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Mulheres negras viajantes: experiências e relatos de um grupo de Facebook
Traveling black women: experiences and reports from a Facebook group
Mujeres negras viajeras: experiencias y reportes de un grupo de Facebook
Caderno Virtual de Turismo, vol. 22, núm. 1, 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Artigos originais



Recepción: 20 Diciembre 2021

Aprobación: 30 Marzo 2022

DOI: https://doi.org/10.18472/cvt.22n1.2022.1987

Resumo: Há poucas pesquisas no Brasil sobre experiências de mulheres negras viajantes, de modo a invisivibilizar um debate interseccional no setor. A partir desta realidade, o artigo tem o objetivo de investigar como a questão racial atravessa as experiências turísticas de mulheres negras. A pesquisa é resultante de uma netnografia realizada no grupo Viajantes Negros, do Facebook, composto por 3.720 pessoas, que foi acompanhado de 30 de janeiro a 15 de março de 2021. As 109 postagens realizadas no período foram categorizadas usando a análise temática e evidenciaram que as mulheres ali inseridas entendem a importância do corpo negro viajante ocupar todos os espaços – de maneira a mostrar que elas são turistas e não apenas trabalhadoras do setor –, contudo, foi possível notar um interesse maior por roteiros afrodiaspóricos. A pesquisa revelou ainda que o grupo é visto como um espaço seguro para troca de informações, que apenas mulheres negras compreendem – como dicas de locais onde o racismo é menos explícito, ou ainda experiências vinculadas a um suposto exotismo do corpo feminino negro. Como consideração final, aponta a necessidade de dar atenção ao movimento de viajantes negros do Brasil.

Palavras-chave: Mulheres negras, Viajantes, Netnografia.

Abstract: There are few studies in Brazil on the experiences of traveling black women, in order to invisiblize an intersectional debate in the sector. Based on this reality, the article aims to investigate how the racial issue crosses the tourist experiences of black women. The research is the result of a netnography carried out in the Viajantes Negros group, on Facebook, composed of 3.720 people, which was followed from January 30 to March 15, 2021. The 109 posts made in the period were categorized using thematic analysis and showed that the women included there understand the importance of the traveling black body occupying all spaces – in order to show that they are tourists and not just workers in the sector –, however, it was possible to notice a greater interest in aphrodiasporic itineraries. The research also revealed that the group is seen as a safe space for exchanging information that only black women understand – such as tips on places where racism is less explicit, or even experiences linked to a supposed exoticism of the black female body. As a final consideration, it points out the need to pay attention to the movement of black travelers in Brazil.

Keywords: Black women, Travelers, Netnography.

Resumen: Existe poca investigación en Brasil sobre las experiencias de las mujeres negras viajeras, invisibilizando un debate interseccional en el sector. A partir de esta realidad, el artículo tiene objetivo investigar cómo la cuestión racial atraviesa las experiencias turísticas de las mujeres negras. La investigación es el resultado de una netnografía en el grupo Viajantes Negros, en Facebook, compuesto por 3.720 personas, que fue seguida del 30 de enero al 15 de marzo de 2021. Las 109 publicaciones realizadas fueron categorizadas mediante análisis temático y mostraron que las mujeres comprenden la importancia que tiene el cuerpo negro viajero ocupando todos los espacios – para demostrar que son turistas y no solo trabajadoras – sin embargo, se pudo notar un mayor interés por las rutas afrodiaspóricas. La investigación reveló que el grupo es visto como un espacio seguro para intercambiar información, que solo las mujeres negras entienden, como consejos sobre lugares donde el racismo es menos explícito, o incluso experiencias vinculadas a un supuesto exotismo del cuerpo femenino negro. Como consideración final, señala la necesidad de dar atención al movimiento de viajeros negros en Brasil.

Palabras clave: Mujeres negras, Viajeras, Netnografía.

1. Introdução

As experiências turísticas de mulheres negras viajantes são pouco analisadas pela academia em turismo no Brasil e apenas uma pesquisa realizada no XVII Seminário da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Turismo de 2020 tratou do assunto (Santos & Sá, 2020), tendo enfoque no porquê da invisibilidade. Para dar mais protagonismo ao tópico e voz às mulheres negras que, embora “esquecidas”, fazem turismo, o presente trabalho surge, tendo como campo empírico um site de rede social e, como método de coleta de dados, a netnografia. A pesquisa está vinculada ao projeto Mulheres que viajam sozinhas: um estudo de gênero, raça e sexualidade no turismo, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).

A netnografia, que consiste em uma etnografia em redes sociais, foi realizada de 30 de janeiro a 15 de março de 2021. A proposta inicial envolvia pesquisa em grupos de mulheres viajantes com muitas participantes (como: Mulheres que viajam sozinhas ou ainda Mulheres que viajam e mochileiras, ambos do Facebook, e com mais de 100 mil participantes). Porém, o acompanhamento das discussões daqueles espaços mostrou que não havia, naqueles ambientes, debates que levassem em conta o que é ser uma mulher negra viajante, impossibilitando qualquer análise nesse sentido. Fez-se então uma busca por outros grupos de viagens que tivessem um debate racial[1], levando a dois resultados, sendo um grupo apenas feminino e outro misto. Uma nova observação mostrou que apenas o grupo misto se fazia “ativo”, com postagens e discussões constantes, entretanto, compreendendo a importância da temática e a ausência do debate em espaços parecidos, a pesquisa se fez, com ênfase nas experiências ali relatadas por mulheres. Nesse sentido, o objetivo geral do trabalho é investigar como a questão racial atravessa as experiências turísticas de mulheres negras, tendo como objeto de estudo o grupo Viajantes Negros, do Facebook.

