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Dar, receber e retribuir: a tríplice obrigação sócioantropológica no turismo rural
Giving, receiving and giving back: the triple socio-anthropological obligation in rural tourism
Dar, recibir y devolver: la triple obligación socio-antropológica en el turismo rural
Dar, receber e retribuir: a tríplice obrigação sócioantropológica no turismo rural
Caderno Virtual de Turismo, vol. 22, núm. 2, 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Recepción: 17 Febrero 2022
Aprobación: 31 Mayo 2022
Resumo: Esta pesquisa buscou compreender se é possível realizar uma leitura do turismo rural na comunidade de Morro Azul, em Três Cachoeiras, Rio Grande do Sul, Brasil, a partir da Lógica da Reciprocidade. O turismo rural é uma prática que vem servindo, em determinadas comunidades, como instrumento para agregar renda às propriedades rurais e para estimular a valorização da cultura e do ambiente local, contribuindo, assim, para melhoria da qualidade de vida dos habitantes destas áreas. Os resultados da pesquisa apontaram a possibilidade de coexistência de duas lógicas socioeconômicas no turismo rural: a lógica do intercâmbio e a lógica da reciprocidade. Esta última é que parece estimular os agricultores a trabalharem em conjunto em prol de um objetivo comum.
Palavras-chave: Turismo Rural, Lógica da Reciprocidade, Hospitalidade.
Abstract: This research sought to understand if it is possible to carry out a reading of rural tourism in the community of Morro Azul, in Três Cachoeiras, Rio Grande do Sul, Brazil, based on the Logic of Reciprocity. Rural tourism is a practice that has been serving, in certain communities, as an instrument to add income to rural properties and to encourage the appreciation of culture and the local environment, thus contributing to improving the quality of life of the inhabitants of these areas. The research results pointed to the possibility of coexistence of two socioeconomic logics in rural tourism: the logic of exchange and the logic of reciprocity. The latter is what seems to encourage farmers to work together towards a common goal.
Keywords: Rural Tourism, Logic of Reciprocity, Hospitality.
Resumen: Esta investigación buscó comprender si es posible realizar una lectura del turismo rural en la comunidad de Morro Azul, en Três Cachoeiras, Rio Grande do Sul, Brasil, a partir de la Lógica de la Reciprocidad. El turismo rural es una práctica que viene sirviendo, en determinadas comunidades, como un instrumento para sumar ingresos a las propiedades rurales y fomentar la apreciación de la cultura y el entorno local, contribuyendo así a mejorar la calidad de vida de los habitantes de estas zonas. Los resultados de la investigación apuntaron a la posibilidad de coexistencia de dos lógicas socioeconómicas en el turismo rural: la lógica del intercambio y la lógica de la reciprocidad. Esto último es lo que parece animar a los agricultores a trabajar juntos hacia un objetivo común.
Palabras clave: Turismo Rural, Lógica de la reciprocidad, Hospitalidad.
1. Introdução
Este artigo apresenta um estudo[1] do turismo rural sob uma perspectiva da reciprocidade em um roteiro turístico na comunidade Vale do Paraíso, município de Três Cachoeiras, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Buscou-se entender as relações de dádiva e de reciprocidade nas práticas de turismo rural e em que medida tais práticas promovem o desenvolvimento da atividade turística nesse espaço.
A principal inquietação empírica deste estudo se deu a partir de algumas pesquisas[2] sobre turismo rural realizadas no Litoral Norte do Estado. Esta região, composta por 23 municípios, possui apenas 1 roteiro de turismo rural certificado por órgãos públicos e que se mantém operante. Em outros municípios aconteceram tentativas, articulações, projetos, mas os roteiros não se desenvolveram, ficando algumas propriedades rurais trabalhando de forma individual ou abandonando o turismo rural.
Desta forma, buscou-se por respostas que permitissem entender o que mantém os agricultores trabalhando, em algumas regiões, de forma conjunta em projetos coletivos e obtendo êxito em processos turísticos rurais e, ainda, contribuindo para processos de desenvolvimento regional, enquanto em outras iniciativas o processo não evolui.
Para elucidar o problema de pesquisa foi necessário realizar leituras que permitiram encontrar algumas respostas iniciais, como algumas pesquisas sobre arranjos produtivos locais, mais direcionadas ao planejamento turístico. Especificamente a tese de Jorge (2009), que faz uma nova leitura sobre os Arranjos Produtivos Locais (APLs) nos roteiros de turismo rural em Colombo (PR) e Conservatória (RJ), mostrou que existem elementos que superam os estabelecidos nas teorias sobre APLs, valores mais simbólicos e subjetivos que não eram mencionados nem analisados em profundidade nestas teorias.
A contribuição de Jorge (2009) se deu, principalmente, no sentido de perceber que a articulação de agricultores em um roteiro turístico parece mostrar que estes atores possuem capacidade de gestão e que estão configurados em um arranjo territorial. No entanto, a expressão “arranjo produtivo local” pareceu um tanto reducionista porque se mostra estritamente vinculada ao termo “produção”, uma vez que tais estudos tenham se originado nos estudos sobre distritos industriais. A precepção empírica era a de que, nos roteiros turísticos ativos, a “produção” até poderia se dar, mas estaria mais vinculada à produção de relações sociais entre visitantes e visitados, de valores afetivos entre os agricultores e de vínculo cultural com o território e entre os moradores.
