percebemos que a eleição dos lugares que remetem à memória buziana implica necessariamente no exercício de lembrar e esquecer, principalmente quando atribuímos um determinado grau de importância a eles, neste caso, o uso turístico. Esses lugares estão conectados de formas distintas à vida cotidiana da população, o que não significa que suas imbricações identitárias sejam fortes ou fracas, mas particularmente adaptadas e/ou atreladas às lembranças afetivas. Este fato reflete-se também na própria identidade buziana, que é extremamente flexível e mediada por diversas culturas, o que nos remete ao conceito de sujeito pós-moderno, cunhado por Stuart Hall. Para ele, falar da formação do sujeito pós-moderno é entender que “a identidade se torna uma ‘celebração móvel’: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (Hall, 2006, p. 12). Este autor defende que o sujeito unificado e estável está se tornando fragmentado, fazendo surgir várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Soma-se a isso o intenso processo de hibridação cultural que Búzios vem sofrendo nas últimas décadas motivado pelos fluxos turísticos.
Em relação à hibridação, Canclini (2011, p. 19), explica que ela resulta dos “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existiam de forma separada se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. Assim, os sujeitos passam a assumir diversas identidades que respondem a momentos específicos e a contextos diversificados (Canclini, 2011). Isso nos leva a crer que “toda declaração identitária, tanto individual quanto coletiva é então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma busca que como um fato” (Agier, 2001, pp.9-10). A identidade cultural é reforçada por Banducci Jr. (2001, p. 19) como “algo móvel, sempre em construção, que vai sendo moldada pelo contato com o outro, através da releitura permanente do universo circundante”. Já para Cuche (2002), a identidade é ao mesmo tempo um fenômeno de inclusão e exclusão, quando identifica o grupo e o distingue dos demais. Assim, a identidade cultural é calcada na distinção entre “nós e eles” e é baseada na diferença cultural.
Portanto, para a formação de uma identidade faz-se necessário que o indivíduo se sinta participante da cultura a qual está inserido. Neste contexto, a cultura enquanto expressão da produção de bens simbólicos define as identidades, fazendo surgir representações capazes de produzir identificação dos sujeitos com o meio ao qual estão inseridos, ou seja, o patrimônio adquire o status de representação. Retomando à Hall (2006, p. 62), ele este considera a representação como “expressões da cultura subjacente de um único povo”, sendo a etnia o termo utilizado por ele para se referir às características culturais partilhadas pelo povo. Em Búzios, essas características contemplam os remanescentes quilombolas e pescadores, onde o poder público e outros entes da sociedade tendem a promover diversos eventos culturais, cujas temáticas buscam aproximar o buziano de sua formação identitária ligada aos povos africanos e caiçaras. Para entender essas representações, somos impelidos a interpretar o patrimônio, o que exige o exercício da releitura, que nesta pesquisa se deu pela educação patrimonial, mediada pelos estudos do meio.
4. Educação patrimonial e estudo do meio
Interpretar um patrimônio é, antes de tudo, “sentir o lugar”, é vivenciá-lo por meio dos sentidos: ouvir barulhos, sentir cheiros, ver e enxergar suas formas; é tateá-lo e, por que não, “degustá-lo”? É também entender sua história, observar para além dele e perceber as várias interações que ocorrem em seu entorno. A experiência da releitura se dá a partir de estímulos, que vão desde uma simples informação até um elaborado estudo do meio. Um indivíduo devidamente estimulado é capaz de entender determinado patrimônio, que antes estava obscurecido pelo desconhecimento e pelo olhar destreinado do observador, mas ao receber estímulos adequados, novas percepções são desveladas, despertando sentimentos de pertencimento naqueles indivíduos sensibilizados/afetados pela experiência. Ou seja, a forma como vivenciamos a informação e, principalmente, como ela nos afeta define nossa experiência de interpretação, fazendo ou não deste bem patrimonial um locus de memória. Os aspectos da memória individual e coletiva que permeiam determinado patrimônio criam mecanismos de interpretação e releitura a partir da informação recebida, da interação física e das relações que se estabelecem nele, fortalecendo a identificação dessas pessoas para com ele. O patrimônio engloba significados e neste contexto torna-se um estimulador de memórias, justamente por se tratar de um local privilegiado onde estas adquirem materialidade. Porém, o olhar desatendo desatento pode não captar em sua plenitude muitos dos aspectos histórico-culturais de um determinado patrimônio, o que sugere a necessidade de se criar mecanismos para aguçar sua percepção. Ao educar os indivíduos para entender a relevância do patrimônio local estamos buscando, através da educação patrimonial,
[...] sensibilizar as comunidades sobre a importância de preservar a sua memória. E mais que isso, busca-se gerar uma reflexão sobre as memórias dos diferentes grupos sociais, de modo que se perceba que patrimônio não é somente o monumento belo e notável que fala do passado de algumas elites, mas que patrimônio é, outrossim, todo símbolo de memória coletiva (Cerqueira, 2005, p. 100).