As inquietações que problematizam o estudo envolvem compreender: que debates são travados em grupos de viajantes negros? Quais os países/cidades mais procurados/recomendados? Estes têm como atrativo a cultura afrodiaspórica? Há um negacionismo do racismo nestes ambientes? As mulheres negras relatam exotização de seus corpos nos espaços turísticos? Elas têm medo de viajar sozinhas? Relatam hábitos específicos por serem mulheres negras?

Com o intuito de contribuir para o debate sobre a mobilização de viajantes negros no Brasil, o presente trabalho surge e está organizado da seguinte maneira: após esta introdução, a fundamentação teórica é apresentada, trazendo uma literatura atual sobre as pesquisas já realizadas sobre viajantes negros, dando destaque ao movimento impulsionado pelas redes sociais. Posteriormente, a construção metodológica da pesquisa é apresentada, explicando melhor sobre a netnografia e seus passos. Em seguida, os resultados são apresentados, acrescidos de reflexões teóricas acerca dos tópicos encontrados. Na conclusão, as considerações que fazem uma análise dos achados do trabalho são reveladas.

2. Referencial teórico

Nos Estados Unidos, atualmente, há um interesse no Black Travel Movement[2] (BTM) – descrito por Benjamin e Dillette (2021) como um novo[3] movimento criado por negros que se apoiam para facilitar viagens seguras ao redor do mundo – e nas Black Travel Tribes[4] – organizações que têm o objetivo de conectar pessoas de ascendência africana e da diáspora africana a viagens e experiências de lazer e turismo. As tribos de viajantes negros nasceram organicamente a partir da necessidade que os afro-americanos sentiram em se verem representados no turismo, criando um espaço de apoio e conexão (Dillette, 2021a).

Em uma escala global, o turismo tem sido tradicionalmente branco, dando pouca atenção às experiências autênticas das minorias raciais e étnicas, reforçando uma invisibilidade dos negros na esfera das viagens (Buzinde et al., 2006). As investigações interessadas no viajante negro são escassas no Brasil (Oliveira, 2021). Fora daqui, pesquisas do início da década de 1990 apontavam poucos estudos empíricos que mencionassem a raça do turista como uma variável importante. Renda, idade e outras, como gênero, nada obstante, sempre eram percebidas na literatura (Philipp, 1994).

Como explicam Stephenson e Hughes (2005), embora os estudos sociológicos e antropológicos do turismo tenham se interessado sobre a importância do turismo na vida das pessoas – analisando fatores intrínsecos e extrínsecos que influenciam padrões de comportamento vinculados ao fazer turismo –, as razões socioculturais e econômicas, que explicam porque os indivíduos podem ser incapazes ou relutantes em viajar para destinos específicos, não foram totalmente exploradas nos principais estudos da área. Análises neste sentido contribuiriam para uma compreensão mais ampla do acesso (ou a falta de) à atividade. Ademais, poucas pesquisas ancoram seus interesses na participação turística a partir da raça, de forma que o tema é subdesenvolvido na atividade (Stephenson & Hughes, 2005). Carter (2008) explica ainda que há uma ideia de incongruência entre os temas raça e racismo[5], lazer e turismo.

Lee e Scott (2017) esclarecem que o comportamento dos turistas afro-americanos nunca foi um tópico que atraiu muitas investigações científicas, a despeito dos gastos financeiros dos viajantes negros serem cada vez mais vultosos (diferentemente do Brasil, nos Estados Unidos há índices que mostram os gastos dos viajantes negros). Os estudos existentes focavam principalmente em realizar um comparativo entre as preferências, motivações e diferenças entre turistas negros e brancos, afirmam os autores.

Até o começo da década de 1990, as pesquisas sobre os viajantes afro-americanos se baseavam em duas teorias para as diferenças percebidas no lazer de brancos e negros: marginalidade e etnicidade. A primeira centra-se nas disparidades de renda e classe entre brancos e negros, vendo os negros diferentes por causa da sua posição econômica “marginal” na sociedade, de modo a não terem recursos para se envolver em “certos tipos de atividades”. Já a da etnicidade diz respeito às características “culturais” dos negros, vendo-os com uma cultura distinta, com atividades de lazer dessemelhantes dos brancos. A explicação de ambas as teorias dominou, por décadas, a discussão sobre a diferença de comportamento no lazer de negros/brancos, quase completamente ignorando questões de preconceito e discriminação. Enquanto o preconceito é reconhecido como uma variante importante em debates sobre educação, emprego e habitação, é geralmente “esquecido” nas discussões de lazer. Investigações mais recentes desafiam ambas as teorias, explicando que o que realmente restringe os afro-americanos em sua busca por lazer é um legado da discriminação racial do passado e ansiedades em relação ao racismo contemporâneo (Carter, 2008; Philipp, 1994).