Seria necessário, então, fazer a leitura de alguns valores simbólicos e subjetivos que existem no meio rural e que são acionados quando os agricultores se envolvem em processos de trabalho com o turismo rural. Este entendimento permeou a pesquisa, percebendo que o trabalho com turismo rural, como bem exposto por Schneider (2006), se dá a partir de relações sociais e produtivas previamente existentes, em uma racionalidade própria que faz com que estas relações sejam mediadas pelo parentesco, pela amizade, pela proximidade e pela reciprocidade. Isto faz com que as práticas de turismo rural não sejam analisadas e compreendidas em sua completude se observadas apenas sob a lógica mercantil. São estas particularidades que mereceriam uma maior atenção.
Este caminho de pesquisa, entretanto, nos levou a temática do desenvolvimento rural sob uma perspectiva antropológica e sociológica, aprofundando a compreensão sobre a existência da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir, tão bem colocada por Mauss (1925, & 2011) e retomada por Temple (1983) e por Sabourin (2009, 2010, & 2011) com a Teoria da Reciprocidade. Com base nestas teorias foi possível obter algumas respostas interessantes.
2. Práticas turísticas no meio rural
Embora seja necessário analisar as condições de emergência das práticas de turismo rural no contexto do turismo moderno, elas, sozinhas, não permitem uma compreensão mais ampla acerca do tema. Estas práticas de turismo estão diretamente vinculadas ao “novo rural” (Graziano da Silva, 1997) e às transformações ocorridas, tanto no campo quanto na cidade, principalmente em função da globalização e da modernização tecnológica.
As últimas três décadas podem ser analisadas como determinantes para estas transformações, uma vez que este período corresponde à liberalização econômica, à globalização e às transformações tecnológicas que se manifestam no meio rural. Isto trouxe consigo alterações nas formas de produção e de consumo, nas formas de trabalho e nas relações sociopolíticas, repercutindo de forma importante na vida dos moradores das áreas rurais. (Carneiro, 1999; Schneider, 2006).
Atualmente, olhar para o meio rural pressupõe encontrar ali atividades econômicas que em um primeiro momento estariam associadas somente ao meio urbano. São atividades não-agrícolas, muitas vezes não vinculadas à agricultura e à pecuária. Muitas destas atividades, embora seculares, não tinham a importância econômica atual, elas existiam como atividades de “fundo de quintal” (Graziano da Silva, Grossi, & Campanhola, 2002), feitas por interesses pessoais ou como pequenos negócios agropecuários (piscicultura, horticultura, floricultura, entre outros) que se transformaram em alternativas de rendas significativas nos anos recentes.
O turismo rural se configura como uma destas atividades não-agrícolas (Elesbão & Teixeira, 2011, p.267) e acaba assumindo diferentes terminologias, sobretudo em função da diversidade cultural, econômica, ambiental e social de cada região (agroturismo, turismo agroecológico, turismo rural).
Estas atividades de turismo rural ocorrem, geralmente, dentro de um roteiro turístico, com percursos organizados para a gestão coletiva. Isto pode estimular o trabalho coletivo, uma vez que, trabalhando de forma organizada estas comunidades acabam desenvolvendo uma maior consciência sobre a importância do papel que desempenham no local e sobre a responsabilidade que possuem em relação ao futuro da comunidade (Ostrom, 2000).
Com toda sua complexidade, a subjetividade de determinadas características do meio rural, já desvelada por autores como Schneider (2006), Ploeg (2011) e Sabourin (2011), merece maior atenção. Além das importantes linhas de pesquisa do desenvolvimento rural que estudam as formas de produção, bem como as características físicas e econômicas das propriedades e das regiões rurais, é importante que se percebam os traços menos objetivos e menos quantificáveis que permeiam as relações, as formas de vida e a compreensão de mundo do habitante rural, principalmente daqueles grupos de trabalham de forma coletiva.
Neste sentido, compreender as práticas sócioantropológicas de dádiva e reciprocidade podem esclarecer alguns aspectos relacionados à hospitalidade no turismo rural e, ainda, contribuir para compreensão da gestão coletiva de roteiros turísticos rurais.
3. Teoria da Reciprocidade
A reciprocidade como conceito vem sendo estudada, principalmente, a partir da identificação da existência da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir, na obra “Ensaio sobre a Dádiva”, do antropólogo Marcel Mauss (2011).
Mauss (2011) percebeu que o ato de receber uma dádiva cria uma obrigação moral em quem recebe e isto faz com que seja necessário retribuir quem a deu. Esta retribuição não necessita estar em conformidade com a primeira dádiva porque o que está em jogo não é tanto o objeto ou o serviço dado, mas o ato de dar, o ato de receber e o ato de retribuir, que estão vinculados de maneira definitiva e formam o que o autor chama de tríplice obrigação.