A interpretação e educação patrimonial evidenciadas pelas relações entre os indivíduos e o patrimônio podem abrir precedentes para a criação de vínculos de pertencimento, que podem se reverter em valorização, proteção e respeito à cultura local.
Para viabilizar a educação patrimonial na apropriação dos lugares de memória do buziano, foi utilizado o estudo do meio na execução dos roteiros. Para Oliveira (2006, p. 38), esta metodologia traz em seu escopo “um conjunto de atividades programadas no sentido de promover a compreensão mais direta da realidade socioambiental do aluno por intermédio do trabalho de campo”. Este tipo de atividade se realiza fora da sala de aula, mas tem seu início e término nela (Piza, 1992), num processo composto por etapas como planejamento, visitação de campo e avaliação. Pontuschka (2004, p. 265) endossa que “é justamente o planejamento do estudo do meio que impede sua banalização e o diferencia de um simples passeio de lazer, sem propósitos mais elaborados”. No estudo do meio é possível confrontar a teoria de sala de aula com a prática in loco, prevendo ainda um trabalho de investigação criterioso com leituras anteriores e levantamento de questões a serem investigadas durante a atividade de campo, além dos debates pós-visitação. Nesta relação sujeito-objeto são construídos diálogos a partir das interações com o espaço, cujo mediador é o professor que auxilia seus alunos na compreensão das dinâmicas que o transformam.
A metodologia do estudo do meio foi definida a partir do planejamento das aulas práticas do curso técnico em turismo do CEJOB e se configura nas seguintes fases:
Preparação da visitação - Nesta fase é construído o roteiro a ser aplicado em campo, com preparação dos alunos para sua apresentação. No início da aula é distribuído um questionário semiestruturado (composto por questões objetivas e discursivas), dividido em dois blocos: um com informações pessoais para ajudar a compor o perfil dos alunos e outro para saber seu grau de conhecimento sobre os atrativos que seriam apresentados no roteiro. Por meio da aplicação do “questionário de profundidade do conhecimento”, procurou-se avaliar a relação do aluno com a cidade e o que ele sabia sobre esses atrativos antes da visitação. Após o recolhimento do questionário, cada aluno escolhia um atrativo do roteiro para apresentar no dia da visitação, devendo realizar uma pesquisa aprofundada sobre ele (texto informativo) a ser entregue antes da visitação. Com base neste texto, o aluno faria seu resumo de apresentação com as informações que julgasse necessárias (texto de locução do guia de turismo), devendo memorizá-las (preferencialmente) para apresentação diante do atrativo.
No tocante à elaboração destes textos, memória e identidade se tornam construções discursivas na apresentação dos atrativos turísticos, pois o aluno ao narrar a história, mobiliza não apenas uma gama de dados históricos e geográficos, mas condiciona a eles suas próprias experiências ao escolher o que lembrar e esquecer. O enunciado passa a ser constituído por um conjunto de informações a que ele se refere, “seja para repeti-las, seja para modificá-las ou adaptá-las, seja para se opor a elas, seja para falar de cada uma delas; não há enunciado que, de uma forma ou de outra, não reatualize outros enunciados” (Foucault, 2008, p. 111). O aluno ao buscar as informações coloca em ação tudo aquilo que o constitui como pessoa na sua construção textual, reorganizando essas informações conforme suas vivências e dando ênfase à narrativa que pessoalmente julga mais significativa.