Carter (2008) menciona que, no que se refere aos recursos econômicos, sempre houve uma disparidade de riqueza entre negros e brancos e, conquanto esta tenha diminuído, as diferenças raciais no comportamento de viagens persistiram. Sobre a pauta da etnicidade, aponta que há um essencialismo em seu argumento, pois estabelece que há algo inato na cultura afro-americana que predisporia os negros a evitarem espaços rurais e selvagens, negligenciando que, até o início do século XX, os afro-americanos viviam nestes espaços. O autor então pergunta: se as teorias etno-culturais econômicas e essencialistas não explicam adequadamente os mecanismos causais que produzem diferenças raciais no comportamento de viagens, então por que meios elas podem ser entendidas? Para ele, o que diferencia as viagens afro-americanas das viagens dos americanos brancos é a forma como ambos veem o espaço. Afro-americanos percebem os locais como racializados, isto é, locais de pessoas brancas nos quais é necessário estar sempre atento. Já os brancos veem os espaços como normais (ou seja, não racializados), o que quer dizer que subconscientemente os percebem como um local de pessoas brancas.

Pesquisas que fogem da dualidade economia versus etnicidade mostram que o turismo das pessoas negras não é limitado em virtude do status econômico, mas sim a partir de ansiedades vinculadas ao medo da discriminação racial durante viagens. Os afro-americanos, quando comparados a pessoas brancas com renda parecida (classe média), tendem a viajar mais em grupo, preenchem mais o tempo de lazer durante as viagens com atividades, fazem menos paradas não planejadas e costumam frequentar cadeias de hotéis e restaurantes que já conhecem, além de visitar mais destinos a partir de recomendações de familiares e amigos (Carter, 2008; Philipp, 1994).

Investigações mais recentes (Dillette et al., 2019; Lee & Scott, 2017) mostram que as atitudes, comportamentos e experiências de viagens ainda estão ligadas a questões de marginalidade, racismo e discriminação. Apesar dessas questões negativas, os viajantes negros passam por uma transformação por meio das viagens (Dillette et al., 2019) e estão contribuindo significativamente para o crescimento econômico do turismo.

Embora os estudos tenham se tornado mais constantes (fora do Brasil), é indispensável perceber as experiências de viagens dos negros e como elas foram e são moldadas pelo passado (Dillette & Benjamin, 2021). Como Peters (2021) explica, os negros permanecem com medo de sofrer racismo enquanto viajam, pois, o turismo é implacavelmente racista e as oportunidades de reparar os danos do racismo advindo da atividade são muitos limitados.

Com o advento da tecnologia e o crescimento do BTM, as pesquisas acadêmicas interessadas no viajante negro estão em produção fora do Brasil, ainda que de maneira incipiente (Benjamin & Dillette, 2021), há poucos trabalhos que investiguem, em especial, a mulher negra viajante, ainda que seja indispensável perceber sua importância no novo cenário, haja vista seu papel de líder neste. Por exemplo, o grupo que deu origem ao atual BTM, Nomadness Travel Tribe, foi criado por uma mulher (Evita Robinson) em 2011 e tem, entre seus membros, 85% de mulheres (Gill, 2019).

É necessário que a interseccionalidade – ao mostrar que raça, classe social, gênero, sexualidade, etnia, nação e idade são características mutuamente construtivas de organização social que moldam as experiências de mulheres negras e as formam (Collins, 2019) – seja também analisada no turismo. Experiências femininas a partir deste viés se tornam importantes por revelarem que o turismo não atinge todas as pessoas da mesma maneira, ou ainda, por problematizar a ausência de pessoas negras na atividade.

As redes sociais on-line têm um papel essencial nesse novo movimento de negros viajantes (Dillette et al., 2019), assim como no movimento Black Lives Matter (Gill, 2019). Nas redes sociais, pessoas marginalizadas compartilham suas experiências, vendo aquele local como um espaço seguro no qual estão livres dos poderes opressores da branquitude e da supremacia branca (Sutherland, 2019). Gill (2019) explica que o novo BTM é o primeiro a surgir na era da mídia digital, e as empreendedoras negras têm usado a tecnologia disponível para criar contranarrativas que desafiam o lugar da mulher negra no mundo (Gill, 2019).

Comunidades de mídia social, como grupos do Facebook, são frequentemente designadas como espaços autônomos pelos membros do grupo e aqueles dedicados à comunidade negra interessada em viagens, normalmente, exigem que os membros se identifiquem como negros e se interessem por viagens. Além disso, utilizam uma linguagem que remete a um lugar seguro, buscando informações com outros viajantes negros, sobre locais em que serão bem-vindos e espaços onde potencialmente há perigo (Sutherland, 2019).

Por fim, ao discutir experiências de mulheres negras relatadas em grupos de negros viajantes no Facebook, é importante lembrar que, enquanto a gentrificação é debatida no turismo desde a década de 1980, pouco se tem falado sobre os espaços racializados no turismo e seus efeitos sobre os viajantes negros. Há uma expectativa que certos corpos pertençam a certos lugares e não a outros e, para as minorias, como os negros, essa expectativa pode levar a uma existência espacialmente limitada e, no caso de viagens a lazer, uma série de evidências sugere que essa é a situação frequente para viajantes afro-americanos (Carter, 2008). Enquanto isso, há pouquíssimas informações e debates sobre as experiências do viajante negro brasileiro e é essa lacuna que o presente artigo tenta ajudar a preencher, dando destaque às experiências femininas.