Na tríplice obrigação se percebe a criação do vínculo social, porque, se o que motiva a retribuição não é o objeto dado, é, então, algo imaterial que entrelaça doador e donatário. “O vínculo de direito, ligação pelas coisas, é uma ligação de almas, porque a própria coisa tem uma alma.” (Mauss, 2011, p. 70). Esta citação expressa a importância atribuída a dádiva recebida justamente porque a dádiva é a expressão do interesse na relação, ela mostra o interesse pelo outro. Isto cria a necessidade de retribuição, de retribuir para que os sentimentos fiquem equilibrados entre as duas partes.
Neste aspecto, por ser a dádiva criadora de vínculo social, não se pode negar a dar ou negar a recebê-la porque isto equivaleria a “declarar guerra” com a outra parte, já que, negando uma dádiva, nega-se a aliança e a comunhão. Temple (2003) fala que o clã, a família ou o hóspede não estão livres para não receber os presentes e a hospitalidade que se dá. Assim, há obrigação moral em receber e em retribuir, porque nenhuma das partes quer “perder sua alma” e seu prestígio somente recebendo.
A riqueza na análise de Mauss (2011) também está na percepção que as sociedades modernas (referindo-se às sociedades dos anos 1925, quando publicou a primeira edição da obra “Ensaio sobre a dádiva”) se dizem evoluídas, mas não percebem que sua atuação social e econômica está relacionada ao passado e nele se constitui. As civilizações antigas mantinham outras formas de compra, de venda e outras regras para determinar seus contratos, regras estas que tinham pouco de econômicas e muito de culturais e de sociais. A existência destes “outros” mercados gerou práticas que ainda são percebidas, hoje, na agricultura familiar.
Assim, pode-se dizer que a sociedade atual ainda mantém na economia, mesmo que minimamente, práticas em que se trocam dádivas, em que a tríplice obrigação se faz presente e é este olhar que pode auxiliar na compreensão do objeto de estudo desta pesquisa.
Atualmente, as publicações do sociólogo Eric Sabourin (2009, 2010, 2011) têm sido utilizadas como referências sobre o tema por apresentar diversas pesquisas sobre as relações de reciprocidade e os valores que estas relações geram em comunidades rurais da América Latina, da Europa, da Oceania e da África[3].
De maneira sucinta, pode-se dizer que a reciprocidade está diretamente relacionada à solidariedade, à preocupação com o outro e à necessidade de se equilibrar uma relação social. Sabourin (2003, p. 1) a define como “a dinâmica de dádiva e de redistribuição criadora de sociabilidade, de vínculo social”.
Os estudos sobre reciprocidade enquanto lógica econômica constituem a Teoria da Reciprocidade, que atesta que há uma lógica vivida por diversas comunidades em que a relação econômica entre duas ou mais pessoas se dá, levando em consideração o outro e suas necessidades e não apenas o aspecto material estabelecido. Esta seria uma lógica que privilegia o laço social, os valores e os sentimentos em detrimento do objeto e a torna, assim, uma relação econômica movida por humanidade e por sociabilidade.
Ploeg (2011) aponta que parte da resiliência da agricultura familiar traduz a existência de relações que não são mercantis, mas sim recíprocas, e que, apesar de transformadas e ressignificadas, não desapareceram como se supunha. Estas relações de reciprocidade poderiam contrapor algumas características da evolução neoliberal vivenciada atualmente, opondo a concorrência e a competitividade que buscam lucro financeiro individualista, em detrimento de relações sociais éticas.
As duas lógicas (do intercâmbio e da reciprocidade) podem ser encontradas em todas as civilizações e, na maior parte das vezes, coexistem, gerando complementaridades e tensões (Sabourin, 2003, p. 2).
Para Sabourin (2011) a teoria da reciprocidade pode fornecer ferramentas teóricas que permitam olhar de outra forma para as práticas econômicas e também pode instrumentalizar pesquisadores e comunidades na percepção (e possível valorização) de princípios e atitudes mais humanas e integradoras.
As repetições das práticas recíprocas começaram logo no início da humanidade e a recorrência dos resultados desta relação original tem construído a figura de uma estrutura elementar de reciprocidade. Para Sabourin (2010) a tendência que leva a dar, receber e retribuir é uma característica da humanidade e não são culturalmente ou biologicamente dadas. Para o autor, são constituídos nas relações sociais. São as relações de reciprocidade que criam os valores, não o contrário.
A reciprocidade é tida como algo encontrado em todas as culturas. É algo inato na vida em sociedade e, parafraseando Sabourin (2010), nem sempre se consegue explicar todos os comportamentos da natureza humana.
4. Metodologia
Esta pesquisa qualitativa teve como objetivo compreender como as relações de dádiva e de reciprocidade se constituem, sobretudo nas práticas de turismo rural. Além disso, buscou-se entender em que medida tais práticas contribuem para o desenvolvimento deste tipo de turismo.
As leituras dos elementos que nortearam a pesquisa estiveram fundamentadas no método materialista histórico e dialético (Marx, 2002). “A partir da dialética é possível pensar a realidade como um processo histórico e contraditório, em constante transformação, que necessita ser desvelada na sua totalidade para que haja a apreensão do real.” (Kist, 2011, p. 25).