Atividade de campo – Caracteriza-se pela execução do roteiro e é marcada pela mudança do ambiente escolar para o ambiente “extramuros”. Nesta fase os alunos têm contato direto com os atrativos, interagindo com eles durante suas apresentações, sendo que a intervenção do professor é mínima, limitando-se ao direcionamento do roteiro ou complementando alguma informação. No decorrer do roteiro o aluno vai preenchendo seu relatório de visitação, que tem como objetivo a descrição pormenorizada dos fatos e acontecimentos sob sua perspectiva, podendo emitir sugestões e opiniões. Essa atitude valoriza a observação crítica das técnicas de locução e execução dos roteiros e serve principalmente para balizar as discussões em sala de aula. É nela também que os alunos vivenciam mais intensamente a interação com seus pares e os atrativos, permitindo uma construção pessoal que transcende o fim da atividade. Afinal, eles passam a conhecer sua história, seu atual estado de conservação e suas condições de acessibilidade, adquirindo uma visão mais apurada destes bens patrimoniais, bem como o papel que representam nos lugares turísticos e qual relação estabelecem com moradores e visitantes.
Encontro de pós-visitação – Ocorre na aula posterior à execução do roteiro. Seu intuito é debater as discrepâncias entre o que foi planejado e o que realmente aconteceu, entre o que foi estudado e o que foi encontrado. É o momento em que o roteiro (previamente organizado) passa a ser analisado a partir dos fatos ocorridos, de modo a se buscar o entendimento das tomadas de decisão para sanar tais problemas. Nesta fase, identificamos o estudo de grupo focal, o qual o professor é o moderador que formula as perguntas com base nos relatórios de visitação. Através dele “é possível a troca de ideias, experiências, sentimentos e pontos de vista, proporcionando a reflexão e, até mesmo, a mudança de opinião ou de fundamentação da posição inicial” (Prates et al, 2015, p. 248). Os dados obtidos permitiram conhecer opiniões, críticas e expectativas dos alunos frente aos roteiros, revelando suas percepções acerca dos lugares visitados.
A análise e interpretação dos dados permitiram entender a realidade de cinco turmas no período de 2015 a 2017, com um total de 61 alunos, todos moradores de Búzios e matriculados no módulo IV (Guia de turismo) do Curso Técnico em Turismo do CEJOB, o que possibilitou uma visão geral e individualizada de suas relações com o patrimônio local. Os dados foram agrupados em dois blocos: no primeiro, foram reunidas variáveis como tempo de residência em Búzios, procedência, idade e profissão, para se conhecer o perfil do aluno que ingressava no curso. A análise destes dados ajudou na compreensão da familiaridade ou estranhamento destes com o patrimônio local, principalmente quando sua atividade profissional não estava atrelada ao turismo. No segundo bloco, os dados foram agrupados para fornecer uma visão geral da relevância das aulas práticas no fortalecimento de sua identidade com esses lugares. Para tal, foram reunidas perguntas sobre os itinerários, os nomes dos lugares, suas histórias e o grau de conhecimento sobre os atrativos turísticos que compunham tais roteiros.
5. Resultados e discussões
A pesquisa revelou que a grande maioria dos alunos (95 %) veio morar em Búzios; 6,4 % eram recém-chegados e moravam no balneário há menos de seis meses; outros 20,5 % residiam na cidade entre 6 meses e um ano; 46,5 % entre um a dois anos e 26,6 % fixaram residência no balneário há mais de dois anos. Quanto à procedência dos alunos, 57 % eram de brasileiros, sendo apenas 5 % nascidos em Búzios e 43 % de estrangeiros. Do total nacional, 56 % vieram da Região Sudeste, o que pode ser explicado pela proximidade geográfica do Rio de Janeiro com os estados de Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo e dos próprios moradores do estado fluminense, provenientes de outras cidades. Em seguida, aparece a Região Nordeste, com 24 %; Região Sul (11 %); Centro-Oeste (6 %) e Norte com 3 %. Entre os alunos de procedência estrangeira, 72 % eram oriundos dos países da América do Sul, sendo 78 % de argentinos, 15 % de uruguaios, 5 % de chilenos e 2 % de peruanos. Os alunos de origem europeia somaram 25 % e aqueles procedentes da América do Norte, 3 %. Estes dados se mostraram bastante relevantes para entender as questões que permeiam as memórias e identidades culturais que se formam no balneário, afinal parte considerável de sua população é constituída por migrantes brasileiros e estrangeiros e que estão há pouco tempo na cidade. Da mesma forma, podem explicar o elevado número de alunos que sequer sabiam da existência de alguns bens patrimoniais, notadamente, aqueles que se encontravam fora da área turística.