3. Metodologia

O trabalho tem como metodologia a netnografia, que surge a partir da necessidade da academia em abordar o “novo” espaço que surgia com a internet (Noveli, 2010). A netnografia vem da etnografia, método de pesquisa consolidado nas ciências sociais, uma tradição de investigação iniciada por Franz Boas e teorizada por Malinowski em sua pesquisa junto aos nativos das ilhas Trobriand, publicada no célebre livro Os Argonautas do Pacífico Ocidental.

A netnografia, também chamada de etnografia virtual, etnografia digital, etnografia online, webnografia, ciberantropologia, etnografia em rede, redenografia, usa o ciberespaço como campo de estudo e se populariza em meados de 1990, quando os cientistas começaram a perceber que a internet era mais que um local para troca de informações mediadas por computadores. Com a tecnologia, as pessoas passaram a criar conexões e relacionamentos capazes de fundar um espaço de sociabilidade (Zanini, 2016).

Segundo Kozinets (2014, p. 9), para compreender a sociedade, é necessário seguir as atividades sociais e interações que ocorrem nos meios de comunicação mediados pela tecnologia, sendo a internet um importante caminho. A netnografia, definida pelo autor como “(...) uma forma especializada de etnografia adaptada às contingências específicas dos mundos sociais de hoje mediados por computadores”, foi desenvolvida na área de pesquisa de marketing e consumo, mas vem ganhando adeptos em diferentes áreas do conhecimento, como o turismo, como explicam Gondim et al. (2020). De acordo com os autores, o uso da netnografia em pesquisas na área do turismo está em constante crescimento e evidência, com inúmeras possibilidades de contribuições.

Kozinets (2014) explica que a netnografia é apropriada tanto para o estudo de comunidades virtuais quanto de comunidades e culturas que manifestam interações sociais importantes virtualmente. No caso aqui pesquisado, estuda-se uma comunidade virtual criada na rede social on-line Facebook, denominada Viajantes Negros. Como explicam Recuero et al. (2018), as redes sociais na internet representam um novo e complexo universo de fenômenos comunicativos, sociais e discursivos pois o espaço virtual traz novos elementos e dinâmicas sociais.

Zanini (2016) aponta que os processos de uma pesquisa netnográfica envolvem quatro etapas, a saber: selecionar um projeto etnográfico, desenhar mapas descritivos, coletar e analisar dados e realizar o registro etnográfico. Selecionar o projeto envolve fazer um recorte e escolher um grupo em que se possa focar o estudo. Para essa etapa, as dicas de Sandlin (2007) foram seguidas. Elas apontam que para identificar uma comunidade on-line pesquisável é necessário perceber se a comunidade em questão tem um alto tráfego de postagens, alto número de membros que postam mensagens e se os dados ali postados são importantes para o objeto de estudo. Em princípio, seriam escolhidas duas comunidades, contudo, a verificação que uma delas tinha um baixo índice de postagens e interações fez com que o desenho metodológico fosse refeito, com a escolha de apenas um grupo.

A etapa do desenho dos mapas descritivos diz respeito às respostas das perguntas descritivas que surgem no início da etnografia, dando uma ideia básica do que se está estudando, traçando um panorama da situação das pessoas e do que ocorre no grupo, de modo a criar um mapeamento inicial do local estudado, com mapas sociais (quantidade de perfis, gênero etc.), mapas espaciais (formatos de postagem, interação, descrição do ambiente, tamanho espacial etc.) e mapas temporais (rotinas de postagens, histórico, contexto etc.) (Zanini, 2016). Os mapas do grupo pesquisado serão apresentados no próximo tópico, que traz os resultados do estudo.

A próxima etapa envolve a coleta e análise dos dados. De acordo com Langer e Beckman (2005), a coleta de dados na netnografia envolve copiar diretamente os dados do site da comunidade em questão e observar as interações e os sentidos das comunidades e de seus membros. É necessário um papel de observador, seja ativo ou não (Zanini, 2016). Na pesquisa aqui apresentada, optou-se pela observação não ativa, a fim de influenciar o mínimo possível os dados gerados.

A coleta de dados se deu de 30 de janeiro a 15 de março de 2021 e os dados coletados foram armazenados em planilhas no Excel. Para a análise dos dados foi utilizada a análise temática, na qual se verifica a recorrência das informações coletadas, destacando os assuntos mais abordados, buscando padrões e conexões que levem a um referencial mais amplo (Gaskell, 2008). As categorias foram criadas a partir do conteúdo inicial da postagem e serão mostrados nos resultados.

O último passo, o registro etnográfico, envolve a publicação do que foi encontrado, sendo necessário um debate ético para decidir sobre o que será revelado acerca da identidade do grupo (Zanini, 2016), sendo, no caso da pesquisa analisada, usada a camuflagem mínima – que ocorre quando é informado o nome real da comunidade, porém alterando meios de identificação de seus membros. Neste caso, podem ser usadas citações literais diretas (Zanini, 2016).

4. Resultados e Discussões

Para iniciar os resultados encontrados, primeiramente será delineado o grupo analisado, usando como ferramenta os mapas descritivos explicados por Zanini (2016). O grupo é o Viajantes Negros, da rede social Facebook e, respeitando os preceitos éticos de pesquisa, foi conversado com a administradora sobre a investigação realizada. Acerca dos dados do grupo, a figura 1 mostra as informações levantadas. Como é possível notar, se trata de uma rede sociocentrada, o que significa que possui uma delimitação bem definida (Silva & Stabile, 2016), neste caso, tendo como critério ser um viajante negro. Os temas discutidos são diversos, é um grupo aberto, público e visível. Chama a atenção que a motivação para o grupo existir pois, como revela a figura 1, a ideia é reforçar a imagem do negro como turista, visto que, como os estudos mostram, ele é sempre apresentado como servidor da atividade (Hintze & Júnior, 2012; Oliveira, 2022).