Esta abordagem permite conceber o homem enquanto um sujeito que é “social” e “histórico” (Marx, 2002). Sendo a historicidade compreendida enquanto um processo que permite, por sua vez, entender os fenômenos sociais e os processos de mudança dos sujeitos, que se dão de forma processual e contínua, e que provocam alterações na própria sociedade.
As práticas de turismo rural mostram que, embora sejam prática sociais e se apresentem fortemente enraizadas na história, na cultura e na simbologia local, acabam por ser, em parte, cooptadas pelo mercado, uma vez que o próprio turismo se configura em uma atividade econômica na medida em que se propõe complementar a renda das propriedades e que é gerida para atender às necessidades de consumo dos turistas (Martins & Conterato, 2013; Pato, 2012).
Nesta pesquisa procurou-se trabalhar este processo dialético, com o pressuposto de que esses dois aspectos (cultura e economia) condicionam e são condicionados pelas práticas cotidianas dos agricultores, sobretudo em relação aos que estão inseridos no processo de desenvolvimento do turismo. Buscou-se uma reflexão sobre os elementos que promovem estas iniciativas de turismo rural e sobre os elementos que fazem com que os agricultores consigam, no contexto do capitalismo, se manter no campo e ainda impulsionar o processo de desenvolvimento dos lugares que habitam.
A escolha deste método permitiu a utilização de algumas categorias que puderam direcionar a análise, são elas: a historicidade, a totalidade e a contradição. Estas categorias serviram para iluminar as reflexões sobre o objeto de estudo, sendo tratadas como dimensões norteadoras, porque direcionaram o olhar da pesquisadora desde os primeiros contatos com o objeto de estudo.
Além das categorias do método foram elencadas algumas categorias teóricas, definidas a partir das leituras apontadas no referencial teórico. Neste sentido, a Teoria da Reciprocidade (Sabourin, 2011) pôde oferecer elementos que serviram para identificar e refletir sobre diversas questões, principalmente durante a pesquisa de campo,são elas: “compartilhamento”, “ajuda mútua”, “cara a cara”, “hospitalidade” e “redistribuição”.
Com a definição das categorias foram construídos indicadores e questões norteadoras, para que se pudesse ir a campo e realizar as seguintes etapas da pesquisa:
a) Fase exploratória: contatos iniciais com o roteiro, os agricultores e o local;
b) História de vida dos agricultores: para que pudesse ser capturada a construção das relações de reciprocidade ao longo do tempo e para que se pudesse entender como os próprios sujeitos percebiam sua trajetória como integrantes de um projeto de turismo rural;
c) Entrevistas abertas, porém estruturadas, com 6 agricultores, 4 turistas, 2 membros da comunidade (não participantes do roteiro), 6 membros de instituições locais (Sindicato de Trabalhadores Rurais, Emater/RS, Universidade Luterana do Brasil, Esporte Clube Vera Cruz);
d) Observação participante: para que se pudesse compreender o “não dito”, aquilo que os relatos não contam, ou seja, o subjetivo.
Estes procedimentos foram importantes para conversar com os atores que participaram da constituição do roteiro, para conhecer algumas relações existentes entre eles, para identificar as principais motivações para que trabalhassem com turismo rural, bem como elementos indicadores de reciprocidade. Esta fase também possibilitou que fossem evidenciados valores que as relações entre os sujeitos investigados geraram. Além disto, permitiu compreender a relação histórica e processual das práticas de reciprocidade na comunidade.
A interpretação e a análise dos dados foram realizadas através da análise de conteúdo, com base em Bardin (1986). As entrevistas foram degravadas e organizadas em categorias que correspondessem às categorias da pesquisa. Estas entrevistas (e relatos de história oral) foram interpretadas juntamente com as observações realizadas que haviam sido anotadas e também categorizadas de acordo com os agrupamentos identificados no referencial teórico.
5. Roteiro Vale do Paraíso, em Três Cachoeiras, Rio Grande do Sul, Brasil
A Secretaria de Estado do Turismo do Rio Grande do Sul (Setur/RS), em 2007, através da Lei nº 12.845, instituiu a Política Estadual de Fomento ao Turismo Rural. Além disto, instaurou, através de um Termo de Cooperação, o Grupo Gestor de Turismo Rural, que busca realizar ações e programas direcionados ao processo de ordenamento e fortalecimento do Turismo Rural.
Estas medidas promoveram o início de um processo de ordenamento e incentivo para o turismo rural nas diversas regiões turísticas do Estado, dentre elas o Litoral Norte Gaúcho. Cada região possui diferentes características de ordenamento, atração e promoção turística, bem como diferentes demandas.
O turismo no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, por ser uma região banhada pelo Oceano Atlântico, concentra a demanda de visitantes nos meses de verão e feriados, em função da oferta de sol e mar. No entanto, o turismo rural desponta como uma tendência que aponta a diversificação dos interesses da demanda não mais concentrada apenas no produto sol e praia, típicos de regiões litorâneas.
O roteiro Vale do Paraíso foi uma iniciativa dos moradores da localidade que encontraram apoio em um projeto do curso da faculdade de Turismo da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Campus Torres, juntamente com a Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER/RS), somada à Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural (ASCAR), e do Sindicato de Trabalhadores Rurais.