A idade dos alunos foi categorizada por ser importante variável para o entendimento dos movimentos migratórios no balneário. Entre os alunos mais jovens (18 a 29 anos), a alegação para morar na cidade foi a busca por emprego. Esta justificativa também estava presente entre aqueles na faixa etária dos 30 aos 39 anos, porém, representava ainda o desafio do recomeço, já que buscavam por novas oportunidades profissionais e pessoais em outro lugar. Entre os alunos com idade superior a 40 anos, o principal fator motivacional foi a qualidade de vida em Búzios. Quanto à atividade profissional que exerciam, 53% atuavam diretamente na área do turismo, 17 % em áreas afins, 10 % em áreas totalmente distintas; 15 % não trabalhavam e 5% estavam aposentados. Os alunos que atuavam diretamente na atividade turística apresentaram os melhores índices de conhecimento sobre os atrativos dos roteiros, no entanto, assim como os demais, desconheciam aqueles que não estavam atrelados ao turismo.
Isto denota que os alunos conheciam a localização dos bens patrimoniais que se encontravam próximos à área central/comercial da cidade ou compunham os roteiros turísticos. Por outro lado, demonstraram um conhecimento bastante superficial sobre suas histórias, não conseguindo estabelecer conexões entre eles e os fatos ocorridos no município, o que é preocupante para um guia de turismo local. Em alguns casos o aluno alegava conhecer o atrativo, mas não conseguia associar seu nome ao lugar, o que poderia indicar uma falta de sinalização turística nestes bens patrimoniais.
A construção dos roteiros incluindo alguns bens patrimoniais da cidade que não estavam ligados diretamente ao turismo ou que não se encontravam na área turística, revelou um desconhecimento generalizado até mesmo entre os alunos que moravam perto deles. Isso se explica pelo fato dos roteiros comerciais se concentrarem na parte peninsular do município, privilegiando praias e atrativos próximos à área central/comercial e turística da cidade. Essa realidade pode ser verificada na figura 1, onde são apresentados os bens patrimoniais mais conhecidos dos alunos e que coincidem com os atrativos localizados nas áreas supracitadas. Por essa razão, a maioria dos alunos conseguia localizar e identificar os atrativos, apesar de desconhecer sua história.
Pelo gráfico, podemos observar que, apesar da importância que o turismo religioso tem alcançado em Búzios, apenas 11% conheciam a história da Capela de Nossa Senhora Desatadora dos Nós, e 20% a história da Igreja de Sant’Anna. E é justamente pela religião que se pode explicar o pouco interesse nestes templos, pois se percebe entre os alunos não-católicos uma grande resistência em apresentar este tipo de atrativo, e em alguns casos, sequer querem adentrá-los para visitação. Notou-se entre estes um certo descaso por sua história e pelas obras de arte sacra, principalmente as imagens de santos, denotando comportamentos de intolerância religiosa que não condizem com a profissão de guia de turismo.
Quanto às causas do desconhecimento acerca da Casa do Sino e Solar do Peixe Vivo, estas parecem estar associadas à desatenção para com esses atrativos, pois ambos possuem uma arquitetura bastante peculiar e são sinalizados (mesmo que discretamente) com placas indicativas. Além disso, estão localizados na orla da Praia da Armação, local de intenso trânsito de pessoas e próximos ao CEJOB. A Orla Bardot abriga o píer de atracação das escunas, o píer do “estaleiro” e o píer de atracação dos ferry boats (tenders) dos navios de cruzeiro. Nela se encontram as esculturas de Brigitte Bardot, famosa atriz francesa que visitou o balneário na década de 1960 e que dá nome à orla, do presidente Juscelino Kubitschek e dos Três Pescadores, criada para homenagear a tradição pesqueira local, além de famosos restaurantes e lojas de grife. A Rua das Pedras é outro destaque entre os lugares mais conhecidos de Búzios. Nela encontram-se a Igreja Assembleia de Deus, a casa onde Brigitte Bardot ficou hospedada, o antigo armazém da cidade e a Colônia dos Pescadores, além de ser ponto de encontro de turistas e moradores; porém, surpreendeu o grande número de alunos que desconheciam sua história. A Colônia dos Pescadores, de arquitetura singela, figurou entre os atrativos menos conhecidos, apesar de sua relevância histórica para a cidade. Muitos alunos desconheciam sua localização, que, mesmo situada em uma rua tão famosa, passava despercebida pelas pessoas, talvez por se encontrar recuada da rua ou por abrigar uma agência de turismo, cujas placas comerciais encobriam o nome do lugar, ou por estar descaracterizada de sua função precípua de entreposto pesqueiro.