Figura 1
Mapa descritivo do grupo Viajantes Negros, do Facebook
Elaborado pelas autoras

Muitos poderiam perguntar: Qual a necessidade de se criar um grupo de turistas negros? A resposta perpassa o genocídio do povo negro que aconteceu no período da escravidão e que hoje ainda ocorre e se percebe quando se verifica que, a despeito de serem maioria no país (55,8% da população), os negros possuem taxas de analfabetismo mais altas (a taxa de analfabetismo dos brancos é de 3,9% e dos negros de 9,1%) (IBGE, 2019), tem rendimentos piores (enquanto o rendimento médio dos brancos é de R$ 2.814, os negros têm um rendimento médio de R$ 1.570) (Equipe Lupa, 2018) e são maioria entre os assassinados (segundo o Atlas da Violência, a cada 100 pessoas que sofreram homicídio, 75 são negras (IPEA & Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019). Além disso, o fato de o racismo ser negado por 34% da população brasileira (Ghirotto, 2020) também precisa ser levado em consideração. Todos esses fatores juntos resultam em barreiras para que a população negra tenha acesso aos espaços turísticos e ainda para que se sinta confortável nesses espaços. Como descrito no começo do trabalho, nos grupos de mulheres viajantes não há um debate racial que permita às mulheres negras expressarem como é ser uma turista negra.

Como os dados do mapa descritivo (figura 1) revelam, o grupo não é composto apenas por mulheres, todavia, em virtude de ser o único grupo brasileiro do Facebook sobre negros viajantes “ativo”, optou-se por estudá-lo. Neste sentido, será dada ênfase às experiências femininas encontradas ali. O acompanhamento foi realizado do dia 30 de janeiro de 2021 a 15 de março de 2021 e, neste período, foram realizadas 109 postagens. Destas, 58 foram realizadas por mulheres e 51 por homens. Sobre a idade dos participantes do grupo, não há como saber ao certo em que faixa etária estão, mas uma enquete criada pela administradora e respondida por 225 membros teve, em sua maioria (93), pessoas entre 36 a 45 anos, 63 membros assinalaram de 46 a 60 anos, 48 pessoas escolheram de 26 a 35 anos, 12 membros apontaram ter mais de 61 anos e nove entre 18 e 25 anos.

A publicação com maior quantidade de reações assim como a mais compartilhada foram criadas por mulheres. A primeira teve 371 reações (curti, amei, uau) e é composta por uma foto da autora da postagem em Salvador, junto com a frase: “Sempre foi um sonho conhecer a Bahia, depois que subi neste elevador e pisei no solo do Pelourinho, chorei muito, me ajoelhei e beijei o solo sagrado dos ancestrais!”. A postagem mais compartilhada (26 vezes) era de uma matéria do site G1 com o título “Quilombo Kalunga é reconhecido pela ONU como primeiro território no Brasil conservado pela comunidade”.

Há uma discussão frequente no grupo sobre turismo diaspórico[6], aquele produzido, consumido e experienciando por comunidades diaspóricas, que abrange uma variedade de subtipos, como o turismo genealógico, no qual se procuram informações sobre ancestrais mais diretos e o turismo de raízes, inspirado pela busca de um passado mais remoto e muitas vezes mitificado (Pinho, 2018). Salvador, na Bahia, é a meca dos que querem reencontrar “seu passado”, como será visto ao longo do trabalho. Segundo Pinho (2018, p. 118), os turistas que visitam a Bahia atrás de sua história, entendem que suas identidades foram interrompidas pela perda de suas raízes culturais e familiares, sendo importante viajar para “enraizar as suas identidades, tanto nas culturas locais quanto nas relações de parentesco sanguíneo ou simbólico, que essas viagens possibilitam”.

As postagens foram categorizadas conforme o assunto que tratavam, o que pode ser visto no Quadro 1.

Quadro 1
Categorias criadas a partir da netnografia

Elaborado pelas autoras

Como é de se imaginar, em um grupo de viagens, a maioria das publicações eram fotos ou vídeos em atrativos turísticos ou ainda relatos de viagens. Sutherland (2019) explica que, em comunidades de mídias sociais de viajantes negros, há trocas de informações sobre pontos turísticos ao redor do mundo e muitos turistas experientes relatam o que os viajantes negros devem visitar quando viajam.

As fotografias ou vídeos postados no grupo não necessariamente tinham alguma relação com a diáspora africana ou ainda com a África, contudo aqueles com esta vertente tiveram maior repercussão. Por exemplo, na categoria Relato de Viagens, a publicação com maior quantidade de reações era de uma mulher, e contava sobre uma experiência a Cabo Verde e como ela se emocionou pois “parecia um reencontro”. Do mesmo modo, as postagens que mais mobilizaram os participantes do grupo na categoria Foto/vídeo em local turístico, envolviam a diáspora africana pelo mundo e a África do Sul. Dillette (2021b) explica que o turismo de raízes, realizado entre os viajantes negros, envolve uma busca por conexão, identidade e justiça social. É buscando esse reencontro que muitas mulheres negras viajantes do grupo se deslocam.