Foi inicialmente organizado por um grupo de 19 famílias que em suas propriedades possuíam algum atrativo natural ou cultural. A ideia foi diversificar as atividades e possibilitar que as mulheres contribuíssem com a renda nas famílias, já que grande parte das atividades de turismo seriam conduzidas por elas. Hoje o roteiro é operacionalizado por 7 famílias.
As famílias integrantes do roteiro possuem como atividade principal a agricultura, o que vai ao encontro do conceito de turismo rural, já que isto possibilita ao turista conhecer a cultura local e como é a vida no campo. O roteiro inclui visita a um engenho de cachaça, moinhos d’água, artesanato regional, passeios a cavalo, culinária local e trilhas na mata nativa da região.
O roteiro Vale do Paraíso pode ser considerado um roteiro turístico de iniciativa tipicamente endógena. É desenvolvido a partir do interesse dos próprios residentes que viram no turismo a oportunidade de preservar seu espaço, mostrar a cultura local e aumentar a renda (especialmente da mulher). Assim, a agricultura, antes atividade única, passa a coexistir com o turismo.
Destaca-se a participação das mulheres na formatação e operacionalização do roteiro e, ainda, participando de cursos de artesanato, associativismo e outras atividades de grupo que estimulam a prática do turismo como atividade associativa.
6. Análise das relações de reciprocidade no Roteiro Vale do Paraíso
A Teoria da Reciprocidade mostrou-se uma ferramenta importante para entender as práticas sociais que conduzem o desenvolvimento do turismo rural em Morro Azul.
Estas relações se aproximam das estruturas de reciprocidade identificadas por Temple (2003) e Sabourin (2011): compartilhamento, ajuda mútua, cara a cara e hospitalidade. Tais relações acabam por gerar uma série de sentimentos e de valores, tais como: amizade, confiança, coragem, autoestima, pertença, prestígio, medo, inveja, entre outros.
Em relação ao compartilhamento, Sabourin (2011, p. 53) afirma que esta é uma estrutura binária de reciprocidade no âmbito de um grupo e que pode gerar sentimentos de participação e confiança.
O compartilhamento no Roteiro Vale do Paraíso vai além de equipamentos e de infraestrutura como o Museu Casa da Colonização. O próprio nome do Roteiro “Vale do Paraíso” se dá em função do Rio Paraíso, que banha a localidade. Isto, segundo Jorge (2009), expressa uma relação de pertencimento, uma vez que os agricultores compartilham deste rio e possuem vínculo com ele.
Além disto, os agricultores compartilham saberes adquiridos ao longo da história e transformam isto em fazeres ao longo de toda a prática turística, como por exemplo, as histórias contadas sobre os antepassados, da chegada dos imigrantes ao Distrito até sua completa instalação no lugar. Estes saberes são expressos em cantigas, rezas, comidas e utensílios que até hoje estão presentes tanto na vida diária dos agricultores quanto nas atividades que mostram aos turistas.
Este conhecimento é passado de geração a geração, sendo que os mais velhos transmitem aos mais jovens estes saberes, principalmente dentro da unidade familiar, de maneira informal. São os filhos e netos que acompanham a “contação” de histórias e presenciam, no dia-a-dia, a reprodução dos hábitos antigos.
O hábito de “cozer”, por exemplo, é um hábito corriqueiro que se perpetua ao longo da história de Morro Azul. “Cozer” para a tradição existente no lugar, não possui o significado presente no dicionário (cozinhar), mas relaciona-se ao ato de assar pães, roscas de polvilho e merengues no forno de barro. Há ocasiões, inclusive, que o ato de “cozer” acaba por aproximar pessoas, pois alguns vizinhos eventualmente se reúnem para utilização do mesmo forno, ocasionando um estreitamento do laço social.
Tanto as histórias quanto os próprios hábitos acabam por ser compartilhados também com os turistas, dada a própria proposta da atividade de turismo rural. Isto parece estimular e atualizar práticas que poderiam estar perdidas no tempo.
Em Morro Azul o compartilhamento, tanto de saberes quanto das infraestruturas, parecem gerar, além de participação, pertencimento. Isto porque ao compartilhar, os agricultores identificam que fazem parte de um todo, que pertencem a um grupo e que são seres históricos (principalmente porque possuem a mesma origem: imigração italiana ou alemã e são filhos de tropeiros).
Os agricultores também parecem perceber que compartilham o meio ambiente e que por isto necessitam cuidá-lo. É notável o aumento da conscientização ambiental a partir do turismo. Pode-se perceber que o grupo possui informações importantes sobre o ambiente que os circunda, quer sejam conhecimentos herdados ou adquiridos a partir de cursos de turismo ou de assistência técnica rural. Este mesmo tipo de conhecimento parece ter aumentado após o trabalho com turismo, como relatado pelo agricultor que trabalha com cachaça: “Por exemplo, o vinhão ou o vinhoto[4], como falam, que antes a gente jogava no mato e eu fui pioneiro e disse pra gente abrir um tanque e guardar e depois usar, levar pra roça.” (AGRICULTOR 4).