O Espaço Gastronômico do Porto da Barra é resultado de um empreendimento que revitalizou o mangue, o píer e a orla da praia de Manguinhos, ganhando fama como local de boa comida e compras de artigos de luxo. Na última década passou a integrar os roteiros gastronômicos da cidade, o que contribuiu para se tornar muito conhecido entre os alunos, até porque alguns deles trabalham neste espaço. A mansão de Veraneio de Luis Honold[3] também figura entre os atrativos menos conhecidos (25 %), porém, trata-se de um caso atípico, pois eles conheciam sua localização, mas não associavam seu nome ao lugar e somente se davam conta disso quando informados de que a mansão era a “Casa da Azeda”, como é popularmente conhecida. Cientes desta informação, seu índice de conhecimento aproxima-se ao atribuído à Praia da Azeda (95 %), evidenciando a desinformação referente aos nomes oficiais desses bens junto à população. Em contrapartida, as Praias da Ferradura e Geribá são extremamente populares e muito conhecidas entre os alunos, justamente por se caracterizarem como lugares de encontro dos recém-chegados a Búzios.
A figura 2 apresenta os bens patrimoniais menos conhecidos dos alunos e que não são trabalhados nos roteiros comerciais, mas integram as aulas práticas do curso dada a sua relevância histórico-cultural para a cidade. O desconhecimento destes atrativos parece apontar para o fato deles não integrarem os roteiros das agências de turismo local, ou por se situarem fora dos itinerários cotidianos dos alunos, ou por estarem localizados muito distantes da área turística e comercial da cidade, ou ainda, por não serem divulgados nas mídias da cidade, salvo raras exceções. Da mesma forma, não possuem adequada sinalização turística e apresentam graves problemas de acessibilidade, como nos casos do Mirante da Ferradura, da Ponta do Pai Vitório e do Mangue de Pedra.
A análise deste gráfico evidenciou que os atrativos localizados no bairro da Rasa, como Mangue de Pedra, Ponta do Pai Vitório, Praia da Gorda e a Trilha da Gorda/Mangue de Pedra, foram os menos conhecidos dos alunos. Contudo, com a recriação da Rota Escravista Buziana pelos quilombos de Rasa e Baía Formosa, estes atrativos começaram a ser conhecidos por moradores e turistas. Ainda assim eram desconhecidos por 70 % dos alunos, inclusive, daqueles que moravam no mesmo bairro onde estes estão localizados. Outro atrativo da rota escravista é a Fazenda Campos Novos que pertence a Cabo Frio, mas está atrelada historicamente ao período da escravidão na região e ao desenvolvimento comercial de Búzios no início do século XX, quando pertenceu a Eugenne Honold. Os dados sobre a fazenda revelaram que cerca de 60 % dos alunos nunca tinham ouvido falar nela e pouco mais de 30 % sabiam sua localização, o que pode ser explicado pela distância além dos limites de Búzios, na Rodovia Amaral Peixoto (RJ 106, km 124).
O desconhecimento do patrimônio buziano não é privilégio apenas dos atrativos distantes da área turística e central da cidade, o Poço da Bomba (a 800 m da Rua das Pedras) e que foi um dos principais pontos de abastecimento de água potável em meados do século XX, foi local de lavagem de roupa e ponto de encontros sociais da época. Todavia, 72% dos alunos o desconheciam e apenas 5 % conheciam sua história. O que não é diferente do Cais de Pedra, na Praia de Manguinhos, muito relevante no período da escravatura em Búzios, mas desconhecido por 66 % dos alunos, sendo que 27 % sabiam sua localização, mas pensavam se tratar de ruínas de um quebra-mar e somente 7 % conheciam sua história e localização.