Gill (2019, p. 405), ao analisar as imagens de influenciadores digitais negros participantes do BTM, entende que as fotografias postadas não se limitam a mostrar belos locais ou projetar um “eu idealizado”. Em vez disso, promovem a ideia de que o “mundo também é nosso”. Então, para os que veem essas imagens e aspiram viajar, observá-las é “ato radical de autodescoberta e uma declaração política”. Na mesma direção, as imagens são aqui analisadas declaram um incentivo para que negros viajem e uma troca de experiência, mostrando que os viajantes negros pertencem a todos os lugares.

A categoria Propaganda, como o próprio nome diz, trazia publicações de publicidade que não necessariamente tinham a ver com empreendedores negros – embora o tema tenha sido abordado em outros momentos, como na solicitação de indicações, outra categoria. Aqui, havia desde solicitação de hostels, locais para visitar e também perguntas voltadas ao turismo afrodiaspórico, como esta: “orientação de viagens para África: países com menor custo, melhor período, hospedagens”.

As postagens categorizadas como outros envolvem discussões de diferentes tópicos – como publicações realizadas pela administradora do grupo referente a um sorteio. Também houve duas postagens que discutiram a questão das viagens a partir do cenário atual da covid-19. Outra categoria diz respeito àqueles membros que, quando entram no grupo, se apresentam aos demais, abrindo uma nova publicação, o que foi realizado nove vezes. A postagem com maior repercussão nesse sentido veio de uma angolana, que teve 357 reações e 78 comentários.

Em duas postagens o tema era viajar só e ambas foram realizadas por mulheres. Entretanto, em outros momentos o tópico também foi abordado, em especial para relatar o medo de mulheres irem a determinados locais. Por exemplo, em uma publicação categorizada como Foto/vídeo em local turístico, no Marrocos, uma participante afirma: “Que tudo!! Eu iria para Marrocos também, mas troquei por medo de ir sozinha”. Em outra postagem de um meme sobre o medo de se perder, foi dito “Eu morro de medo só de imaginar isso... Por isso eu nunca sai do Brasil e nem viajo sozinha". Mais à frente, em uma réplica a um comentário, outra mulher explica: "Meu receio é justamente sobre ser turista mulher".

Nas postagens categorizadas como experiências viajando sozinha, em geral, a maioria dos comentários femininos trazia relatos positivos, com incentivos e dicas para que as pessoas se aventurassem a viajar por si só. Em três comentários, a questão de ser uma mulher negra viajando sozinha foi levantada: “Às vezes bate a insegurança por ser negra e mulher, mas vou insegura do mesmo jeito”; “O desafio do racismo me cansa” e “(...) nós temos que saber que somos dignos para qualquer ambiente primeiro, vem de dentro para fora, e depois disso será conhecida como preta metida. Ninguém para uma mulher quando ela sabe o que quer”.

Sutherland (2019) lembra que comunidades de viajantes negros em mídias sociais são considerados espaços seguros pelos membros do grupo, com trocas de informações sobre locais onde se sabe que serão bem-vindos e onde potencialmente há perigo. No contexto feminino, há ainda o fato de os corpos das mulheres negras serem sempre vistos como disponíveis sexualmente, seja reforçando uma ideia de promiscuidade, que ou mesmo na exotização, além da atenção que muitas vezes essas mulheres não ganham em seus países, situações advindas do racismo (Gill, 2019).

Duas postagens foram categorizadas como Discussão sobre lazer e turismo do povo negro, ambas realizadas por mulheres. Uma falava sobre a importância de contribuir com dicas e “incentivar mais pessoas ao direito de lazer”. A outra narrava dificuldades para que pessoas pobres e negras viajassem. O título da segunda era Sonho de viajar de avião:

(...) Sabíamos que naquela época (2003 e anos anteriores...) era impossível um pobre, negro, periférico ter condições de custear uma passagem para Salvador, BA, pois, pelos nossos serem a maioria e representatividade naquele lugar. (...). Pois bem, passaram muitos anos e, o sonho que era impossível aconteceu! Em uma promoção relâmpago de uma empresa aérea, após um determinado Presidente de a República facilitar para nós pobres, a significância de ter pobres viajando de avião, pois era inacessível, aí foi realizado meu sonho e pude conhecer a Bahia, Salvador!!! (...). Um sonho simples, mas significativo em minha vida.

É fato que há muitas dificuldades na mobilidade de mulheres. A questão financeira é uma delas. Acrescida a essa, tem o peso do patriarcado, que coloca nelas as responsabilidades familiares do cuidado, da casa e dos filhos. Contudo, as adversidades podem ser muito maiores quando se fala de mulheres negras, pois estas recebem menos da metade do que os homens brancos (44,4% menos) (IBGE, 2019), seu nível de ocupação quando se tem filhos (até três anos de idade) é menor que o de mulheres brancas (49,7% para 62,6%) (Folhapress, 2021), ocupam empregos de menor rendimento e prestígio e passam mais tempo realizando serviços domésticos (Calegari, 2018). Todos esses fatores influenciam e dificultam que mulheres negras tenham lazer e turismo.