Este agricultor relata que a partir do trabalho com turismo rural pôde participar de cursos e conviver com pessoas que ampliaram sua visão de mundo. Orgulhoso, expressa satisfação ao dizer que está contribuindo com o meio ambiente. Percebe-se assim o nível de cuidado dos agricultores com o meio ambiente, a partir dos conhecimentos que possuem. Este conhecimento também é compartilhado com os turistas, principalmente a partir de orientações como não jogar papéis e outros descartes no chão e mostrando como utilizam resíduos como adubo para as hortas.
Todos estes saberes acabam por vincular cada vez mais o agricultor à sua terra. O grupo entrevistado parece perceber o meio natural e a cultura local como um recurso comum que necessita ser preservado.
As propriedades integrantes do Roteiro recebem os visitantes de forma intercalada. A cada visita o café (e/ou almoço) é servido em uma propriedade diferente, para que todas possam ser beneficiadas. Este acordo foi feito pelo grupo logo no início das atividades.
As entrevistas mostraram que, em alguns momentos, o contato com o mercado promove uma espécie de competição, que gera sentimentos de inveja e de ciúme. Isto ocorre principalmente entre as propriedades que servem refeições, pois são estas as maiores possibilidades de ganhos financeiros porque poucos insumos precisam ser comprados, já que a maior parte do que servem é cultivado pelos próprios agricultores. Com isto, o valor que cobram pelo serviço que desempenham para produzir estas refeições, apesar de ser um valor acessível, gera um lucro considerável para as famílias.
O mutirão é um tipo de ajuda mútua referenciado em Morro Azul. Para Sabourin (2011) o mutirão é uma forma de reciprocidade binária, uma vez que diz respeito a uma forma de ajuda mútua entre grupos, famílias ou indivíduos. Este tipo de ajuda pode gerar amizade, união, pertencimento e outros valores que estão ligados à participação, ao envolvimento, a doar uma parte de seu tempo sem esperar retribuição monetária em troca. A retribuição, neste caso, se traduz no desfrute da comida oferecida e/ou em ajuda quando o primeiro indivíduo necessitar.
Alguns integrantes do grupo relatam que foram feitos vários mutirões para a reforma e manutenção da Casa da Colonização. Também relatam que fazem mutirões para melhorar moradias de membros da comunidade que não têm condições de fazê-lo. Isto gera união.
Este é um hábito praticado pelos imigrantes italianos, relatado pelos moradores, hábito este chamado de pichuru[5]. Em Morro Azul, existem muitas construções em taipa de pedras ao longo de várias estradas de chão batido (pois no distrito não existe asfalto). Estas construções em taipa foram feitas pelos imigrantes e restauradas pelos seus descendentes através de uma espécie de ajuda coletiva, de um mutirão: o pichuru. Os pichurus eram realizados quando algum morador precisava realizar algum trabalho difícil ou penoso. Quando isso ocorria, os vizinhos e amigos ajudavam no trabalho e eram recompensados com uma farta refeição. Este hábito foi diminuindo de intensidade com o tempo, mas ainda se mantém em determinadas ocasiões.
Atualmente, os pichurus tal como aconteciam, parecem se limitar a ajuda para famílias necessitadas, principalmente quando há algum doente que necessite de cuidados. Pode ser que isto ocorra pela monetarização das relações, uma vez que os próprios agricultores relatam pagar diaristas para realizar algum serviço que seja mais pesado, como para abrir roças e na colheita.
De outra forma, pode-se analisar que os pichurus se remodelaram e se ressignificaram. Nas festas comunitárias, sejam elas organizadas pela Igreja Católica ou não, há um tipo de ajuda mútua muito semelhante ao pichuru. Em datas festivas, quem pode ajuda, seja na venda de ingressos, seja na preparação das comidas ou na decoração do salão. É um tipo de trabalho coletivo para o bem comum que é recompensando ora com comida e bebida, ora com o reconhecimento por parte da comunidade.
Importa considerar que o que foi evidenciado é que a ajuda entre os integrantes do grupo, ora parece dar-se de forma gratuita e desinteressada, ora parece manifestar-se com certo interesse financeiro. Este último tipo, embora seja menos evidente entre estes agricultores, é um resultado natural do processo de inserção no mercado turístico, cujo objetivo maior é o lucro.
A ajuda mútua e o compartilhamento, já analisadas até aqui, juntamente com a reciprocidade cara a cara e a hospitalidade, formam o conjunto de estruturas de reciprocidade evidenciadas em Morro Azul.
A reciprocidade cara a cara faz parte de uma estrutura de reciprocidade bilateral simétrica (Sabourin, 2011) e acaba por produzir sentimentos de amizade entre as partes.
Na Associação de Agricultores e Agricultoras de Morro Azul (que não contempla todos os integrantes do grupo de turismo rural) há um grupo de mulheres que trabalha com o projeto de uma farmácia natural. Este grupo recebeu uma verba, mas não via meios de aplicá-la porque a destinação deste recurso haveria que ser pública. Sendo assim, optaram por chamar o grupo do turismo rural para que, juntos, pudessem destinar melhor estes recursos.