Já o Mirante da Ferradura e a Casa da Colônia dos Pescadores completam a lista desses locais menos conhecidos dos alunos (ambos 90 %). No caso do Mirante, apesar de se localizar entre as praias da Ferradura e Foca, muitos alunos sequer tinham noção de sua existência, a causa parece estar na dificuldade de acesso, na pouca divulgação, na ausência de sinalização turística e na falta de infraestrutura adequada para receber visitantes. Mas o que mais impressionou foi o desconhecimento quanto à Casa da Colônia, que fica ao lado do Solar do Peixe Vivo e é uma construção típica das casas dos pescadores do final de século XIX. Trata-se de um imóvel rústico pintado em azul e branco, com floreiras e beirais de janelas em amarelo, impossível de passar despercebido até mesmo pelos transeuntes mais desatentos.
Sintetizando os principais resultados encontrados nesse estudo, é possível destacar como relevantes e bastante preocupantes alguns comportamentos de intolerância religiosa, o que não condiz com a profissão de guia de turismo. Outro ponto importante foi a falta de sinalização turística, que se mostrou um entrave tanto na orientação dos acessos como na identificação dos atrativos, contribuindo para o seu desconhecimento. Já a mansão de Veraneio de Luís Honold, localizada na Praia da Azeda, chamou a atenção por ser conhecida informalmente como “Casa da Azeda”, mas desconhecida pelo seu nome oficial (Mansão de Veraneio de Luís Honold), denotando mais uma vez a importância da sinalização turística. Por outro lado, o excesso de placas publicitárias dos comércios dificultou bastante a identificação de atrativos como a Colônia dos Pescadores na Rua das Pedras. Já os atrativos localizados fora da área turística de Búzios, especialmente no bairro da Rasa, como Mangue de Pedra, Ponta do Pai Vitório, Praia da Gorda e a Fazenda Campos Novos eram pouco conhecidos dos alunos. Tal fato é curioso tendo em vista que muitos dos alunos cresceram e moraram naquele bairro. Mas isso não representa uma unanimidade: atrativos localizados na área central de Búzios como o Poço da Bomba e a Casa da Colônia dos Pescadores, assim como o Cais de Pedra, na Praia de Manguinhos se mostraram igualmente desconhecidos. Tudo isso demonstrou que a pouca familiaridade dos alunos com os atrativos turísticos da cidade reflete problemas associados à pouca divulgação, ausência de sinalização, falta de infraestrutura adequada para receber visitantes e, em alguns casos, a dificuldade de acesso a esses lugares.
Procedendo a uma análise mais reflexiva desses resultados, é possível retomar alguns aspectos teóricos que marcam a pesquisa. No que se refere ao estudo do meio, este se caracteriza como uma forma de aproximar os moradores de seu patrimônio natural e cultural. Isso se dá através dessa metodologia cujo processo de ensino-aprendizagem é capaz de levá-los a valorizar as memórias e histórias locais, reforçando assim sua identidade com o lugar. Essa ideia se alinha ao pensamento de Gomes & Haureko (2015, p. 245), ao afirmarem que
[...] o processo de ensino-aprendizagem sobre o patrimônio deve tratar a população como agente histórico-social e como produtora de cultura e, para tanto, deve valorizar os artesanatos locais, os costumes tradicionais, as expressões de linguagem regional, a culinária, as festas, os modos de viver e sentir das diferentes etnias.
Portanto, o que se tentou mostrar nessa pesquisa foi que o estudo do meio se caracteriza como uma metodologia de ensino que, de acordo com Pimentel (2020, p. 1539), “produz condições didático-pedagógicas que favorecem maior articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão universitária”, o que potencializa novas criações.
Essa metodologia atua na maneira de ensinar e aprender ao aliar teoria e prática, bem como por reforçar memórias, identidades e as relações de sociabilidade que se estabelecem ao longo das atividades, resultando em novos conhecimentos. Ao pensar em novos modos de criar vínculos com os atrativos turísticos, sejam eles mais ou menos conhecidos dos moradores e/ou turistas, buscamos o conhecimento técnico, mas também a promoção do patrimônio local. Podemos pensar em um tipo de ativação patrimonial, que para Zanirato (2018, p. 12) se caracteriza como “uma ação do Estado e de agentes relacionados às instâncias governamentais, que têm o poder de institucionalizar o patrimônio”. Tal ideia se adequa muito bem ao papel do CEJOB nessa empreitada de ensinar. Afinal, o que se pretende é fazer dessa experiência uma forma de valorizar
[...] o lugar como identidade e elemento que possa provocar elos entre fatos construídos e edificados, imaginados ou simplesmente projetados, intencionados pelos seus agentes no tempo e espaço, onde uma cidade se ergue na vontade despreocupada de continuidade, sendo esta situação quase uma lógica do fazer, deverá ser comprovada ou levantada como indagação (Rother Junior, 2016, p. 12)
Por fim, é importante lembrar que o estudo do meio possibilita a aproximação do aluno com o meio ambiente externo à escola e jamais deve ser visto como uma metodologia que promova a oposição dos lugares à sala de aula. Assim, o modo de fazer apresentado nesse estudo busca justamente apresentar o estudo do meio como uma forma de ensino, que alia teoria e prática na promoção de uma educação patrimonial, que desperte um senso de preservação dos lugares de memória e de convivência desses alunos.