Houve o compartilhamento de três notícias voltadas ao afroturismo – termo que faz referências às mobilidades turísticas com foco a cultura afro. Uma delas foi a postagem mais compartilhada, anteriormente já comentada. As outras faziam referência ao Pelourinho, em Salvador/BA. No âmbito de discussões e organização de viagens para fazer afroturismo foram categorizadas duas postagens. Uma anunciava: “Que tal organizarmos CARAVANAS PRETAS para alguns QUILOMBOS de nossa ancestralidade pelo Brasil afora?”, ideia bem recebida e comentada por vários participantes, entretanto sem nenhuma data marcada. A outra publicação, feito por uma mulher, perguntava a relação dos membros do grupo com a negritude, indagando se eles viajavam apenas para destinos vinculados à diáspora africana ou se visitavam todos locais. As respostas mostraram que as mulheres negras viajantes entendem a importância de viajar para todos os espaços possíveis, porém reservam um apreço maior para onde a cultura afro é destacada.

Ao buscar locais que trazem a memória de uma diáspora africana, as viajantes negras buscam uma identidade, procurando uma verdade sobre seu passado na expectativa de formar uma conexão mais forte com o continente africano. Essas experiências ganham evidência devido à crescente popularidade das mídias sociais, permitindo que os viajantes negros tenham uma plataforma para compartilhar suas histórias de contranarrativas (Dillette, 2021b). Uma das mulheres do grupo comentou:

Eu visito todo tipo de lugar. Entendo que pessoalmente é importante conhecer lugares que contem a história africana para eu me conhecer mesmo, mas tenho consciência que sou um corpo preto no mundo e é meu dever ocupar todos os espaços.

No mesmo sentido, foi dito que “Eu viajo para onde tenho vontade de desbravar. Se tiver um fator histórico que me agrade, melhor ainda. Agora, quando se trata da Diáspora Africana, eu quero conhecer absolutamente tudo” e ainda que “(...) acho que eu iria pra todos os lugares, mas minha preferência é ir sempre pra locais que acrescentem historicamente ao meu povo”. Outra mulher afirmou que viaja para todos os lugares (Europa, África, Caribe), mas que “(...) não há nada lugar melhor do mundo do que a Guadeloupe (Caribe), Benim e Togo. Falo da África negra e do Caribe negro. É muito bom [estar] em lugares onde não há tensão racial”. Houve muitos comentários, não apenas aqui, acerca da conexão com Salvador. Logo, foi dito que “Salvador realmente é uma cidade em que nossas raízes parecem ser mais fortes, parece que lá as pessoas pretas são mais empoderadas (...)” e ainda “Viajo para qualquer lugar, no Brasil e no mundo, mas Salvador realmente é mágico! Rola muita identidade!!”.

Por fim, a última categoria criada – racismo, mesmo que tenha tido apenas uma publicação, chamou muita atenção, não apenas pelo seu teor, mas também por ter sido a postagem, entre as 109 analisadas, com a maior quantidade de comentários (93). A pergunta ali aventada era: "Que país sentiu menos a presença do racismo?". Ao pensar na história afro-brasileira marcada por preconceito e discriminação, corrobora-se a reflexão de Philipp (1994) sobre como é provável esperar que essa discriminação tenha reflexos no turismo – nas expectativas, preferências e comportamento dos viajantes negros. Logo, discutir sobre países racistas faz parte desse contexto.

No geral, as mulheres mencionaram mais Cuba como um país em que não perceberam racismo e sem nenhum contraditório. Outros países foram citados a partir de experiências positivas e negativas – como França e Alemanha. Enquanto algumas mulheres citaram França como um local em que foram bem acolhidas, foi lido que “nos chamaram de macaca lá” e que “Também não gosto da França não”. Do mesmo modo, enquanto a Alemanha foi citada no polo positivo, foi dito que “já fui perseguida por neonazistas em um mercadinho em Auerbach”, ou ainda “Eu sofri racismo em todas as vezes que fui à Alemanha, todas!”. Houve ainda comentários sobre o exotismo com que corpos femininos negros são vistos na China, em que se pede para tirar fotografias ou mesmo o retrato da pessoa é feito sem autorização. Conforme um relato: “Nos tratam como exótico (na China). Era uma viagem, quando a gente via estavam disfarçando pra tirar foto da gente”.

Sutherland (2019) também aponta que em comunidades de mídia social de viajantes negros estadunidenses, um tema comum é a sensação de estar em exibição, isto é, viajantes mais experientes relatam que é comum em alguns países asiáticos que seja solicitado ser fotografado. Mesmo que algumas pessoas entendam a situação apenas como curiosa a partir da falta de contato daqueles povos com pessoas de pele escura, outros – como os do grupo aqui estudado, revelam ter se sentido como “animais em um zoológico”. A autora também relatou que viajantes negros compartilhavam experiências de cunho racista, de maneira mais frequente, principalmente na Ásia (particularmente no Japão) e na Europa (principalmente na França e Alemanha), corroborando os achados deste trabalho. Dillette et. al. (2009), analisando outra rede social – Twitter – também percebeu como viajantes negros descrevem situações em que estranhos pedem para tocar seus cabelos, suas peles ou tirar uma foto ou vídeo, que foi visto, na maioria das vezes, como uma experiência negativa e revelando uma consciência de ser um corpo viajante negro no mundo.