O fato de dois grupos trabalharem juntos em prol de um objetivo comum pode ser considerado como reciprocidade cara a cara, pois há dois envolvidos (neste caso, dois grupos), que estão frente a frente. Este tipo de trabalho parece remeter à relações de reciprocidade, uma vez que na localidade todos são, em alguma medida, parentes, amigos ou vizinhos.
O trabalho com turismo rural também gerou alguns impasses na comunidade. Um deles está relacionado à insegurança sentida pela comunidade que não participa do roteiro e isto pode ser analisado a partir do conceito de reciprocidade assimétrica, de Sabourin (2011). “Também achavam que como vem gente boa vem gente ruim, uns vem só pra explorar e ver como é ingênuo o povo do interior pra depois vir os espertos e roubar.” (AGRICULTORA 7).
As relações de reciprocidade cara a cara, embora ocorram de forma menos evidente que os outros tipos de relações de reciprocidade em Morro Azul permitem considerar que esta estrutura é responsável por gerar sentimentos de amizade entre pessoas da comunidade e que este sentimento, de forma cíclica, estimula a participação e o envolvimento nas atividades de turismo rural.
A hospitalidade, enquanto forma de reciprocidade, também é evidente no Roteiro Vale do Paraíso, tanto nas observações quanto nos relatos. Os agricultores relatam histórias que permitem compreender como a hospitalidade foi construída através do tempo.
O hábito de bem receber os visitantes parece ter passado de pais para filhos, de geração a geração. Durante a pesquisa de campo, antes mesmo da criação de vínculo com os entrevistados, pode-se presenciar práticas de hospitalidade que nada têm a ver com interesse financeiro.
As teorias sobre hospitalidade apresentam que ela, ao longo da história, tem sido relacionada à segurança, ao conforto físico e psicológico fornecido ao outro (um visitante, um hóspede), por um anfitrião. Logo, tais estudos envolvem, basicamente, as relações entre estes dois atores: anfitrião e hóspede e envolvem valores afetivos e sociais (Camargo, 2015; Lashley, Lynch, & Morrison, 2007).
Na primeira visita a localidade, obtiveram-se duas ofertas de hospedagem (com tanto acolhimento que se pode sentir constrangimento por ter que retornar para casa). Depois disto, por diversas vezes, em função da pesquisa de campo, houve a necessidade de hospedagem em Morro Azul e isto ocorreu na casa dos agricultores porque eles não permitiam que a pesquisadora pagasse hospedagem em alguma das pousadas dali. Todas estas hospedagens foram regadas a muitos cuidados, conversas, refeições fartas e ainda muitas comidas para levar para casa.
Na primeira ocasião em que foi necessário hospedar-se nas pousadas existentes ali, a proprietária não queria cobrar pelo valor da diária. Após muita insistência, a cobrança foi feita de forma constrangida, como se estivesse fazendo algo que iria contra seus princípios. Quando o anfitrião cobrou o valor devido pela hospedagem e alimentação o fez com a condição de dar pão caseiro e doces, como se fosse necessário compensar alguma coisa. Aqui nota-se a tríplice obrigação presente em uma prática socioeconômica: a agricultora deu hospedagem, em troca recebeu seu pagamento, mas, como forma de retribuição deu alimentos para o hóspede.
Logo após este episódio, antes que fosse necessário se hospedar na outra pousada existente (como uma forma de poder prestigiar as duas pousadas integrantes do Roteiro), a proprietária da segunda pousada soube da estada da pesquisadora em Morro Azul. Na primeira oportunidade que obteve tratou de oferecer hospedagem e almoço gratuitos. Pela entonação da voz, pelos gestos e pela preocupação em saber o valor cobrado na outra propriedade, pode-se perceber que se tratava de competição por prestígio, tendo em vista que a outra pousada já havia recebido a visita da pesquisadora.
Em Morro Azul, o prestígio parece servir ora como motivação da produção ora como fonte de autoridade (entre os mais e os menos “letrados”).
Os agricultores sempre vendem produtos aos turistas durante as visitas, mas também oferecem provas de comidas aos visitantes sem cobrar a mais por isto. Para eles isto é uma forma de retribuir o que os turistas trazem para eles: respeito, valorização, reconhecimento, carinho e alegria.
Um dos turistas entrevistados relata perceber que recebeu muito mais do que pagou. Diz que a recepção ao longo do roteiro é algo incomensurável, algo que jamais vai esquecer. Outro, diz que pode pagar a mesma coisa para qualquer outro lugar, mas não vai ter tudo o que teve ali: simplicidade e carinho.
Além destas relações de reciprocidade, percebeu-se que os agricultores despendem seu tempo sem controlar o horário, parece se esquecerem das horas quando recebem turistas. Isto ocorre justamente porque percebem a reciprocidade dos clientes.
Em todas as propriedades os agricultores demonstram boa vontade para contar suas histórias. Histórias estas sempre regadas a comidas e bebidas, oferecidas como um “agrado”, gratuitamente.