O presente estudo lança luz ainda sobre a possibilidade de utilização da metodologia do estudo do meio na aquisição do conhecimento técnico do turismo, uma vez que na literatura consultada, a maioria dos estudos estava voltada ao ensino da geografia, da história ou das ciências no ensino fundamental I e II e no ensino médio, bem como em alguns raros casos no ensino superior, mas não no ensino técnico do turismo. Essa situação dificultou bastante estabelecer vínculos ou traçar parâmetros de comparação desta pesquisa com outras similares, até mesmo contrapor a experiência descrita, o que sinaliza para mais estudos sobre essa temática, sobretudo, no ensino técnico do turismo.
6. Considerações finais
A questão da identidade buziana não se refere somente aos moradores nascidos na cidade, mas também àqueles que escolheram Búzios para viver. Essas pessoas ao chegarem à cidade trazem consigo uma forte referência de memória de seus locais de origem. São brasileiros de diversas cidades e estrangeiros dos mais variados países que passam a integrar a população local. Este processo de readaptação causa uma espécie de crise de identidade diante dos novos hábitos e costumes do lugar, por vezes, muito diferentes dos seus. O buziano também está sujeito a ele, pois se encontra em constante interação com essas novas identidades, seja no trato com o turista, seja pelas relações que se estabelecem com aqueles que vieram morar ou trabalhar na cidade. Tudo isso faz dessa convivência um intenso processo de assimilação e hibridação cultural que influencia fortemente sua identidade.
É sabido que a relação entre o homem e seu território é permeada por valores, crenças e costumes, onde passado e presente tornam-se aliados da história e da cultura na construção das memórias e identidades. Esta permanente reconstrução identitária reflete o novo modo de se identificar como buziano, já que ao se reterritorializarem passam a viver conforme os hábitos e costumes do lugar. Isso ocorre de modo mais contundente com aqueles que se desterritorializam por motivos diversos de seus locais de origem e se reterritorializam nos lugares turísticos, estabelecendo com eles novas relações de pertencimento. Particularmente esses lugares tornam-se um campo de identidades múltiplas, expressas de diferentes maneiras no bojo de suas práticas culturais, afinal cada indivíduo carrega consigo traços e vínculos identitários que não se perdem com facilidade. Os aspectos da memória e identidade buziana espelham essa realidade, preservando muitos de seus produtos culturais, mas também incorporando outros tantos advindos desses novos moradores. Entender essa dinâmica leva à compreensão de outro elemento adicional nessa relação que é o visitante, um ente que não se caracteriza nem como autóctone nem como morador acolhido pela cidade, mas que igualmente influencia em sua formação identitária e no modo de vida desses moradores.
Quando o Curso Técnico em Turismo do CEJOB empreende esforços para aproximar os alunos dos lugares de memória do buziano, transforma os estudos do meio em uma forma de contribuir para o fortalecimento de seus laços identitários com a cidade. Essas aulas cumprem assim um importante papel que extrapola as técnicas de guiamento, pois viabilizam que tais identidades se reafirmem pela intensificação do contato entre os alunos e patrimônio local.
Assim, podemos concluir que esta pesquisa cumpriu seus objetivos ao promover o estreitamento dos laços de pertencimento e identificação dos alunos com os lugares de memória do buziano. Não por acaso foram estimulados a pesquisar estes bens patrimoniais, apresentar suas histórias e a reconhecer sua relevância através da educação patrimonial, já que puderam interagir e interpretá-los pelos estudos do meio, passando a valorizá-los como elementos representativos da cultura local.
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Notas