Houve ainda, nesta postagem, uma discussão sobre falar de racismo, revelando um negacionismo, também presente na sociedade brasileira. Uma mulher comentou que “Esse papo de racismo tá muito CHATO”. Entre os comentários em resposta, apenas um concordou que “a conversa estava boa até essa postagem desagradável e insensível. Também não entendi o porquê está no grupo”. Entretanto, outros membros apontaram que os viajantes negros sofrem racismo e também que, mais chato que a publicação, era “(...) ter que explicar o assunto a vida toda, ter que ser diminuída por defender esse tema a vida toda (...)”.

5. Considerações finais

Os resultados encontrados na pesquisa mostram que se falam de viajantes negros unidos em uma comunidade de “nós por nós”, fazendo parte de um movimento coletivo de viagens para pessoas que entendem o que é ser um corpo negro viajante e como isso o diferencia dos demais turistas. Vê-se essa comunidade como uma forma moderna de resiliência (Dillette et al., 2019), um espaço de troca e suporte no qual experiências positivas são compartilhadas e as negativas servem de informação e auxílio para futuras viagens.

Embora as dores dos atravessamentos do racismo sobre o corpo feminino negro tenham sido percebidas, também foi notado um ambiente de experiências significativas, com uma busca por uma identidade, resultando em uma vontade de afrocentrar suas mobilidades turísticas. Ainda que as mulheres viajantes estudadas tenham consciência da importância de sua representatividade para demarcar espaços turísticos, a procura por locais que levem às “raízes” se faz constante e enche de simbolismo os encontros com lugares de memória afrodiaspóricos.

Sobre os hábitos de viagens encontrados, foi possível notar que no grupo foi discutido sobre discriminação racial, medo do racismo e escolhas de viagens relacionadas à raça, corroborando os achados de Lee e Scott (2017) ao entrevistar turistas afro-americanos. Entretanto, os autores notaram também constantes instruções de segurança a partir da preocupação do racismo, o que não foi sinalizado pelas mulheres negras estudadas na netnografia – o que não quer dizer que o debate sobre o tema não ocorra e diz respeito, talvez, à limitação da pesquisa. Do mesmo modo, os achados de Sutherland (2019), que teve como objeto de estudo grupos de redes sociais de viajantes negros e percebeu que troca de informações visto, moedas e códigos de vestimenta eram constantes – também não foram encontradas, ou mesmo a preocupação frequente com o racismo policial, também percebido pela autora. Em que pesem as diferenças entre os afro-americanos e os afro-brasileiros, essas comparações se fazem importantes, por revelarem como os viajantes negros se comportam e como a raça atravessa as experiências turísticas.

As respostas às perguntas realizadas quando da elaboração do desenho da pesquisa mostram que os debates travados em grupos de negros viajantes são variados, mas que tem um foco na afrocentricidade, valorizando perfis, debates, notícias, etc. que remetam ao tema. Sobre viajar sozinha, foram relatadas experiências positivas e incentivadoras e o fato de ser negra foi apontado, mas não visto como um fator limitante. Ainda que tenha sido dito que corpos femininos negros são exotizados no turismo, poucas experiências nesse sentido foram compartilhadas, embora muitos relatos com nomes de países em que situações de racismo aconteceram foram apontados.

Por fim, entende-se a limitação da pesquisa a partir do tempo de acompanhamento do grupo, do fato dele ser composto por homens e mulheres e por também pelo baixo número de membros frente a outros grupos de viagens. Nesse sentido, sugerem-se, em futuras investigações, acrescentar outras técnicas de coleta de dados – como entrevistas, entrevistas de grupo focal ou ainda outros sites de redes sociais, como o Instagram. É importante que novas investigações percebam o quanto o Brasil está inserido no Black Travel Movement e como as Black Travel Tribes se comportam e se apoiam por aqui.

Referências

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Notas

[1] Raça, biologicamente falando, não existe, é uma construção social. Contudo, para dar fluidez ao texto e ao debate, a palavra será usada.
[2] Em português seria algo como Movimento de Viajantes Negros.
[3] O termo novo se faz necessário em virtude da organização já ocorrida durante os deslocamentos na era Jim Crow, período de maior segregacionismo estadunidense que durou de 1877 a 1964. Os negros que viajavam contavam com o Green Book, livro que circulou inicialmente em Nova Iorque, mas que se expandiu para todo o país de 1936 a 1966, com recomendações sobre locais seguros para se ir, comer, dormir etc. (Sutherland, 2019).
[4] Em português seria algo como Tribos de Viajantes Negros.
[5] Racismo é a dominação sistemática de um grupo étnico por outro, tendo como premissa a categorização do grupo subordinado como inferior (Jenkins, 1997). O racismo é institucional, estrutural e cotidiano, privilegiando sujeitos brancos de modo que os membros de outros grupos racializados ficam em uma desvantagem visível, isto é, fora das estruturas dominantes (Kilomba, 2019).
[6] Se fala aqui em especial da diáspora africana, um fenômeno histórico e social caracterizado pela imigração forçada de homens e mulheres do continente africano para outras regiões do mundo através Oceano Atlântico, marcado pelo encontro e pelas trocas de diversas sociedades e culturas, fosse nos navios negreiros ou nos novos lugares que os sujeitos escravizados encontraram fora da África. Estima-se que doze milhões de africanos foram trazidos às Américas e 40% destes desembarcaram no Brasil. A diáspora não é apenas sinônimo de imigração forçada, diz respeito também a uma redefinição identitária a partir dessa experiência no novo local (Andrade, 2020).


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