Para os agricultores, o trabalho com turismo rural parece ser uma oportunidade de trocar experiências de vida com os visitantes, de conhecer novas ideias, de aprendizado. Além disso, todos enfatizam a satisfação em conhecer pessoas novas e em manter novas amizades, principalmente pela fidelização do cliente. “Ah...o turismo traz muita troca de experiência, é muito bom! Porque, olha, o que vem gente de gente, de culturas diferentes...nós aprendemos muito!” (AGRICULTOR 9).
Percebem que conseguem mostrar aos turistas que o que é simples é interessante (tanto que mantém sua simplicidade em todas as práticas) e também veem a possibilidade mostrar a natureza que os circunda e a cultura produzida ali.
Os turistas, por sua vez, percebem receber mais do que pagaram. Argumentam que pretendem retornar trazendo mais pessoas, principalmente o restante da família porque “precisam conhecer este lugar” (TURISTA 1). Isto expressa que os turistas pretendem construir uma reputação favorável do Roteiro, de maneira geral, não de uma propriedade em particular. Isto também é um fator interessante, porque, apesar dos conflitos e das diferentes maneiras de conceber a prática turística todos os agricultores conseguem deixar boas impressões a quem os visita e gerar relações sociais.
Como de forma cíclica, a hospitalidade, como manifestação da tríplice obrigação de dar, de receber e de retribuir, parece gerar outro valor: a autoestima. Os agricultores relatam ter sua autoestima aumentada em função do turismo: “O turismo na questão financeira ajuda, mas eu me sinto bem porque a gente tem mais uma autoestima, né. Se sente valorizado, as pessoas conversando, parece, assim, que a gente se sente respeitado pelos outros” (AGRICULTOR 4).
Estes elementos permitem compreender que a hospitalidade em Morro Azul foi construída historicamente e que ela é estimulada pelas próprias práticas cotidianas, destacadamente aquelas relacionadas às visitações dos turistas. A hospitalidade no Roteiro Vale do Paraíso, ao mesmo tempo em que é resultado de um processo histórico, é o que faz, juntamente com os demais atrativos turísticos, com que o próprio Roteiro se torne mais conhecido e visitado a cada ano.
7. Conclusões
Este estudo buscou compreender de que forma as relações de reciprocidade estimulam a articulação dos agricultores em torno de ações comuns, mantendo-se configurados em um roteiro de turismo rural. Esta questão levou a uma reflexão sobre o papel que exercem certos elementos carregados de subjetividade, como ajuda mútua, reciprocidade, entre outros.
A reflexão sobre estes aspectos levou em conta que o meio rural é composto por atores com diferentes lógicas, que podem agir ora sob o domínio da economia do intercâmbio, ora sob o que se chama de Lógica da Reciprocidade.
O que se percebe é que são elementos subjetivos, enraizados no passado, que se tornam atraentes para o visitante e que permitem a reprodução tanto das práticas quanto do próprio roteiro turístico, uma vez que o agricultor sente que este passado é valorizado e, em função disto, busca sua perpetuação.
Pode-se concluir que a leitura do trabalho com turismo rural pode ser feita a partir da Lógica da Reciprocidade, uma vez que as relações de reciprocidade, embora não estejam isentas de alienações, acabam por propor um projeto de desenvolvimento pautado na preocupação com o outro, em valores simbólicos pautados na amorosidade e no vínculo com o lugar e com a história construída.
Destaca-se que, apesar da existência de uma Lógica da Reciprocidade, as relações com o mercado e a entrada de recursos financeiros, dada a própria natureza da atividade turística, aproximem os agricultores da lógica de mercado.
O importante desta análise é perceber que o turismo rural pode ser trabalhado a partir de uma lógica diferenciada da lógica unicamente mercantil. Isto importa para as comunidades que desenvolvem projetos de turismo rural, para as instituições que apoiam tais práticas e para o meio acadêmico. Para os primeiros, as comunidades, se torna importante no sentido de valorizar práticas que são realizadas há anos e que não necessitam e, talvez, não devam ser transferidas para uma leitura capitalista e unicamente mercantil. Para as instituições, é interessante por permitir identificar quando estas relações de reciprocidade se fazem presentes, justamente para que sejam alvo de projetos que as estimulem. Para o meio acadêmico, importa por possibilitar reconhecer que há outra lógica em determinadas práticas turísticas e que esta lógica, longe de ser única e predominante, existe e pode possibilitar a manutenção de sentimentos e valores éticos que influenciem em projetos endógenos de desenvolvimento.
O que se pode perceber é que é possível e concreta, uma dupla leitura destas relações, por serem relações sociais e econômicas (por isto chamadas de socioeconômicas) que se dão, sim, em função do lucro, mas que são práticas carregadas de aspectos subjetivos, de valores, relações e sentimentos que importam para a compreensão do todo.
Esta dupla leitura permite estimular reflexões sobre como o pensamento econômico predominante, o da troca capitalista, parece estender-se quase que ilimitadamente nas leituras sobre as práticas de turismo rural. Com a evidência da existência destas duas lógicas, permite-se propor que futuros estudos reflitam sobre a evidência de relações não monetárias que ainda existem nas sociedades atuais, para que tais relações não sejam destruídas e sim valorizadas.
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Notas